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Espaços e sentidos em disputa: confrontos na praça e no Facebook
Luiza Helena Oliveira da Silva; Elias da Silva
Luiza Helena Oliveira da Silva; Elias da Silva
Espaços e sentidos em disputa: confrontos na praça e no Facebook
Spaces and senses in dispute: confrontations in the square and on Facebook
Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, vol. 11, núm. 2, pp. 248-263, 2018
Universidade Federal de Minas Gerais
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Resumo: Este trabalho, de natureza interdisciplinar, visa inicialmente delinear o que pode representar uma abordagem em semiótica do espaço ao investigar questões relativas ao modo como os sujeitos constroem sentidos para o lugar e, ao mesmo tempo, o modo como o lugar pode ser pensado como um significante. Para isso, põem em diálogo estudos da geografia e da semiótica discursiva, numa análise tanto do espaço propriamente dito – no caso específico, Araguaína (TO), considerando seus traçados e ocupação – quanto dos sentidos que emergem na fala de sujeitos ao remeterem a sua experiência na cidade. Defende que uma reflexão sobre a configuração territorial da cidade deve considerar práticas socioterritoriais compreendidas como o que denominamos “herança resistente”, estabelecida a partir da combinação de três fatores: o sítio urbano, ou a área físico/geográfica onde a cidade foi sendo implantada; as formas como a apropriação ilegal da terra marcou inicialmente o modo de ocupação territorial; e a omissão intencional ou não do Estado local na organização da cidade, conformado como uma espécie de destinador fraco ou mesmo ausente.

Palavras-chave:Espaço públicoEspaço público,Espaço privadoEspaço privado,LugarLugar,Semiótica do espaçoSemiótica do espaço.

Abstract: This paper, of an interdisciplinary nature, initially aims at delineating what can represent a spatial semiotics approach by investigating issues related to how subjects construct meanings for the place and at the same time how the place can be thought of as a signifier. In order to do so, they put into dialogue studies of geography and discursive semiotics, in an analysis of both the spatial itself - in the specific case, Araguaína (TO), considering its tracings and occupation -, as well as the meanings that emerge in the speech of subjects when referring to their experience in the city. It argues that a reflection on the territorial configuration of the city should consider socio-territorial practices that are included in a kind of "resistant heritage", configured from the combination of three factors: the urban site, or the physical/geographical area where the city was implanted; the ways in which the illegal appropriation of land initially marked the mode of territorial occupation; and the intentional or unintentional omission of the local State in the organization of the city, conformed as a sort of weak or even absent destination.

Keywords: Public spatial, Place, Spatial semiotics.

Carátula del artículo

Semiótica e Tecnologia

Espaços e sentidos em disputa: confrontos na praça e no Facebook

Spaces and senses in dispute: confrontations in the square and on Facebook

Luiza Helena Oliveira da Silva
Universidade Federal do Tocantins, Brasil
Elias da Silva
Universidade Federal do Tocantins, Brasil
Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, vol. 11, núm. 2, pp. 248-263, 2018
Universidade Federal de Minas Gerais

Recepción: 03 Enero 2018

Aprobación: 10 Marzo 2018



Significar não é, pois, um ato puramente intelectual; não depende da simples cognição, pois implica também o “eu posso” do ser como um todo, o corpo e a “carne”; ele traduz nossa experiência do mundo, nosso contato com a “própria coisa”.

Fuente: Jean-Claude Coquet. A busca do sentido.

1 Introdução

Uma primeira versão deste artigo foi inicialmente produzida para servir como apresentação, para alunos de um curso de pós-graduação, de uma abordagem do sentido envolvendo a problemática espacial, sob o rótulo do que se define como “semótica do espaço”. Inserida nos estudos da semiótica francesa, também denominada como semiótica de matriz discursiva, teve como um de seus primeiros trabalhos o de Manar Hammad et al. (2016), ao mobilizar categorias narrativas para a compreensão das dinâmicas de interação e de sentido no interior de um espaço preciso, o do seminário de semiótica que acontecia em Paris, em torno de Algirdas Julien Greimas, no final dos anos 70.

A partir de então, encontramos produções que se alinham a diversas perspectivas da teoria, das que concebem o espaço como uma espécie de “texto”, a ser lido pelas categorias da semiótica standard, como em Hammad (2016) e Marrone (2015), trabalhos que se aproximam mais das categorias da geografia como em Fontanille (2013), a abordagens que privilegiam a dimensão propriamente sensível, retomando a matriz fenomenológica da disciplina, como Landowski (2002, 2015) e Geninasca (2004). Inicialmente, buscamos apresentar os fundamentos desse campo aplicado de estudos, como, também, evidenciar a rentabilidade da perspectiva interdisciplinar pelo modo como vão se delineando pesquisas empreendidas pelo Grupo de Estudos do Sentido – Tocantins (GESTO) ao privilegiar reflexões sobre o espaço e a cultura. Para isso, tomamos como objeto de análise um texto que sinaliza para um espaço em disputa na cidade de Araguaína, no confronto entre os interesses de uma família e os do município. Partimos do pressuposto de que o texto em questão, constituído por um post na rede social Facebook, publicado em 2017 e seguido por comentários de internautas, seria exemplar para pensar as relações relativas à ocupação da cidade e a atuação do poder público. Situada ao norte do Estado do Tocantins, com população estimada pelo IBGE1 para o ano de 2017 de 175.960 habitantes, Araguaína ocupa o território de 4.000,416Km², constituindo-se uma das principais economias da região Norte, servindo como um polo econômico que abrange cidades do sul e sudeste do Pará e sul do Maranhão. Nessa direção, nossas reflexões visam compreender os sentidos que se produzem (e se reproduzem) sobre o lugar, a partir do que denominamos como “herança resistente”, tendo em vista o modo de apropriação e de ocupação do território que compreende Araguaína.

O trabalho se organiza em duas seções. Na primeira, apresentamos a cidade e problemas relativos à ocupação e à apropriação do território em Araguaína subsidiados pela geografia (SANTOS, 2008; RATZEL, 1990; SILVA, 2014; TUAN, 1983); na segunda, apresentamos fundamentos da semiótica do espaço, alinhada à sociossemiótica, a que se segue a análise do post2 e comentários. Por fim, nas considerações finais, trazemos a proposta da gestão participativa.

2 Da herança resistente

A reflexão sobre a configuração territorial de Araguaína no que concerne às práticas socioespaciais deve ser compreendida na herança sobre a apropriação da terra (SILVA, 2014) conformada sob três pressupostos: i. a forma como a terra tem sido apropriada; ii. a omissão do Estado em sua representação local, mais ou menos intencional, a depender dos sujeitos e interesses em questão; iii. o sítio urbano, ou a área físico/geográfica onde a cidade foi implantada inicialmente, tendo sua reprodução ampliada até os dias atuais à forma de uma “colcha de retalhos”.

Sobre o primeiro pressuposto, não há como negar a prática da ocupação da terra por meio da posse como terra de trabalho com base nos fluxos migratórios vindos do nordeste brasileiro, a exemplo das bandeiras messiânicas da “terra prometida” do Padre Cícero, alimentando a ocupação inicial nas chamadas “frentes de expansão” de José de Souza Martins (1990). Sobre isso a região de Aragominas, próxima a Araguaína, é emblemática, por vincular-se ainda ao apelo de ordem religiosa, tendo como seus primeiros habitantes nordestinos que seguiam a promessa de uma terra prometida. Nesse sentido, os movimentos migratórios, entre outras características, eram itinerários, o que influenciou ocupações momentâneas, sempre focando novos horizontes. Após esse período inicial, acontece a nova frente migratória “frente pioneira” (MARTINS, 1990) sob a nova perspectiva capitalista, desta vez visando à acumulação por meio da renda da terra, sob slogan do regime militar de “integrar para entregar”, amparada tanto na aquisição da propriedade da terra quanto por meio das práticas da pistolagem sobre as terras de posseiros da frente anterior, expulsando-os sobre pretexto de legítimos proprietários. Essa herança fundamentou e ainda fundamenta as práticas atuais de ocupações irregulares, incidindo sobre a expulsão de posseiros tanto na cidade quanto na zona rural e, em termos da cidade, alimenta a cultura da supressão do privado sobre o público.

Acreditamos que essa herança tenha influenciado muito a cultura política local gerando um Estado mais ou menos omisso, ou seja, capaz de empreender eventualmente práticas de ações punitivas, dependendo das circunstâncias, a exemplo do caso aqui em estudo. Entendemos que nossa hipótese parece plausível e pode ser sustentada em Ratzel (1990), para quem as posses territoriais estão impressas com base nas formas iniciais de distribuição da terra do povo de um determinado território. Tal afirmativa se aproxima à realidade de Araguaína, ao considerarmos a herança da distribuição da terra no Brasil.

Por fim, mas também importante, é a contemplação sobre o sítio onde a cidade foi implantada, o qual contém características peculiares: grande número de nascentes e cursos d’água, formação rochosa arenítica responsável pela ocorrência de solos arenosos, a que se soma o relevo com ondulações que oferecem declividade e propiciam erosão com muita facilidade. Somando-se a essas características do sítio, o clima é um agravante, considerando as duas estações bem definidas do ano: uma com densidade de chuvas e a outra com forte período seco, o que provoca o efeito dilatação versus compressão na estrutura da base rochosa do solo de estrutura física e química frágeis.

É impróprio abordar a configuração territorial da cidade de Araguaína sem associar essas três condições ou pressupostos. Podemos afirmar que, em função dessa herança, a cidade é “vítima”, isso para usarmos uma linguagem tragicamente poética, uma vez que os impactos, negativos ou positivos, são gerados, assimilados e dirimidos no âmbito da sociedade. Em termos semióticos, a cidade seria destinatário de um destinador forte3: há uma herança que perpetua uma lógica de ocupação territorial. Ao mesmo tempo, essa visão racionalista tão fortemente ainda preponderante, nos circuitos da gestão pública, reduzindo a natureza a objeto, não se sustenta mais, em temos de crise ambiental e necessidade de valorização das subjetividades como possibilidades à gestão de qualquer cidade como espaço local. Um dos problemas relaciona-se à proteção às nascentes e à Área de Proteção Ambiental (APANA), criada pela Lei 1.116 dezembro de 1999, “já bastante ocupada pela expansão da cidade comporta inúmeras nascentes e cursos d’água tributários do rio Lontra, maior bacia hidrográfica local” (SILVA, 2013, p. 7).

Esse contexto nos sugere uma singularidade da cidade de Araguaína própria ao conceito de lugar que guarda sua própria complexidade, em situações que em uma listagem está presente no traçado irregular com ruas não padronizadas, tanto na largura quanto no traçado retilíneo e em inúmeras partes da cidade sem conexão, ou traçado sistemático, com passeios ou calçadas. Estes, quando existentes, raramente oferecem fluidez aos caminhantes, quer seja pela estreiteza, desnível, por extensão de edificações irregulares sobre a calçada, quer seja ainda por ser construída com material derrapante, propício a quedas dos pedestres.

Contribuindo com a perspectiva da reflexão semiótica do espaço, devemos considerar que as práticas socioterritoriais consequentemente respondem pela configuração territorial representada na imagem urbana e demonstram a herança sob os três pressupostos anteriormente afirmados quanto à produção da cidade.

Conforme Silva (2013), no desenho urbano se observa a ausência de um plano geral viário do princípio da cidade estendendo sua reprodução ampliada. Nota-se ali a aleatoriedade do traçado urbano em todas as direções, enquanto a presença de cursos d’água atuam como um forte apelo de ordem natural para uma gestão ambientalmente equilibrada. Destacam-se algumas áreas de ocupação irregular na parte leste/nordeste da cidade que evidenciam o traçado aleatório característico da falta de um plano urbanístico, pensado a priori para a cidade.

A origem desses problemas facilmente é desvendada quando visitamos qualquer ocupação irregular, o que, aliás, vem se perpetuando na cidade. Nessas ocupações verificamos ruas fracamente demarcadas e tortuosas, casas de alvenaria mal esboçadas e sem esquadro, não alinhadas, determinando, em caso de efetivação do assentamento, a reprodução e perpetuação das características aqui elencadas de urbanização ao longo do tempo.

No entanto, a configuração urbana sugere uma imagem para além da representação físico/espacial, uma dimensão subjetiva, tanto a quem a conhece quanto não: quem a conhece, ao visualizar nomes de ruas, praças, bairros, estabelece imediatamente seus laços afetivos, sejam quais forem; quem não a conhece, obviamente também estabelece seus laços procurando mais as relações topográficas convencionais relativas aos formatos urbanos, em algum grau de hierarquia comum à semântica dos termos dispostos. Nesse sentido, há um amparo, genético, emocional e cultural que contribui para conformar nossa concepção de espaço e lugar no sentido de concebermos a configuração urbana de Araguaína, ou de qualquer outra cidade sob nossa base de conhecimento cognitivo abstrato e de assimilação cultural (TUAN, 1983).

A imagem de configuração territorial de Araguaína, para os seus residentes, traz implícitas, além dessas dimensões de caráter objetivo e subjetivo, as práticas que envolvem outras situações de interstícios cotidianos a exemplos de um quiosque numa calçada pública, uma varanda estendida sobre a calçada para ampliar um estabelecimento do ramo de alimentação. Veja-se, a título de exemplo, a pesquisa realizada sobre uma das comunidades de Araguaína, a Vila Cearense, ainda à espera de regulamentação da posse da terra para seus ocupantes. A exemplo de outras áreas da cidade, a ocupação se inicia precária e caoticamente, a despeito da percepção dos moradores que apresentam um olhar euforizante sobre o lugar, reduto identitário para migrantes nordestinos e que sinaliza os progressos dos sujeitos ao longo do tempo (MOURA et al., 2017).

A conjunção desses fatores constituiria uma herança resistente, isto é, uma continuidade sobre formas de ocupação e significação do espaço que implicam um modo de ser dos sujeitos na cidade, um modo de relacionar-se com o lugar e lhe conferir sentido. Enunciar a relação com o espaço, mesmo que apontando para aspectos subjetivos e individuais, é também deixar-se atravessar por uma enunciação coletiva, essa ordem que, em princípio, responde pelo enunciado/desenho da cidade, que se expande sem mudar escolhas de uma enunciação fundadora.

3 Os sentidos no sujeito no/para o espaço

Os textos que serão aqui analisados constituem-se de depoimentos publicados na rede social Facebook, em fevereiro de 2017, os quais tinham como ponto em comum conflitos envolvendo os usos da praça pública. Uma vez que se trata de depoimentos de leitura não restritiva, tendo o primeiro sido reproduzido pela mídia local – postagem inicial que gera a discussão na rede –, mantivemos a identificação da autoria. Também mantivemos as menções ao nome do atual prefeito, Ronaldo Dimas, e à prefeita de gestões anteriores, Valderez, dado que não haveria como não identificar quem são os sujeitos mencionados.

Para análise desses relatos, opiniões partilhadas na rede social e sem a previsão de um público estritamente particular e fechado4, as categorias de análise são aquelas vinculadas propriamente à semiótica do texto, sendo o espaço aí considerado como tema comum a fazer convergir as atenções dos sujeitos implicados, sob o qual se confrontam diferentes perspectivas, tendo, de um lado, o poder público ou a igreja; de outro, os cidadãos, representados pelos internautas em processo de interação na rede. Essa dimensão dialógica que remete ao confronto de discursos e posições político-ideológicas se manifesta pelo caráter polifônico das postagens, evidenciando vozes/posições em relação polêmica. Nesse sentido, investigamos o modo como os sujeitos produzem sentidos para o lugar, sendo a praça tomada como metonímia para uma reflexão maior sobre a apropriação do território urbano. Antes de passarmos à análise propriamente dita, faremos considerações gerais sobre a teoria semiótica, que subsidia nossa leitura.

Conforme anunciamos, subsidia nossa análise a semiótica discursiva, de matriz francesa, concebida como uma teoria da significação. A semiótica não se apresenta como ciência, como advertem seus principais teóricos, nem se confunde com outras abordagens, como a que se denomina semiologia ou outra perspectiva bem produtiva no país, a semiótica peirceana (esta se qualificando como “ciência do signo”). Ainda que o signo também interesse à semiótica que nos propomos fazer, o lugar do exercício semiótico “não é o do signo empírico e suas codificações (de que a semiótica não diz quase nada), é o do sentido que o signo suscita, que ele articula e que o atravessa” ou ainda “seu objeto não é o signo, mas as relações estruturais, subjacentes e reconstruíveis, que produzem a significação” (BERTRAND, 2003, p. 15).

Como teoria da significação, considera o modo como produzimos sentidos para os textos, como uma espécie de teoria da leitura, mas obviamente há mais no seu horizonte, abrindo-se à investigação a respeito do modo como produzimos sentido na nossa relação com os objetos (LANDOWSKI, 2009; FONTANILLE, 2013; SILVA e MELO, 2015), com outros sujeitos (LANDOWSKI, 2014, 2002) e com o mundo, enfim, com a própria vida (GREIMAS, 1966). Assim, por exemplo, na análise de um livro de romance, podemos nos deter unicamente na materialidade mesma do texto, seu modo específico de dizer, seu tom, suas escolhas temáticas e figurativas, seu léxico etc., assim como em suas estruturas mais abstratas e profundas. Podemos, contudo, levar em conta a materialidade do livro enquanto objeto cultural, constituído de outros textos que orientam a leitura do texto principal (orelha, capa, contracapa, ilustrações, comentários, notas de rodapé etc.) ou ainda o modo de circulação e que vai construir a própria recepção (LANDOWSKI, 1996). Cabe, nesse caso, ao semioticista delimitar os níveis de pertinência de sua análise. O que se recorta como objeto de investigação? O que definirá como interno ou externo ao seu objeto?

No nosso caso, dedicamo-nos a estudar – e quiçá a colaborar para consolidar – uma semiótica que se dedica a pensar o espaço, para isso obviamente nos assentando numa perspectiva interdisciplinar, uma vez que nos antecedem as produções da geografia, da arquitetura, da sociologia, da história, do direito, entre outras disciplinas que se voltam para a problemática do espaço. Mais especificamente, visamos com os trabalhos decorrentes de orientações de pesquisa contribuir para a compreensão sobre a constituição dos sentidos sobre lugares e memórias como da cidade de Araguaína do Estado do Tocantins, entre outros, levando em conta a ordem histórica e política que define modos diferentes de territorialidades ou posses no território, fomentadoras de sentidos para ser/estar no lugar.

Para isso, partimos de um pressuposto geral: na perspectiva semiótica, os sentidos são sempre construídos pelos sujeitos na sua relação sensível com o mundo (e com outros sujeitos) e não se acham, portanto, já dados nos objetos do mundo, à espera apenas de sua apreensão, como numa espécie de decodificação. Entram em cena, nessa perspectiva, a materialidade das coisas que se dão a conhecer e a singularidade das experiências sensíveis do sujeito que lhes atribui sentido, ainda que a singularidade da experiência seja obviamente atravessada pelos discursos que medeiam nossa relação com o mundo. O sensível, nessa perspectiva, não escapa à historicidade na qual estão imersos os sujeitos, atravessados por diferentes discursos e, por isso mesmo, também por contradições.

Do ponto de vista da relação sensível com o espaço, é oportuno, portanto, observar que esta se deixa permear pela herança cultural, compreendida como efeito de discursos e práticas, que podem ser naturalizadas e obscurecidas a ponto de os sujeitos terem como programado tanto um sentido quanto um modo de relação. Essas reflexões iniciais pretendem ser esclarecidas a partir da análise depoimentos, conforme mostraremos a seguir.

Da semiótica mobilizaremos categorias relativas ao que a teoria define como nível narrativo5 e que compreende relações intersubjetivas e interobjetivas (sujeitos e objetos), assim como se levará em conta a enunciação, correspondente a um dos processos da sintaxe do nível discursivo.

4 Nós contra o Estado

Um fato mobilizou a cidade de Araguaína, no primeiro semestre de 2017, referente à remoção de um trailer instalado há vinte anos no espaço da praça D. Luís Orione, que se situa em sua região central. Após uma “carta” dirigida ao prefeito e cuja autoria é atribuída à filha do proprietário do trailer, pudemos acompanhar uma ampla comoção no Facebook, com sujeitos majoritariamente solidários à perspectiva da jovem, o que levou o prefeito a também publicar uma resposta6. Reproduzimos a seguir o referido texto (carta) e três comentários de internautas (1), conforme apareceram na página de um dos amigos que temos em comum no Facebook e que a replicou, em solidariedade7. Dada a mobilização provocada, o texto da carta foi reproduzido pela mídia local8.

(1)

DESABAFO DE UMA ARAGUAÍNENSE9

Senhor Ronaldo Dimas

Eu me chamo Tharkenya Gomes Trindade, filha do dono do Kero Kero sanduíches. Eu gostaria de um pouco de sua atenção. A nossa cidade de Araguaína, assim como vários estados do Brasil, se encontra em uma crise hostil. Milhares de pessoas desempregadas, umas passando fome, assaltando supermercados para comer, outras querendo trabalhar e não conseguem emprego, mas eu queria te fazer uma pergunta: trabalhar é crime? Querer um espaço conquistado há mais de 20 anos é errado? A população amedrontada com tantos assaltos, com tantas mortes é normal?

Estou muito triste com tudo o que está acontecendo, nossa vida desde que o senhor disse que meu pai não poderia ficar na praça trabalhando no trailer tem virado uma bagunça. O senhor tem filhos, tem um emprego, um salário ótimo, pago por impostos da população, mas se o senhor estivesse na nossa situação iria gostar de ver seus filhos passando necessidade? Iria gostar de ver seus filhos vendo você se humilhando para conseguir um emprego? Iria gostar de ver seus filhos no último período de faculdade e não poder terminar por falta de pagamento? Tenho certeza que o senhor não gostaria e nem te desejo passar por isso, porém, acho que o senhor deveria nos deixar trabalhar, precisamos de trabalhar para pagar nossas contas, para comer, para viver senhor prefeito.

Agora, por favor, nos dê nosso espaço de volta, a Praça das Nações sempre foi onde ficamos antes mesmo do senhor ser prefeito desta cidade, não estamos te pedindo muito, estamos te pedindo um espaço que sempre foi nosso.

O senhor disse que nessa reforma da praça não tem no projeto o nosso espaço de colocar o trailer, mas porque? Porque o senhor não fez um projeto nos incluindo se sempre estivemos ali? Porque o senhor mesmo nunca pode conversar com meu pai, sempre é teu secretário? Eu não aguento mais ver meu pai e minha mãe tristes, chorando por não saber como será o dia de amanhã, se vai dar de pagar as contas, se vai ter dinheiro para pagar a faculdade, energia, água, supermercado, nao aguento mais tanto descaso com meus pais. EU NÃO AGUENTO MAIS. Por favor, faça a sua parte, por que a nossa era esperar, mais até agora você não fez nada.

Comentário 1: Era melhor a Mãe Valderez.

Comentário 2: Estou com vocês pois todos os que frequentavam a praça se deliciava com os seus sanduiches e seus maravilhosos sucos e hoje vamos na praça e vocês já não estão lá espeto que o prefeito se compadeça a situação e resolva fazer alguma coisa pois não é fácil um pai de família que trabalha a vida inteira ficar assim. Que Deus tenha misericórdia. Tenha fé Eldir e Maurilio que tudo vai dar certo.

Comentário 3: Um dia seu reinado acabará, Sr. prefeito, com fé em Deus.

Inicialmente, consideremos que se trata de uma disputa que se relaciona ao direito a um dado espaço, nas distinções/confrontações entre espaço público e espaço privado e que diz respeito a um modo particular de produção dos sentidos pelos sujeitos na sua relação com a cidade. A constante omissão do poder público seria, em princípio, a responsável pelo efeito de indignação provocado pela ordem de despejo, haja vista que a irregularidade se daria há 20 anos, confirmando a naturalidade da ocupação. Esse estado de coisas colaboraria para confirmar para os sujeitos leitores/amigos que leram o post que a ocupação da praça pública deveria ser vista como legal e regular, o que se reverbera tanto na fala da jovem indignada pela perda da fonte de renda dos pais, como na dos internautas que comentam a publicação.

A diluição dos contornos entre público e privado se apresenta já na relação entre os destinatários da mensagem. Trata-se de uma carta, que tem no vocativo a convocação de seu leitor pressuposto, o então prefeito da cidade, Ronaldo Dimas. Ocorre, contudo, que o texto sai da esfera mais particular do litígio entre família e poder público e passa para a esfera pública ao ser reproduzida no Facebook e, posteriormente, nos portais de notícia locais. A autoria do texto é assumida imediatamente após o vocativo, deixando claro já na primeira frase de que se trata da filha do dono do estabelecimento com ordem de remoção da praça: “Eu me chamo Tharkenya Gomes Trindade, filha do dono do Kero Kero Sanduíches. Eu gostaria de um pouco de sua atenção”. Pelas características do gênero carta, simula-se o diálogo entre os dois sujeitos (estamos, portanto, diante do simulacro do privado), mas, na medida em que esse texto se multiplica, circulando em diferentes posts nas redes sociais, os destinatários previstos para a mensagem também se multiplicam, sendo incontáveis agora os enunciatários (leitores) que sancionam positiva ou negativamente a ação do prefeito. O privado se desfaz então na direção do público e o diálogo não é mais entre Tharkenya e Ronaldo Dimas, mas entre o prefeito e seus eleitores, que tomam majoritariamente a defesa da jovem, para isso se valendo dos valores assumidos individual e coletivamente com relação ao espaço urbano.

Do ponto de vista da perspectiva enunciativa, temos aqui uma relação entre um destinador (narrador), projetado no texto em primeira pessoa (eu) e um destinatário (narratário), um “tu” tratado cerimoniosamente ao longo do texto como “o senhor”. Cabe, contudo, observar que, na última frase, a autora emprega o pronome “você”, menos formal, combinando com o tom mais agressivo, dado o uso do verbo no imperativo pelo qual enuncia o que o destinatário deve fazer, logo após uma frase com letras em caixa alta: “Por favor, faça a sua parte, por que a nossa era esperar, mais até agora você não fez nada”. O texto caminha então de uma busca de respeitosa aproximação com o destinatário para uma ruptura dada pelo tom mais agressivo e pela mudança de tratamento conferida ao outro. A pretensa humildade inicial se converte em ordem ao final, exigência que se assentaria nos direitos adquiridos sobre a posse.

Do ponto de vista argumentativo, esse enunciador é bastante competente, mobilizando diferentes estratégias para comover seu interlocutor e levá-lo a considerar a situação do trabalhador então despojado de sua fonte de renda. Faz menção ao contexto macro do país, à violência, ao desemprego, visando comover o outro – o destinatário inicial, prefeito, mas também os demais convocados pelo Facebook, que se aliariam a sua demanda. Não vamos nos deter nos aspectos de natureza retórica, mas apenas considerar aquilo que mais de perto nos interessa. Para tal, selecionamos três trechos, grifando alguns termos:

(A) Querer um espaço conquistado há mais de 20 anos é errado? (B) Agora, por favor, nos dê nosso espaço de volta, a Praça das Nações sempre foi onde ficamos antes mesmo do senhor ser prefeito desta cidade. (C) O senhor disse que nessa reforma da praça não tem no projeto o nosso espaço de colocar o trailer, mas porque? Porque o senhor não fez um projeto nos incluindo se sempre estivemos ali?

O enunciador deixa expressa a certeza de ter direito ao espaço, que é então concebido sob a perspectiva da posse, dada pelo uso do pronome pessoal “nosso” que se repete em (B) e (C). A posse desse local se dá por uma “conquista” (A), que se confirmaria pela continuidade ao longo do tempo: “há mais de vinte anos” (A) e “sempre” (B). É a continuidade de um estado de coisas que se vê, portanto, ameaçada. Os ocupantes estariam ali há mais tempo que o prefeito em seu cargo, contrapondo-se, portanto a duração da ordem da permanência (a dos ocupantes) à duração da ordem provisoriedade do cargo de prefeito: opõe-se o “sempre” alcançado pelos 20 anos à transitoriedade dos anos relativos à atuação na gestão da cidade. A legitimidade da posse é conferida então pela maior duração e consequente estabilidade.

Se levarmos em conta que se trata de uma praça, trata-se da permanência de uma irregularidade há bastante tempo, sem que medidas tenham sido tomadas pelas gestões anteriores – conforme se lê no comentário que remete à “Mãe Valderez”, ex-prefeita e opositora a Dimas e que teria ignorado o problema em seus dois mandatos. O emprego do substantivo “mãe” atesta a proximidade entre poder público e população que se quebra com a gestão atual, mais técnica e legal. Opõe-se aqui um modo de administrar a cidade, considerando a reação dos sujeitos a um modelo mais objetivo e distanciado. A carta serve, portanto, para convocar a intimidade perdida.

No caso do público representado no fórum do Facebook aberto pelo post, a posição favorável ao apelo da jovem conta certamente com a identificação com relação aos problemas econômicos que serão enfrentados pelo sujeito trabalhador, segundo o texto, figurativizado como pai de família, desesperado com a perda da fonte de renda, sem que tenha para isso se preparado, uma vez que não poderia compreender os sentidos do público, numa cidade em que o espaço público sempre fora desrespeitado. Nessa direção, o prefeito se caracteriza a partir do post como um sujeito insensível, a ignorar as mazelas sociais, longe da imagem de um gestor preocupado em garantir que espaços indevidamente apropriados sejam devolvidos à população.

Ao pensar o espaço a partir de regimes de interação, Landowski (2015) analisa o espaço da Internet sob a perspectiva dos regimes da “programação” e da “manipulação”. À programação corresponde o que ele designa como “tecido” e à manipulação o que ele chama de “rede”.

A programação corresponde ao regime de interações assentadas na previsibilidade, na repetição, na cotidianidade, sem ocorrência de riscos que pudessem evocar uma mudança frente a uma dada ordem das coisas. As relações entre sujeitos ou entre sujeitos e objetos são, por conta dessa extrema regularidade, esvaziadas de sentido, na medida em que são sempre mais do mesmo (LANDOWSKI, 2014). Do ponto de vista espacial, trata-se de ver uma dada conformação do espaço como um tecido, uma trama tão bem estruturada que o sujeito a sente como um contínuo, uma totalidade:

Ver o mundo como um tecido de coisas contíguas é efetivamente, ao mesmo tempo, compreendê-lo como um tecido de relações constantes: como um mundo uno, não somente sem solução de continuidade, mas também onde, mais profundamente, “tudo se sustenta” porque “uma coisa após outra” tudo tem “prise” sobre tudo. Do infinitamente grande ao infinitamente pequeno, o universo aparece como uma única imensa isotopia intimamente articulada, como um “espaço de espaços”, no qual cada elemento, ao mesmo tempo que oferece regularidades específicas em seu próprio nível, interage tanto com o que contém quanto com o que o engloba (LANDOWSKI, 2015, p. 19).

Pensando na relação sujeito/cidade, as mudanças operadas pelo prefeito caminham no sentido de uma maior presença do poder público como um destinador (o que faz fazer), tradicionalmente ausente, o que aponta para uma quebra da programação anterior, a que corresponde ao modo de funcionamento da cidade e conformação de sua “herança resistente”. Mas nos interessa privilegiar o próprio espaço do post, esse espaço que se abre no contínuo de textos da Internet, como um fórum provisório a abrigar sujeitos colocados em relação por conta de interesses comuns. Se o espaço internet pode ser pensado como tecido, ele também pode ser compreendido como “rede”, como “espaço convencional da circulação de valores” entre um destinador e um destinatário e que corresponde ao regime da manipulação (LANDOWSKI, 2015, p. 14). No caso do post analisado, temos toda uma organização de natureza argumentativa que visa levar sujeitos destinatários (o prefeito convocado, mas também os demais leitores) a entrar em conjunção com seus valores e sua concepção de justiça frente ao direito de uso de um território específico. Estar na rede Internet é, então, cambiar valores, agir sobre o outro, atendendo a uma gama de variáveis e interesses diversos, diferentemente concretizados no discurso, mas que se traduzem numa sintaxe elementar, aquela em que um sujeito (individual ou coletivo) visa pôr um outro em conjunção com um dado objeto valor. O sucesso dessa ação, contudo, fica na dependência de que os sujeitos previamente compartilhem de um dado sistema de valores e crenças. São valores e crenças socialmente partilhados pelos araguainenses que seriam então mobilizados pela jovem ao escrever a carta.

Ocorre, contudo, que no Facebook os sujeitos se organizam a partir de comunidades mais ou menos dispersas e não totalmente à deriva: temos acesso aos textos dos que são qualificados como amigos, ainda que não sejam propriamente os autores (Cf. nota 5), o que pressupõe afinidades, aproximações já afirmadas anteriormente. Ao mesmo tempo, dentro da sucessão de postagens, um post que ganha comentários funda uma espécie de fórum, um lócus que tem uma conformação específica, espécie de ilha provisória a quebrar a continuidade dos textos e a deter a aceleração do que avança sobre o feed de notícias. Emerge como lugar que tende para a manifestação dos argumentos, mas também dos afetos, propiciando uma nova configuração espacial, a do “regime de ajustamento”, correspondente ao que Landowski (2015) denomina como “espaço voluta”: “Derivados da mesma raiz latina que voluta, o inglês involve e o português envolver exprimem essa ligação entre a figura espacial e dinâmica de um movimento turbilhonar e a ideia de um comprometimento do sujeito imbricado, emaranhado, implicado num processo interacional” (LANDOWSKI, 2015, p. 22). A ilha representada pelo fórum funcionaria então mediante uma força centrípeta, fazendo convergir os olhares e os interesses pela temática em discussão. Nesse sentido, com relação ao post em análise, o Portal O Norte10 registra 2.500 curtidas, 413 comentários e 990 compartilhamentos, denunciando o sucesso da estratégia do ponto de vista da busca de atenção para o problema.

5 A mesma praça

Na mesma semana em que se discutia a remoção do trailer da praça, em 23 de fevereiro de 2017, outro post (2) no Facebook visa provocar uma reflexão sobre a ocupação dos espaços públicos da cidade e o modo como se naturalizam formas de ocupação irregulares. Dados os comentários condenando seu autor (“Ora, ora! Respeite a lei de Deus”; “Preocupa não que Deus tá vendo”; “O correto é vc não passar mais lá nesse horário hahhaahah”), este apresenta no dia seguinte um novo post, com teor semelhante (3), mantendo o tom irônico:

(2)

Meus amados irmãos católicos que frequentam a missa aos finais de semana na igreja da Praça São Luiz Orione. Por qual motivo vocês bloqueiam a rua com seus carros de luxo, dificultando muito a passagem dos outros cidadãos que necessitam transitar por ali?

A autorização é do padre de Maria ou de Jesus? Me fala ai que tenho contato com os três, e tenho certeza que eles não concordam com tamanha falta de respeito, educação e principalmente, cristianismo que tem como base absoluta, amor e respeito ao próximo.Pela atenção, obrigado.

(3)

Gente vou excluir o post anterior se todo mundo concordar que o pessoal da macumba tbm pode estacionar no meio da rua... bjs, pela atenção, obrigado.

Embora os comentários aos posts (2) e (3) tenham sido majoritariamente de adesão, confirmada com indicações de risos ou argumentos em solidariedade, ressaltamos acima três que os refutam, tendo em vista observações também de natureza religiosa.

A cena descrita por Pedro11 e que ameaça o trânsito pelo local – rua em frente à igreja católica e ao lado da mesma praça do conflito anteriormente narrado – se configura como uma prática que se repete por ocasião dos cultos mais prestigiados (aos domingos, em comemorações especiais12). Estacionados em filas duplas ao longo de toda a rua, os carros não são multados, havendo, portanto, um aceite por parte do poder público acerca da razoabilidade dessa ocupação transitória, com fins religiosos.

A prática deixa subentendido que há uma força maior ainda que esta não seja propriamente de natureza divina, uma “lei de Deus” – como apela um dos comentadores. É essa força que intervém como poder na cidade e que age para a interdição dos sentidos: os sujeitos não percebem que se trata de uma irregularidade ou, se a identificam, justificam-na como um apelo do âmbito do sagrado. O erro (pecado) estaria, pois, em insistir em passar por ali, em vez de mudar a rota – “O correto é vc não passar mais lá nesse horário hahhaahah” –, profanando a prática religiosa.

Pedro traz ainda uma figura que concretiza o poder dos fiéis ali reunidos – os “carros de luxo”. Não seriam, portanto, quaisquer sujeitos que podem cometer a infração. São os que têm a seu lado a força econômica aliada ao poder da igreja católica na cidade. Semelhante poder não teriam membros de outras práticas religiosas, como a que remete no post (3). Se fossem sujeitos de crenças não hegemônicas como a macumba, haveria a mesma percepção por parte dos sujeitos que precisam contornar a praça? Haveria o mesmo silêncio por parte dos moradores e do poder público?

De novo, temos o privado avançando sobre o público, agora com o Estado submetendo-se ao poder e prestígio da igreja católica na cidade. A praça em disputa recebe o nome de um líder religioso (D. Orione), personagem que conta também com a presença de um monumento no lugar. A forma retangular da praça em frente à igreja recebe uma curvatura numa de suas laterais para favorecer o trânsito adjacente, uma vez que a parte frontal da igreja avança sobre a calçada e a própria rua. Num primeiro projeto de remodelação da praça, reinaugurada em 2015, haveria uma contiguidade entre praça e igreja, proposta abandonada possivelmente pelos custos implicados na reforma. Essa contiguidade não marcada no desenho se marca, porém, no imaginário. A praça é da igreja.

6 Considerações finais

Acreditamos que nosso esforço até aqui é oportuno por apresentar algumas situações de ordem histórica, política, cultural e espacial que uma vez colocadas desde o início da cidade, são recorrentes, o que nos leva a intuir que a gestão urbana de Araguaína não se resolverá a partir de uma decisão central ou de gabinete, muito menos à base de ações puramente coercitivas, mas sugere que seja iniciada a partir de uma mobilização constante de base, como num projeto “sentinela”, reunindo segmentos representativos da sociedade como associações de moradores, escolas, igrejas, clubes de serviços, faculdades e Universidade. Somente a partir dessa base o poder público poderá tomar decisões finais. O poder público local deveria, assim, tomar a iniciativa como estimulador e indutor da participação engajada, ou seja, a gestão, enquanto proposição deveria acontecer de “baixo para cima”, sem nenhuma alusão de demérito a esse termo, pelo contrário, com atribuição do real e grande valor que a sociedade local organizada em seus segmentos merece (SOUZA, 2003). Somente consolidada essa base o poder público local deveria assumir seu papel, a posteriori, como executor da gestão, considerando as características peculiares levantadas anteriormente nos dois primeiros itens deste texto.

Isso nos leva a pensar a inversão da lógica de gestão em todos os aspectos das cidades como lugares que reúnem a diversidade cultural, histórica, econômica e diversidade ambiental, atributos desprezados e/ou ignorados pelos gestores, cujas práticas sempre foram pautadas na valorização dos conhecimentos reificados externamente, cujas aplicações anulam os saberes locais nos diversos segmentos de conhecimentos: econômicos, políticos, culturais, históricos, tanto os produzidos no universo acadêmico quanto empírico ou popular. Fundamentamos nossos argumentos neste sentido tanto em Santos (2008) como em Mignolo (2003).

Em Santos (2008), o lugar é a complexidade necessária da atual globalização por reunir todos os segmentos de todas as ordens: o trabalho, a cultura, a política, as empresas, os chamados “homens lentos” ou aqueles que praticam a solidariedade todos os dias. Para esse autor, o lugar guarda a dimensão da comunicabilidade com a capacidade de ressignificação da ordem global ou a informacional. Quanto a Mignolo (2003), o interessante é o fato de afirmar que projetos hoje globais foram no passado histórias locais. O que deve ser desmascarado é o aspecto geohistórico do discurso, o que significa afirmar que todo processo cultural do conhecimento hegemônico é intencional e imposto por meio do que denomina “colonialidade do saber”, sobretudo nas práticas sociais dos povos latinoamericanos. É nesse sentido que se coloca a necessidade da valorização dos saberes locais.

Nossa reflexão trouxe situações diversas como o caso do episódio do lanche Kero Kero, as três condições da configuração urbana e os projetos em andamento que se tornam emblemáticas para pensarmos como as práticas socioterritoriais em Araguaína podem estar carregadas de subjetividades individuais e coletivas, que não se esgotam em si, mas alimentam bases objetivas da vida, com efeitos sobre a economia, a política, a sociabilidade. Mesmo quando aflora a subjetividade, numa força mobilizadora de reivindicação, a exemplo da jovem Tharkenya Gomes Trindade, demandando direito à vida, ainda o que está em jogo é a manutenção de uma (des)ordem que define um modo de ser da cidade. Olhando a situação de fora do drama de Tharkenya Gomes Trindade, observamos a capacidade mínima de mobilização em seu benefício, as preferências político/partidárias da mais forte política opositora do atual prefeito, o que deve ser canalizado para oferecimento de programas que não tenham apenas a bandeira do imediatismo político eleitoral, mas o bem coletivo maior como política pura no sentido aristotélico da palavra.

O episódio ocorrido na Praça Dom Orione serve de indicador para aguçar o interesse de protestos em relação a outras praças e/ou outras territorialidades em várias partes da cidade, até então passadas despercebidas pela sociedade, ou pelo menos suportada – a questão do fechamento da rua no momento de culto religioso aos domingos, noturno ou em outros momentos de festejos da igreja. Há, assim, a possibilidade de sugerirem regimes de intencionalidades em relação ao espaço público sobre o qual se decide quem tem o direito ou mais ou menos direito à apropriação momentânea, uma vez que, tanto na igreja quanto no lanche Kero Kero, e/ou em outras praças, ruas, parques, praticam-se usos momentâneos do mesmo espaço, exercendo cada qual um modo de ser num território em disputa entre os interesses do coletivo ou do individual.

O que essas análises nos trazem para a prática da disciplina que ora iniciamos? Uma delas é a compreensão sobre o modo de constituição da imagem que os sujeitos produzem a propósito do que é uma cidade e seu funcionamento. Uma imagem que turva as fronteiras entre o público e o privado. Uma imagem sobre relações de poder no interior do país, especificamente, Araguaína.

Material suplementario
Referências
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COQUET, J-C. A busca do sentido: a linguagem em questão. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
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GREIMAS, A. J. Sémantique structurale: recherche de méthode. Paris: Larousse, 1966.
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LANDOWSKI, E. Por uma abordagem sócio-semiótica da literatura. Significação, n. 11-12, p. 22-43, 1996.
LANDOWSKI, E. Regimes de espaço. Galaxia (Online), São Paulo, n. 29, p. 10-27, jun. 2015.
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MIGNOLO, W. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos, e pensamento liminar. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
MOURA, S. G. C.; ROSA, T. M. O.; SILVA, L. H. O.; SILVA, E. Lugar, memória e identidade: uma análise das transformações da Vila Cearense em Araguaína-TO. Mimeo, 2018.
RATZEL, F. Geografia. São Paulo: Ática,1990.
SILVA, E. Abordando Araguaína (TO) sob a tríade: território, cidade e rede no Brasil.VII Congresso Brasileiro de Geógrafos. Vitória (ES), agosto de 2014.
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SILVA, L. H. O. Manifestos políticos nas ruas e no Facebook, Document XII Sémiotique et engagement. Actes Sémiotiques, v. 1, p. 1-12, 2017.
TUAN, Y. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983.
Notas
Notas
2 O termo pode ser compreendido tanto uma contração da palavra “postagem”, em português, como o uso de um estrangeirismo anglo-saxônico. Optamos por registrá-la em itálico como um dos estrangeirismos incorporados pelo universo digital.
3 Estamos aqui nos reportando a termos relativos à semiótica discursiva e que dizem respeito às relações entre o que a teoria denomina como destinador-manipulador, que determina, por diferentes processos, a transformação de um outro sujeito, o destinatário-manipulado. O que denominamos como “herança” seria então responsável pelo modo de ser da cidade, agindo constantemente para manutenção de uma (des)ordenação espacial. Conforme Greimas e Courtés (2008), tem-se entre os dois actantes uma relação assimétrica, com o destinador numa posição hiperonímica com relação ao destinatário, que se coloca em posição hiponímica.
4 Nessa rede social, há grupos abertos e fechados, prefigurando diferentes formas de acesso. Na medida em que os textos podem ser compartilhados ad infinitum pelos respectivos membros, porém, essa distinção pode ser diluída. São, enfim, complexos os processos de triagem que acabam por definir o fechamento frente ao que se pode ou não acessar na rede (SILVA, 2017).
5 A semiótica concebe que o sentido de um texto se organiza em três patamares, que correspondem a diferentes níveis de abstração: nível fundamental, nível narrativo e nível discursivo. Cada um desses níveis é constituído por uma sintaxe e uma semântica.
6 Cf. http://www.portalonorte.com.br/araguaina-83068-em-rede-social-prefeito-mantem-decisao-de-proibir-trailer-em-praca-e-filha-faz-mais-questionamentos-.html. Acesso em: 02 fev. 2017.
7 A prática de compartilhar os posts contribui muitas vezes para apagar ou diluir a autoria. De certo modo, o que partilha acaba assumindo, ainda que provisoriamente, a responsabilidade pelo texto, na medida em que se compartilha o dizer que traz os valores com os quais se comunga. Há ainda a possibilidade de citar o texto alheio para criticá-lo, enunciando posição adversa ao mesmo tempo. De todo modo, a replicação do texto pode superar o grupo de leitores inicialmente previsto pelo autor/enunciador, com consequências nem sempre favoráveis.
8 Cf. http://www.portalonorte.com.br/araguaina-83053-depois-de-20-anos-pai-e-proibido-pela-prefeitura-de-trabalhar-em-praca-publica-e-desabafo-de-filha-g.html. Acesso em: 02 fev. 2017.
9 Transcrevemos o texto e comentários sem correções gramaticais.
10 http://www.portalonorte.com.br/araguaina-83053-depois-de-20-anos-pai-e-proibido-pela-prefeitura-de-trabalhar-em-praca-publica-e-desabafo-de-filha-g.html. Acesso em: 03 jan. 2018.
11 Empregamos aqui um pseudônimo. Não fizemos o mesmo com relação ao post (1) porque este fora amplamente divulgado em diferentes mídias.
12 Dependendo do prestígio conferido a tais comemorações, a praça e seu entorno são totalmente interditados para a igreja.
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