Educação e Tecnologia
PRÁTICA DE LEITURA EM SALA DE AULA A PARTIR DOS PRESSUPOSTOS FOUCAULTIANOS
READING PRACTICE IN THE CLASSROOM FROM FOUCAULT'S PREMISSES
PRÁTICA DE LEITURA EM SALA DE AULA A PARTIR DOS PRESSUPOSTOS FOUCAULTIANOS
Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, vol. 10, núm. 2, pp. 66-86, 2017
Universidade Federal de Minas Gerais
Recepção: 08 Agosto 2017
Aprovação: 30 Agosto 2017
Resumo: As diferentes noções de leitura constituem diferentes metodologias, objetos de estudo da linguagem e posturas pedagógicas. Essas noções têm mudado, passando pelos conceitos de leitura como decodificação e como interação na modernidade, e leitura como processo discursivo e como processo virtual, na pós-modernidade. Adotando uma dessas concepções, este artigo tem como objetivo propor uma prática de leitura como processo discursivo para o Ensino Superior, a partir de uma materialidade audiovisual com a temática tecnologia na educação. O arcabouço teórico metodológico adotado é a Análise do Discurso em intersecção com os estudos foucaultianos para mobilizar conceitos como acontecimento discursivo, condições de emergência, regime de verdade e posição-sujeito. Os resultados apontam que a atividade de leitura como processo discursivo, a partir do exemplo elucidado, traz à tona acontecimentos históricos que possibilitam que apareçam determinados enunciados e não outros em seu lugar. Com a irrupção desses acontecimentos, surge um regime de verdade que sustenta a teia de discursos em que o texto analisado está amarrado. A posição de quem lê e de quem produz o discurso ocasionará diferentes sentidos. Somente quando se relaciona criticamente com sua posição e problematiza, explicitando as condições de produção, o sujeito-leitor finalmente compreende o texto.
Palavras-chave: leitura, análise do discurso, tecnologia na educação.
Abstract: The different notions of reading constitute different methodologies, objects of study of the language and pedagogical postures. These notions have changed, through the concepts of reading as decoding and as interaction in modernity, and reading as discursive process and as virtual process, in post-modernity. Adopting one of these conceptions, this article aims at proposing a reading activity as discursive process for higher education, from a technology-themed audio-visual materiality in education. The theoretical methodology adopted is the Discourse Analysis in intersection with Foucault's studies to mobilize concepts such as discursive event, emergency conditions, regime and position-subject. The results show that the activity of reading as discursive process, from the example elucidated, brings up historical events which make it appear certain listed and not others in its place. With the irruption of these events, a regime appears of truth that supports the net of speeches where the analyzed text is anchored. The position of who reads and of who produces the speech will generate different meanings. Only when one relates critically to his position and problematizes it, explaining the production conditions, will the subject-reader finally understand the text.
Keywords: reading, discourse analysis, technology in education.
1 Considerações iniciais
No livro Discurso e leitura, Orlandi (2012) apresenta a característica polissêmica da palavra “leitura”, isto é, os vários sentidos que essa atividade pode apresentar, a saber: em acepção mais ampla, leitura é atribuição de sentidos; em sentido mais restrito (acadêmico), é a construção de aparato teórico e metodológico de um texto; em sentido ainda mais restrito, caracteriza-se como aprendizagem formal, a alfabetização, aprender a ler e a escrever; também pode significar “concepção” usada no sentido de “leitura de mundo”, refletida com a noção de ideologia, de forma mais ou menos geral e indiferenciada. Esses diferentes sentidos defrontariam os educadores com questões que nos parecem pertinentes e fundamentais: qual dessas acepções um/a professor/a adota em sua prática pedagógica? Em que implica, teoricamente, as formas de os leitores se relacionarem com os textos?
Neste artigo, interessa-nos pormenorizar essas questões a partir da adoção da postura discursiva, em que os múltiplos modos e efeitos de leitura dependem do contexto e de seus objetivos, bem como estão relacionados a cada época. Apesar de todo texto ter um amplo espectro de significação, a historicidade perpassa o texto, a ação de leitura, e sua produção determina os possíveis sentidos. Dito de outro modo, “na multiplicidade de sentidos possíveis atribuíveis a um texto [...] há uma determinação histórica que faz com que só alguns sentidos sejam ‘lidos’ e outros não” (ORLANDI, 2012, p. 15).
Para a análise do discurso, a linguagem não é suporte de pensamento nem instrumento de comunicação. A complexidade da linguagem a coloca como um trabalho e produção social geral em que o discurso é objeto histórico-social materializado na linguagem (ORLANDI, 2012). Nesse sentido, outro importante teórico da análise do discurso francesa (doravante AD), Michel Foucault, trata a linguagem como atividade com funções específicas na cultura, em que o discurso funciona como prática em certas configurações do saber, de um dado momento histórico (ARAÚJO, 2004).
Isso posto, estudar as diferentes noções de leitura nos parece crucial na medida em que visualizamos as várias bases teóricas que constituem as diferentes metodologias, objetos de estudo da linguagem e as posturas adotadas no ensino-aprendizagem. Neste espaço refletimos sobre as concepções de leitura atreladas ao cenário histórico até chegar ao nosso objetivo de propor uma prática de leitura como processo discursivo para o Ensino Superior, a partir de uma materialidade audiovisual, estabelecendo a discussão de algumas noções da teoria foucaultiana: o acontecimento discursivo, condições de emergência, a vontade de verdade e a função enunciativa. Esta proposta é acompanhada da inquietação de por que o trabalho de leitura de uma materialidade audiovisual em sala de aula, via de regra, não ser feito a partir de um aparato-metodológico discursivo, ou mais precisamente, a própria perspectiva discursiva ser desprestigiada na academia como método possível de leitura a ser trabalhado em sala de aula, independente da materialidade ou do nível de ensino.
Para atingir nosso intento, nosso itinerário é guiado inicialmente por Coracini (2005), que nos leva a um breve passeio pelas diferentes concepções de leitura atreladas às diferentes posturas teóricas e conceituações de sujeito/texto/linguagem, com destaque interacional em Marcuschi (2008) e discursivo em Possenti (2005). Num segundo momento, após passar por essas posturas teóricas, fazemos uma parada na concepção de leitura como processo discursivo em Coracini (2010) e Orlandi (2009; 2012), a fim de compreender essa interface da análise do discurso nos preceitos de Foucault (2008; 2010; 2012), bem como através do historiador Veyne (2014) e a filósofa Araújo (2004). Por último, organizamos uma proposta de leitura a ser aplicada para uma turma de nível superior, a partir dos preceitos discursivos foucaultianos aqui discutidos.
2 Concepções de leitura que atravessam a Modernidade e a Pós-modernidade
Em Coracini (2005), a autora divide as concepções de leitura de acordo com o cenário histórico – modernidade e pós-modernidade. O primeiro compreende as concepções de leitura como decodificação e como interação e o segundo, a leitura passa por duas concepções como processo discursivo e como processo virtual.
De acordo com a divisão histórica por períodos, a modernidade iniciou no Iluminismo, época em que a religiosidade exacerbada cede lugar à racionalidade, à ciência, ao progresso. Trata-se da época do filósofo francês René Descartes “Cogito ergo sun”[1], da busca de coerência, do indivíduo, do logocentrismo, da busca da verdade. Já as expressões pós-modernidade, modernidade tardia, segunda modernidade ou modernidade radical demarcam a descontinuidade. Entretanto, carregando a palavra “modernidade” consigo mesma, percebemos o quanto estamos vivendo um ponto epistemologicamente híbrido no momento.
Nesse sentido, fazendo alusão a Foucault em Vigiar e Punir (1975)[2], a expressão panóptico[3] pode ser relacionada à modernidade, quando o poder era exercido de forma visível e localizável, com esse momento como pós-panóptico, camuflado pela mídia e o marketing promovendo um consumo desmedido (CORACINI, 2005).
Bauman (1999) prefere acrescentar ao Panóptico o Sinóptico para designar a técnica de poder em que um é observado por muitos. O sociólogo também cunhou o termo modernidade líquida para definir a contemporaneidade em oposição à modernidade, antes caracterizada pela solidez do capitalismo, quando cada um tinha o seu lugar definido, coeso e coerente. Enquanto antes o positivismo escondia o mundo fragmentado através de uma totalidade inquestionável, agora se busca a totalidade no consumismo, fantasias de identidades, construindo-se um mundo descartável, à base de laços sociais líquidos (BAUMAN, 1999).
Para resumir os pontos que interessam a este artigo, fizemos um esquema com os modelos de leitura vigentes na modernidade e pós-modernidade:
Nas duas próximas seções discutimos esses dois cortes temáticos da história, costurando-os às concepções de leitura de cada um desses eixos e suas concepções de sujeito, texto e linguagem.
2.1 Modernidade: decodificação e interação
Na modernidade, prevalece o modelo cognitivista da construção do sentido contido no e pelo texto. Como enuncia o esquema (Figura 1), a leitura é definida como decodificação e como interação. Na primeira, a leitura media a descoberta do sentido, enquanto que na segunda conduz à construção do sentido.
A leitura como decodificação tem uma visão essencialista da leitura, pois se acredita na existência de uma essência e nossa tarefa é contemplar, buscar, encontrar e capturar o sentido. “Quem diz essência diz verdade e verdade absoluta que todos nós desejamos e, por isso, buscamos, na ânsia da perfeição, da completude, da totalização” (CORACINI, 2005, p. 20).
Ainda, na decodificação, o sujeito é o ser cartesiano, centrado na busca da verdade essencial. Nessa perspectiva se descobre e se desvenda o sentido, como se ele estivesse depositado nas palavras e nos signos, e a função do leitor é resgatá-lo. Essa concepção é a mesma do Estruturalismo, cuja função é decodificar o código (propositalmente redundante) e descobrir o sentido. O signo é parte de uma estrutura maior e a linguagem é puro instrumento de comunicação, a subjetividade não tem lugar.
Esse sujeito (autor), como é possível perceber, é o centro de onde partem e para onde convergem os sentidos; por isso dizemos que ele é centrado. Como é responsável direto pela elaboração cognitiva do sentido, é possível afirmar que ele é racional, essencialista, cartesiano, definindo-se pela frase imputada a Descartes: ‘penso, logo existo’ (CORACINI, 2005, p. 21, grifos nossos).
A concepção de leitura como decodificação pode ser compreendida em duas posições teóricas opostas: a top-down ou descendente e a bottom-up ou ascendente (KATO, 1985 apud CORACINI, 2010). Enquanto a primeira é dependente do leitor, a segunda é dependente do texto. Para explicarmos melhor essas acepções, redistribuímos os modelos de leitura proeminentes da modernidade em uma reta, na qual os dois processos de decodificação ocupariam as duas extremidades, e uma terceira, considerada intermediária, a interacionista, se localizaria no meio. Esta última corrente compreende que a leitura se processa na interação entre autor-texto-leitor:
Na perspectiva top-down ou descendente o leitor é ativo, pois diante do texto (código) ele aciona os pacotes de conhecimento estruturados e produz os sentidos. Provém da psicologia cognitivista. Já na perspectiva bottom-up ou ascendente, o texto é fonte única de sentidos. Cabe ao leitor decodificar e descobrir os sentidos dos itens desconhecidos. Provém da visão estruturalista e mecanicista da linguagem. Já a posição intermediária vem da perspectiva interacionista (dialógica), cuja produção de sentidos se dá na interação entre autor-texto-leitor. Tanto o leitor quanto o texto são importantes nesse processo. Ao leitor cabe inferir e acionar seus esquemas, interagindo no contexto. O “texto-produto é visto como um conjunto de pegadas a serem utilizadas para recapitular as estratégias do autor e, através delas, chegar aos seus objetivos” (KATO, 1985, p. 57 apud CORACINI, 2010, p. 15). O texto autoriza um limite de sentidos possíveis nele inscritos. O significado do texto não está nem no texto nem na mente do leitor, mas na interação entre ambos.
Em contraste à concepção decodificadora, em que linguagem é uma estrutura, um simples fruto de determinismos externos, uma forma descarnada, Marcuschi (2008) assevera que na perspectiva interacionista, a linguagem é um conjunto de práticas e atividades enunciativas, uma forma de ação, linguagem contextualizada. O uso e funcionamento se dão em textos e discursos produzidos em situações enunciativas, ligadas aos domínios discursivos da vida cotidiana e realizadas em gêneros discursivos que circulam na sociedade. O texto é visto como unidade de sentido ou unidade de interação, e a noção de compreensão, como atividade de construção de sentido em relação a um eu e um tu situados e mediados. O autor é autoridade, pois ele legitima conscientemente e deixa marcas de suas intenções no texto. Tanto o autor quanto o leitor são conscientes, sujeitos cartesianos.
Sob a concepção de sujeito e autorização dos sentidos delimitados pela perspectiva interacionista, refletimos sobre o porquê de esta ser a corrente mais aceita na academia e compreendida nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Ela corrobora com o conceito de sujeito predominante no campo da educação, que é o sujeito clássico, como algo dado, que pode e deve ser educado. Assim, nos munimos de ferramentas pedagógicas no trato desse sujeito, ferramentas que vão lapidá-lo, educá-lo, discipliná-lo, docilizá-lo (FOUCAULT, 1987).
Convém salientar, ainda, e essa visão tem sido a mais cotada nos meios acadêmicos, talvez porque garanta o centro e o poder da autoridade legitimada por uma instituição, bem como a busca da verdade e da racionalidade, indispensáveis para garantia da cientificidade, com certas tolerâncias importadas ao componente social, desde que o texto, o autor permita ou autorize (CORACINI, 2005, p. 22).
Na perspectiva interacionista, algumas produções de sentidos são permitidas, mas dependem prioritariamente do texto porque o gênero do discurso atende às especificidades de cada campo de atividade humana, o que permite a formulação de determinadas hipóteses sobre o conteúdo, além da intenção do autor. Esse processo é a compreensão do texto e posterior a ela vem a etapa de interpretação, quando o leitor impregna com suas experiências pessoais os sentidos. A leitura como decodificação é anterior à compreensão. A perspectiva interacionista é um “prolongamento da visão ascendente” ou top-down, à medida que o texto autoriza certos sentidos e impossibilita outros, mantendo a soberania do texto (CORACINI, 2005).
2.2 Pós-modernidade: processo discursivo
Coracini (2005) assevera que, na contemporaneidade, emerge uma nova concepção de leitura compreendida como processo discursivo e como processo virtual. A primeira perspectiva não compreende um esquema racional, em que se procuram as ideias principais ou intenções do autor. A segunda perspectiva ocorre em decorrência das novas tecnologias, atravessada pela ideologia da globalização.
A leitura como processo discursivo é desprovida de racionalidade, que, segundo Nietzsche, foi criada para o homem dar vazão à “‘vontade de potência’ e, assim, assegurar a propriedade particular, garantir a coerência, disciplinar o outro” (CORACINI, 2005, p. 25). Para a leitura discursiva, o texto verbal e não verbal é constituído de fragmentos de história. Esta, por sua vez, é sempre produto de interpretação, ficção.
Ler é, em primeira e última instância, interpretar. Não se trata mais de perseguir a unidade ilusória do texto, mas de amarrá-lo, recortá-lo, pulverizá-lo, distribuí-lo segundo critérios que escapam ao nosso consciente, critérios construídos por nossa subjetividade, que produz incessantemente a si mesma. [...] Ler, compreender, interpretar ou produzir sentido é uma questão de ângulo, de percepção, ou de posição enunciativa [...] (CORACINI, 2005, p. 25, grifos nossos).
O excerto citado é fundamental para diferenciarmos a perspectiva de leitura como processo discursivo das outras. Recuperando os conceitos trazidos nas seções anteriores, a primeira concepção (ascendente e descendente) estaciona na decodificação, ou seja, ler é decifrar o que diz o código. Já a segunda, trata-se de uma continuidade da decodificação, que resulta em compreensão do texto, a partir da interação autor-texto-leitor e posterior interpretação, quando o leitor impregna os sentidos com suas experiências pessoais. Para a AD, a interpretação antecede a compreensão, que é o ponto de chegada, porque esse sujeito-leitor é intérprete que produz uma leitura a partir da posição em que interpreta – posição enunciativa. Dito de outro modo, para a AD, quando o leitor interpreta, apenas reproduz o que já está lá reproduzido (ORLANDI, 2012).
Assim, na visão discursiva, a produção de sentidos de um texto é determinada pela posição que ocupa aquele que o produz. Orlandi (2009, p. 39) exemplifica: “o lugar a partir do qual o sujeito fala é constitutivo do que ele diz. Assim, se o sujeito fala a partir do lugar de professor, suas palavras significam de modo diferente do que se falasse do lugar de aluno”. Essa posição enunciativa explica a produção dos sentidos. O sujeito-leitor pode, então, dar um passo à frente quando se relaciona criticamente com sua posição, a problematiza, explicitando as condições de produção da sua leitura, finalmente compreendendo.
Portanto, é no nível da compreensão que se busca o contexto de situação (imediato e histórico), no qual o sujeito-leitor se apercebe do lugar que se constitui e cumpre a função social (ORLANDI, 2012). Ele é dotado de singularidade e não individualidade, impregnado por sua subjetividade que se constitui do/no exterior, por sua historicidade. Por isso, para a AD “a percepção não surge simplesmente da capacidade criadora de um indivíduo” (CORACINI, 2005, p. 27).
A concepção típica em psicologia é o de sujeito uno e consciente. O sujeito da AD pecheuxtiana não é dono do seu dizer, porque é atravessado, afetado pelo inconsciente e pela ideologia: “o sujeito é clivado, ou seja, não é uno; o sujeito é assujeitado, isto é, não é livre e não está na origem do discurso” (POSSENTI, 2005, p. 386). A problemática levantada pela AD abandona o idealismo para aderir ao materialismo em que se deixa de grafar ‘Sujeito’ (maiúscula) para ser ‘sujeito’ (minúsculo). Pêcheux (1969 apud POSSENTI, 2005) fala em forma-sujeito. Dado nosso propósito teórico, trabalhamos nos termos foucaultianos em que o sujeito é um conceito, uma construção histórica, uma posição vazia a ser ocupada no discurso, determinada na função enunciativa e, ao mesmo tempo em que é por ela determinado, enuncia um conjunto de enunciados numa dada formação discursiva.
Não é preciso, pois, conceber o sujeito do enunciado como idêntico ao autor da formulação, nem substancialmente, nem funcionalmente. Ele não é, na verdade, causa, origem ou ponto de partida do fenômeno da articulação escrita ou oral de uma frase; não é, tampouco, a intenção significativa que, invadindo silenciosamente o terreno das palavras, as ordena como o corpo visível de sua intuição; não é o núcleo constante, imóvel e idêntico a si mesmo de uma série de operações que os enunciados, cada um por sua vez, viriam manifestar na superfície do discurso. É um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes (FOUCAULT, 2008, p. 107, grifos nossos).
A função sujeito leva à pergunta sobre quem fala, quem detém o direito em termos institucionais de proferir aquele enunciado. O sujeito do discurso não é a origem, nem aquele que ordena as palavras significativamente, pois não é o sujeito psicológico, intencional, nem sempre é idêntico a si, porque no texto pode ser ocupado efetivamente por indivíduos diferentes. Os leitores nunca correspondem ao texto produzido pelo autor. Por essa razão é vã a busca da intenção do autor, pois nunca a recupera. As ideias obtidas são construções de um dado leitor, num dado momento. O texto não é o receptáculo fiel dos sentidos.
São, então, apenas essas convenções anônimas e sociais, as instituições, as modalidades discursivas que Foucault (1969) denomina modalidades estatutárias, mutáveis convencionalmente, quer se trate de um texto religioso, jurídico ou científico, pautadas em consensos que tornam possível a comunicação [...] Tudo é comentário: o dizer é inevitavelmente habitado pelo já-dito esse abre sempre fará uma pluralidade de sentidos, quê, por não se produzirem jamais nas mesmas circunstâncias, são, ao mesmo tempo, sempre inevitavelmente novos (CORACINI, 2010, p. 16).
Para a AD, a língua não é transparente; não existe sentido óbvio contrapondo-se à relação língua-mundo ou forma-conteúdo como unívoca e clara. O funcionamento da língua é parcialmente anônimo, dando-se segundo um processo discursivo que se trata numa certa conjuntura (condições de produção) (POSSENTI, 2005). Os modos possíveis de interpretação que atravessam os indivíduos são ditados pelas formações discursivas, isto é, regras anônimas que escreve e são responsáveis pela ordem do discurso, por produzir certos sentidos e não outros. É o momento sócio-histórico que determinará a produção de sentidos de um determinado texto, e não ele mesmo.
Enquanto a visão interacionista sugere uma noção de texto polissêmico em oposição à visão estruturalista, de texto monossêmico, a leitura como processo discursivo fala em pluralidade de sentidos. A concepção de texto foucaultiana é compreendida como “conjuntos amorfos de sinais gráficos, incapazes de reter sentido fora do jogo linguístico e fora do universo do discurso” (CORACINI, 2010, p. 17). O texto é o produto do processo discursivo. É parte de uma cadeia ou arquivo, não sendo tratado como uma unidade coerente de sentidos, antes como uma manifestação de um processo discursivo específico. O que há são linearizações materiais do discurso.
A memória é a existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas reguladas por aparelhos ideológicos como preconiza Pêcheux (1969 apud POSSENTI, 2005). Corresponde ao que Foucault (2012) se refere quanto aos textos religiosos, jurídicos, literários e científicos, sendo discursos que estão na origem dos atos novos, são ditos, permanecem ditos e ainda por dizer. A memória coletiva permite a retomada, a repetição, a refutação e o esquecimento de enunciados.
Por fim, entram em cena a concepção de leitura e as novas tecnologias. Na era da informática, o ensino está imerso no universo globalizado, disfarçado pelo verniz da democracia, com a suposta acessibilidade aos conhecimentos que estão disponíveis para todos. Aparecem novas formas de escrita e de leitura: “leitura em cascata ou arborescente, alinear, leitura de verdadeiros hipertextos” (CORACINI, 2005, p. 34). O hipertexto permite pôr em relação vários textos ao clicar sobre uma palavra, conjunto de palavras ou ícone.
Entre os formatos, livros eletrônicos como dicionários e textos literários permitem novos modos de leitura como ler notas sem ter que buscar no rodapé ou final do capítulo. Há ainda a possibilidade de recortar e colar trechos, sublinhar, escrever comentários e até mesmo compartilhar nas mídias sociais. Essas atividades “permitem a inscrição dos traços da leitura numa atividade de escrita que se articula ao texto original e que poderá ser prolongada por futuras leituras” (CORACINI, 2005, p. 35). A principal característica que resume essas atividades é a “interatividade do leitor com a máquina e com o texto” (CORACINI, 2005, p. 34). O termo “interatividade” vem da microinformática e não de interação do plano social.
Interatividade tecnológica, por seu turno, implica a noção de um dispositivo capaz de respostas diferenciadas em reação a uma intervenção humana. Ela permite, pois, uma retro-ação do espectador que vão desde a possibilidade de rever um documento ou de congelá-lo pelo tempo necessário ou desejado até ações mais complexas, que permitem ao utilizador fazer escolhas, propor respostas ou efetuar transformações sobre os elementos tratados (CORACINI, 2005, p. 35).
Desse modo, a interação permite a navegação através de bancos de dados e cenários multimidiáticos. Diferente da leitura “à moda antiga” que se limitava à visão, a leitura como processo virtual permite o uso de todos os sentidos ao mesmo tempo.
Outra questão que a diferencia da leitura tradicional é a noção de autoria atribuída a um único responsável pelo que estava escrito. No hipertexto, os textos podem remeter a um ou a vários autores. A “sua incompletude é visível, isto é, o texto aqui é forma que aponta para alguns sentidos possíveis, autorizados pelos excertos que, evidentemente, assume significados diferentes conforme a combinação feita” (CORACINI, 2005, p. 36). São, portanto, textos ou fragmentos textuais que se somam para constituir uma unidade em si.
É o veículo que possibilita a transformação do texto, ou mesmo sua combinação, formando sempre textos diferentes. Além disso, o sujeito altera sua relação com o texto tanto na produção quanto na atividade de leitura. Desaparece o objeto manipulável – o livro – mudando até mesmo os gestos do leitor. Com isso, sob a ordem da pós-modernidade, a leitura reside numa perspectiva de pluralidade, de fragmentação, em que os sentidos deslizam e não são capturados ou fixados (CORACINI, 2005, p. 39).
Além disso, as tecnologias têm provocado uma “fetichização ou mitificação da informática”, em que o desconhecido inspira sentimentos de medo e impotência, e de fascínio super valorizando as ferramentas tecnológicas e seus efeitos. Credita-se à internet o poder de conceder a todos o acesso à informação e escamoteia o fosso que divide a sociedade entre os que têm acesso e os que não têm. Entre os que sabem usar e os que não sabem.
3 Aspectos do projeto Foucaultiano para leitura como processo discursivo
Nas seções anteriores, detalhamos as quatro concepções de leitura, enfatizando os conceitos de sujeito, linguagem e texto de cada concepção: sintetizando o foco teórico deste artigo, para o viés discursivo o sujeito é uma posição vazia a ser ocupada; a linguagem é uma atividade; o texto, ou melhor, o discurso, é um nó numa rede, cuja unidade é variável e relativa (FOUCAULT, 2008). Passemos agora por alguns conceitos básicos de Foucault (2008) tratados na Arqueologia do saber para desenvolvermos um aparato teórico-metodológico de leitura.
Comecemos considerando que na AD ler é mais que combinar signos numa sintaxe, relacionar palavras e coisas. A linguagem não é um espelho fiel da realidade, mas a história dos objetos discursivos regidos por uma ordem que os fazem cair no jogo do falso e verdadeiro. O discurso é uma prática entre outras práticas e a expressão de uma “vontade de verdade”, que autoriza e interdita certos enunciados. O discurso é “a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos” (FOUCAULT, 2012, p. 46). E o que é esta verdade a que o filósofo trata no seu pensamento?
Veyne (2014), um historiador e amigo de Michel Foucault, assevera que o próprio filósofo, influenciado por Nietzsche, se definia como cético por não admitir nenhuma transcendência fundadora. Não acreditava em verdades gerais, que provinham de uma natureza, razão, nem que reflita fielmente no objeto a que remete. Ela procede dos acasos do devir. A história não é entendida pelo real, racional, funcional ou dialético, mas pela singularidade dos acontecimentos: “não temos a verdade adequada dessas coisas, pois só atingimos uma coisa em si por meio da ideia que formamos a cada época (ideia de que o discurso é a formulação última, a differentia ultima)” (VEYNE, 2014, p. 22).
Veyne (2014) compara os discursos nos quais os contemporâneos de uma época estão aprisionados aos “aquários falsamente transparentes”, pois nem sequer percebem suas paredes. A verdade se reduz a um dizer verdadeiro, “a falar de maneira conforme ao que se admite ser verdadeiro [...] o passado antigo e recente da humanidade não passa de um vasto cemitério de grandes verdades mortas” (VEYNE, 2014, p. 25). Os discursos são as lentes pelas quais os homens percebem as coisas, pensam e agem (VEYNE, 2014, p. 50). É preciso conhecer as regras e saber jogar o jogo discursivo imposto pela formação discursiva e legitimado pelo próprio sujeito. Estar na verdade da época é diferente de dizer a verdade porque “cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral da verdade” (VEYNE, 2014, p. 56).
No projeto foucaultiano, tratamos o discurso na dispersão de elementos, determinando as regras que regem sua formação, que vão entrar no verdadeiro da época. Os enunciados se agrupam numa constelação discursiva – chamada de formação discursiva – que determina a regularidade e a dispersão própria de processos temporais, além de articular uma série de acontecimentos discursivos, transformações, mutações e processos (FOUCAULT, 2008).
Em suma, para encontrar a dimensão discursiva devem-se evitar explicações fenomênicas que valem para o historiador das ideias, não para um analista do discurso, que faz a partir de suas regras de formação: dos objetos, dos conceitos, das enunciações e das estratégias. O sistema de formação não é somente a “justaposição, a coexistência ou a interação de elementos heterogêneos, [...] mas seu relacionamento [...] estabelecido pela prática discursiva” (FOUCAULT, 2008, p. 80-81).
Com mais precisão, afirmamos que o sistema de formação ou os quatro feixes de relações funcionam como regra: prescreve o que dever ser relacionado em uma prática discursiva para que se refira a determinado objeto, para que se empregue determinada modalidade enunciativa, para que se utilize determinado conceito, para que se organize determinada estratégia. São esses feixes complexos de relações que permitem que encontremos as regularidades nos enunciados dispersos. “Todo esse jogo de relações constitui um princípio de determinação que admite ou exclui, no interior de um dado discurso, um certo número de enunciados”. Uma formação discursiva é “essencialmente lacunar, em virtude do sistema de formação de suas escolhas estratégicas” (FOUCAULT, 2008, p. 74). Sintetizamos esses conceitos no fluxograma abaixo:
Assim, o que interessa é o conjunto de regras que delineou uma prática discursiva para que tal objeto se constituísse ou se transformasse; novas enunciações ou novos conceitos aparecessem; estratégias fossem suscitadas ou modificadas. Nesse jogo, a formação discursiva determina uma regularidade própria de processos temporais, articulando diversas séries de acontecimentos, transformações, mutações e processos, a saber:
A formação dos objetos se dá a partir de condições históricas, em diferentes instâncias respeitando sua especificidade, desfazendo assim os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas.
A formação das modalidades enunciativas é descrita a partir da posição que o sujeito ocupa em relação ao domínio de objetos de que se fala.
A formação dos conceitos se dá a partir das formas de coexistência entre os enunciados;
A formação das estratégicas não surge diretamente de uma visão de mundo ou de uma predominância de interesses que pertenceriam a este ou àquele sujeito falante; mas sua própria possibilidade é determinada por pontos de divergência no jogo dos conceitos;
Afinal, “não se pode dizer qualquer coisa em qualquer época [...] o objeto não espera nos limbos a ordem que vai liberá-lo” (FOUCAULT, 2008, p. 116). Em outras palavras, os objetos não preexistem em si mesmos. Deve haver condições históricas para que determinado objeto apareça. Ao analista do discurso interessa o acontecimento, que é de ordem discursiva, que permite que determinados objetos discursivos apareçam num dado momento histórico e continuem gerando efeitos que se prolongam, atravessando os discursos (REVEL, 2005).
Entende-se por campo dos acontecimentos discursivos o conjunto sempre finito e efetivamente limitado das únicas sequências linguísticas que tenham sido formuladas. Esses enunciados são de natureza histórica. É na história que encontram suas condições de emergência, produzidos por um dizer e registrados numa materialidade única, o que permite que apesar de únicos, possam ser repetidos, reativados. Eles estão ligados a condições externas de possibilidade, acontecimentos de ordem técnica, econômica, social e política.
O enunciado não é uma estrutura, é uma “função de existência” que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço. Ao restituir o enunciado à sua singularidade de acontecimento, mostra-se que a descontinuidade é uma característica própria dele, que surge em sua irrupção histórica nas chamadas condições de emergência.
Em resumo, a tarefa do analista é descrever o exercício do enunciado, “suas condições, as regras que a controlam e no campo em que se realiza” (FOUCAULT, 2008, p. 98). Observe que a análise do campo discursivo “trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, [...] estabelecer suas correlações com os outros enunciados” (FOUCAULT, 2008, p. 31).
Centremo-nos no ponto D – formação das modalidades enunciativas – fundamental para a atividade de leitura da próxima sessão. O sujeito de um discurso não é a origem, nem aquele que ordena as palavras significativamente. Reiterando o que já dissemos, não é o sujeito psicológico, intencional. Não sendo também o sujeito empírico, Foucault (2008) distingue este autor ou aquele que escreve uma formulação a partir de um sistema linguístico, da função sujeito de um enunciado. Essa função sujeito é caracterizada por lugares ou posições subjetivas a serem ocupadas por indivíduos indiferentes, segundo relações ideologicamente construídas num dado momento histórico-social, num dado discurso.
Ademais, a função sujeito nos leva à pergunta “sobre quem fala, quem detém o direito em termos institucionais ou jurídicos de proferir tal discurso” (ARAÚJO, 2004, p. 223). Em outras palavras, deve-se entender por que estes enunciados e não outros, o lugar de onde vêm e de quem vêm. Para exemplificar como se formam as modalidades enunciativas, em Arqueologia do saber Foucault (2008) utiliza-se o discurso médico e nomeia três questões que implicarão a formação (modalização) e encadeamento de enunciações diversas:
Status do médico: quem fala, a linguagem utilizada e a competência do saber regida por instituições, condições legais que lhe dão o direito de dizer, relações hierárquicas com outros indivíduos ou grupos;
Lugar institucional e técnico de onde o médico obtém o seu discurso: o hospital, a prática privada, o laboratório, a biblioteca, bem como o conjunto de relatórios e observações publicadas, com dados estatísticos que cada vez ganham mais reconhecimento como “lugares” do discurso;
Posição como sujeito que é possível ocupar em relação aos diversos domínios ou grupos de objetos. O sujeito do discurso pode ocupar diversas posições na rede de informações: o sujeito que questiona; o sujeito que ouve; o sujeito que observa; o sujeito que anota.
O discurso médico só pode ser dito a partir de determinada posição, um médico. Esse médico fala a partir de um lugar institucionalmente reconhecido – uma clínica, na universidade, no hospital – e recebe estatuto de enunciado de determinada posição que pode ocupar em relação aos diversos domínios, na rede de informações.
Na análise proposta, as diversas modalidades de enunciação, em lugar de remeterem à síntese ou à função unificante de um sujeito, manifestam a sua dispersão: nos diversos status, nos diversos lugares, nas diversas posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na descontinuidade dos planos onde fala (FOUCAULT, 2008, p. 61).
Portanto, as modalidades diversas da enunciação não estão relacionadas à unidade de um sujeito racional, nem ao sujeito empírico. É exatamente a função sujeito e as demais noções tratadas nesta seção que serão trabalhados na atividade de leitura proposta a seguir.
4 Proposta de leitura para ensino superior
Neste tópico apresentamos uma proposta de leitura como processo discursivo, a partir do projeto foucaultiano, o que implica enfatizar que tomá-lo como método não significa estabelecer um modelo de leitura que possa ser aplicado a qualquer objeto. Consiste antes, em utilizar os pressupostos para refletir questões atuais e, seguindo o que preconizou o filósofo, a liberdade do pensamento e problematização de questões concretas.
Em a Ordem do discurso, Foucault (2012, p. 48) aponta ser necessário optar por três decisões para empreender a análise do discurso: “questionar nossa vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; suspender, enfim, a soberania do significante”. Essas decisões nos orientam em nossa atividade de leitura na medida em que o aluno não é conduzido à busca da intenção do autor, já que desmontamos a soberania do significante; o que o aluno é instado a buscar é a dispersão a partir da descrição de acontecimentos discursivos, para buscar unidades que ali se formam a vontade de verdade que sustenta a rede de informações.
O público-alvo para a atividade proposta são alunos de Ensino Superior, de preferência de cursos de licenciatura, devido às discussões que podem gerar a leitura acerca dos discursos digital e pedagógico que a materialidade encerra. Dado o recorte deste trabalho, as noções teóricas trabalhadas serão de acontecimento discursivo, condições de emergência, vontade de verdade e formação das modalidades enunciativas.
4.3 Encaminhamentos para a atividade de leitura
Feitas as considerações expostas, passamos ao texto audiovisual da plataforma Porvir[4], com aproximadamente cinco minutos de duração (ver Anexo). A metodologia a ser adotada é de propor que os alunos assistam à materialidade, para que então se estabeleça a problematização:
4.3.1 Problematização
No exercício da prática científica, recorremos à problematização que é o exercício de apontar o como e o porquê de certas práticas e conhecimentos em um dado momento histórico e a relação contingente estabelecida entre ambos os domínios. O exercício dessa prática nos possibilita estabelecer um “conjunto de práticas discursivas ou não discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento (seja sob a forma da reflexão moral, do conhecimento científico, da análise política, etc.” (FOUCAULT, 2010, p. 242).
Analisemos as noções a seguir para problematizarmos a materialidade de acordo com as diretrizes:
é preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado, apagado até nos menores traços, escondido bem longe de todos os olhares, na poeira dos livros. Não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem; é preciso tratá-lo no jogo de sua instância (FOUCAULT, 2008, p. 28, grifos nossos).
mas sim na medida em que pode ser assinalada a posição do sujeito. Descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer), mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito (FOUCAULT, 2008, p. 108, grifos nossos).
As diretrizes sugeridas para essa atividade de leitura são:
4.3.2 Gesto de leitura a partir da problematização proposta
Estabelecidas as diretrizes, propomos um gesto de leitura a partir das noções levantadas para a problematização da nossa materialidade, na qual tratamos cada diretriz a seguir.
Na diretriz número um, estabelecemos ao aluno que reflita sobre qual acontecimento histórico se tornou um acontecimento discursivo, definido como a irrupção de uma singularidade histórica que continua gerando efeitos e se prolonga, atravessando os discursos (REVEL, 2005). Foucault (2008, p. 34) nos atenta para dois fatos: “a análise dos acontecimentos discursivos não está [...] limitada a semelhante domínio; e, por outro lado, o recorte do próprio domínio não pode ser considerado como definitivo, nem como válido de forma absoluta”.
Dado que a materialidade proposta trata da inserção da tecnologia na educação, assume-se para esta análise como acontecimento discursivo a criação da rede de computadores com o nome de ARPANET, em 1969, nos Estados Unidos. Foi criado pelo Departamento de Defesa norte-americano, durante a Guerra Fria, para garantir a comunicação entre militares e cientistas mesmo que houvesse um bombardeio. A partir da década 1980, o uso da Arpanet se expandiu no âmbito acadêmico e para outros países, com o nome internet. A rede chegou ao Brasil em 1989 e em 1995 houve liberação para uso comercial. Atualmente, segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia 2015 (PBM 2015) (BRASIL, 2014), cerca de 48% dos brasileiros usam internet.
Na segunda diretriz, é necessário demarcar quais as condições de emergência do objeto tecnologia na educação, “mostrar onde podem surgir [...]. Essas superfícies de emergência não são as mesmas nas diferentes sociedades, em diferentes épocas e nas diferentes formas de discurso” (FOUCAULT, 2008, p. 47). No Brasil, podemos demarcar essas condições a iniciativa da Sociedade da Informação no Brasil, aprovada pelo Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia em dezembro de 1998. No ano seguinte, o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) compôs um Grupo de Implantação do chamado Programa Sociedade da Informação no Brasil, oficialmente lançado pela Presidência da República em 15 de dezembro de 1999 (TAKAHASHI, 2000).
Para colocar em ação o programa, foi lançado o Livro Verde em 2000, construído com base nas características dos programas existentes na Europa, contendo metas de implementação de: “ampliação do acesso, meios de conectividade, formação de recursos humanos, incentivo à pesquisa e desenvolvimento, comércio eletrônico, desenvolvimento de novas aplicações” (TAKAHASHI, 2000, p. 5).
Em virtude de o documento ocupar-se exclusivamente com os aspectos tecnológicos, o governo lançou em 2002 o Livro Branco, igualmente reformulado com o mandato presidencial de 2003, em que a meta passou a ser inclusão digital com a criação de programas que valorizassem a conectividade. Segundo o MCT, não houve pausas para a implantação de políticas de inclusão digital, como mostra a página do governo eletrônico (BRASIL, 2002).
Em 2011, criou o Programa de Inclusão Digital, com o objetivo de implementar telecentros em comunidades menos favorecidas, para viabilizar o acesso, tanto por meio da capacitação em informática básica e navegação na rede (TAKAHASHI, 2000). O programa Banda Larga nas Escolas leva conexão de internet com conexão para escolas da rede pública de Ensino Básico, com duração prevista até 2025. “Estima-se que aproximadamente 37 milhões de estudantes sejam beneficiados até a implantação completa do programa”[5]. Esses procedimentos atendem à emergência de uma sociedade em rede, presente no funcionamento discursivo da globalização.
A terceira diretriz questiona a vontade de verdade, sendo que ela “apoia-se sobre um suporte institucional: é, ao mesmo tempo, reforçada e reconduzida por toda uma espessura de práticas” (FOUCAULT, 2012, p. 16-17). Na análise proposta, as novas práticas pedagógicas correspondentes às inovações na educação contemporânea são amparadas por um suporte institucional, reforçadas e reconduzidas por saberes tecnológico e pedagógico.
Para corroborar, Foucault (2012) assevera que a ordem do discurso se refere àquilo que pode e se deve dizer em um momento histórico, controlado por regras anônimas que permitem o aparecimento de certos enunciados e a proibição de outros. Na agenda da atualidade, entram na ordem do discurso a necessidade de inserção das TIC no contexto escolar, bem como a urgência da inovação nos métodos didáticos. Os professores se constituem como agentes da prática pedagógica contemporânea, ou, como conceitua o vídeo, designers da aprendizagem, mobilizando a disponibilização de subsídios em ambiente virtual a fim de preparar esses profissionais da educação, por meio da formação docente continuada, a usufruir a tecnologia como inovação.
Por último, a diretriz acerca da formação (modalização) de enunciações se manifesta na dispersão do sujeito “nos diversos status, nos diversos lugares, nas diversas posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na descontinuidade dos planos de onde fala” (FOUCAULT, 2008, p. 61, grifos nossos). Na materialidade analisada, quem enuncia ocupa o cargo de diretoria executiva (status do sujeito) do instituto Inspirare, instituto familiar responsável pelo Porvir, cuja missão é criar programas e investimentos que melhorem a qualidade da educação no Brasil. Esse lugar institucional e técnico de onde provêm os discursos (Inspirare) elenca três desafios da educação brasileira, que com o uso da tecnologia é possível superar: equidade, qualidade e contemporaneidade, fundamentadas pelas pesquisas que o instituto tem acesso.
Para finalizar, a posição que o sujeito do discurso ocupa na rede de informações é de quem expõe os dados, fundamenta e aconselha da importância em usar tecnologia na educação, assumindo o papel de transmissora na difusão do saber tecnológico e pedagógico.
Considerações finais
Neste trabalho discutimos as diferentes noções de leitura, atreladas ao cenário sócio-histórico e como cada concepção ressignifica a postura do professor no ensino-aprendizagem, a partir das noções de sujeito/linguagem/texto. Problematizamos o fato de a perspectiva discursiva ser desprestigiada na academia como método possível de leitura e por essa razão, raramente ser trabalhada em sala de aula.
Como fundamentação teórica, utilizamos teóricos como Coracini (2005; 2010) e Orlandi (2009; 2012), Marcuschi (2008), Possenti (2005), Foucault (2008; 2010; 2012), Veyne (2014), Revel (2005) e Araújo (2004). Destacamos a Arqueologia do saber (publicada em 1969), utilizada na terceira e quarta seções, quando tratamos de noções do projeto foucaultiano para fazer uma análise arqueológica de uma materialidade. Nosso objetivo foi propor uma atividade de leitura como processo discursivo para o Ensino Superior.
Reiteramos a relevância de percorrer um trajeto que se iniciou no modernismo, cuja predominância foi as perspectivas de leitura como decodificação e interação e desembocou na pós-modernidade, tendo-se em vista uma noção de leitura como processo discursivo e processo virtual com o propósito de delinear as razões pelas quais a proposta discursiva pode ser um possível encaminhamento para a abordagem discursiva do texto em sala de aula
Para tanto, foi preciso dar consequência ao fato de que a interpretação antecede a compreensão, em um gesto no qual o sujeito-leitor produz uma leitura a partir da posição em que interpreta – posição enunciativa. Nesse sentido, somente quando o sujeito-leitor se relaciona criticamente com sua posição e problematiza o texto, voltando-se para as condições de produção, ele tem condições de finalmente compreender o texto.
Dessa maneira, foi fundamental elucidar, na prática de leitura apresentada, alguns pontos nodais: o sujeito, em Foucault, é uma posição vazia a ser ocupada, a linguagem é uma prática; o texto é um nó numa rede, cuja unidade é variável e relativa, produto de interpretação, ficção porque os leitores nunca correspondem ao texto produzido pelo autor.
Na prática de leitura proposta, buscamos desenvolver a discussão das noções do projeto foucaultiano: o acontecimento discursivo, condições de emergência, a vontade de verdade e a função enunciativa e dar visibilidade às relações saber e verdade, e sempre nos questionar a respeito de uma “vontade de vontade” e “da ilusão de um sujeito centrado e origem de si”, na medida em que os sentidos e as práticas discursivas se dão a partir de relações de poder/saber que permitem a construção dos objetos de que falam e produzem (também) a exclusão, o apagamento e o silenciamento de outras possibilidades de sentido. Embora nossa atividade não seja um modelo universal, tampouco uma receita a ser seguida e aplicável à análise discursiva de qualquer materialidade, julgamos que foi produtivo o movimento de relacionar discurso e leitura em contexto de sala de aula, com base em três decisões preconizadas por Foucault: 1) questionar nossa vontade de verdade; 2) restituir o caráter de acontecimento ao discurso; 3) suspender a soberania do significante (FOUCAULT, 2012, p. 48).
Referências
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VEYNE, P. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Tradução Marcelo Jacques Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
Anexo
Transcrição do vídeo: Especial Tecnologia na Educação – Por que usar tecnologia
A tecnologia já mudou a forma como a gente faz muitas coisas na vida. Como agente produz, como mais gente consome, interage, até mesmo como agente exerce a nossa cidadania. Agora é a vez da tecnologia mudar a forma como a gente aprende e ensina. Se antes a gente educava os alunos para usar a tecnologia, hoje a gente usa tecnologia pra educar os alunos. E assim a gente consegue avançar na superação de três grandes desafios da educação brasileira.
O primeiro deles a equidade. Com tecnologia a gente consegue ampliar o acesso dos alunos, não importa se eles estão em regiões vulneráveis ou até geograficamente dispersas. Que eles possam ter acesso a recursos de qualidade, a videoaulas, a games, a plataformas. Também com a tecnologia gente consegue personalizar melhor a educação, fazendo com que cada um possa encontrar a melhor maneira de aprender. Algumas plataformas já conseguem avaliar em tempo real o que cada aluno aprendeu, o que não aprendeu, quais as suas necessidades e com que recursos eles aprendem melhor. Assim, é possível garantir que cada aluno siga no seu ritmo a partir dos seus interesses, conforme o seu perfil de aprendizagem.
Outro desafio que as tecnologias ajudam a gente a super é o da qualidade, oferecendo recursos digitais cada vez mais diversificados, interativos, dinâmicos, que realmente ajudam o aluno a entender e aplicar o conhecimento. Apoiam o professor, oferecendo a ele a oportunidade de criar novas estratégias pedagógicas e fazem com que a educação esteja disponível a toda hora, em todo lugar, com cada vez mais autonomia para o aluno.
O terceiro desafio é da contemporaneidade. As tecnologias aproximam a educação do universo dos alunos do século XXI. Também ajuda prepará-los pra vida presente e futura, cada vez mais mediadas pelos recursos tecnológicos. Mas é preciso ter cuidado, porque a tecnologia não vai resolver todos os problemas. É preciso mesclar atividades on-line com atividades off-line no que se convencionou chamar de ensino híbrido. Então o professor vai criando estratégias pedagógicas, em que alguns alunos estão usando games; usando plataformas; outros estão experimentando em projetos; fazendo trabalhos de grupo; ainda outros e mentoria. Essa mistura é que vai garantir a qualidade e efetividade da educação. Também é preciso evitar o risco de apenas digitalizarmos os processos tradicionais de educação substituindo a lousa pela lousa digital, ou livro pelo livro digital, ou mesmo uma aula convencional por uma videoaula.
E algo muito importante: a tecnologia não substitui o professor. Ao contrário, o empodera os educadores. Algumas atividades mecânicas e repetitivas como correção de exercícios e transmissão de conteúdos podem ser feitas pelas máquinas enquanto o professor tem mais tempo planejar sua aula, ser um mediador da aprendizagem, um provocador, um curador de conteúdos, um designer da aprendizagem. É preciso também evitar os efeitos prejudiciais do uso de tecnologia na educação como a dispersão e até mesmo momento da desigualdade se a gente garantir o acesso a esses recursos a apenas uma parcela estudantes brasileiros.
Mas pra que tudo isso aconteça, é preciso garantir algumas condições imprescindíveis.
Conectividade, a internet veloz, estável é fundamental para que alunos e professores tenham acesso a plataformas e recursos mais sofisticados; também é preciso garantir a rede lógica dentro da escola. Quanto mais wi-fi mais é possível usar a tecnologia de diferentes maneiras. Além disso, é importante que os equipamentos sejam cada vez mais móveis, eles possam circular pelas escolas, pelos pátios, e também garantir que esse uso seja transparente, que a gente nem perceba que tá usando tecnologia como a gente não percebe que tá usando um caderno ou uma caneta. Outra condicionante importantíssima pra o bom uso de uso de tecnologia é a formação do professor. É importante que ele seja capacitado já com o uso desses recursos para que ele possa ir se familiarizando, entendendo as possibilidades; que ele tenha acesso a referências de como usá-las na prática; a ferramentas qualificadas pra realmente poder fazer um bom uso; e além disso, a comunidades de troca onde eles vão poder intercambiar com outros educadores. Por fim, é importantíssimo mobilizar a sociedade brasileira pra que utilize esses recursos com cada vez mais propósito e da melhor forma possível, pra garantir uma educação de qualidade pra todos os brasileiros, que os preparem para a vida e garanta que eles possam aprender ao longo de toda sua existência.
Notas
Ligação alternative
https://periodicos.ufmg.br/index.php/textolivre/article/view/16762 (pdf)