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Musas em crise: museu e museologia sob o fim da história da arte[1]
Muses in crisis: Museum and museology under the end of the history of art
Musas em crise: museu e museologia sob o fim da história da arte[1]
História Unisinos, vol. 22, núm. 3, pp. 490-499, 2018
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Recepção: 27 Março 2017
Aprovação: 18 Janeiro 2018
Resumo: Esta pesquisa visa discutir quais os possíveis impactos do conceito de “fim da história da arte” sobre os museus e a museologia contemporânea. Realizamos uma revisão dos conceitos de objeto de arte, museu, museologia assim como outros temas relacionados ao fato museal em museus de arte brasileiros (Museu de Arte de São Paulo, Pinacoteca de São Paulo, Museu de Arte do Rio, entre outros) sob as lentes de autores afeitos ao pensamento estético que discutem os desdobramentos da arte contemporânea, da história da arte e da arte pós-história, tais como Hans Belting, Arthur Danto, Jacques Rancière, Vilém Flusser, principalmente. A “crise” que acompanhamos é aquela do fim do conceito de história no mundo da arte ao qual os museus respondem pouco a pouco propondo possibilidades expositivas que enfatizam cada vez mais o dialogismo próprio da arte contemporânea em detrimento de experiências narrativas mais afeitas aos estilos do passado.
Palavras-chave: museus, história da arte, pós-história, arte contemporânea, museologia.
Abstract: This research aims to discuss the potential impacts of the concept of the “end of the history of art” upon museums and contemporary museology. We performed a review of conceptions of art object, museum, museology as well as other themes related to the museum fact in Brazilian art museums (São Paulo Museum of Art, Pinacotheca of São Paulo, Rio Museum of Art, among others) from the point of view of authors aligned with the aesthetic thinking that discuss the unfolding of contemporary art, art history and post-history art such as Hans Belting, Arthur Danto, Jacques Rancière, Vilém Flusser, mainly. The “crisis” we face nowadays involves the end of the concept of history in the world of art to which museums gradually respond by proposing possibilities of exhibitions that emphasize the dialogism peculiar to contemporary art instead of narrative experiences more in tune with old styles.
Keywords: museums, history of art, post-history, contemporary art, museology.
No percurso de nossa pesquisa buscamos visitar alguns dos principais museus brasileiros observando suas configurações, seus acervos e modos expositivos, analisando os possíveis impactos dos conceitos de “fim da arte” e “fim da história da arte” para essas instituições. Escolhemos os museus brasileiros mais significativos tanto em relação a seus acervos quanto em função de sua importância enquanto instituições museais, com funções de preservação, pesquisa, experimentalismo e divulgação da arte no Brasil.
No Museu de Arte Moderna de São Paulo estivemos nas exposições apresentadas no segundo semestre de 2015: “Guignard: a memória plástica do Brasil moderno”, “Projeto parede: metamorfoses e heterogenia” e “Paisagem opaca”. Na exposição “Paisagem opaca” (que contou com a curadoria de Felipe Chaimovich) foram reunidas obras da coleção do MAM-SP que exploram paisagens em primeiro plano, trazendo ao público os pontos de vista e modos criativos dos diferentes artistas selecionados na mostra. Nomes importantes da pintura brasileira tais como Tarsila do Amaral, Francisco Rebolo, Leonilson encenam tipos difusos de paisagens, contrapostos a trabalhos fotográficos como os de Araquém Alcântara, Geraldo de Barros e Paulo D’Alessandro (dentre outros).
Não há obliteração entre os trabalhos. Na tentativa de romper com o ilusionismo da paisagem, os artistas abandonaram as construções em perspectiva na pintura e a profundidade visual nas fotografias, explorando ângulos onde a planaridade é preponderante. O resultado é a presença de enquadramentos desconcertantes na fotografia – aspectos muito explorados pelo pintor José Pancetti, também presente na exposição, ao utilizar-se de ângulos em enquadramentos não usuais, “desenquadrados” –, assim como composições pictóricas que abandonam pouco a pouco a profundidade na perspectiva até a abstração plena como aquelas do artista japonês Manabu Mabe (também presente na exposição). O intercâmbio entre o fotográfico e o pictórico é proposto sem traumas, como se a fotografia fosse a linguagem complementar (e necessária), contígua à pintura. Ainda, como observa Jacques Rancière, a fotografia, ao ser incorporada ao espaço do museu, imita a presença do quadro, ao ganhar o seu formato e acompanhar seu modo de presentificação (Rancière, 2014, p. 104). Por fim, a fatura alcançada (a despeito de qualquer ideia de evolução ou de hierarquia entre as artes) é a revelação da contaminação mútua existente entre as linguagens artísticas (por exemplo, o fotográfico se subsume ao pictórico, e a pintura encontrará no fotográfico diferentes recursos para a manipulação da não-imagem [o negativo, o fotograma, o arquivo digital, o virtual]).
Figure 1. Exhibition: Metamorphoses and Heterogony (detail) – MAM-SP.
A exposição “Projeto parede: metamorfoses e heterogenia” ocupou o corredor de acesso entre o saguão de entrada e a Grande Sala do museu, um espaço secundário em relação aos outros espaços do museu. A ideia do trabalho parte de uma releitura de um estudo sobre a fauna e a flora brasileiras encontradas em cartas escritas pelo padre José de Anchieta (1534-1597), nesse estudo o religioso descreve espécies de pássaros inexistentes, apesar da acuidade da observação do jesuíta. Walmor Corrêa busca dar materialidade e visibilidade ao reconstruir por meio de uma meticulosa taxidermia os animais ficcionados por Anchieta. Híbridos surreais, tais como um pássaro com puãs de caranguejo, ou pássaro com cabeça de rato, pássaros coletores de néctar com bicos em espiral (Figura 1), dentre outras combinações bizarras, todavia as recriações são apresentadas com os requintes expográficos de um museu de história natural – e apresentam os animais relacionados a uma cartografia das viagens de Anchieta –, dando o máximo de veracidade aos seres expostos.
Ao aceitarmos o jogo proposto pelo artista, no qual o que ele nos apresenta é apenas uma ficção, isso nos faz indagar se as demais exposições apresentadas pelo museu também não passam de uma construção ficcional. Será que todas elas têm bases históricas seguras que atestam a sua veracidade? (Em que medida o lastro histórico é necessário?) Até que ponto as mostras apresentadas também não fazem parte de uma ficção museológica e artística? Mesmo se tratando de um museu de arte, esse mote contradiz um dos fundamentos da musealização, em que “[...] os objetos ou as coisas (objetos autênticos) são separados de seu contexto de origem para serem estudados como documentos representativos de uma realidade que eles constituíam” (Desvallées e Mairesse, 2013, p. 57). Nessa musealia a ideia de testemunho autêntico de uma realidade é subvertida; assim, essa experiência expositiva insere o MAM-SP no contemporâneo, como museu que se deixa afetar pelo poético e que não fetichiza seu acervo e suas mostras ao extremo de encapsulá-lo dentro de verdades absolutas:
E os artistas, liberados do peso da história, ficavam livres para fazer arte da maneira que desejassem, para quaisquer finalidades que desejassem ou mesmo sem nenhuma finalidade. Essa é a marca da arte contemporânea, e não é para menos que, em contraste com o modernismo, não existe essa coisa de estilo contemporâneo (Danto, 2006, p. 18).
Nesse novo contexto o artista pode tudo, até mesmo dialogar com a tradição, algo que o modernismo não via com bons olhos.
A exposição “Kandinsky: tudo começa num ponto” aconteceu no Centro Cultural do Banco do Brasil de São Paulo, também no segundo semestre de 2015. O nome da exposição nos remete ao estudo de Wassily Kandinsky Ponto e linha sobre plano (publicado pela primeira vez em 1926), dedicado aos elementos fundamentais da composição plástica, sem os quais nenhuma pintura é possível. Para o mestre da Bauhaus o ponto é o elemento primário da pintura, elemento a partir do qual decorrem todas as outras formas e a linha (Kandinsky, 2001, p. 25).
A exposição do CCBB-SP buscou destacar a importância de Kandinsky na história da arte, como um dos precursores do abstracionismo, utilizando uma montagem abrangente do ponto de vista informacional e visualmente atrativa (não só por conter uma importante seleção de pinturas do artista, mas também por associá-las a outras referências). A curadoria de Evgenia Petrova e Joseph Kiblitsky organizou a exposição em cinco seções temáticas que apresentam ao público não só as principais obras do artista, mas também as suas influências dentro da cultura popular russa, assim como a relação de seu trabalho com o de outros artistas de seu país, referências até então ocultas pela historiografia da arte difundida no Ocidente. As seções foram: “[...] a relação com a cultura popular e o folclore russo; o universo espiritual do xamanismo no norte da Rússia; as experiências na Alemanha; o diálogo entre música e pintura e outros pintores contemporâneos de Kandinsky” (Bueno, 2015, p. 56). Apesar da divulgação da exposição sugerir que se trata de uma mostra individual do mestre russo, há na exposição itens de outros pintores que viveram na mesma época, como os artistas Mikhail Larionov, Nikolas Roerich e Vassily Ivánovitch Deníssov. Todavia, Kandinsky é o eixo no qual a exposição foi idealizada e, de certo modo, somos atraídos a ela pelo magnetismo exercido pelo peso de seu nome no âmbito das artes visuais.
As salas de exposição no CCBB-SP foram montadas para criar um efeito de aprofundamento no universo criativo de Kandinsky. Salas completamente negras ou com paredes essencialmente escuras combinadas com uma iluminação cenográfica afetam a perspectiva do ambiente e valorizam cada obra em si, ampliando o efeito de imersão nelas.
Figure 2. Exhibition: Kandinsky: Everything Starts from a Dot – CCBB-SP.
Todavia, a imersão sugerida é muito mais próxima da sala de cinema[3] do que da galeria de arte. Embora a sala acima pareça o oposto do paradigma do “cubo branco” como o espaço ideal da galeria de arte para a arte moderna, seu desígnio ainda é de oferecer ao público um espaço puro onde a arte possa ser apreciada livre de qualquer interferência do mundo exterior (no cinema também a plateia se reúne para isolar-se durante a exibição do filme, e toda interferência exterior deve ser evitada). Hal Foster avalia que esse modo de exposição do “menos” constituiu-se a partir do legado modernista que trouxe para o museu a sensibilidade minimalista. Foster cita o arquiteto Rem Koolhaas, que, a propósito do MoMA de Nova York, observou: “O mínimo é o ornamento supremo [...]” do museu de arte. E Foster complementa: “[...] sua estética do mínimo é máxima, o mais sublime dos sublimes” (Foster, 2015, p. 149).
No estudo de Brian O’Doherty, No interior do cubo branco (2002), é feita uma minuciosa análise da ideologia dos espaços da arte, a galeria e o museu. Segundo o autor:
A galeria é construída de acordo com preceitos tão rigorosos quanto os da construção de uma igreja medieval. O mundo exterior não deve entrar, de modo que as janelas geralmente são lacradas. As paredes pintadas de branco. O teto torna-se a fonte de luz. O chão de madeira é polido, para que você provoque estalidos austeros ao andar, ou acarpetado, para que você ande sem ruído. A arte é livre, como se dizia, “para assumir vida própria”. Uma mesa discreta talvez seja a única mobília. Nesse ambiente, um cinzeiro de pé torna-se quase um objeto sagrado, da mesma maneira que uma mangueira de incêndio num museu moderno não se parece com uma mangueira de incêndio, mas com uma charada artística (O’Doherty, 2002, p. 4).
De um modo geral, esse panorama não mudou muito. Ainda, ao adentrarmos no museu, assumimos quase que automaticamente uma postura muito parecida àquela que tomamos dentro de um templo religioso. As conversas resumem-se ao mínimo necessário, sempre em tom discreto. O andar deve ser silencioso e devemos observar as obras a certa distância (respeitando as faixas de segurança). Nunca toque nas obras! Se você cometer esse gesto de profanação, será certamente repreendido (e o serviço de segurança do museu está atento a isso, principalmente quando se trata de grandes nomes da pintura como Kandinsky, ou, em alguns casos, as “grandes obras” ficam inacessíveis ao toque, protegidas por redomas de vidro, como relicários). Tudo isso para que o lugar sagrado da arte não seja perturbado e que se mantenha um ambiente de introspecção adequado à fruição artística.
Ademais, na sala acima (Figura 2) foi acrescenta à cena expositiva um fundo musical, uma composição do músico austríaco Arnold Schönberg (compositor que exerceu grande influência na poética de Kandinsky). A combinação desses elementos visa criar um ambiente em que a experiência de apreciação deve tornar-se uma experiência metafísica, o espaço expositivo construído como lugar de epifania da arte.
Nas salas dedicadas a revelar a relação de Kandinsky com a arte popular no norte da Sibéria e com os rituais xamânicos (Figura 3), somos surpreendidos pela presença dessas marcas na obra do pintor, uma vez que esses aspectos místicos e memoriais ligados à sua terra natal são pouco explorados e, consequentemente, desconhecidos entre nós. Arte e etnografia se misturam. Aos poucos, por meio dos signos presentes nos artefatos expostos, percebemos o misticismo e a espiritualidade que transpassam as obras do artista, assim como sua integração profícua à tradição russa.
A organização da exposição coloca os objetos místicos e ritualísticos em uma relação direta com as obras de arte, equilibrando a hierarquia de valor entre eles. Assim, as vestimentas xamânicas e os objetos sagrados acabam também sendo estetizados e entram no jogo de culto próprio das obras de arte. Como Danto argumenta, chegamos ao ponto na história da arte em que um objeto comum não poderia ser também uma obra de arte, mesmo que ele não seja uma obra de arte em sentido pleno, e o próprio museu, por meio do processo de musealização, desencadeia esse processo (Danto, 2015, p. 74).
Figure 3. Exhibition: Kandinsky: Everything Starts from a Dot – CCBB-SP.
Nos museus visitados notamos o afastamento da ideia de sala de exposição como “cubo branco”. Além dos museus já citados, também o MAB-FAAP, o MuBE e a Pinacoteca do Estado assumem a cor na montagem de suas exposições. A parede branca da galeria aciona uma analogia com a tela virgem a ser pintada, um espaço “vazio” a ser preenchido; a brancura da galeria também foi explorada como recurso de expressão de atemporalidade do espaço de arte, onde só a obra seria vetor de força e de significação, mas: “Assim que a moldura sumiu, o espaço se espraiou pela parede, gerando turbulência nos cantos” (O’Doherty, 2002, p. 101).
Desse modo, ao adotar a cor, o museu nega a ideia de neutralidade e se reconhece como espaço significante, e “[...] a própria galeria torna-se, como a superfície pictórica, uma força de transformação” (O’Doherty, 2002, p. 45).
No Museu de Arte do Rio destacamos a conjugação do antigo com o novo. As exposições a que tivemos acesso em 2015 foram “Rio Setecentista: quando o Rio virou capital” e “Fernando Lindote: trair Macunaíma e avacalhar o Papagaio”. Essa última, com a curadoria de Paulo Herkenhoff, revela a profunda relação da arte brasileira com a iconografia estrangeira ao perscrutar a estética do colonizador e expor a sua percepção sobre a natureza tropical e a nossa cultura. O núcleo da exposição é composto por obras de Fernando Lindote, todavia há na mostra trabalhos de outros artistas, como J. Carlos, Albert Eckhout, Victor Brecheret, Maria Martins, Walmor Corrêa, Rivane Neueschwander, Wagner Barja, Glauco Rodrigues. Com esse último artista, Lindote aproxima-se em alguns aspectos importantes: o caráter de “tropicalismo crítico”, a adesão à Pop Art ao modo brasileiro e o uso da ironia como recurso audacioso no questionamento do contexto social e político brasileiro. Cabe destacar a presença das obras de Glauco Rodrigues na Coleção Gilberto Chateaubriand exposta no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, onde também podemos verificar a adesão a esses aspectos descritos.
Ainda na exposição de Fernando Lindote, a profusão de obras, objetos, impressos e documentos regida pela presença do papagaio da Disney, Zé Carioca, dá, a princípio, um tom despretensioso e lúdico à exposição, muito característico das mostras da Pop Art. Mas uma observação mais cuidadosa revela que o objetivo da exposição é discutir o imaginário nacional no âmbito da arte e da cultura, confrontando o ponto de vista dos nativos ao dos estrangeiros (que alimentou a imagologia sobre nossa terra).
Na exposição do MAR há também a interposição do antigo dentro do novo. Na mostra de Fernando Lindote, no conjunto de vários objetos e obras que fazem referência ao personagem Zé Carioca, somos surpreendidos com a presença de uma tapeçaria de Albert Eckhout. Apesar do distanciamento histórico entre as obras, a peça de Eckhout integra-se bem ao conjunto da exposição. A surpresa é justamente essa, como uma obra de um contexto histórico tão distinto pode ser assentada nesse novo contexto de forma tão eficaz? Rancière argumenta que o atual regime estético das artes supera a oposição simplista e restritiva entre o antigo e o moderno; nesse regime “[...] o futuro da arte, [...] não cessa de colocar em cena o passado” (Rancière, 2009, p. 35).
Esse tipo interposição do “antigo dentro do novo” ou “o antigo como novidade” interfere na ideia de evolução da arte – como discutem Hans Belting e Arthur Danto – e abre espaço para o reconhecimento e o fortalecimento de narrativas da alteridade na história da arte (da arte das “minorias”, dos povos “primitivos”, das ditas artes “menores”, do “artesanato”, por exemplo), que por consequência motivam a reavaliação dos discursos hegemônicos (como aqueles expressos pela categorização por períodos e escolas artísticas[4]) no âmbito das artes.
Há entre o Museu de Arte do Rio e o Museu do Amanhã uma proposta de integração. Sendo o primeiro um museu dedicado às artes e o segundo um museu de ciências voltado para o futuro, essa conexão tem como fio condutor as ações educativas. A proximidade entre os museus também é um fator de conexão entre eles (situados na Praça Mauá no Centro da cidade do Rio de Janeiro), pois dificilmente os visitantes vão a apenas um deles. O Museu do Amanhã tem recebido muito destaque especialmente pela arquitetura espetacular que possui – instalado na região portuária da Baía de Guanabara, fica posicionado como uma grande nave que está sempre prestes a partir. Sua construção insere-se num amplo projeto de revitalização do Centro do Rio[5] que culminou com a criação do Boulevard Olímpico em 2016.
Para nós, esse projeto de revitalização do Centro do Rio de Janeiro centrado no Museu do Amanhã tenta repetir a fórmula aplicada na transformação da cidade basca de Bilbao a partir da construção do Museu Guggenheim. O projeto do arquiteto Frank Gehry transformou um antigo centro industrial e sua área portuária decadente em um polo cultural de destaque mundial (apesar das polêmicas geradas por essa transformação radical da cidade espanhola), centrado nas atividades do museu. Essa mudança, que a partir dos impactos econômicos gerados tem sido divulgada como um grande sucesso da arquitetura, atrai milhares de pessoas anualmente ao museu e foi caracterizada pelos especialistas por “efeito Bilbao” (Hal Foster, 2015, p. 34-36) – transformar áreas urbanas decadentes em centros culturais rentáveis a partir de projetos assinados por arquitetos “estrelas” – por estar se espanlhado por todo o mundo. É o que está sendo reproduzido no Rio de Janeiro (o Museu do Amanhã é um projeto do renomado arquiteto espanhol Santiago Calatrava) e até mesmo na cidade de Vitória, capital do Estado do Espírito Santo (com a construção do complexo cultural Cais das Artes – teatro e museu –, projeto arrojado do também célebre arquiteto Paulo Mendes da Rocha[6]).
No primeiro semestre de 2016, estivemos na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Nela pudemos ver seu acervo e, especialmente, as exposições “Arte no Brasil: uma história na Pinacoteca de São Paulo” e o “Projeto octógono: Arte contemporânea” com o trabalho de instalação do artista José Spaniol (Figura 4). Com cerca de 500 obras, entre pinturas, esculturas, desenhos, gravuras e fotografias que dão um expressivo panorama da arte brasileira, a exposição “Arte no Brasil: uma história na Pinacoteca de São Paulo” pode ser considerada o eixo central no qual o museu está estabelecido. O objetivo dessa mostra é oferecer ao público a possibilidade de compreensão das práticas artísticas desenvolvidas no Brasil, organizadas cronologicamente do período colonial até os anos 1930, em duas linhas: a formação do imaginário visual sobre o Brasil e a constituição de um sistema de arte em nosso país.
Figure 4. Octagon Project: Contemporary Art – Pinacotheca of São Paulo.
Há na arquitetura do prédio ocupado pela Pinacoteca uma interseção onde o antigo e o novo se encontram. A antiga construção do Liceu de Artes e Ofícios projetada pelo escritório do arquiteto Ramos de Azevedo (no século XIX) passou, na década de 1990, por uma ampla reforma intervencionista idealizada pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Nessa intervenção, optou-se pela manutenção de elementos remanescentes do projeto original combinados com recursos arquitetônicos atuais que deram ao prédio a funcionalidade necessária a um museu hodierno. Tal empreendimento materializou a possibilidade de um restauro criativo (aberto às vicissitudes do presente), em que os elementos antigos puderam ser justapostos aos novos, gerando ganhos para ambos. A interseção entre o passado e o presente sugerida pela arquitetura se realiza também na apresentação do acervo por meio das exposições. Todavia, é na obra de Spaniol que a integração arte-museu se realiza de modo mais eficiente. Percebemos a conjugação dos elementos tectônicos da própria obra associados às possibilidades espaciais oferecidas pelo museu; desse modo, as fronteiras entre arte e museu diminuem, ocasionando a interdependência entre ambos na realização da obra.
A exposição “Arte no Brasil: uma história na Pinacoteca de São Paulo” possui uma sala denominada “Arte em diálogo”. Em paredes cinzas, nela são colocadas lado a lado obras de diferentes tempos e estilos, artistas e obras do passado são confrontados com trabalhos de artistas modernos e contemporâneos. O resultado aponta para o que Belting chama de sincretismo de estilos e possibilidades e retira o museu de um estado de permanência previsível, pois não vamos mais “[...] ao museu para ver algo que nossos avós já encontravam no mesmo lugar; hoje se vai ao museu para ver algo que nele nunca pôde ser visto” (Belting, 2012, p. 180-181).
Na sala “Arte em diálogo” encontramos a obra “Variação” de Nelson Leirner. De modo oposto ao que foi produzido na exposição de Fernando Lindote no MAR, nessa exposição houve a interposição do novo dentro do antigo. Em contraste com as demais, essa obra esgarça o fluxo contínuo e progressivo com que acompanhamos a exposição “Arte no Brasil”. O trabalho de Leirner ocasiona um efeito de choque, a presença de uma imagem como dessemelhança abre ao museu a possibilidade “[…] de co-presença de temporalidades heterogêneas” (Rancière, 2009, p. 37). O fluxo historiográfico dá lugar ao estado de reticência próprio da experiência estética.
Em São Paulo, o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand é celebrado como uma das mais importantes instituições culturais brasileiras. Desde a inauguração da sede na Av. Paulista até os nossos dias ele tem sido vetor de significativas exposições temporárias e de seu acervo, notadamente expressivo em arte brasileira, como também as coleções de arte italiana e francesa. Considerado o primeiro museu moderno brasileiro, o projeto de Lina Bo Bardi contribuiu para a ressignificação das ideias de museu e exposição.
Integradas ao ícone do vão livre na esplanada sob o museu, as principais conquistas da arquiteta nessa obra se somam aos icônicos cavaletes de cristal, criados para expor a coleção no segundo andar do edifício. Este conjunto, arquitetura e expografia, expande as possibilidades de fruição das obras de arte, até então quase sempre orientadas pelo modus operandi ditado pelas paredes dos museus (nos quais elas são concebidas como espaço indispensável e complementar ao próprio quadro, paradoxalmente um vazio significante).
A investida no campo expositivo expõe as vicissitudes no campo da arte. E mais do que isso, altera o modo como percebemos e nos relacionamos com as obras e o próprio espaço do museu, pondo em xeque qualquer ideia de neutralidade (do museu, exposição) ou de valor absoluto (das obras de arte e da história da arte). Neste sentido, as experiências empreendidas no MASP corroboram as teses de Danto e Belting em que a narratividade da história da arte é reavaliada. O fim da arte como o fim das narrativas mestras da arte. Sobre a morte da arte, Danto afirma que “O que havia chegado a um fim era a narrativa, e não o tema da narrativa” (Danto, 2006, p. 5). É sobre essas narrativas, sobre o pluralismo possibilitado pela arte contemporânea que ambos os filósofos desenvolvem suas teses.
Figure 5. MASP (interior view), September 2015.
Nas primeiras visitas que realizamos, iniciadas pelo MASP e passando pelo MAM-SP, MAC-USP e pelo CCBB-SP, percebemos nessas instituições, através de suas exposições, a tentativa de instauração de um ambiente onde o permanente e o transitório possam relacionar-se, como se os museus buscassem validar suas ações (legitimar sua existência) ao oferecer ao público uma conexão entre o passado e o presente. As exposições de caráter histórico, que compõem os acervos, expressam o permanente, enquanto as exposições temporárias, quase sempre de tendência contemporânea ou seleções que se aproximam mais ao tempo atual, expressam o transitório. Desse modo, os museus buscam no passado o lastro necessário para o enfrentamento do presente e oferecem a partir de mostras construídas através dos processos artísticos contemporâneos sua ancoragem na atualidade. Mas essa projeção é limitada; se entendermos como Bertolt Brecht que o deslocamento do mundo constitui o verdadeiro tema da arte, não será mais na representação da Virgem (de Bellini ou de Botticelli[7]) que encontraremos a verdade da arte, mas sim em imagens entrópicas como aquelas apresentadas por Aby Warburg em seu atlas Mnemosine[8].
Não queremos dizer que as pinturas de Bellini ou de Botticelli tenham perdido o seu valor artístico, mas, devido ao seu distanciamento para com a vida – efeito ocasionado pelo próprio museu ao retirar as obras de seu contexto –, tais obras assumem outro valor de culto, muito mais próximo ao de objeto de consumo. Nelas já não reconhecemos o sentido universal que outrora a iconografia cristã manifestava, pois seu cânone já não é regra absoluta da arte; assim, necessitamos da história da arte, da estética e da filosofia para entendê-las, decifrar seus códigos, para nós muitas vezes ocultos. Mas, como obras espetaculares cuja feitura envolve, dentre outros recursos, o requinte pictórico e o arranjo composicional já há muito tempo abandonados (pois já não se faz mais pintura desse modo), elas alcançaram o status de pertencer à tradição artística, fazem parte do cânone museológico e, por conseguinte, são obras que nós esperamos encontrar no museu.
É interessante notar que ao processo de transfiguração descrito por Danto a propósito das caixas Brillo de Andy Warhol assomam-se outras consequências. O que dizer de trabalhos que possuem a contraparte material necessária (constituem-se de naturezas-mortas, pinturas de paisagens, composições abstratas ou até mesmo pôsteres de obras consagradas: Gioconda, Girassóis de Van Gogh, reproduções de telas impressionistas, etc.) encontradas a venda nos hipermercados na seção de “casa e decoração”? Muitas delas estão ali justamente por representarem a ideia de obra de arte difundida não só pelos museus, mas também pela educação formal e pela cultura. Mesmo aceitando que tais exemplares não constituem obras de arte em sentido pleno, várias pessoas adquirem esses exemplares como um vislumbre da arte verdadeiramente aceita.
Para nós, em última instância, a verdade da arte hoje é a expressão das contradições do ser humano em que a própria arte se torna o campo extremo que leva o homem conhecer-se a si mesmo e à alteridade, a expressar o inefável e a alcançar a sua liberdade. A arte (res)estabelece a verdade quanto (re)ata com a vida.
Nas exposições “Arte da França: de Delacroix a Cézanne” e “Arte da Itália: de Rafael a Ticiano”, são notórios o enquadramento histórico e a ênfase dada aos mestres da pintura, mas logo ao lado, em outra sala, na exposição “Histórias da loucura: desenhos do Juquery”, somos arrebatados pelos desenhos produzidos pelos doentes mentais, especialmente através dos trabalhos do interno Albino Braz, uma arte tão marginalizada, deslocada, quanto seus criadores. Este efeito de choque nos tira do estado de êxtase inebriante ou sublimidade causado pelo embalo – canto das musas, ou das sereias? – sutilmente ocasionado pelas exposições de caráter histórico, centradas em grandes nomes das belas artes. Quase sempre, o espectador desprevenido é conduzido através de uma experiência de “sair de si”, como se fosse transportado para outros tempos e mundos remotos.
No MASP, ao se retirar as obras das paredes, a relação obra-espectador recebe a interferência do espaço, que revela diversos pontos de vista, alguns deles improváveis. Ao mesmo tempo que os cavaletes questionam o modelo tradicional de museu, colocam o público em posição mais ativa e autônoma na visitação, pois no espaço amplo e livre, com expografia suspensa e transparente, o público cria relações novas com o acervo (até então não exploradas), onde o percurso de visita não é moderado exclusivamente pela cronologia histórica. “De alguma forma o museu é causa, efeito e materialização das atitudes e práticas que definem o momento pós-histórico da arte [...]” (Danto, 2006, p. 7). Não queremos dizer que a história da arte, dos artistas e das obras tenham sido banidas (ou devam ser banidas) do museu de arte – e sabemos a importância que nos aspectos da pesquisa, comunicação e educação em museus esses conhecimentos possuem –, mas notamos o movimento de transição dos museus narrativos, pautados na história, aos museus dialógicos, pautados na experiência estética.
Tal efeito fragmentário deflagrado pela exposição nos cavaletes de cristal de Lina Bo Bardi expõe a fragilidade e a arbitrariedade das escolhas expográficas utilizadas no museu, de modo semelhante ao que Didi-Huberman analisa sobre o trabalho de Aby Warburg, pois, segundo ele, “O fato é que o conhecimento por montagens ou por remontagens envolve sempre uma reflexão sobre a desmontagem dos tempos na história trágica das sociedades” (Didi-Huberman, 2013, p. 159).
Como em um movimento de passagem, em que os museus não abrem mão de seus vínculos com a história, percebemos nos museus brasileiros a alternativa de expor ao público a combinação de seu acervo histórico junto com exposições de artistas contemporâneos ou que, de algum modo, tematizam as transformações ocorridas na arte, especialmente aquelas em que o próprio museu está em jogo. Esta é a sua crise.
Figure 6. Exhibition: Picture Gallery in Transformation – MASP.
O público vem ao museu seduzido pela promessa de encontrar nele grandes obras de arte (e há em certo sentido um apelo ao culto ao passado), mas ele só encontra a si mesmo, como parte de um mosaico, dos fragmentos de uma cultura tão familiar e ao mesmo tempo tão exótica. Pois, mesmo na fruição de obras do passado, interessam-nos as conexões estabelecidas com o presente na medida em que são significativas para a compreensão de nossa existência. Se há um acesso à história e à memória, isso só é possível através de experiências realizadas no presente.
Para Vilém Flusser, a superação do pensamento histórico pelo pós-histórico se dá por meio dos aparelhos tecnológicos. “As imagens tradicionais são produzidas por homens, as tecnoimagens por aparelhos” (Flusser, 2011, p. 118). As “caixas-pretas”[9] (máquinas fotográficas, câmeras de vídeo, televisores, projetores) “São caixas que devoram história e vomitam pós-história” (Flusser, 2011, p. 118). Para o filósofo, são as experiências de dessacralização e manipulação das imagens que conduzem o homem a romper com o pensamento histórico linear.
A partir da experiência expográfica de Lina Bo Bardi, o público que visita o museu pode criar suas próprias relações com o acervo. Embora na configuração original da exposição com os cavaletes de cristal Lina e Pietro Maria Bardi tenham posicionado as obras por escolas e regiões – e na montagem atual as obras tenham sido organizadas em uma ordem cronológica –, tal categorização não representa uma regra indispensável a ser seguida; consideramos até mesmo que essa proposta foi sugerida pelos expositores para ser ultrapassada, implicando o afastamento do direcionamento narrativo. E esta ruptura expressa também o amadurecimento do público, que, independentemente de classe social, faixa etária ou nível de instrução, passa a ter uma postura mais autônoma frente às “grandes obras” de arte, uma vez que as próprias obras, ao deixar à mostra seu chassi (suas entranhas), revelam não só a sua materialidade, mas põem em perigo o efeito ilusório (quando há), e as destitui de qualquer posição sacralizada. Tal posição também vai de encontro à ideia de fim da arte, pois “O fim da arte implica principalmente o abandono do conceito de obra” (Werle, 2011, p. 71).
A exposição “Histórias da infância” realizada no MASP em 2016 se insere num projeto do museu de “friccionar” diferentes acervos. A montagem traz alguns recursos explorados nos cavaletes de cristal, pois a expografia utiliza painéis suspensos que não formam salas fechadas, permitindo ao público circular de uma maneira mais livre e, consequentemente, perceber uma articulação mais intensa entre os trabalhos expostos. O projeto integra um amplo programa do museu que busca realizar outras exposições sobre diferentes “histórias” (explorando-as em perspectivas múltiplas), como uma saída para a superação das narrativas tradicionais. Esse trabalho está se realizando através das seguintes exposições: “Histórias da loucura” e “Histórias feministas” (iniciadas em 2015), “Histórias da sexualidade” (em 2017) e “Histórias da escravidão” (em 2018).
Logo na entrada da exposição somos recebidos pelas obras “Rosa e azul – As meninas Cahen d’Anvers” (de Pierre-Auguste Renoir) e uma fotografia (sem título) da artista Bárbara Wagner, ambas do acervo do museu.
Figure 7. Pierre-Auguste Renoir, Pink and Blue, 1881. Bárbara Wagner, Untitled, 2005 – MASP.
As referidas obras – colocadas lado a lado – deflagram uma série de leituras que provavelmente não seriam feitas se as mesmas não tivessem sido aproximadas na exposição. Há entre elas uma tensão, uma harmonia dissonante muito peculiar na aproximação entre pintura e fotografia. Devemos lembrar que, embora Walter Benjamin reconheça que em sua essência toda obra de arte foi reprodutível, com a reprodução técnica (Benjamin, 1996), o aqui e agora característicos da obra de arte tradicional desaparecem, tendo como consequência a perda da aura da obra de arte e, com isso, abalando o próprio conceito de arte, que de fenômeno estético singular passa a ser um evento de massas. Desse modo, alertamos para o efeito modelador e irreversível causado pela fotografia. Para Danto, a ascensão da fotografia assume feições catastróficas, pois “Uma vez que a fotografia, enquanto mecânica, substituiu a pintura, o museu perdeu o seu diferencial” (Danto, 2006, p. 159).
A problemática sugerida pelas obras abaixo (Figura 7) não é especificamente sobre a reprodutibilidade técnica, mas sim sobre a inserção da fotografia no espaço museal. Ainda para o filósofo norte-americano Arthur Danto, há outros desdobramentos causados pela fotografia no espaço da arte:
Ela [a fotografia] tornou-se a linguagem do painel do museu, do ensaio do catálogo, do artigo no periódico artístico. Era um paradigma intimidante, e a contrapartida do discurso para a “ampliação do gosto”, que reduzia a arte de todas as culturas e de todos os tempos ao seu esqueleto formalista, e isso, como expressei, transforma todos os museus em Museu de Arte Moderna, independentemente de seu conteúdo (Danto, 2006, p. 160).
Se a proposta da expografia em “Histórias da infância” é romper com as hierarquias e territórios entre as obras, aproximando trabalhos de diferentes épocas, lugares e estéticas sob uma mesma égide, o que vemos aqui vai além. Há no exame das obras um efeito de justaposição, e a aproximação pela temática da “infância” cria um elo de contiguidade entre elas. Por cada trabalho que passamos, lemos a obra seguinte ainda sob os efeitos, reminiscências da obra anterior; as obras relacionam-se umas com as outras, a anterior com a posterior, e no fim, pelo conjunto, uma presentificação da arte que só se realiza através da presença do público.
E “[…] a fotografia assume agora sua autonomia ao também adentrar o museu” (Crimp, 2005, p. 68; destaque do autor), e sua presença não nos causa mais espanto, mas ainda hoje continua a ameaçar a pintura. Todavia, não é uma ameaça destrutiva; ameaçamos a pintura cada vez que apontamos um smartphone para fotografá-la? A pintura decai quando é colocada lado a lado com a fotografia? Embora alguns registros fotográficos acabem por se tornar insuportáveis por serem demasiadamente reais (Pagnoux apud Rancière, 2014, p. 88) – e talvez esse seja o aspecto que torna a fotografia tão dissidente em relação à arte –, notamos que entre as obras de Renoir e Bárbara Wagner há uma contaminação mútua, balizamos a fotografia a partir do picturalismo do quadro, na pintura reavaliamos o efeito mimético impressionista em relação ao paradigma fotográfico (há nos semblantes dos meninos praianos uma sóbria austeridade que desafia as faces etéreas de Elizabeth e Alice Cahen d’Anvers). O comparativismo sugerido perpassa ainda as semelhanças na composição e as diferenças no âmbito da representação sociocultural. No fim, ambos os trabalhos saem ganhando, pois seus sentidos foram atualizados a partir da interação entre eles e o espectador, e assim é restaurado o princípio primordial de que a arte é uma forma de habitar o mundo, pois “Arte pode se tornar vida. Vida pode se tornar arte. Arte e vida podem trocar suas propriedades” (Rancière, 2013b, p. 7).
Em nossas observações descrevemos, a partir das visitas aos museus selecionados, o intercâmbio de concepções e práticas museológicas mais tradicionais, ligadas quase que exclusivamente às funções de preservação e exposição (funções que são normalmente atribuídas às instituições museais), mas também práticas expositivas criativas – especialmente aquelas deflagradas pelos cavaletes de cristal de Lina Bo Bardi –, que marcam no Brasil um movimento que surge dentro dos próprios museus de transformação e expansão de seu espaço de ação da modernidade à contemporaneidade, consequência do caráter crítico e autorreflexivo que essas instituições têm assumido.
A crise que acompanhamos é aquela do fim do conceito de história no mundo da arte ao qual os museus respondem pouco a pouco propondo possibilidades expositivas que enfatizam cada vez mais o dialogismo próprio da arte contemporânea em detrimento da narratividade mais afeita aos estilos do passado. Relacionamos que as transformações ocorridas refletem alguns aspectos que caracterizam o novo cenário, onde a transfiguração promovida pela Pop Art (de transfigurar não só os símbolos da cultura pop em arte, mas até mesmo objetos comuns) contribuiu para alargar mais uma vez o campo da arte, e de certo modo tem legitimado a entrada da não arte no espaço do museu.
A recepção da ideia do “fim da arte” pode ser feita de forma positiva ou negativa. Optamos por uma visão positiva em que o “fim da arte” não quer dizer que não vá haver mais arte, mas que a arte se abre para além de si mesma e, enquanto tal, estará ali como arte depois da arte (Danto, 2006, p. 47). Ou, nos termos de Belting, o fim da arte é o fim de um tipo específico de narrativa, porque a própria narrativa se transformou (Belting, 2012, p. 46). A percepção da história como narrativa univalente enseja seu término.
Gradativamente já nos afastamos do caráter fúnebre que os museus, a certo tempo, foram associados. Contrariando Paul Valéry, pouco a pouco, as pessoas não se sentem tão perdidas, sozinhas no meio de tanta arte. Aqui e ali as referências situam o público, e elas partem muitas vezes das imagem do cotidiano, captadas pelas “caixas-pretas” flusserianas. Arte e cultura se tangenciam de modo a diminuir as diferenças entre elas. E os próprios museus têm promovido esse contato, diminuindo a distância entre arte e vida. Conforme o próprio Adorno, o museu como lugar de “visões mortas” tem se tornado o espaço mais propício a uma percepção profunda da arte em nosso tempo.
Referências
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Notas
Autor notes