Educação e Tecnologia

REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E TECNOLOGIA, NUMA PERSPECTIVA LIBERTADORA

REFLECTIONS ON EDUCATION, SOCIETY AND TECHNOLOGY, IN A LIBERATING PERSPECTIVE

Wilkens Lenon Silva de Andrade
Grupo Texto Livre/Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E TECNOLOGIA, NUMA PERSPECTIVA LIBERTADORA

Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, vol. 10, núm. 2, pp. 158-168, 2017

Universidade Federal de Minas Gerais

Recepção: 28 Setembro 2017

Aprovação: 13 Novembro 2017

Resumo: O atual estágio do desenvolvimento humano definido pelas tecnologias da inteligência, hoje acelerado pelo rápido desenvolvimento das tecnologias digitais e a expansão das redes cibernéticas, estabelece desafios urgentes para o mundo da educação e as suas relações com a sociedade. Em diálogo com Abranches (2003), Bernheim (2008), Castells (2000), Dowbor (2011), Freire (1967), Silveira (2008) e outros autores relevantes à nossa reflexão, o artigo analisa as contradições existentes entre a produção do conhecimento no contexto da cultura escolar, sobretudo no âmbito da academia, e a privatização do conhecimento desenvolvido, transformado-o em capital cognitivo a partir das novas práticas capitalistas no mundo globalizado. As primeiras ideias deste ensaio nasceram em 2011, durante as aulas da disciplina “Educação e Sociedade”, no curso de mestrado em Educação Matemática e Tecnológica, no Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco. A análise segue, portanto, um percurso metodológico que revisa e revisita a bibliografia tomada como arcabouço teórico do presente texto.

Palavras-chave: sociedade, educação, conhecimento, tecnologias digitais, mudança da realidade.

Abstract: The current stage of human development defined by intelligence technologies, now accelerated by the rapid development of digital technologies and the expansion of cybernetics, poses urgent challenges for the world of education and its relations with society. In a dialogue with Abranches, Bernheim, Castells, Dowbor, Freire, Silveira and other authors who are relevant to our reflection, this article analyzes the contradictions between the production of knowledge in the context of school culture, especially in the academy's sphere and the privatization of developed knowledge which is transformed into cognitive capital from the new capitalist practices in the globalized world. The first ideas of this essay was born in 2011, during Education and Society classes which were part of a master's degree course in Mathematics and Education Technology at Federal University of Pernambuco. Therefore, It follows a methodological route that revises and revisits the bibliography taken as the theoretical framework for the present text.

Keywords: society, education, knowledge, digital technologies, reality change.

1 Introdução

Pensar na relação entre educação e sociedade não é uma tarefa fácil porque, nesse contexto, há elementos que precisam ser levados em consideração e que são igualmente complexos em suas particularidades. Nessa relação estão presentes conceitos importantes sem os quais seria impossível falar sobre o tema. Portanto, sociedade, grupos humanos, tribos, povos, nações, relações políticas, classe, lutas de classe, ideologia, valores sociais, status quo, cultura, conhecimento, ensino, aprendizagem, processo ensino-aprendizagem, aprendentes, discência, professores, docência, enfim, apenas essas categorias já seriam suficientes para preenchermos milhares de páginas na tentativa de mostrar o significado dessa relação. Por essa razão, resta-nos estabelecer um escopo para a nossa reflexão. Para isso, queremos trazer a tecnologia como elemento de interface cultural entre esses dois mundos, permitindo que a nossa proposta seja construída sobre o tripé: educação, tecnologia e sociedade, a fim de que possamos responder algumas questões que foram levantadas durante os debates estabelecidos entre os participantes da disciplina “Educação e Sociedade” no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática e Tecnológica (EDUMATEC) da Universidade Federal de Pernambuco durante o segundo semestre de 2011.

Colocados por Sérgio Abranches, professor da disciplina, esses primeiros questionamentos constituíram-se ponto de partida para a nossa reflexão e base da nossa análise. Portanto, ao considerar a inserção das tecnologias digitais no atual estágio do desenvolvimento humano, o professor afirmou, naquele momento, que elas provocaram profundas mudanças na relação existente entre a educação e a sociedade. Desse processo de discussão e reflexão, surgiu a pergunta: quais caminhos podemos vislumbrar para a educação nesse contexto? Também foi colocada a provocação: se o papel da educação não é exatamente o de preservar, conservar as relações sociais para que a sociedade possa se desenvolver, como manter modelos existentes num cenário de mudanças rápidas e imprevisíveis?

Tais questionamentos, iniciados durante o curso de mestrado em 2011, nos ajudam a estabelecer o limite da nossa proposta de refletir sobre educação e sociedade levando em conta que tal relação é mediada pelas tecnologias digitais. Isso porque percebemos que já não é possível falar de educação e sociedade sem levar em consideração a presença dessas tecnologias.

Nessa direção, Castells (1996), ao cunhar o termo sociedade em rede para contextualizar o atual momento histórico, tendo a centralidade do conhecimento e a sua transformação em ferramenta de poder econômico cognitivo, enfatiza a mediação tecnológica como um dos maiores fatores da mudança pela qual está passando a sociedade contemporânea, afetando irreversivelmente a educação, sobretudo as maneiras de ensinar e aprender. O tempo e os espaços nas relações em sociedades são outros e afetam significativamente a cultura escolar (ABRANCHES, 2003). Isso significa que o modelo tradicional de escola está em xeque e que não tem outra saída senão a de ressignificar-se na sociedade contemporânea, sob pena de permanecer como locus de reprodução de estruturas sociais caducas, legitimando status quo, buscando apenas enquadrar-se nos moldes temporários das demandas sociais imediatistas (FREIRE, 1967). Com efeito, a atitude passiva, de reprodução das práticas vigentes, é um grande problema porque os paradigmas mudam o tempo todo. Como já dizia Harvey, os valores e as formas sociais pós-industriais são eminentemente efêmeras (HARVEY, 2001). Numa perspectiva pós-moderna, de mudança permanente de tudo o que havia sido antes estabelecido, não há mais um valor universal no qual a educação possa se apoiar, no processo de formação humana. Tudo é transitório e fugaz. Não existe mais um modelo que se possa reproduzir a médio ou longo prazo, tornando-se padrão, porque o tempo da mudança é rápido como um “trem bala”. É disso que fala Santos (2003) ao descrever o diagnóstico do nosso tempo, citando Richard Buckminster Fuller, quando afirma “que estamos vivendo, desde o início da década de 70, um processo de aceleração da aceleração tecnocientífica” (SANTOS, 2003, p. 232), alterando rapidamente os contextos sociais vigentes.

Nesse contexto, a educação terá de reinventar-se para que possa ser relevante num cenário completamente novo, o da sociedade em constante e rápidas mudanças. Para isso, é preciso repensar o paradigma reprodutivista[1] da educação sob o qual um certo tipo de prática pedagógica se tem estabelecido nas escolas e universidades brasileiras. Mas também articular respostas adequadas a um mundo em mudança, ainda que temporárias, sem prescindir das interfaces tecnológicas possíveis de utilização como instrumentos sociais de libertação humana.

2 O paradigma reprodutivista não é o fim da educação

Um dos maiores desafios da educação contemporânea é mudar sua postura reprodutivista em que a escola, locus da educação na era industrial, era o espelho da modernidade, formando cidadãos para atender as demandas do mercado, alicerçadas na disponibilidade de capital, trabalho e matérias-primas ou energia (BERNHEIM; CHAUÍ, 2008). Naquele mundo industrial, a escola era, e em grande parte ainda é, marcada pela perpetuação dos valores tradicionais, em que os professores são os donos do saber e os alunos meros repositórios do conhecimento. Dessa maneira, a educação da sociedade industrial é realizada pela imposição do saber previamente determinado, de cima para baixo, sendo que os alunos apenas reproduzem o conhecimento e os valores que lhes são repassados em sala aula. Aliás, esse modelo é o que ainda se perpetua em muitas escolas e universidades brasileiras, onde o professor sabe tudo e os alunos com nada podem contribuir, já que apenas absorvem o conhecimento passivamente, sem criticidade, sem reelaborá-lo em seu próprio contexto. Pior do que isso, a escola é a instituição legitimadora das desigualdades a partir de uma pedagogia alienante, via de regra imbricada da ideologia das classes dominantes (FREIRE, 1967). Essa lógica perversa manipula os indivíduos para que sejam objetos da história, conformados com seus destinos, fascinados pela ideia ilusória de que a educação, enquanto instrumento de formação para o trabalho, é a única possibilidade de se ascender socialmente. Tal afirmação parece ser verdadeira, mas carrega consigo uma sutil inverdade, a de que o modelo criticado alterará o mapa de desigualdades existentes.

Na verdade reproduzir os valores das classes dominantes, formando apenas para atender o mercado de trabalho dentro de uma lógica reprodutivista, é enaltecer o conhecimento técnico em detrimento da criticidade. Nesse sentido, “a escola é vista como reprodutora porque fornece às diferentes classes e grupos sociais, formas de conhecimento, habilidades e cultura que não somente legitimam a cultura dominante, mas também direcionam os alunos para postos diferenciados na força do trabalho” (WIKIPEDIA, 2011)[2]. Com efeito, dentro das estruturas sociais se encontram grupos diferenciados de indivíduos em que uma elite tecnocrata dominante dá as cartas do jogo. Os demais apenas respondem as demandas que vem de cima para baixo.

Nesta altura da nossa reflexão, relembrando os debates realizados durante nossos encontros, na disciplina Educação e Sociedade, percebo o quanto as instituições de ensino superior (IES) têm disseminado este tipo de educação fordista, “onde a ênfase estava centrada nos processos mecânicos de memorização, repetição e padronização. Não existe no histórico deste aluno incentivo algum para a construção do conhecimento crítico e autônomo.” (CARVALHO, 2008, p. 3), dividida em pacotes de conhecimento técnico super especializado, para atender as demandas da atual indústria do conhecimento. Dessa forma, são comuns, nas universidades, estudantes interessados em adquirir a formação profissional para o mercado de trabalho e nada mais. Quase sempre o curso é escolhido pelo retorno financeiro que pode dar após sua conclusão ou pelo prestígio social que se pode adquirir a partir da formação técnica. Assim, o fator econômico tem alimentado o desejo de status social como função da lógica capitalista de criação de conhecimentos industrializados, prontos para consumo. Nesse cenário, a ciência industrial é privilegiada em detrimento da produção do conhecimento entre pares. É, portanto uma ciência voltada para o interesse privado de orientação mercantilista em relação ao conhecimento produzido dentro das instituições de pesquisa (OLIVEIRA, 2011). Isso inclusive é cultura vigente na academia, como exemplo desse tipo de prática, os estudantes quererem adquirir o “canudo” para se dar bem no mercado de trabalho em detrimento da dimensão colaborativa do conhecimento dentro dos espaços de formação acadêmica que, deveria ser, em nossa perspectiva, a vocação natural da e na cultura acadêmica. Por isso, em alguns campus universitários o interesse é pelo investimento em cursos que sejam rentáveis para as empresas interessadas em investir na pesquisa acadêmica, mas também que sejam lucrativos para certos setores educacionais imersos na cultura reprodutivista.

O problema dessa prática mercantilista é a institucionalização da ideologia de mercado dentro das instituições de ensino, transformando a educação, tanto nos espaços universitários quanto nos espaços escolares do ensino básico e técnico, que se orientam por essa prática, em fábricas de conhecimentos privatizados, disponíveis para uns poucos privilegiados ou, quando não, em “fábricas” de tecnologias comoditizadas, prontas para abastecerem o mercado emergente do capital cognitivo, segundo a perspectiva do professor Ladislau Dowbor (2011), titular da PUC-SP na área de Ciências Econômicas. Assim, o conhecimento, na forma de tecnologia, quando agregado ao suporte digital, é uma nova moeda e também um novo e poderoso instrumento de poder no mundo contemporâneo, tecnologicamente globalizado. Na abordagem de Dowbor (2011, s/p),

O fator-chave de produção no século passado era a máquina. Hoje, é o conhecimento. Podemos chamar este, enquanto fator de produção, de capital cognitivo. O embate que hoje se trava no Brasil em torno da propriedade intelectual, ainda que se apresente sob a roupa simpática da necessidade de assegurar a remuneração do jovem que publica um livro ou do pobre músico privado do seu ganha-pão pela pirataria, envolve na realidade o controle do capital cognitivo. Nas palavras de Ignacy Sachs, no século passado a luta era por quem controlava as máquinas, os chamados meios de produção. Hoje, é por quem controla o acesso ao conhecimento. Estamos entrando a passos largos na sociedade do conhecimento, na economia criativa.

O fato é que essa realidade afetou em cheio a educação, influenciando principalmente as universidades que se tornaram ou estão se tornando reféns da indústria do conhecimento. Isso acontece em razão das parcerias realizadas entre as instituições de ensino e as empresas privadas que se utilizam de um modo de produção capitalista específico, envolvendo a inteligência coletiva universitária para produção de tecnologia de ponta, em diversas áreas do conhecimento, especialmente em áreas relacionadas ao desenvolvimento de programas de computador. Nessa linha de produção, podem ser classificados todos os tipos de tecnologias e técnicas da inteligência que envolvem o emprego desse capital cognitivo. O resultado não poderia ser outro que não a privatização do conhecimento que deixa de ser um patrimônio da humanidade para constituir-se em produto de mercado. A sociedade sofre os resultados da inacessibilidade aos conhecimentos e às tecnologias geradas nesse contexto, principalmente quando o dinheiro ali investido é público e a instituição educacional também é pública. A contradição é gritante: a produção científica que deveria ser de domínio público ou a serviço da sociedade é privatizada, torna-se propriedade privada nas mãos de empresas em busca de lucro financeiro. Em razão disso, é por demais atual e contextualizado o alerta do Fórum da UNESCO para a América Latina e o Caribe descrito do artigo assinado pelos professores Carlos Bernheim e Marilena Chauí, do qual destacamos o seguinte:

a crescente internacionalização da educação superior é, antes de tudo, reflexo do caráter mundial da aprendizagem e da pesquisa. O caráter mundial da aprendizagem está sendo reforçado pelo atual processo de integração econômica e política, pela necessidade cada vez maior de compreensão intercultural e pela natureza global das comunicações, dos mercados de consumo modernos etc. Portanto, fala-se da globalização do conhecimento, processo que envolve as universidades e está estreitamente associado à própria natureza do saber contemporâneo. Essa globalização, que muitas vezes mascara um processo de corporativização do conhecimento de origem acadêmica, está criando novo ethos acadêmico, para o maior controle dos resultados da pesquisa pelas empresas. (BERNHEIM; CHAUÍ, 2008, p. 15).

Essa nova cultura econômica, também chamada de economia criativa pelo professor Dowbor (2011), tem institucionalizado a prática daquilo que é denunciado por Sérgio Amadeu da Silveira (2008) como “o projeto do feudalismo informacional”, que consiste em transformar as artes, as manifestações culturais, assim como o conhecimento gerado pela ciência em propriedades mercadológicas, usando para isso leis de direitos autorais, que, ao invés de protegerem os direitos do/a autor/a, para cujo fim foram criadas, protegem os interesses das grandes corporações da indústria cultural.

A denúncia de Sérgio Amadeu faz sentido quando compreendemos que as manifestações culturais, assim como o conhecimento, onde quer que se encontre o seu ambiente nascedouro, são feitos de práticas recombinantes que são a recombinação de tradições e expressões já existentes na cultura, gerando novas expressões culturais. Desta forma, o conhecimento novo, muitas vezes tomado como inédito, mas também as novas técnicas e as novas tecnologias que surgem, são resultantes da recombinação de conhecimentos preexistentes ou de técnicas ou de tecnologias recombinadas. Portanto, nem a cultura em suas mais variadas expressões, nem o conhecimento, dentro ou fora da academia, nem as novas técnicas ou as novas tecnologias são dotadas de ineditismo como almejam as empresas que formam o consórcio da indústria cultural.

Essa linha de raciocínio nos remete à preocupação de Bernheim e Chauí (2008) com a internacionalização da educação nesse contexto de capitalismo cognitivo em que o conhecimento desenvolvido nas universidades são apropriados a partir mesmo das pesquisas realizadas nas universidades, já corporativizadas pelas empresas, que as financiam sob a bênção dessas mesmas instituições de ensino superior e pesquisa. O capital se apropria do conhecimento em um de seus solos mais férteis, que é o ambiente acadêmico. No afã de cumprirem a missão que a sociedade lhes confiou formando técnicos, profissionais e cientistas de alto nível e, ao esquecerem que esta missão tem como fim o bem de toda a sociedade, caem nas armadilhas dessa nova forma de dominação, tornando-se “reféns da lógica mercantil e da produção industrial”. Essa realidade é gritante, nas palavras de Silveira (2008, p. 88):

Um grupo de empresários e gestores de grandes corporações, burocratas estatais e funcionários de agências internacionais consideram que a privatização completa das manifestações artísticos culturais e do conhecimento científico é o caminho natural do capitalismo diante das redes informacionais. Este caminho é o que Peter Drahos e John Braithwaite denominaram de projeto do feudalismo informacional.

Acreditamos, por outro lado, que nem tudo está perdido e isso é assim porque existem outras opções nessa relação entre educação e sociedade mediadas pelas tecnologias do nosso tempo. Tais opções são político-pedagógicas de orientação não-reprodutivista, centradas no desenvolvimento da autonomia do indivíduo, autonomia da sociedade e na cooperação como forma de superar o modelo de concentração de riquezas do capitalismo, sobretudo do capitalismo informacional que se articula através das redes cibernéticas espalhadas pelo planeta.

3 A educação não é neutra e pode ajudar a mudar a realidade

Na concepção reprodutivista e outros modelos semelhantes, a escola é irreversivelmente um lugar de formação da cultura industrial burguesa, em que os indivíduos passam a maior parte de suas vidas sendo inculcados a pensar que a realidade é determinada pela competição e que o sucesso é definido pelo esforço individual – ilusão ideológica que impossibilita o indivíduo de ver que a realidade pode ser modificada, que as instituições sociais e a própria escola, assim como mundo acadêmico, são passíveis de mudança e que um outro mundo é possível a partir de práticas pedagógicas engajadas (GADOTTI, 2009). Essa era a base das ideias de Antonio Gramsci (1891-1937) ao pensar “o ambiente escolar como um espaço fértil da sociedade civil para germinar a possibilidade de luta contra a dominação burguesa e, por conseguinte, transformadora das relações sociais dominantes” (PACHECO; MENDONÇA, 2006, p. 64). Nesse sentido, o jovem marxista da Sardenha italiana assinalava que, se a escola servia como um aparelho ideológico nas mãos de uma classe dominante, reproduzindo sua cultura de dominação, também poderia tornar-se um ambiente de libertação e emancipação humana para transformação da realidade social. Dessa maneira, as ideias de Gramsci, desenvolvidas na prisão italiana, sob o regime fascista de Mussolini, são um marco de esperança para educadores engajados:

Assim, se a escola servia para inculcar os valores conservadores burgueses, ela poderia servir também para transmitir os ideais revolucionários da classe trabalhadora. Da mesma forma que a escola servia para transmitir a ideologia burguesa e manter a dominação capitalista, ela poderia também servir para difundir a ideologia da classe trabalhadora e ser um espaço de luta contra a exploração capitalista. Nesse sentido, se a escola constrói a ideologia, também pode elaborar a contra-ideologia (PACHECO; MENDONÇA, 2006, p. 62).

Portanto, a educação, seja em que nível for, universitária, técnica ou básica, não precisa permanecer refém das forças que se estabeleceram a partir da globalização econômica tecnocientífica. Não existe nada, nem mesmo uma cultura, capaz de determinar a vida humana quando essa é desenvolvida com criticidade. A mudança é inevitável quando educadores e educadoras têm a consciência de que as ideias são capazes de mudar o mundo, de que a educação pode ser articulada numa relação de sinergia com seu contexto social imediato, de forma endógena, que também pode se articular em rede, de forma cooperativa, com vistas à formação plena dos indivíduos: formação física, intelectual e moral, sem separar o saber do saber fazer, valorizando o ser humano em sua integralidade, porque tem como horizonte uma esperança utópica que valoriza o bem das comunidades locais ainda que inseridas num contexto de valores globalizantes. Nessa perspectiva, o professor Antonio Ozaí da Silva, docente na Universidade Estadual de Maringá (UEM), membro do Núcleo de Estudos Sobre Ideologia e Lutas Sociais (NEILS – PUC/SP), ao comentar o pensamento de Peter MCLaren sobre o assunto, diz o seguinte:

Trata-se, assim, de valorizar o capital cultural dos estudantes, seus conhecimentos e experiências – o educador crítico reconhece a necessidade de conferir poder aos estudantes. Nesta pedagogia a história é uma possibilidade a ser construída e isto exige o resgate da esperança utópica. É uma pedagogia que advoga uma política cultural que leve em consideração as dimensões raciais, de gênero e classe, na qual os professores atuem como intelectuais públicos transformadores, isto é, indivíduos que assumem os riscos de uma práxis voltada para a democracia e justiça social, que procuram se amparar em princípios éticos, solidários e na busca da coerência entre discurso e ação (SILVA, 2004).

Trata-se, portanto, de outra lógica pedagógica, que não se deixa seduzir pelo imediatismo das propostas fáceis quando da necessidade de financiamento do projeto acadêmico, mas busca na união de forças com a sociedade, no seio da qual está plantada, as condições materiais para, primeiramente cumprir a sua missão formativa, depois para produzir conhecimentos e tecnologias que estejam a serviço do bem público.

Essa pedagogia é fonte de força e inspiração que impelirá educadores, educadoras e educandos engajados a vencerem os desafios que hoje são impostos à educação no atual cenário da sociedade do conhecimento que se articula em e na rede. Trata-se de um tecido social em que o software determina os nós, as teias e o alcance dessa grande rede de comunicação que o interconecta. Um mundo novo, que todos somos desafiados e desafiadas a desbravar, em que as contradições históricas se manifestam do interior das redes cibernéticas para o mundo presencial e vice-versa, em que as forças contrárias à emancipação humana, articuladas pelo consórcio corporações ligadas à indústria da intermediação e do conhecimento é gigantesco, mas podem ser vencidas. Nesse embate, existem fortes sinais de resistência como se pode observar nessa citação do texto de Sérgio Amadeu, tirado do seu artigo “Mobilização Colaborativa, Cultura hacker e a Teoria da Propriedade Intelectual”, em que aponta os valores de uma outra economia, também criativa, que coloca o controle das decisões nas mãos da comunidade que detém o conhecimento que a mobiliza. Assim, a lógica econômica é baseada na produção e distribuição de bens intangíveis ou imateriais, justamente o campo de produção e domínio “econômico” no qual podem atuar educadores e educadoras engajadas. No dizer de Silveira (2009, p. 218),

Richard Stallman escreveu que “Free software is mather of the liberty, not price” (STALLMAN, 2002, 41), Yoshai bencker observou que grupos de indivíduos estão colaborando, independente de remuneração financeira, em projetos de grande escala que enviam sinais sociais melhores do que aqueles obtidos pelo sistema de prefixação de mercados, Pierre Levy diz presenciar a decadência do autor no ciberespaço, ao mesmo tempo em que surgir e fervilhar criações e elaborações coletivas no mundo virtual. John Perry Barlow afirmou que o futuro seria de uma economia baseada muito mais no relacionamento do que nas relações de propriedade. André Gorz coloca que todo conhecimento pode ser abstraído do seu suporte material podendo ser propagado sem custo de reprodução e com muito mais ganho social.

Neste cenário que se descortina na confluência do cotidiano com o mundo dos bits, faz-se necessário a articulação de prática e teoria que sejam coerentes com os novos desafios colocados para o contexto da educação na sua relação com a sociedade. Relação essa mediada pelas tecnologias digitais que são ferramentas nativas desse novo cenário sociológico. Por isso, seguindo o mote de construir caminhos pedagógicos, de fazeres e práticas escolares e acadêmicas que viabilizem uma práxis tecnológica nesse mundo novo, educadores e educadoras estão se unindo e se mobilizando através do Fórum Mundial de Educação (FME) como movimento de resistência e, ao mesmo tempo, de contraponto ao mundo que a educação neoliberal criou. Nesse sentido, há muitos educadores e educadoras trabalhando na construção de um outro mundo possível, na perspectiva de uma práxis pedagógica libertadora. É disso que o professor Moacir Gadotti fala em seu livro, Fórum Mundial da Educação: Pró-posições para um outro mundo possível:

Nossa missão é a defesa do direito à educação emancipadora, contra a mercantilização da vida. Não é o direito à educação neoliberal. Lutamos por uma educação que radicalize a democracia, que aprofunde a participação cidadã, que promova a igualdade, a equidade, a paz e a justiça social. A educação que defendemos não está separada de um projeto social, da ética e dos valores da diversidade e da pluralidade. O tom de todas as Cartas e Declarações finais dos encontros do FME é a questão da crescente mercantilização que se opõe radicalmente ao direito à educação. Há um consenso geral em relação a esse tema: a mercantilização da educação é o maior desafio da educação contemporânea (GADOTTI, 2009, p. 133).

As vozes que surgem do Fórum Mundial da Educação encontram eco no artigo produzido pelo Comitê Científico Regional para a América Latina e o Caribe, do Fórum da UNESCO, citado anteriormente, sob a liderança de Bernheim e Chauí (2008, p. 19):

Enquanto no passado parecia impossível romper a tutela da religião e do Estado, agora parece impossível escapar da tutela empresarial e financeira, uma vez que o saber se transformou em força produtiva, inseparável dos fluxos mundiais de capital. Considerar esse fato como obstáculo insuperável significa afirmar um determinismo economicista cego – “não está em nosso poder mudar as coisas” – e abandonar a perspectiva da ação política no sentido de que “podemos, sim, mudar as coisas”.

Portanto, resistir é preciso. Mas, também, é preciso trabalhar semeando no presente com a certeza da colheita no futuro. O que não se pode continuar a fazer é manter a passividade diante da história e imaginar que tudo sempre foi assim e assim deverá permanecer porque nada nunca irá mudar. Por isso, os educadores e as educadoras do Fórum Mundial da Educação nos dão o exemplo.

Nessa direção, é preciso reafirmar que a soma dos conhecimentos que fizeram surgir as tecnologias da inteligência, em especial os computadores e as redes cibernéticas, que nos trouxeram até este tempo da história, é um legado de muitas mentes brilhantes e generosas que se negaram a privatizar suas descobertas, tecnologias e técnicas desenvolvidas. Por essa razão, há de se afirmar sempre que o conhecimento, principalmente o conhecimento produzido no âmbito da cultura escolar/universitária, em todos os níveis, é um legado para todas as gerações, é patrimônio da humanidade.

4 Conclusão

Os questionamentos que balizaram nossa reflexão foram sendo respondidos ao longo do texto, abrindo janelas para que possamos ver o mundo com os olhos da esperança. Lembrando, todavia, que esperança é o oposto da apatia e radicalmente contrária ao comodismo. É uma força que nos coloca a caminho dos objetivos possíveis. É, pois, com essa força que devemos olhar para o atual cenário educacional nas suas relações com a sociedade em que as tecnologias digitais agregadas pelas redes cibernéticas são instrumentos poderosos de mediação para a construção de saberes e culturas. Na verdade, essas ferramentas digitais podem ser vistas como um conhecimento reticulado, que rapidamente tende a ser derivado em redes gerando novos conhecimentos, criando novas realidades possíveis, novos mundos ou mudando para melhor o nosso próprio. E, o mais importante, os atores e atoras da educação, em qualquer nível, podem se apropriar desse saber, com consciência política e pedagógica dada a importância das suas práticas na formação dos sujeitos com os quais interagem. Essa é uma resposta que pede para ser colocada como proposta educacional urgente, porque que a escola, e aqui a universidade está fortemente presente, é uma construção social cuja alma, forma e alcance dependem daqueles que militam nela, de dentro para fora, mas também de fora para dentro, estabelecendo relações dialéticas e transformadoras com a comunidade que a cerca.

Por fim, faz-se necessário lembrar que as tecnologias da informação e comunicação alinhadas às ideias de liberdade de acesso, livre uso e compartilhamento do conhecimento são meios poderosos de articulação e mobilização políticas para a criação de uma cultura democrática de acesso e disseminação do conhecimento. São ferramentas das quais os atores que militam no campo da educação precisam apropriar-se, com inteligência, criticidade e criatividade, usando-as em benefício da sua ação pedagógica: para formação de mulheres e homens livres com vistas à criação de um mundo em que as sociedades sejam livres e autônomas para cooperarem com vistas à igualdade de oportunidades com novos espaços e tempos humanos e humanizantes.

Referências

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Notas

[1] Neste paradigma, a escola da maioria reduz-se totalmente à inculcação da ideologia dominante, enquanto as elites se apropriam do saber universal nas escolas particulares de boa qualidade, reproduzindo, assim, as contradições inerentes e necessárias ao capitalismo.
[2] Citação de texto online disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Louis_Althusser. Acesso em: 28 jul. 2017.

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