Semiótica e Tecnologia
Recepção: 26 Julho 2017
Aprovação: 11 Setembro 2017
DOI: https://doi.org/10.17851/1983-3652.10.2.220-239
Resumo: O presente artigo tem por objetivo explorar, dentro da perspectiva da semiótica discursiva, alguns conceitos de desenho animado, utilizados há longa data na produção de filmes de animação dos estúdios da Walt Disney, explicitados em Frank Thomas e Ollie Johnston (1981). Queremos compreender em que medida a composição das imagens em movimento – que é, em essência, a própria forma do movimento – produz sentido, configurando-se como signo, com significante e significado próprios. À luz do percurso gerativo de sentido, focando-se na dimensão semio-narrativa (GREIMAS; COURTÉS, 2013) e na semiótica tensiva (ZILBERBERG, 2006a, 2006b), com a conceitualização de valências e missividade, podemos notar como cada sequência do movimento animatorial organiza-se em um sintagma animatorial próprio. Por meio dessa ordenação sintática, que possui um fundo tensivo, formula-se um programa narrativo e revelam-se nitidamente seus valores, actantes e fazeres. Afirma-se, então, como a forma da expressão dos movimentos não é mero suporte a um plano de conteúdo, desfazendo-se com a eficácia da comunicação, mas sim o centro de que se origina e que norteia o sentido do conteúdo, com níveis de profundidade tanto no plano do conteúdo (níveis tensivo, missivo e narrativo) como no plano da expressão (níveis rítmico e motor).
Palavras-chave: animação, tensividade, narratividade.
Abstract: In this article, we propose to explore some cartoon’s concepts used by the Walt Disney Animation Studios for a long time, which we find in Frank Thomas and Ollie Johnston’s The Illusion of Life: Disney Animation (1981). By the perspective of Discoursive Semiotics, we can comprehend how the motion pictures’ composition, the form of motion, has its meaning, becoming a sign itself, with a signifier and a signified. Using traditional Greimasian Semiotics’ generative course (GREIMAS; COURTÉS, 2013), focusing on the semio-narrative level, and Zilberberg’s Tensive Semiotics and its valencies and missivity (ZILBERBERG, 2006a2006b), we note that every motion sequence in a film organizes itself in a syntagm. Within this syntactic order with tensive base, narrative programs appear along with its values, actants and doings. Hence, we see how expression forms are not only support to content forms which disappear after effective communication, but that expression forms are, in this animatorial articulation, the originating center of meaning, with its own generative levels in the expression plane (rhythm and motor levels) and content plane (tensive, missive and narrative levels). It also opens a door to formulate a grammar for expression forms in Semiotics
Keywords: animation, tensivity, narrativity.
1 Introdução
A semiótica de origem francesa muito se desenvolveu desde seu princípio e se vê ainda frente a uma quantidade de questões e de reflexões a serem feitas. Entre as preocupações da semiótica discursiva contemporânea, figura o estudo do plano da expressão, para o qual se busca uma sistematização tão refinada como aquela dada ao plano do conteúdo. De fato, a dificuldade dessa busca surge ao aproximarmos o olhar das minúcias da expressão, que desestabilizam muitos conceitos vistos, até então, com plena confiança, como a arbitrariedade do signo, que se revela relativa, ou o percurso gerativo de sentido, que pede para ser completado e complexificado. Para cobrar com mais força os avanços na área, surge a comunicação rápida online com a fácil veiculação de textos audiovisuais, cujas linguagens exploram intensamente as expressões de suas semióticas e são umas das mais utilizadas pela sociedade do século XXI.
Para contribuir com esse momento de ampliação dos horizontes da semiótica, dedicamo-nos ao estudo de textos de cinema de animação dos mais conhecidos mundialmente: os famosos desenhos da Disney, como parte do projeto de pesquisa de mestrado O estilo Disney de cantar histórias (Cf. SILVA JÚNIOR, 2017), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, processo nº 2014/17482-0). Ironicamente, a animação Disney já é bem antiga, mais que a semiótica greimasiana. Às vésperas de completar seu primeiro centenário, e por todos esses anos, ela norteou as técnicas e as tecnologias de desenhos animados. É justamente a persistência dessa forma de expressar característica e sua resistência temporal que nos chamam a atenção para o que aí pode haver de extremamente proveitoso para o estudo desses objetos.
Assim, selecionamos algumas cenas de dois filmes dos estúdios, The sword in the stone (A espada era a lei, 1963) e Sleeping beauty (A bela adormecida, 1959). Deles, debateremos alguns aspectos particulares. Quando falamos desses textos e de suas materialidades de expressão, pensamos logo em uma parcialidade plástica e em uma parcialidade musical, ao lado de um texto verbal-oral e de uma sintaxe fílmica, que se coordenam e comungam em uma totalidade significativa. Mas há outra articulação no conjunto, um pouco mais tímida e sutil, porém latente. Trata-se da organização textual específica da animação, aquela que põe as imagens em movimento. São esses formantes que queremos abordar e deles tirar as reflexões pertinentes para a semiótica contemporânea.
2 A organização textual da visualidade no desenho animado Disney
O primeiro questionamento que surge ao se deparar com um objeto semiótico do tipo do filme de animação é discriminar seus mecanismos particulares de produção de sentido, na conjunção conteúdo-expressão. Apesar de ser um texto sincrético, em que diversas linguagens articulam-se em conjunto, produzindo um sentido não divisível entre elas, é relativamente fácil discernir a qual linguagem pertence cada tipo de formante da expressão. Por isso, antes de chamar o filme de semiótica sincrética simplesmente, é preciso colocar em evidência uma série de particularidades a serem levadas em conta na prática de análise.
Inicialmente, tem-se em vista que o texto sincrético é constituído, como qualquer texto expresso por um sistema semiótico, por um plano do conteúdo (PC) e por um plano da expressão (PE). Analogamente ao signo linguístico, composto pela relação entre um significante e um significado, o texto tem seu significado afirmado no PC e seu significante composto pelo PE. Um texto sincrético, por sua vez, mobiliza mais de uma materialidade de expressão, ou seja, mais de uma forma e de uma substância do PE. O sincretismo, a superposição de linguagens, ocorre, propriamente, no plano do conteúdo, em que não é possível separar com precisão quais elementos “originam-se” de quais materialidades.
As semióticas sincréticas constituem um todo de significação e, portanto, há um único conteúdo manifestado por diferentes substâncias de expressão. Em outras condições, há uma superposição de conteúdos. [...] A primeira condição para a existência de uma semiótica sincrética é, pois, a superposição dos conteúdos, mas não da expressão (FIORIN, 2009, p. 35).
Já que são mobilizadas diversas materialidades, os textos sincréticos devem ser “tratados tanto na particularidade de sua materialidade própria quanto em sua qualidade geral de discursos concretizados em textos” (TEIXEIRA, 2009, p. 47). A prática da análise não se constitui, então, em um modelo de semiótica sincrética, mas no uso simultâneo e parcial de modelos diversos a fim de destacar a solidariedade existente entre as semióticas mobilizadas:
[...] a própria prática da análise demonstra não ser possível operar com “modelos”, mas com categorias que tanto devem adequar-se às diferentes materialidades sensoriais – textos verbovisuais, audiovisuais, cancionais, etc – quanto precisam referir-se a procedimentos enunciativos gerais (TEIXEIRA, 2009, p. 61).
Por isso vale dizer que, apesar de ser um texto sincrético, o filme de animação com o qual lidamos aqui possui diversas semióticas, de naturezas distintas, coordenadas a fim de construir um PC unificado. Desse modo, depreendem-se duas substâncias de expressão: sonora e visual, que são textualizadas em cinco tipos específicos de expressão: a musical, a verbal, a plástica, a animatorial e a cinematográfica.
O segundo questionamento a ser feito é a respeito da pertinência em falar sobre uma expressão animatorial, e mesmo uma expressão cinematográfica, já que ambas são formações visuais, e a semiótica do visual já é bastante explorada tanto em conteúdo quanto em expressão por uma extensa lista de pesquisadores brasileiros e estrangeiros dentro do campo da semiótica discursiva.
De certo, não se confundem a semiótica musical e a linguística, mesmo ambas sendo expressas pelo som e estarem sobrepostas, por exemplo, na canção. A diferença dessas linguagens é de forma, não de substância propriamente. Os formantes de uma semiótica linguística são fonemas, morfemas, etc., enquanto os de uma musical são durações, alturas, timbres, entre outros. Ambas são textualizações que ocorrem sobre a substância sonora. Da mesma maneira, a substância visual, mais do que ser compreendida como uma grande semiótica visual, deve ser levada em conta como plano-suporte em que formas específicas determinam o tipo de expressão inscrita aí.
Os formantes da semiótica plástica ipsis litteris, no sentido de plasmar, são formas eidéticas, posições topológicas, cores, luzes, texturas, enfim, tudo aquilo que delimite e caracterize os corpos visuais, sejam eles desenhados ou modelados. No caso da articulação cinematográfica do visual, as formas são, por exemplo, o ângulo e o enquadramento enunciativos, que expressam o campo de visão da enunciação, o modo como um sujeito vê e apreende os corpos plásticos apresentados no filme. Já o específico animatorial diz respeito ao movimento que esses corpos plásticos desenvolvem.
Assim, a diferença essencial entre o plástico e o animatorial é que este se desenvolve mais temporalmente que espacialmente, enquanto o primeiro mantém a proporção inversa. Isto é, uma imagem, segundo seus atributos plásticos, está distribuída espacialmente sobre seu suporte, enquanto, segundo seus atributos animatoriais, ela está distribuída temporalmente, por meio do movimento das formas ao longo do espaço, de quadro a quadro do filme, não sendo relevantes, neste aspecto específico, a cor, a luz ou a textura, mas sim a relação eidos x topos ao longo do tempo. Adicionalmente, a imagem fílmica também tem uma constituição cinematográfica, em que os aspectos levados em conta são o campo de visão e a perspectiva dos sujeitos enunciador e enunciatário sobre ela.
Portanto, é possível falar em animatorialidade, cinematografia e plasticidade para analisar a visualidade do desenho animado Disney, mas não se deve confundir cada uma dessas expressões a uma semiótica autônoma. No caso do sonoro, a semiótica linguística e a semiótica musical estão coarticuladas no filme, mas, de um ponto de vista teórico, têm grande independência entre si. No visual, o mesmo não se afirma, pois o que poderíamos chamar, a princípio, de semiótica animatorial e uma semiótica cinematográfica são sempre dependentes de uma semiótica plástica, porque é a plástica que dá as formas e ordena as substâncias apreendidas pelo olhar. Dessa ordenação prévia, desenvolvem-se as formas propriamente animatoriais e cinematográficas de expressão.
Trata-se, essencialmente, de uma complexidade visual própria do texto sincrético, que envolva filmagem e movimentação. Em nosso caso, mantemos o escopo de analisar essa tríade visual – a forma, o campo de visão e o movimento, respectivamente, a plasticidade, a cinematografia e a animatorialidade – no desenho animado, e por serem animados, os movimentos podem ser chamados de animatoriais, especificamente da produção da Walt Disney Studios. Neste artigo, em especial, o objetivo é a análise dos movimentos animados, somente.
3 Os princípios da animação dos estúdios Disney
Mantendo o interesse interno a tal produção Disney, os formantes do desenho animado podem ser encontrados em manuais de animação próprios da Disney, explanados eximiamente por dois grandes animadores dos estúdios: Frank Thomas e Ollie Johnston, conhecidos como dois dos nove velhos – o grupo de animadores que trabalhou lado a lado com Walt Disney no começo de sua carreira – e compilaram, em The illusion of life: Disney animation (JOHNSTON; THOMAS, 1981, p. 47-70), os princípios da arte de animar.
São nomeados doze princípios que recobrem desde regras de verossimilhança na representação dos movimentos e simples princípios de feitura até efeitos e funções daí decorrentes, que tomamos a liberdade de traduzir: 1. Espremer e esticar (squash and stretch); 2. Antecipação (anticipation); 3. Encenação (staging); 4. Ação sequencial e pose a pose (straight ahead action and pose to pose); 5. Ações pareadas e sobrepostas (follow through and overlapping action); 6. Aceleração e desaceleração (slow in and slow out); 7. Arqueamento (arcs); 8. Ações secundárias (secondary action); 9. Temporalidade (timing); 10. Exageração (exaggeration); 11. Desenho sólido (solid drawing); 12. Apelo passional (appeal).
Todos esses elementos de um desenho animado são de grande valia para o semioticista explorar a articulação desse tipo de arte em suas minúcias, mas, aqui, interessam-nos apenas a antecipação, a aceleração/desaceleração e a exageração, que são altamente solidários entre si.
A antecipação é um conceito relativo à clareza da ação física que acontece em um filme:
People in the audience watching an animated scene will not be able to understand the events on the screen unless there is a planned sequence of actions that leads them clearly from one activity to the next. […]This is the oldest device of the theater, for without it, the audience becomes nervous and restless and whispers, “What’s he doing?” The anticipatory moves may not show why he is doing something, but there is no question about what he is doing – or what he is going to do next (JOHNSTON; THOMAS, 1981, p. 51-52, itálico dos autores)[1].
A explanação é clara e demonstra a consciência dos animadores acerca dos movimentos de uma personagem animada, o método de deixar cada informação motora altamente perceptível, gerando certa teatralidade nos gestos. Se adotarmos a antecipação como um efeito de sentido decorrente da articulação animatorial da imagem, podemos chamá-la de função, em que um dos funtivos é o princípio de aceleração e de desaceleração. Nesse sentido, a desaceleração é responsável por salientar os estágios da ação física, permitindo que ela seja “antecipada” como programação motora. Já a aceleração entra em cena em outra situação.
Juntamente ao princípio de antecipação, os autores esclarecem o seu contraponto, ou seja, a ocasião em que um dado movimento é antecipado, desacelerado, programado e esperado pelo espectador, mas não se confirma, e a personagem acaba por fazer algo inesperado. O inesperado é chamado de piada surpresa (surprise gag), e ocorre de forma mais acelerada, geralmente usada em cenas de humor, quando a personagem se atrapalha, apanha, cai, derruba algo etc. A piada surpresa conta com a aceleração do movimento quando ocorre.
Por fim, resta falarmos sobre a exageração, o outro funtivo do procedimento de antecipação e de piada surpresa. Relata-se que Walt pedia a seus animadores que os desenhos fossem mais realistas, mas, às vezes, criticava-os por não estarem exagerados o suficiente. Para ele, realista e exagerado não eram termos excludentes:
If a character was to be sad, make him sadder; bright, make him brighter; worried, more worried; wild, make him wilder. Some of the artists had felt that “exaggeration” meant a more distorted drawing, or an action so violent it was disturbing. They found they had missed the point.When Walt asked for realism, he wanted a caricature of realism. […] Walt would not accept anything that destroyed believability, but he seldom asked an animator to tame down an action if the idea was right for the scene[2] (JOHNSTON; THOMAS, 1981, p. 65-66).
Logo, se uma personagem atrapalhada é risível, é porque é atrapalhado demais, um animalzinho que contorce sua cara de raiva é risível porque ele a contorce demais, dramatiza e exagera. Forma-se a tal caricatura de realismo de Walt, porque o que acaba por ser exagerado na ação ainda condiz com a representação física do movimento dos corpos.
A aparente confusão que ocorria nos estúdios a respeito do exagero requisitado por Walt acontecia, talvez, pela dificuldade inicial de coexistirem uma impressão realista na representação e um exagero um tanto vago. O termo caricatura de realismo é vago em si, pois não há caricatura que não parta de uma representação realista. Na verdade, quando assistimos a um desses filmes, o desenho não está necessariamente caricaturizado, muitas vezes o traço é extremamente sutil e leve, como os das princesas da Disney. As formas não são exatamente como na vida real, mas não se enquadram naquilo que chamaríamos de caricaturas, veiculadas em charges, por exemplo. O desenho, ao contrário, é cartunesco, característico de seu gênero textual, o cartum, ou cartoon. Algumas proporções alternativas das formas, colorações próprias e saliências fazem parte das configurações discursivas estilísticas do cartoon.
O caricaturesco, o exagerado, está no movimento. São ações físicas, corporais e faciais, que são exageradas. O desenho animado é, portanto, como uma caricatura, em que ao invés de um nariz exagerado, tem-se a exageração no mover dos músculos pintados na tela, na rigidez ou na frouxidão desses músculos. Trata-se ainda de certa teatralidade na animação, intensificação das ações, dando a elas ênfase e foco.
Assim, admitindo que uma expressão animatorial define-se por formantes de coordenação temporal da forma no espaço, a exageração seria um procedimento do domínio da plástica, do estático e do distribuído espacialmente. Ele apenas é pertinente no debate do animatorial por coordenar funções específicas da ordem temporal, demonstram a interdependência de todas as expressões visuais no desenho animado (plástica-cinematográfica-animatorial).
4 A narratividade expressa por formantes animatoriais
Passemos a examinar então exemplos práticos das ocorrências desses princípios e a identificar como essas formas de expressão geram formas de conteúdo, isto é, como significam.
Um primeiro exercício de reflexão é pensar uma ação breve, representada pelos movimentos, como uma narrativa. Se enunciados de fazer definem-se pela passagem de um enunciado de estado a outro, em que se dinamizam actantes, sujeito e objeto, e sua relação de junção (GREIMAS; COURTÉS, 2013, p. 170), essa breve sequência de movimentos de personagens caracteriza-se da mesma maneira, instaurando um programa narrativo, em que, via de regra, o sujeito busca a conjunção com um objeto. Da mesma forma, a piada surpresa, acelerada, manifesta-se na performance mal-sucedida desse sujeito, em que o destinador-julgador o sanciona negativamente, estágio que é recoberto, geralmente, por um papel temático do atrapalhado, fracassado, gerando o efeito humorístico para o enunciatário.
Observe-se a cena capturada do filme The sword in the stone (A espada era a lei, 1963) (ver Figura 1), com um pouco menos que dez segundos. Nela, vê-se um lobo tentando morder a perna de Wart, protagonista, mas que fracassa por demorar demais para fazê-lo, pois havia aberto a boca lentamente, propiciando o movimento antecipatório. Narrativamente, trata-se de uma tentativa da performance F[S1→(S2∩Ov)], de transformação do estado disjunto para o estado conjunto entre um S2 (lobo) e um Ov (comida/perna), sendo S1 também revestido pelo ator lobo. Mas o /fazer-ser/ não se realiza porque S1 /deve-fazer/ (sente fome), /quer-fazer/ (tem desejo de comer), /sabe-fazer/ (a caça é instintiva ao animal), porém /não-pode-fazer/, pois está magro e debilitado para capturar sua presa.
A transformação que não se realiza por falta de competência é sancionada negativamente no nível cognitivo com o desmascaramento do antagonista lobo. De fato, o lobo está constantemente tentando atacar Wart, procurando desapropriá-lo de sua conjunção com o Ov (vida). Em outra cena (ver Figura 2), a mesma tentativa acaba com o tronco de árvore atingindo o lobo.
A sanção negativa expõe S1 ao ridículo, revelando sua incompetência, pontuada ao morder o nada, o ar (Figura 1, quadro 8) ou ser atingido por um tronco (Figura 2). Em ambos os casos, tem-se (S1∪ Om-poder) e Wart como destinador-julgador, responsável por desmascarar cognitivamente o lobo (Figura 1) ou puni-lo pragmaticamente (Figura 2, em que ele é “ferido” após seu fracasso).
Esse ridículo culmina no efeito humorístico, expressando-se pela diferença qualitativa entre a antecipação da performance fracassada e a piada surpresa, que deflagra a incompetência do sujeito.
Na cena do filme Sleeping beauty (A bela adormecida, 1959) (ver Figura 3), o príncipe convence seu cavalo a levá-lo até a princesa (quadros 1-4). Nesses quadros, a ação é antecipada e desacelerada, o cavalo ouve com atenção algo que lhe desperta desejo e encena as suas expressões faciais. Nos quadros 5-6, eles se abaixam para passar sob um galho de árvore, já nos quadros 7-9, outro galho aparece, mas o cavalo salta muito alto e derruba o príncipe. Nos quadros restantes, ele retorna até o dono, que o pune.
O príncipe é o sujeito do querer do PN de base, S1, que quer-fazer encontrar a princesa, seu Ov, mas necessita do auxílio do adjuvante cavalo, que detém o poder-fazer. Dessa forma, o príncipe é destinador-manipulador do cavalo, S2, a quem ele faz-querer-fazer, em troca da recompensa que oferece verbalmente ao cavalo. A performance de S2 ocorre de forma acelerada, em oposição à manipulação lenta. O cavalo corre uma grande distância e encontra um obstáculo que ele supera. Mas, quando o ritmo e a constância do movimento acelerado sugerem que ele realizará o fazer sem dificuldade, o segundo obstáculo interrompe a corrida. S1 torna-se destinador-julgador, punindo S2 com um golpe de água.
A antecipação, nesse caso, salienta o estágio da manipulação; a aceleração salienta a performance, antecipando que ela será bem realizada, por representar movimentos precisos do cavalo; e a piada surpresa desfaz essa impressão, precedendo a sanção negativa.
O último exemplo que precisamos expor para continuar está no mesmo filme de Wart e o lobo, mas com atores diferentes (ver Figura 4). Nele, o açucareiro, S2, deve servir o açúcar para Merlin e Wart, manipulado por Merlin, S1. Ele tenta servir Merlin primeiro, mas recebe uma advertência de que deve cuidar dos convidados antes. Já ocorre aí uma tentativa de performance e uma sanção negativa (quadros 1-4). Depois, quando volta a servir Merlin (entre os quadros 7 e 8), continua a encher a xícara de açúcar mais do que deveria e recebe outra bronca. É certo que, como dito pelo próprio Merlin, o destinador-manipulador e julgador, é preciso que a pessoa a quem o açucareiro serve diga quando basta a quantidade de açúcar, como Wart faz (quadros 6 e 7). Merlin, entretanto, está tão entretido ouvindo as palavras de seu convidado e procurando livros em uma estante que se esquece de dizer quando a quantidade de açúcar é suficiente (quadro 8). Logo, o açucareiro é um actante que não tem domínio pleno sobre seu fazer, pois depende de uma informação dada por aquele a quem ele serve, e seu fracasso, nesse caso, decorre de uma não informação correta dada por Merlin, um não-fazer de Merlin. Apesar dessa ressalva, como é Merlin o destinador-julgador, ele culpa e sanciona o açucareiro, não percebendo sua própria inabilidade, mas acaba, para o enunciatário, como o trapalhão da cena, muito mais do que o açucareiro.
A antecipação (quadros 2-3, 6-7 e 9-11) sugere que S2 terá uma performance positiva, mas S2 “fracassa” e a piada surpresa (quadros 5 e 14-16) sucede a sanção negativa do destinador-julgador (quadros 4 e 13), que coloca S2 disjunto de Ov (a própria aprovação de seu trabalho por parte de Merlin). Nesse caso, tanto antecipação quanto piada surpresa ocorrem aceleradas, ponto que explicaremos adiante.
Nas outras cenas, havia configurações eidéticas que formavam um cavalo e um homem e um lobo e um menino, sugerindo, por meio de intertextualidade e memórias culturais, programas narrativos mais ou menos prováveis (um lobo faminto quer devorar um menino fraco). No caso do açucareiro, apenas o movimento é que lhe dá estatuto de actante. Não fossem os movimentos das alças, da tampa e do revelo, eles não seriam antropomorfizados e atualizados pelas formas da animação em braços, mãos, chapéu e barriga, não havendo a significação narrativa.
Desses exemplos, depreendemos que:
A antecipação é um efeito de sentido discursivo decorrente de uma organização sintagmática dos movimentos animados, a que chamaremos de movimento antecipatório (MA), e tem por significado, no nível narrativo, sempre um fazer de um programa narrativo, seja o fazer-ser de um sujeito sobre um objeto ou o fazer-fazer de um sujeito sobre outro;
A piada surpresa, por sua vez, chamaremos de movimento vexatório (MV), e ele tem por significado, no nível narrativo, sempre o fracasso da performance, tomando lugar ora antes da sanção (durante o fracasso), ora durante (durante a punição/desmascaramento);
A exageração e aceleração/desaceleração são, como dito, os funtivos dos dois tipos de movimentos, e podem ser traduzidos em formantes mais profundos na geração do sentido da expressão animatorial.
Outra reflexão é extremamente importante nesse ponto: sabe-se que a dinâmica entre PC e PE pode constituir um sistema semiótico, em que os dois planos não são conformes; dar origem a um sistema simbólico, em que os dois planos são conformes (FIORIN, 2009, p. 34), ou organizar um sistema semissimbólico, em que não há conformidade entre planos, mas há correspondência entre categorias do PE e categorias do PC, em que as categorias do PC são unidades semânticas, semas.
As linguagens semi-simbólicas caracterizam-se não pela conformidade de elementos da expressão e do conteúdo isolados, mas pela conformidade de certas categorias desses dois planos. Citam-se geralmente como formas semissimbólicas significantes as formas prosódicas e certas formas de gestualidade. O /sim/ e o /não/ correspondem assim, em nosso universo cultural, à oposição dos movimentos da cabeça sobre os eixos verticalidade vs horizontalidade (FLOCH, 2009, p. 161-162).
É mais comum, em textos sincréticos, que exploram as articulações do PE com maior intensidade, associar um conjunto de categorias da expressão a categorias do conteúdo em relação semissimbólica. Dessa forma, por exemplo, podemos dizer que a oposição da expressão [aceleração x desaceleração] estaria semissimbolizando a oposição do conteúdo [parecer x ser], porque quando o movimento é desacelerado, ele parece encaminhar-se para um final positivo, mas, quando se torna acelerado, revela o ser-incompetente do sujeito.
A relação entre o MA e a performance e o MV e a sanção, porém, não parece ser semissimbólica. Performance e sanção são elementos de um nível narrativo pressuposto da organização animatorial da expressão visual, sendo partes de um processo de transformação, juntivo e competencializante. Não se trata, portanto, simplesmente de semas do nível discursivo do conteúdo que podem ser colocados em oposição e relacionados a oposições formais da expressão. Entendemos que MA realiza esse estágio profundo e narrativo do conteúdo no plano da expressão. MA tem por conteúdo o fazer, constituindo uma linguagem semiótica, de não conformidade nenhuma entre planos, e sua atualização depende sempre de outros signos, que tornam esse fazer um fazer-fazer ou um fazer-ser. Da mesma forma, o conteúdo de MV é a sanção, pragmática ou cognitiva, punição ou recompensa, sempre a ser completada pelos outros estratos de conteúdo das semióticas sincretizadas no filme.
Essas são proposições tomadas apenas a partir desse estudo e do conhecimento prévio de animações não somente da Disney, mas de outras empresas que produzem tanto longas-metragens como curtas-metragens desse tipo. Esses efeitos de humor de programas narrativos dos movimentos estão presentes, desde em filmes ganhadores de Oscars, como O Rei Leão, até em desenhos mais curtos, como os de Tom & Jerry, por exemplo. A validade e as definições mais precisas aos estudos semióticos devem ainda, entretanto, ser desenvolvidas.
5 A tensividade expressa por formantes animatoriais
Sob uma perspectiva mais profunda na geração do sentido da expressão, os formantes animatoriais que regem os programas narrativos são coordenados por categorias rítmicas de aceleração, de desaceleração e de exageração. A semiótica tensiva permite-nos tecer algumas reflexões e aproximações interessantes a esse respeito. Antecipação sendo um efeito de sentido discursivo decorrente das proporções da exageração dos corpos e da aceleração/desaceleração da ação, ambos também efeitos discursivos, é possível analisar as categorias tensivas profundas que subsidiam suas ocorrências.
Exageração é um grau da espacialidade extensa, pois pertence à dimensão do inteligível das coisas do mundo enunciado e aponta para uma axiologia enunciativa, ou seja, para o modo de ser do enunciador de filmes animados, que tende sempre a intensificar as forças motoras “musculares” de seus atores enunciados. Aceleração e desaceleração são graus do andamento intenso, pois pertencem à disposição sensível do actante e do sujeito da enunciação.
Tomamos os termos andamento e espacialidade de Zilberberg (2006b), subdimensões da intensidade e extensidade, cuja declinação (ZILBERBERG, 2006b, p. 186) permite-nos nomear suas subvalências (ver Tabela 1). Na intersecção dos eixos andamento e espacialidade nessas cenas, o forema que determina as subvalências é a direção (do andamento e da espacialidade), em que arrastamento e hermético são subcontrários e precipitação e escancarado, sobrecontrários. Desaceleração e fechado e aceleração e aberto são as subvalências intermediárias. Por essa associação, chamaremos, doravante, exageração de espacialidade e aceleração/desaceleração de andamento.
No caso do cavalo (Figura 3), o andamento é atenuado e a espacialidade é exacerbada (as expressões faciais reforçadas, o pescoço esticado etc.) no momento da manipulação. Quando ele se põe a correr, ocorre o restabelecimento do andamento e a atenuação da espacialidade, pois os músculos deixam de ser salientados. Assim que ele para de correr, após se precipitar no salto, e passa para a sanção de sua má performance, as tonicidades se invertem, ele passa a andar arrastado para a sua punição e seus músculos tornam-se herméticos. Nesses três momentos do percurso do cavalo, quanto mais tônico o andamento, mais átona a espacialidade e vice-versa. Já em relação ao açucareiro (Figura 4), há uma tonicidade mais ou menos constante em todos os momentos, pois seus braços estão sempre se movendo de maneira a exagerar a ação, assim como sua direção, que se mantém acelerada. Podemos dizer que a espacialidade é aberta durante a performance e escancarada durante a sanção. O andamento, por sua vez, ocorre do acelerado para o precipitado. Por fim, nos casos do lobo (Figura 1 e 2), a espacialidade caracteriza a abertura da boca do lobo e o comprimento de seu corpo abaixado, ambos em um grau tônico, extremamente esticados, escancarados, terminando de forma hermética. Já o andamento caracteriza o tempo que as ações levam para acontecer, sem chegar ao grau tônico máximo, apenas do arrastamento para a aceleração no momento da sanção.
Dessa forma, ainda que tenhamos pares de subvalências diferentes em cada cena, as tensividades são de correlação inversa para o cavalo e o lobo, e conversa para o açucareiro. Podemos formular uma curva genérica que conjuga as valências andamento e espacialidade dos dois modos (ver Gráficos 1 e 2), além da tensividade especifica de cada cena, com a demarcação de sua progressão temporal (ver Gráficos 3, 4 e 5).
Essa tensividade gera um ritmo para as combinações entre a antecipação e a piada surpresa. Admitimos que o movimento antecipatório (MA) e o vexatório (MV) são ambos signos animatoriais de alta recorrência. Sua combinação forma um sintagma animatorial risível (SAR). MA e MV são constituintes do SAR, enquanto a intensidade do andamento em detrimento da extensidade da espacialidade são os caracterizantes, agindo sobre o sintagma animatorial assim como a prosódia age sobre um sintagma de semiótica verbal, criando uma espécie de ritmo “entoacional”. Cada uma das cenas analisadas apresenta um ritmo, ou “entoação”, que tem efeito direto sobre o riso.
O ritmo (alteração entre os estados tensivos) também pressupõe uma dimensão missiva, que podemos formular a partir de Zilberberg (2006a). O fazer missivo, nível pressuponente da tensividade, em que existem a parada e a parada da parada, constitui-se pela remissividade e emissividade. A primeira configura, segundo Zilberberg, a tensão, em que o tempo é o da espera, cronopoiético, e o espaço é fechado. O fazer emissivo configura-se a partir da distenção, com o tempo do repouso, cronotrópico, e o espaço aberto.
O lobo inicia a cena com tensão, em remissão, disjunto de seu objeto e com o tempo da espera e o espaço do enunciado aberto. Acaba sua ação distenso, emissivo, ainda disjunto do objeto, mas em repouso, com o espaço inalterado. O açucareiro começa a ação distenso, porque realiza bem seu FAZER, é emissivo, conjunto do objeto, em tempo fluído e espaço aberto. Entretanto, quando julgado pelo destinador negativamente, a tensão surge e, apesar do tempo fluir, o espaço se fecha (Figura 4, quadro 12, escondido atrás do bule), quando ele se esconde, além da disjunção que é instaurada. O cavalo começa tenso, com espaço aberto, com o tempo de espera, enquanto ele é manipulado a querer-fazer em troca de uma recompensa. Quando adquire a competência, o tempo flui e a tensão desaparece, porque o sujeito cavalo acredita que está fazendo tudo certo, e o espaço se fecha entre as árvores. Quando ele é julgado, a tensão retorna, o espaço se fecha no charco e o tempo é cronopoiético. O estado é sempre disjunto de sua recompensa. Essas informações podem ser colocadas de forma clara, adaptado conforme o esquema de Zilberberg (2006a, p. 147) (ver Tabela 2):
Temporalidade e espacialidade enuncivas são da dimensão do nível discursivo do conteúdo, construções que revelam em maior ou menor medida a tensividade e a missividade, e o estado juntivo também não parece interferir necessariamente em estratos rítmicos do sentido. O que determina, de fato, o estado missivo é a tensão. O ritmo compõe-se de alternâncias tensivas de andamento e de espacialidade (espacialidade tensiva ≠ espaço figurativo enuncivo/enunciativo) e alternâncias missivas (ver Tabela 3).
Nos casos do lobo, o ritmo é Ascendente Emissivo Inverso, tonifica-se na direção e termina emissivo, inversamente proporcional à espacialidade. Nos casos do açucareiro, o ritmo já é acelerado e tornar-se exacerbado, correlato conversamente à espacialidade, terminando em remissão, a que chamaremos de Exacerbante Remissivo Converso. No do cavalo, o ritmo acelera entre dois períodos de desaceleração, fazendo-se Oscilante Remissivo Inverso, inverso à espacialidade e com final remissivo.
O padrão rítmico determina a maneira de o sujeito da enunciação se colocar no mundo do risível, o julgamento que ele faz sobre o que é ou não engraçado e sobre os próprios sujeitos do enunciado, que executam essas ações. É por meio dele que notamos se o enunciador vê como risível o fracasso remissivo ou o emissivo, o exacerbante ou o oscilante etc.
Então, podemos pontuar mais algumas deduções:
A existência de uma articulação animatorial da expressão visual, inerente à animação Disney e interdependente da cinematografia e da plasticidade, justifica-se pela existência não apenas de simples signos como os movimentos antecipatório e vexatório, mas pela sua sintaxe articulada em sintagmas caracterizados pela relação tensiva entre andamento e espacialidade;
A conjugação tensiva parece formar um estrato de sentido intrínseco à ordenação sintática dos constituintes, disseminando-se desde esse nível de profundidade até a imagem do sujeito da enunciação, cujo estudo, na animação, deverá ser do texto sincrético como totalidade para poder chegar a conclusões mais sólidas, tão bem como procurar a articulação de outros signos animatoriais (Johnston e Thomas ainda apresentam mais oito princípios de animação que não utilizamos);
Dessa forma, podemos propor dois níveis de sentido profundo para os sintagmas animatoriais: um motor, em que antecipação e vexação configuram estágios do programa narrativo (em nossos exemplos, manipulação, performance e sanção), e um rítmico, que dispõe as valências do movimento em uma correlação tensiva e os estados tensos/distensos ao longo dos formantes do sintagma da expressão, subsidiando missividade e tensividade no conteúdo (ver Tabela 4).
Observe-se que a tabela não possui estrato discursivo para o conteúdo inerente à articulação animatorial. Assim, a semiótica plástica, constituindo-se de cores, formas e posicionamentos, é a face interdependente, com todos os aspectos referentes ao nível discursivo, de modo que animação e plástica interagem no sincretismo inerente ao gênero, construindo o sentido final, tão bem quanto o faz a cinematografia. Por isso é preciso compreender o texto sincrético como um todo de sentido, de conteúdo conciso e expressão segmentável segundo suas formas próprias de textualização. Indo além, é realmente preciso ter em mente, embora fuja de nossos objetivos aqui, compreender o texto animado Disney como um elemento íntegro entregue à comunicação, indissociável de um cenário cultural e intersubjetivo, cuja qualquer divisão e subdivisões são um procedimento metodológico e didático de análise.
6 Considerações finais
Quando dissemos que as formas de expressão podem ser relacionadas semissimbolicamente às formas de conteúdo em textos sincréticos, sobretudo no tocante à visualidade, mas que o caso desses signos animatoriais é outro, é porque entendemos que tal distinção é norteadora para uma gramaticalização da expressão, objetivo mais amplo de um trabalho em semiótica envolvendo textos dessa natureza.
Estamos acostumados com a frequência de semióticas verbais, sobretudo utilizada para a comunicação utilitária. Referindo-se a Paul Valery, Tatit (2011) fala sobre uma distinção entre a linguagem artística e a da comunicação rápida:
O parâmetro de eficácia e de produtividade das linguagens utilitárias está, segundo o poeta, na “rapidez” com que se pode transitar pelas palavras ou pelos gestos, transformando-os em valores abstratos independentes da matéria que os veiculou. Ou seja, uma comunicação bem-sucedida em nosso cotidiano cognitivo supõe que houve rápida conversão do plano da expressão em plano do conteúdo e que o primeiro pôde ser, também imediatamente, descartado.No caso das linguagens artísticas, o parâmetro de encanto está justamente na prática inversa de preservação do plano da expressão – do significante – por meio de recursos rítmicos altamente comprometidos com a matéria sonora ou somática (TATIT, 2011, p. 48).
Mesmo na comunicação cotidiana oral, recursos rítmicos e prosódicos são essenciais para a transmissão do conteúdo, assim como articulações entre todos os constituintes da linguagem verbal, que, em dados casos, podem sim continuar a repercutir em nossa mente como forma de expressão, não unicamente de conteúdo, como quando tentamos entender “o que fulano quis dizer ao dizer de tal ou tal modo”. No outro caso, comprova-se que, em linguagens artísticas, não apenas a preservação de formas da expressão funda o encanto, mas também a comunicação que ocorreu de maneira efetiva. Assim, o parâmetro de eficácia e o parâmetro de encanto não são exclusivos de um ou outro uso de linguagem, mas presentes em ambos, em maior ou menor grau.
A ideia da perda da matéria de expressão na comunicação verbal rápida é porque nós, seres humanos, somos feitos, em nível simbólico, de linguagens, dentre as quais a verbal é a que melhor dominamos, reconhecemos, catalogamos, entendemos mais a fundo, que mais utilizamos, de modo que sua forma de expressão passa mais rapidamente pelo processo cognitivo de decodificação (quase sempre). É a intimidade que temos com textos verbais que garante a maestria em lidar com a emissão e a recepção deles e na distinção entre parâmetros de eficácia e de encanto.
O mesmo não se atesta em linguagens não-verbais. Basta pensar como uma linguagem não-verbal pode ser mais eficaz (no sentido comunicativo) ou mais encantadora para perceber a profundidade do problema. Propagandas, que podemos chamar de textos não-artísticos em relação a pinturas plásticas, ainda que ambas semióticas plásticas, são textos guiados mais por um parâmetro de eficácia ou de encanto? Os dois. Cada cor e cada traço importam, tanto para comunicar como para reter o olhar e ressoar mente adentro. Não importa se em um outdoor ou em uma tela de Picasso, a linguagem plástica tem uma articulação que não permite o descarte da forma de expressão. O caso é o mesmo em linguagens musicais, opondo óperas a jingles de comerciais.
De fato, parece que das duas hipóteses, pelo menos uma deve ser válida: ou todas as linguagens não-verbais (talvez com exceção das linguagens de sinais e tátil, que vêm suprir o lugar do verbal como linguagem utilitária) são de natureza completamente oposta à verbal no tocante à “descartabilidade” da expressão, independentemente do parâmetro geral ser a eficácia comunicacional ou o encanto; ou nosso domínio muito baixo de linguagens não-verbais faz com que não consigamos recebê-las e produzi-las de forma abstrata, mas sempre “presos” à materialidade da expressão.
Sendo a segunda hipótese a mais válida, é preciso, como a semiótica discursiva já tem feito ao longo dos últimos anos, avançar os estudos do plano da expressão para adquirir a metalinguagem necessária para a sistematização de suas formas. Como observamos, o sintagma animatorial apreendido constitui-se não apenas como forma em relação semissimbólica a categorias de conteúdo sincretizadas, mas também como signo com significado exclusivo, que gera narrativas e tensões no conteúdo e apresenta pelo menos dois níveis de profundidade, um rítmico e um motor.
Se a primeira hipótese é a mais válida, a diferença entre as linguagens não-verbais e a verbal comprovaria uma ideia do círculo linguístico de Bakhtin, contida em Marxismo e filosofia da linguagem, de que a expressão origina o conteúdo, definindo-o (pelo menos no caso do não-verbal).
O conteúdo a exprimir e sua objetificação externa são criados, como vimos, a partir de um único e mesmo material, pois não existe atividade mental sem expressão semiótica. [...] Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação (BAKHTIN, 2006, p. 114).
Dessa forma, o conteúdo animatorial estaria limitado a fazeres narrativos e sanções negativas, quando engendrado por movimentos antecipatórios e vexatórios, com padrões rítmicos limitados às combinações dos caracterizantes de andamento e de espacialidade.
De qualquer forma, não se trata de uma proposta de trabalho para a gramaticalização semiótica de um código, mas o esforço de compreensão e, sobretudo, de comprovação de uma hipótese sobre grande parte das linguagens não-verbais: elas significam, tornam-se propriamente sistemas de signos, frente a um gesto primeiro do plano da expressão, a um sentido primeiro da expressão, que então gera o sentido do conteúdo. É como se o sentido da expressão, nessas linguagens, fosse gerativamente mais profundo. A tensividade original é concebida a partir de coerções da substância e da forma da expressão, e não na relação entre formas de conteúdo e de expressão.
Poderíamos dizer que a profundidade do sentido desses sistemas está mais próxima daquilo que hoje é concebido como nível da manifestação, porque está intimamente ligada à substância da expressão. Entretanto, entendemos que a manifestação, a instância imediatamente anterior ao ad quem de um objeto semiótico, não está “fixa” ou “presa” à expressão como sua pressuponente. Da mesma forma, compreendemos que o ab quo tampouco “gruda-se” ao conteúdo. Expressão e conteúdo são níveis da semiosfera, do objeto que significa com linguagem. Manifestação e gênese são níveis da bio(sócio)sfera, das pessoas de carne e osso.
Talvez remobilizar a expressão para mais dentro da semiose per se seja o caminho mais plausível para dar a ela estatuto igualitário (e posterior sistematização) ao do conteúdo, além de relativizar as analogias feitas com as linguagens verbais nos estudos dessas linguagens, cujo funcionamento aparenta ser muito diferente.
De qualquer forma, independente dessas últimas reflexões, a forma da expressão animatorial está configurada, como visto, como o cerne do sentido do movimento, com uma estrutura gerativa no PE que condiciona a narratividade e a tensividade do PC, encontrada na articulação interdependente no texto sincrético da animação Disney.
Referências
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FIORIN, J. L. Para uma definição das linguagens sincréticas. In: OLIVEIRA, A. C.; TEIXEIRA, L. (Orgs.). Linguagens na comunicação: desenvolvimentos de semiótica sincrética. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009, p. 15-40.
FLOCH, J.-M. Semiótica plástica e linguagem publicitária: análise de um anúncio da campanha de lançamento do cigarro “News”. In: OLIVEIRA, A. Cláudia; TEIXEIRA, L. (orgs.). Linguagens na comunicação: desenvolvimentos de semiótica sincrética. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009, p. 145-167.
GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Tradução de Alceu Dias Lima et al. 2ª ed. São Paulo: Cultrix, 2013.
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SILVA JÚNIOR, M. S. T. da. O estilo Disney de cantar histórias. 2017. Dissertação (Mestrado em Linguística e Língua Portuguesa), Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, 2017.
SLEEPING beauty. Direção de Clyde Geronimi. Produção de Roy Brewer Jr. E Donald Halliday. Burbank: Walt Disney Productions, 1959. 1 DVD (75 min.), son., color.
THE SWORD in the stone. Direção de Wolgang Reitherman. Produção de Walt Disney. Burbank: Walt Disney Productions, 1963. 1 DVD (80 min.), son., color.
TATIT, L. Musicando a semiótica. 2ª edição. São Paulo: Annablume, 2011.
TEIXEIRA, L. Para uma metodologia de análise de textos verbovisuais. In: OLIVEIRA, A. C.; TEIXEIRA, Lúcia (Orgs.). Linguagens na comunicação: desenvolvimentos de semiótica sincrética. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009, p. 41-77.
ZILBERBERG, C. Para introduzir o fazer missivio. In: _____. Razão e poética do sentido. Tradução de Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Edusp, 2006a, p. 129-147.
ZILBERBERG, C. Síntese da gramática tensiva. In: Significação: Revista Brasileira de Semiótica, São Paulo: Annablume, n. 25, p. 163-204, jun. 2006b.
Notas
Ligação alternative
https://periodicos.ufmg.br/index.php/textolivre/article/view/16771 (pdf)