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OS QUATRO GRANDES DESAFIOS AO MODELO DE CIÊNCIA ABERTA: (DES)ACREDITAÇÃO, INFORMALIDADE, COMODIFICAÇÃO E PREDAÇÃO
Tiago Lima Quintanilha
Tiago Lima Quintanilha
OS QUATRO GRANDES DESAFIOS AO MODELO DE CIÊNCIA ABERTA: (DES)ACREDITAÇÃO, INFORMALIDADE, COMODIFICAÇÃO E PREDAÇÃO
THE FOUR MAJOR CHALLENGES TO THE OPEN SCIENCE MODEL: (DIS)ACCREDITATION, INFORMALITY, COMMODIFICATION AND PREDATION
Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, vol. 12, núm. 2, pp. 201-213, 2019
Universidade Federal de Minas Gerais
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Resumo: O modelo de Ciência Aberta, erguido da vontade de democratizar a produção e acesso ao conhecimento científico, surgiu no início do novo milênio como forma de combater o obsoletismo e fechamento da cultura acadêmica tradicional. Mais de uma década depois, cedendo não só às suas fraquezas idiossincráticas, como também à indústria parasitária e do lucro, o modelo de Ciência Aberta passou a enfrentar quatro grandes desafios que são simultaneamente um problema de (des)acreditação do conhecimento produzido, de informalidade das estruturas de avaliação e validação, de comodificação do conhecimento, e de predação do modelo de acesso aberto. Neste texto tentamos perceber aquilo que está na base desses desafios.

Palavras-chave:ciência abertaciência aberta,desafiosdesafios,(des)acreditação(des)acreditação,informalidadeinformalidade,comodificaçãocomodificação,predaçãopredação.

Abstract: The Open Science model arose in the beginning of the new millennium from the will to democratize the production and access to scientific knowledge, as a means to fight the obsolete/closed character of traditional academic culture. After more than a decade, conceding not only to its own idiosyncratic weaknesses, but also to a profit-seeking industry, the open science model now simultaneously faces four major challenges: the (dis)accreditation of the scientific knowledge produced, the informality of its validation structures, the commodification of knowledge, and the predation of the open access model. In this essay, we try to understand the basis of these challenges.

Keywords: open science, challenges, (dis)accreditation, informality, commodification, predation.

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Ensino Superior e Tecnologia

OS QUATRO GRANDES DESAFIOS AO MODELO DE CIÊNCIA ABERTA: (DES)ACREDITAÇÃO, INFORMALIDADE, COMODIFICAÇÃO E PREDAÇÃO

THE FOUR MAJOR CHALLENGES TO THE OPEN SCIENCE MODEL: (DIS)ACCREDITATION, INFORMALITY, COMMODIFICATION AND PREDATION

Tiago Lima Quintanilha
Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, Instituto Universitário de Lisboa, Portugal
Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, vol. 12, núm. 2, pp. 201-213, 2019
Universidade Federal de Minas Gerais

Recepção: 03 Abril 2019

Aprovação: 02 Julho 2019

1 Introdução

“A ubiquidade da tecnologia e a Internet levaram a uma mudança dramática no ecossistema da informação disponível e uma das grandes mudanças teve lugar no contexto científico” (SKARLATIDOU, HAMILTON, VITOS; HAKLAY, 2019, p. 1), com o modelo de ciência aberta a surgir como um dos acontecimentos mais emblemáticos dessa transformação na ciência.

A origem histórica da ciência aberta caminhou de braços dados com três atributos essenciais: 1) a sustentabilidade da produção científica de qualidade; 2) a questão da maior facilitação processual e logística em termos de plataformas de publicação e 3) a democratização no acesso ao conhecimento e partilha de dados. O modelo era conotado como movimento social que florescia dentro da comunidade científica, entre disciplinas e em todo o mundo (CASTELLS, 2004;CARDOSO, CARAÇA, ESPANHA, TRIÃES e MENDONÇA, 2009).

A declaração de Berlim sobre o acesso aberto ao conhecimento nas ciências e humanidades (22 Outubro de 2003) veio propor mudanças significativas nas formas de produção, publicação e acesso a outputs científicos. Essa declaração, nascida como mais um fruto de um novo contexto comunicacional (CARDOSO e JACOBETTY, 2010, p. 10), e, acima de tudo, como forma de maximizar os benefícios do conhecimento e produção científicos, contribuiu para aquilo que é hoje uma certa forma institucionalizada de construção e difusão científicas, que parte da ideia de que a disseminação de conhecimento científico passa por torná-lo disponível em larga escala (QUINTANILHA, 2015, p. 1), com base em princípios de democratização no seu acesso.

Dos conceitos iniciais, como “ciber-ciência”, “ciber-infraestrutura”, “e-ciência”, ou “e-research”, o trajeto feito levou-nos à designação hoje conhecida como Ciência Aberta/Open Science. O novo modelo assentava em dois pressupostos principais que passavam por reconhecer o obsoletismo de uma cultura acadêmica tradicional, de conhecimento fechado, quase sigiloso, e o necessário surgimento de uma objetividade científica construída num formato comunitário de um universo de colaborações em rede, potenciadoras de uma cumulatividade científica mais eficiente e minimizando mais eficazmente os perigos do conhecimento enviesado. Por outras palavras, o objetivo passava por reinventar uma estrutura anacrônica de produção-difusão de conhecimento, com fraco alcance, privada e autocentrada, para uma estrutura descentralizada em dinâmicas horizontais de colaboração entre pares.

Para alguns autores (MIROVSKI, 2018; PIPER, 2017), o modelo de Ciência Aberta pretendeu responder a quatro problemas fundamentais: o problema da desconfiança na ciência, o problema do défice democrático na ciência, o problema do abrandamento da produtividade e o problema das replicações.

Descrita como um processo de produção por pares (BENKLER, 2006), uma atividade de produção acadêmica potenciada pelas tecnologias de informação e comunicação nos formatos digital e virtual (NENTWICH, 2005), ou um formato de ciência em transição em que formas inovadoras de pesquisa e processos de publicação têm como objetivo beneficiar e promover a investigação colaborativa, bem como a participação e interação entre ciência e sociedade, o modelo de Ciência Aberta é hoje atravessado por profundos desafios aos pressupostos que estão na sua gênese.

A interação desejada entre ciência e sociedade, para benefício coletivo, que traduz parte das orientações de mudança para uma ciência de acesso universal e de serviço público (nas suas lógicas de produção e consulta), deverá começar a ser debatida na sua condição de sustentabilidade e operabilidade, tendo por base as circunstâncias recentes de apropriação e aprisionamento do modelo de ciência aberta, num campo de estudos ainda pouco consolidado.

Falamos de quatro desafios principais num intrincado sistema de interligações: o desafio da (des)acreditação do conhecimento produzido, o desafio da informalidade do modelo e das estruturas de validação e verificação do conhecimento produzido, o desafio da comodificação do conhecimento produzido e o desafio da predação da publicação acadêmica em acesso aberto.

2 Os quatro grandes desafios ao modelo de Ciência Aberta
2.1 (Des)acreditação

O desafio da des(acreditação) do conhecimento produzido é também um desafio de credenciação e legitimação. Um desafio que é sobretudo potenciado pela ditadura das métricas e dos fatores de impacto num enquadramento de certificação independente do meio de registo (BORGES, 2006, p. 72), em que a pertença aos principais indexadores (Journal Citation Records/Web of Knowledge e Scimago Journal Ranking/Scopus) constitui o critério mais importante de acreditação e legitimação das publicações de âmbito científico, e em que o cálculo do fator de impacto (IF) (GARFIELD, 1955; JOHNSTONE, 2007; SEGLEN, 1997; GREENWOOD, 2007) se posiciona como o grande método de legitimação dos periódicos, do conhecimento produzido, da posição dos investigadores no competitivo mundo acadêmico, e do sistema de recompensa acadêmica que define a progressão nas carreiras e a alocação de fundos para investigação (QUINTANILHA, CARDOSO, 2018, p. 32).

Um desafio que, portanto, está na base da derivação de um fenêmeno de res publica científica (CARDOSO et al, 2009) para um fenômeno de acreditação que depende fundamentalmente da posição dos periódicos nos principais rankings, o que levou Eugene Garfield (2006), autor que cunhou o conceito de fator de impacto, a referir que vivemos sobretudo na Era da cienciometria e da journalologia.

Em primeiro lugar, este desafio perfila-se como um problema que resulta sobretudo de uma secundarização da real validação da qualidade do conhecimento produzido em função da primazia dada à métrica e ao fator de impacto, que passam a ser tudo aquilo que legitima, de forma abstrata, a qualidade desse conhecimento. Como defendeu Seglen (1997), os fatores de impacto dos periódicos científicos são determinados por procedimentos técnicos que não estão relacionados com a produção de conhecimento científico per se, o que leva um grande número de cientistas a olhar para o fator de impacto como um destruidor da comunidade científica (BOHANNON, 2016), ou como algo que excede a qualidade do trabalho propriamente dito (PAULUS, CRUZ, KRACH, 2018).

Para Adler, Ewing e Taylor (2009), o fator de impacto não é calibrado e não contempla as especificidades de cada área científica, além de ser ainda mais subjetivo do que a revisão por pares, o que, na melhor das hipóteses, garante uma compreensão incompleta e superficial da qualidade do conhecimento produzido. A questão do fator de impacto é de tal forma decisiva que leva já algumas organizações de perfil acadêmico e científico, como a Redib (Red Iberoamericana de Innovación y Conocimento Científico)[1], a fazer uma divulgação do ranking das suas publicações periódicas associadas, segundo uma metodologia que inclui critérios como o percentual do fator de impacto normalizado.

Em segundo lugar, esse é um desafio de legitimação do conhecimento produzido que antagoniza fortemente, de maneira direta ou indireta, a essência do modelo de ciência aberta, de uma forma muito concreta: a ditadura do fator de impacto como critério essencial na alocação de recursos pode levar investigadores a abandonar as suas agendas de publicação de forma a publicarem apenas nos periódicos científicos de elite, muitos deles em acesso fechado (QUINTANILHA, CARDOSO, 2018). Numa pesquisa efetuada em 18 de fevereiro de 2019 no Scimago Journal Rankings, constatamos que, dos 350 periódicos a nível mundial com ranking mais elevado, apenas 35 são de acesso aberto. Isso equivale a dizer que, dos 350 periódicos mais requisitados por terem os maiores fatores de impacto, 315 desses periódicos não oferecem acesso aberto, algo que está na gênese do modelo de ciência aberta. Assim, investigadores das mais diversas áreas, de forma a poderem responder às necessidades de um sistema acadêmico que glorifica o estrato 1 e os altos fatores de impacto como critérios essenciais na legitimação do conhecimento produzido, não hesitarão em escolher esses periódicos em detrimento daqueles que oferecem acesso aberto mas que têm fatores de impacto inferiores. Por outras palavras, a institucionalização de um sistema de recompensa acadêmica que valoriza a métrica em detrimento da abertura do conhecimento produzido assume uma essência manifestamente discordante daquela que está na origem do movimento de Ciência Aberta.

2.2 Informalidade

O segundo desafio, o desafio da informalidade do modelo de Ciência Aberta, é um desafio que resulta das estruturas de validação e verificação do conhecimento produzido e que, entre outros aspectos, se traduz no perigo do descontrolo do conhecimento produzido que antagoniza a verificação e validação do conhecimento cumulativo.

A condição de informalidade que define as várias etapas do processo de avaliação, submissão e publicação de artigos, poderá funcionar como obstáculo à estandardização de padrões de qualidade necessários, e significa uma das principais transformações resultantes da transição de formas de publicação tradicional, que funcionavam de acordo com a existência de um corpo editorial fixo, com avaliações que, por isso mesmo, tendiam a ser menos polarizadas, para um modelo flexível de avaliação por pares.

Do aparecimento de um sistema de publicações abertas, baseadas em fenômenos de colaboração entre pares, em larga-escala, com avaliadores que atuam em diferentes contextos e temáticas, o produto do processo avaliativo passou a redundar numa enorme variedade de comentários finais aos artigos, variando de artigo para artigo, variando em dimensão, variando de avaliador para avaliador, variando com a disponibilidade e dedicação dos vários avaliadores, e variando tanto quanto a informalidade do modelo o permita, numa escala avaliativa sujeita a oscilações e à arbitrariedade decisória.

Para Casati (2006), há três características principais associadas às revisões por pares que podem levar a uma revisão enviesada, a saber: 1) por vezes, bons artigos são rejeitados em função de más revisões. A principal razão prende-se com o fato de uma avaliação baseada na rejeição do artigo ser uma avaliação fácil de concluir e que não necessita de grande elaboração. Por outro lado, as revisões são por vezes inconsistentes e as críticas feitas são por vezes opostas ao real conteúdo do artigo; 2) há avaliadores que, no geral, aplicam critérios baseados mais nos aspectos negativos e outros que se baseiam nos aspectos mais positivos dos artigos, o que redunda em ambivalência no processo avaliativo; e 3) as diferentes revisões a cada artigo podem produzir comentários antagônicos, levando a uma maior dificuldade por parte dos autores em ajustar as alterações pedidas.

Bare (2014), crítico do modelo de ciência aberta, reporta-se também à lentidão dos processos avaliativos (condição igualmente resultante da informalidade do modelo), em alusão ao tempo que decorre entre a submissão de um artigo e a decisão final, como uma das causas para um processo descompensado e ineficaz, em que os artigos podem perder atualidade e originalidade.

Adicionalmente, um dos perigos associados à informalidade do modelo de Ciência Aberta está associado a uma certa forma de gestão de expectativas. A ideia de que todo um sistema acadêmico focado em recompensas via publicação pode descurar a importância do sistema avaliativo, não o premiando formalmente como ao sistema de publicação, é uma ideia que leva ao esgotamento do modelo no sentido em que o ciclo avaliativo, responsável pelos parâmetros de qualidade da publicação científica, fica comprometido. Autores publicados que depois optam por não realizar avaliações aos artigos que lhes são confiados pelas revistas, estão de alguma forma a comprometer um modelo que foi edificado da colaboração entre pares, precisamente porque este não é um critério formalmente definido na recompensa acadêmica.

A incapacidade de as instâncias acadêmicas definirem formalmente o processo de avaliação de artigos científicos como devendo fazer parte de um sistema de recompensa acadêmica mais amplo baseado na revisão por pares de artigos estará assim a antagonizar um modelo avaliativo mais eficaz que seja capaz de contornar uma fase decisória que ainda se caracteriza essencialmente por uma informalidade do escrutínio e validação do conhecimento produzido.

Como nos lembra Cardoso e coautores (2009, p. 61-62), os investigadores e acadêmicos são agentes racionais que procuram a maximização do seu fator de impacto e o caminho para o modelo de Ciência Aberta também passa pela redefinição de novos modelos de gestão das carreiras acadêmicas e de investigação.

Por último, uma das características mais nefastas da condição de informalidade do modelo de Ciência Aberta está relacionada com a própria adequação do avaliador escolhido. Numa Era de hiper-produção acadêmica, o perigo de adjudicar a decisão de um artigo e do seu objeto de estudo a um corpus avaliativo demasiado abrangente, e, portanto, pouco especializado, é um perigo que põe em causa, uma vez mais, as dimensões de validação e verificação do conhecimento produzido. Assim, dada a produção desenfreada de outputs de âmbito científico numa velocidade de produção de conhecimento que se sobrepõe à velocidade da sua validação, e dada a inobservância de critérios de recompensa acadêmica que sustentem um interesse generalizado pelo processo avaliativo idêntico àquele que é suscitado para a publicação, o perigo de o modelo de ciência aberta produzir apenas uma qualidade de revisão suficiente (a qualidade de revisão que é possível obter dadas as limitações do modelo) é um perigo real.

2.3 Comodificação

O desafio da comodificação do conhecimento produzido traduz-se num novo fechamento sustentado na comercialização da ciência. Esse desafio encontra raízes no primeiro desafio mencionado, o desafio da legitimação do conhecimento produzido, porque é potenciado por um sistema de recompensa acadêmica que glorifica a publicação em periódicos com alto fator de impacto tendencialmente caracterizados por um acesso fechado, dependente de pagamento. A comunidade científica, ao sentir o apelo desses periódicos com alto fator de impacto, legitima de certa forma o regresso a uma cultura acadêmica (de qualidade) fechada e diametralmente oposta à democratização do conhecimento que está na gênese do modelo de ciência aberta. Numa frase, o conhecimento produzido de qualidade volta a ser mercadoria, ao invés de ser livre e gratuito, recuperando-se uma espécie de mecanismo de reificação científica em que o conhecimento é também visto como coisa vendável pelas principais editoras que são, elas próprias, proprietárias dos principais indexadores que, por sua vez, impõem a ditadura das suas próprias métricas ou fatores de impacto (i.e. o caso da Scopus associada à Elsevier e do SCImago Journal & Country Rank). De uma certa forma, poder-se-ia argumentar que todo o desafio da acreditação e legitimação do conhecimento produzido a partir da ditadura dos fatores de impacto controlados pelas principais editoras constitui, por si só, um processo reativo de recuperação do papel hegemônico das grandes editoras que historicamente promoveram o fechamento do conhecimento produzido.

Essa comercialização é evidente também durante o próprio processo de produção de conhecimento científico que, de acordo com a gênese do modelo de Ciência Aberta, deveria ser caracterizado pela facilitação processual das formas de publicação. Num sistema profundamente orientado para a anglofonia, em que a língua inglesa se estabelece não só como língua franca do conhecimento disseminado, mas também como critério preponderante na aceitação dos periódicos pelos principais indexadores (i.e. Web of Science), a legitimação do conhecimento produzido pela via dos altos fatores de impacto que tendem a ser ocupados por periódicos que publicam exclusivamente na língua inglesa, redunda em gastos com revisões e traduções a ser suportados por todos aqueles autores e autoras que não têm o inglês como língua materna, num processo que passa a ser igualmente potenciador de assimetrias dentro da própria academia. Como nos lembra Kupiec-Weglinski (2015), quanto maior o fator de impacto de um periódico científico, maiores as despesas de publicação associadas que os autores terão de custear (KUPIEC-WEGLINSKI, 2015).

A amplitude de estratégias de monetização mais ou menos premeditadas estão assim a transformar novamente todo o panorama científico, contribuindo para o enviesamento de um sistema acadêmico que, no início do milênio, parecia querer caminhar para a abertura e para a democratização do conhecimento científico. Como nos lembra Quintanilha (2015, p. 18), a ciência aberta foi sempre vista como o modelo científico alternativo ao modelo de propriedade intelectual, a partir de um sistema de incentivos não mercantis que visava minimizar os efeitos e os custos de acesso impostos pelos detentores de direitos de propriedade intelectual sobre o conhecimento técnico e científico.

Em última análise, a comodificação do conhecimento científico, sustentada por mecanismos de recompensa acadêmica que valorizam o fator de impacto independentemente da abertura ou fechamento dos respectivos periódicos, corre o sério risco de antecipar um regresso ao passado da publicação acadêmica. Um passado não muito distante que foi sendo gerido pelas indústrias corporativas e pelas oligarquias acadêmicas.

2.4 Predação

O desafio da predação, tido como a nova ameaça à integridade da publicação acadêmica (BARTHOLOMEW, 2014) e um novo dark side potenciado pela explosão da publicação em acesso aberto (BUTLER, 2013), é um desafio que se alimenta essencialmente das lógicas de recompensa acadêmica sustentadas numa corrida desenfreada à publicação científica. Essa corrida desenfreada, agravada por uma sofreguidão do fluxo de publicação, que cada vez mais assume o ímpeto do imediatismo que seja capaz de fazer face ao universo competitivo da academia, potencia o crescimento dos periódicos predatórios que estão sobretudo interessados em comercializar ciência e/ou pseudociência, e em fazer dinheiro através de APCs (Article Processing Fees) (XIA et al., 2015, p. 5), beneficiando-se da avidez da comunidade científica. Clark e Smith (2015) falam de uma Era de extorsão acadêmica.

Esse desafio encontra-se, portanto, na intersecção entre o problema da (des)acreditação e o problema da comodificação do conhecimento produzido, em que não é desdenhável considerar igualmente a questão dos processos informais de validação de conhecimento. Nessa intersecção, a prioritária comercialização dos outputs acadêmicos sobrepõe-se aos critérios de verificação desses mesmos outputs e dos próprios periódicos predatórios que os publicam. Yeoh (et al., 2017) fala de uma pseudociência e de mecanismos de produção em quantidade em vez de qualidade, um modelo que reduz a importância do mérito, a inovação, a originalidade e o talento (YEOH, 2017, p. 4). A autora conclui que “publicar passa a ser menos sobre a importância da partilha de conhecimento, para passar a ser mais sobre a aquisição de credibilidade académica” (YEOH, 2017, p. 4).

Contudo, e ao contrário do sigiloso conhecimento científico promovido pela grande maioria dos periódicos legitimados pelos altos fatores de impacto, que são normalmente propriedade das grandes editoras que oferecem uma publicação livre de custos e uma consulta fechada dependente de pagamento, os periódicos predatórios fazem valer-se das referidas avidez e sofreguidão científicas para promover diferentes taxas de publicação aos seus autores, oferecendo geralmente períodos de revisão (que podem variar entre o inexistente e o negligente) e publicação muito céleres.

Por outras palavras, e ao contrário dos periódicos com altos fatores de impacto, os periódicos predatórios aplicam taxas de publicação aos seus autores e geralmente abrem o acesso aos materiais publicados, com nefastas consequências para a ciência que assim fica exposta a conhecimento não credenciado, não legitimado, não validado e não verificado.

Beall (2012), que compara o surgimento desses periódicos predatórios ao spam de uma caixa de correio eletrônico, observa que os periódicos que exploram o modelo de publicação via pagamento causam um dano incomensurável ao ecossistema da publicação acadêmica. O autor analisa a forma como os editores dos periódicos predatórios criam revistas fraudulentas de forma a explorarem o modelo de acesso aberto, enganando em especial os investigadores mais inexperientes na comunicação acadêmica. Muitos desses periódicos, sediados nas mais variadas partes do planeta, criam websites que se assemelham àqueles utilizados por editores legítimos, e publicam e multiplicam periódicos de qualidade questionável ou inexistente (BEALL, 2012), sendo também recorrente disponibilizarem fatores de impacto alternativos e métricas fictícias (YEOH et al., 2017), como o Global Impact Factor ou o Citefactor, de forma a poderem legitimar-se perante uma comunidade acadêmica que não está totalmente alertada para o fenômeno. É o caso dos investigadores mais jovens que tendem a ficar impressionados por todos os fatores de impacto disponibilizados por esses periódicos (YEOH et al., 2017) e pelas diferentes táticas diversionárias.

Alguns desses periódicos predatórios, no entender de Beall (2012), utilizam a tática de contato direto com investigadores, solicitando manuscritos sem mencionar a eles as taxas de publicação envolvidas.

Adicionalmente, tais periódicos predatórios, de forma a poderem legitimar-se em meio acadêmico, utilizam frequentemente a tática de adicionar aos seus corpos editoriais investigadores e professores mais ou menos conhecidos sem a autorização destes, ao mesmo tempo que não regulam a quantidade de materiais plagiados.

Em resumo, o grande desafio que resulta da exponenciação dos periódicos predatórios é, na verdade, um desafio duplo: 1) o desafio da inconsistência de um modelo de acesso aberto envolvido numa teia de informalidades avaliativas que exponenciam o aparecimento de fluxos de conhecimento precariamente validados; e 2) o desafio resultante da ávida produção acadêmica para fins de recompensa acadêmica, que cria os designados mercados saturados (YEOH, 2017, p. 5), responsáveis por levar os investigadores a procurar tempos de submissão-publicação mais curtos (BEALL, 2012, p. 179), num processo que ameaça fortemente a revisão por pares, que necessita de tempo para ser realizada de forma devida.

Segundo Beall (2012, p. 179), e de forma “a combater o problema, os profissionais académicos devem resistir à tentação de publicar rapidamente e facilmente”.

3. Conclusões

Neste texto tentamos propor uma tipologia de quatro grandes desafios colocados ao modelo de ciência aberta.

A discussão sobre o desafio da (des)acreditação do conhecimento produzido leva-nos a concluir que as ditaduras das métricas e dos fatores de impacto tendem a ser legitimadas por um sistema de recompensa acadêmica que procura e valoriza fundamentalmente os periódicos com altos fatores de impacto, grande parte deles propriedade das grandes editoras mundiais que promovem o fechamento do conhecimento científico. No polo oposto, os periódicos de acesso aberto, geralmente com menores fatores de impacto, poderão ser menos valorizados por essa mesma estrutura acadêmica.

O problema da informalidade na validação e verificação do conhecimento produzido levou-nos a concluir que questões como a desestandardização e informalidade do processo de revisão por pares, a superficialidade e inadequação dos corpus avaliativos e a inobservância de sistemas de recompensa acadêmica voltados para a revisão de artigos de âmbito acadêmico, potenciam procedimentos avaliativos duvidosos e descuidados que podem facilmente causar dano ao conhecimento científico.

Em terceiro lugar, observamos que o desafio da comodificação do conhecimento produzido, que sustenta, por um lado, o ambiente propício ao novo fechamento científico, tem origem na mesma estrutura de recompensa acadêmica que tende a legitimar e a valorizar o conhecimento publicado nos periódicos com alto fator de impacto – a designada A-list (HOWARD, 2009) – que tendem a fechar o acesso aos artigos publicados e a comodificar o conhecimento (geralmente com elevada qualidade) publicado a partir do acesso determinado por taxas de consulta.

Por último, identificamos o problema da predação como uma extensão dos três primeiros desafios, sendo um problema que se alimenta particularmente da velocidade de produção de outputs acadêmicos (MIROWSKI, 2018) e da corrida desenfreada à publicação científica, para promover mecanismos alternativos de publicação acelerada que negligenciam a importância da revisão, da validação e da verificação, e cujo interesse reside apenas na mercantilização/comodificação de outputs que podem vir na forma de pseudociência, em troca das taxas de publicação dos artigos.

Podemos argumentar também que, do modelo de Mirowski para os objetivos do modelo de ciência aberta, nenhum parece ser atingido na sua plenitude devido à 1) agudização do problema da desconfiança científica decorrente das estruturas informais da validação do conhecimento e da predação da publicação acadêmica; 2) devido à incapacidade de se resolver o problema do défice democrático na ciência, no sentido em que os princípios de recompensa acadêmica legitimam veículos de transmissão do conhecimento que promovem o fechamento desse conhecimento a partir da sua comercialização; 3) devido ao fato de o anterior desafio associado ao abrandamento da produção científica estar a dar lugar ao fenômeno contrário, e perverso, da avidez e da publicação desenfreada que, por sua vez, leva ao 4) problema da incapacidade de regular de forma eficaz as replicações de conhecimento derivadas dos hiper-fluxos de produção de outputs científicos.

Em resumo, contrariando a ideia daqueles que Mirowski (2018) classificou como os profetas da abertura do conhecimento, o modelo de ciência aberta está hoje longe de poder ser visto como uma panaceia aos problemas do mundo científico. Citando Bartholomew (2014, p. 1),

Enquanto o sonho dos periódicos em acesso aberto é um conceito nobre que deveria anunciar uma revolução na publicação académica, tornando a pesquisa livremente acessível a qualquer pessoa, ele rapidamente se tornou num pesadelo (BARTHOLOMEW, 2014, p. 1).

Caberá assim aos atores políticos, e sobretudo às instituições acadêmicas de todo o mundo, legislar no sentido da requalificação do modelo de ciência aberta. Uma das soluções poderá passar por apoiar e valorizar cada vez mais os periódicos que atuam em acesso aberto de forma a tornarem-se cada vez mais competitivos e apelativos aos trabalhos com maior qualidade, que sejam capazes de legitimar a sua atividade. Por outro lado, interessará alargar o debate sobre os riscos da sobrevalorização dos fatores de impacto como critério hegemônico na legitimação do conhecimento produzido, por todas as inconsistências que lhes são atribuídas, e que foram, por exemplo, denunciadas em 2012 na Declaração de São Francisco sobre Avaliação da Pesquisa[2] (DORA – San Francisco Declaration on Research Assessment), numa reunião que juntou editores de publicações acadêmicas com o objetivo de ser desenvolvida uma lista de recomendações para melhores práticas de avaliação de pesquisa acadêmica e científica.

Adicionalmente, e como forma de minimizar os efeitos de um modelo que ainda hoje se caracteriza essencialmente pela sua condição de informalidade, importará promover um sistema alternativo de recompensa acadêmica baseada na revisão de artigos científicos por pares. Outra possibilidade poderá passar pela alocação de fundos aos periódicos em acesso aberto que respondam aos melhores critérios de validação científica, fundos esses que os permitam dispor, por exemplo, de corpos editoriais mais sólidos e qualificados e que os permitam reforçar equipes técnicas que trabalham fundamentalmente por amor à causa e muitas vezes em regime de voluntariado. Por outro lado, a regulação do acesso aberto no sentido da sua maior legitimação poderá passar ainda pelo combate às estruturas predatórias que se alimentam desse acesso aberto, e que desacreditam o modelo de uma forma semelhante àquela que encontramos para o fenômeno das fake news, que leva hoje um conjunto de atores sociais a mobilizar-se no sentido de estancar os efeitos desses pseudoconhecimentos.

Material suplementar
Referências
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