Dossiê

Excepcionais normais? A(s) trajetória(s) de três pastores no Sul do Brasil (1824-1893)

Exceptional normal? The trajectory of three Lutheran pastors in southern Brazil (1824-1893)

Marcos Antônio Witt
UNISINOS, Brasil

Excepcionais normais? A(s) trajetória(s) de três pastores no Sul do Brasil (1824-1893)

História Unisinos, vol. 20, núm. 3, pp. 287-299, 2016

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Concedo a Revista História Unisinos o direito de primeira publicação da versão revisada do meu artigo, licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution (que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista). Afirmo ainda que meu artigo não está sendo submetido a outra publicação e não foi publicado na íntegra em outro periódico e assumo total responsabilidade por sua originalidade, podendo incidir sobre mim eventuais encargos decorrentes de reivindicação, por parte de terceiros, em relação à autoria do mesmo. Também aceito submeter o trabalho às normas de publicação da Revista História Unisinos acima explicitadas.

Recepção: 26 Julho 2016

Aprovação: 10 Agosto 2016

Resumo: O presente texto tem como objetivo analisar a trajetória dos pastores João Jorge Ehlers, Carlos Leopoldo Voges e Frederico Cristiano Klingelhoeffer mediante a utilização do conceito de excepcional normal formulado por Edoardo Grendi. Os três religiosos chegaram à Colônia alemã de São Leopoldo entre 1824 e 1826, província do Rio Grande do Sul, Brasil, acompanhando imigrantes alemães que ali se instalaram. Os conflitos estabelecidos entre eles estão relacionados à tentativa de se fixar na sede da Colônia, ocupando o cargo de pastor titular. Nesse caso, a metodologia da micro-história serviu de suporte para a referida análise ao permitir que a trajetória de Ehlers, Voges e Klingelhoeffer lançasse luz sobre o exercício pastoral desenvolvido no Brasil do século XIX. As fontes estão localizadas no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e no Arquivo Histórico da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, bem como as principais referências encontram-se nas bibliotecas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e das Faculdades EST. O uso do conceito de excepcional normal aplicado aos investigados permitiu que se aprofundasse a análise sobre o quanto os religiosos acatólicos corresponderam à expectativa da Igreja e de suas comunidades. Os resultados alcançados demonstram que houve excepcionalidade e normalidade na atuação eclesiástica dos pastores junto aos seus fiéis e ao dialogarem com as autoridades nacionais que representavam setores jurídico-burocráticos do império brasileiro e da província do Rio Grande do Sul.

Palavras-chave: imigração, Rio Grande do Sul, século XIX, pastor, excepcional normal.

Abstract: This paper aims to analyze the trajectory of the Lutheran pastors João Jorge Ehlers, Carlos Leopoldo Voges and Frederico Cristiano Klingelhoeffer by using the concept of exceptional normal formulated by Edoardo Grendi. The three ministers arrived between 1824 and 1826 in the German colony of São Leopoldo, the province of Rio Grande do Sul, Brazil, following German immigrants who settled there. Conflicts that arose between them are related to the attempt to get established at the center of the colony in the position of senior pastor. In this case, the methodology of micro-history helped to carry out this analysis as it allowed the trajectory of Ehlers, Voges and Klingelhoeffer cast light on the exercise of the pastoral ministry developed in Brazil in the 19th century. The sources are located in the Historical Archive of the Rio Grande do Sul and in the Historical Archive of the Evangelical Church of the Lutheran Confession in Brazil, and the main references are in the libraries of the University of Vale do Rio dos Sinos and Faculdades EST. The use of the concept of exceptional normal applied to the investigation made it possible to deepen the analysis of how the non-Catholic ministers corresponded to the expectations of the Church and their congregations. Results show that there was exceptionality and normality in the activities of those pastors as they ministered to their faithful and dialogued with national authorities representing the legal and bureaucratic sectors of the Brazilian empire and the Rio Grande do Sul province.

Keywords: immigration, Rio Grande do Sul, 19th century, pastor, exceptional normal.

Excepcionais normais?

O ponto de interrogação no conceito de excepcional normal, formulado por Edoardo Grendi, indica que o presente texto tentará responder a uma pergunta que está diretamente relacionada à atuação dos três primeiros pastores que chegaram à província do Rio Grande do Sul, Brasil, em 1824[2]. Ao me aproximar ainda mais da micro-história italiana, passei a me perguntar o quão excepcionais e normais seriam esses religiosos. A presente dúvida – sobre o grau de excepcionalidade e normalidade dos pastores – constitui a espinha dorsal do texto que ora inicio. E como tentar respondê-la? De acordo com François Dosse, dando “mais atenção às estratégias individuais, à complexidade dos elementos em jogo e ao caráter imbricado das representações coletivas” (Dosse, 2009, p. 254). Ao que parece, as trajetórias de João Jorge Ehlers, Carlos Leopoldo Voges e Frederico Cristiano Klingelhoeffer atendem aos requisitos apresentados por Dosse, uma vez que usaram estratégias individuais, complexificaram os elementos que estavam disponíveis e tiveram na representação um dos melhores meios para conquistar espaço entre os seus fiéis.

A afirmação de Dosse – “o indivíduo não se isola do tecido social que é o seu e não pode ser considerado o locus de uma singularidade” (Dosse, 2009, p. 255) – vem ao encontro do que escrevi e continuo buscando nas trajetórias dos guias espirituais analisados. Se, por um lado, são capazes de usar estratégias individuais, estas são colocadas em prática a partir de um conjunto complexo de pensamentos e ações. O contexto, neste caso, é peça fundamental para o entendimento das individualidades em permanente diálogo com a complexidade social onde os religiosos estavam inseridos. Dosse se vale da metáfora do “sanduíche”, de Charles Firth, para enfatizar a importância do contexto: “uma camada de contexto, uma camada de existência individual e, de novo, uma camada de contexto” (Dosse, 2009, p. 259). Em termos espaciais, a complexidade social tem origem nos territórios de língua alemã[3]; depois, na travessia do Atlântico; e, por último, nas Colônias de estrangeiros instaladas em algumas províncias do Brasil a partir do início do século XIX. Portanto, é este jogo duplo entre individualidade e complexidade que permite a formulação e a tentativa de se responder o quanto os pastores Ehlers, Voges e Klingelhoeffer podem ser considerados excepcionais e normais.

As experiências de formação profissional vivenciadas pelos religiosos e a sua disposição em se submeter aos rigores dos cursos que lhes conferiram o título de pastor poderiam dar a falsa impressão de que eles se focaram estritamente no desempenho das atividades religiosas e respiraram unicamente os ares aprisionados pelas quatro paredes dos seus templos. Contudo, Giovanni Levi observa que “nenhum sistema normativo é, de fato, estruturado o bastante para eliminar qualquer possibilidade de escolha consciente, de manipulação ou de interpretação de regras, de negociação” (Levi, 1989, p. 1.333). Sujeitos às regras dos agentes de imigração e das autoridades brasileiras, os requerimentos escritos a próprio punho atestam que os pastores se rebelaram contra “os sistemas normativos” e buscaram ampliar a sua área de atuação. Além do religioso, o social, o político e o econômico compuseram o espectro de interesses de Ehlers, Voges e Klingelhoeffer. Cada um deles, a partir de suas vivências, rompeu com o que estava estipulado e objetivou inserir-se em áreas que agigantariam o patrimônio material e imaterial construído no Sul do Brasil. Por consequência, o poder de representação foi redimensionado quando os líderes espirituais se envolveram em assuntos terrenos.

Muito embora se percebam o desejo e a utilização de múltiplas estratégias por parte dos pastores para a conquista de espaços distintos na sociedade receptora – o Brasil –, esta percepção advém do cotejamento de inúmeras fontes. Ciente de que o manejo da documentação obedece a critérios previamente estipulados pelo pesquisador, ou seja, ele pesquisa, organiza e se utiliza das fontes para responder plenamente à sua hipótese, sua obsessão por um resultado perfeito faz com que corra perigo ao trabalhar com biografias e/ou trajetórias. Assim, é bastante provável que os documentos por mim analisados tenham sido aproximados e encaixados de tal forma que criaram um todo coerente para a vida dos pastores. Ao moldá-los desta forma, fiz deles homens excepcionais normais sem me preocupar com o grau de excepcionalidade e normalidade que reside em cada um. Por certo, esta discussão sobre as fontes considera as palavras de Levi como um mantra quando o autor afirma que a vida dos homens não está nos documentos que os pesquisadores manuseiam.

Em relação ao conceito de excepcional normal, Lima (2006) diferencia a interpretação apresentada por Edoardo Grendi da versão trabalhada por Carlo Ginzburg. Para Lima, Grendi se refere ao documento quando aborda o conceito de excepcional normal. Já Ginzburg inclina-se a encontrar esta característica nos sujeitos históricos, como o moleiro Menocchio. De acordo com Ginzburg,

existe também aquilo que Edoardo Grendi chamou, sugestivamente, o ‘excepcional normal’. A esta expressão podemos atribuir pelo menos dois significados. Antes de mais nada, ela designa a documentação que só aparentemente é excepcional. [...] Mas, o ‘excepcional normal’ pode ter ainda outro significado. Se as fontes silenciam e/ou distorcem sistematicamente a realidade social das classes subalternas, um documento que seja realmente excepcional (e, portanto, estatisticamente não frequente) pode ser muito mais revelador do que mil documentos estereotipados. Os casos marginais, como notou Kuhn, põem em causa o velho paradigma, e por isso mesmo ajudam a fundar um novo, mais articulado e mais rico. Quer dizer, funcionam como espias ou indícios de uma realidade oculta que a documentação, de um modo geral, não deixa transparecer. Partindo de experiências diversificadas e trabalhando em temas diversificados, os dois autores deste escrito são unânimes em reconhecer a importância decisiva daqueles traços, aquelas espias, aqueles erros que perturbam, desordenando-a, a superfície da documentação. Para além dela é possível atingir aquele nível mais profundo, invisível, que é constituído pelas regras do jogo, ‘a história que os homens não sabem que fazem’ (Ginzburg, 1991, p. 176-177).

No que se refere ao uso do conceito de excepcional normal, optei por usá-lo ao estilo Ginzburg, isto é, pensando mais no sujeito histórico do que na documentação produzida sobre ele. Desta forma, o excepcional normal está ligado às trajetórias dos investigados e não tanto à documentação que me permitiu rastreá-los desde a decisão de emigrar. Para Lima, a “representatividade de Menocchio” é um dos aspectos mais importantes do debate da micro-história (Lima, 2006, p. 326). Se a assertiva de Lima conduzir as próximas linhas – e conduz –, a representação que residiu em cada um dos pastores será decisiva para compreender as ações destes guias espirituais no Brasil oitocentista.

A(s) trajetória(s) de três pastores no Sul do Brasil

A(s) trajetória(s)

Singularidade e pluralidade são encontradas nas vidas de Ehlers, Voges e Klingelhoeffer. A trajetória dos três pastores, desde a decisão de emigrar, é composta de múltiplas trajetórias que compõem um todo. Neste sentido, singular e plural se conectam e dão novo sentido às ações dos religiosos no Sul do Brasil. Fazendo uso de uma escala mais ampla (Revel, 2010), posso pensar em suas trajetórias a partir de elementos que as unam e, assim, optar pelo uso do termo no singular – trajetória. Por outro lado, suas vidas têm especificidades e diferenças que os diferenciam e são estas características distintas que embasam o uso do termo no plural – trajetórias. Levantar a proximidade e o distanciamento entre trajetória e trajetórias não se coloca como um empecilho para a discussão realizada neste texto. O jogo de escalas proposto por Jacques Revel permite justamente que universos desproporcionais dialoguem e enriqueçam o percurso realizado pelos agentes históricos investigados.

Tão importante quanto a discussão que perpassa a singularidade e a pluralidade do termo trajetória é a retomada do debate entre biografia e trajetória. Afinal, o que é cada uma e qual o alcance de uma biografia ou de um texto que aborde uma ou mais trajetórias? Ou será o mesmo? Existirá uma fina diferença entre os dois gêneros? Ao que parece, os estudiosos que se dedicam a pensar teórica e metodologicamente as duas variações indicam que biografia seria um estudo mais abrangente – total – da vida de um biografado. Em se tratando de trajetória/trajetórias, o estudo contemplaria aspectos, recortes, determinados temas da vida do investigado. Assim, muitas trajetórias comporiam uma biografia. No entanto, haveria outra razão para os pesquisadores optarem por um estudo mais amplo, total, ou por uma pesquisa com maior número de recortes. De acordo com Alexandre Karsburg, “o uso do termo trajetória parece ter sido uma saída para quem tinha receio de utilizar o termo biografia em seus estudos – muito pelo baixo prestígio que biografias tinham no meio acadêmico” (Karsburg, 2015, p. 33).

A observação levantada por Karsburg em relação à biografia faz lembrar o desprestígio que assombrou a história política por algumas décadas. Ambas, biografia e história política, privilegiavam os grandes homens, seus feitos heroicos e sua existência linear e coerente. Memorialistas e intelectuais de diversas áreas produziram obras que deixaram de lado as classes subalternas, os homens simples, e deram voz aos generais e políticos de grande envergadura. Exercício este que colaborou para o desprestígio de quem se identificava com a produção histórica voltada aos gêneros biográficos e à história política. A micro-história italiana, ao permitir que sujeitos aparentemente comuns pudessem levantar grandes questões da humanidade, colaborou para a oxigenação e retomada dos estudos biográficos. Após a publicação das trajetórias do moleiro Menocchio e do padre Chiesa, inúmeros estudiosos se identificaram com a proposta formulada por Carlo Ginzburg e Giovanni Levi e os tomaram como referência para enfrentar os perigos da biografia e/ou das trajetórias.

Sobre Ehlers, Voges e Klingelhoeffer, as suas trajetórias se diferenciam no que tange à longevidade de suas vidas. Klingelhoeffer e Ehlers foram brindados com poucos anos de vida no Brasil; Voges, por sua vez, viveu até o ano de 1893 e alcançou a excepcionalidade de 92 anos. A morte prematura de Klingelhoeffer, morto em combate durante a Revolução Farroupilha (1835-1845), nas proximidades de Triunfo, província do Rio Grande do Sul, no dia 6 de novembro de 1838, aponta para participação política, ideológica e militar efetiva. Sua trajetória de vida no Brasil foi marcada, portanto, por trajetórias diversas que extrapolaram o universo religioso. No caso de Ehlers, sua atividade eclesiástica na Colônia de São Leopoldo durou até o ano de 1843, quando foi substituído pelo pastor Klenze. Os documentos indicam que Ehlers faleceu no Rio de Janeiro, em 1850, onde exerceu a função de professor. De acordo com Hunsche,

com Klingelhoeffer fecha o ciclo da vanguarda do protestantismo no Sul do Brasil. Os três pastores, propriamente quatro se incluirmos o Pastor Sauerbronn, de Nova Friburgo, formam, em si, uma unidade, não pelo seu nível intelectual e de formação, que foi diferente em cada caso: foram todos contratados pelo Major Schaeffer; as suas viagens ao Brasil, com exceção da de Klingelhoeffer, foram pagas pelos cofres do Império; receberam gratificações anuais até 1830/1831 e, depois, esporadicamente e por pouco tempo, ordenados por mês; a sua história e a história de suas comunidades são a história da Igreja Evangélica no Rio Grande do Sul (Hunsche, 1981, p. 150).

As trajetórias dos três investigados apontam para semelhanças e diferenças. Hunsche chama a atenção para o fato de terem sido os primeiros pastores a atuar no Brasil acompanhando grupos de imigrantes. Neste sentido, fecham “o ciclo da vanguarda do protestantismo no Sul do Brasil”. Além do que foi apontado pelo autor, uma das dessemelhanças está na longevidade de Voges; outra, na morte prematura de Klingelhoeffer, religioso que se transformou em soldado; e, outra, em um certo encantamento que tomou conta de Ehlers quando passou a defender a causa farroupilha. As suas trajetórias indicam, também, que foram sensíveis aos acontecimentos de sua época. O fervor ideológico da Revolução Farroupilha parece ter tocado profundamente a vida de pelos menos dois dos pastores. Neste sentido, atuaram muito além do púlpito dos seus templos.

Três pastores no Sul do Brasil

A chegada

De acordo com a pesquisa genealógica de Carlos Henrique Hunsche, os pastores João Jorge Ehlers, Carlos Leopoldo Voges e Frederico Cristiano Klingelhoeffer chegaram à Colônia de São Leopoldo nos três primeiros anos da colonização alemã na província do Rio Grande do Sul. A Colônia, fundada em 25 de julho de 1824, recebeu imigrantes alemães católicos e evangélico-luteranos (protestantes). Os católicos receberam atendimento dos padres de origem portuguesa e espanhola que já estavam no Brasil, dos religiosos que emigraram com eles e/ou dos jesuítas que se instalariam na Colônia de São Leopoldo. Os evangélico-luteranos, por sua vez, tiveram sua fé apenas tolerada e receberam atendimento espiritual dos pastores que emigraram e/ou dos colonos mais letrados que supriram a falta dos religiosos acatólicos. Segundo Hunsche, Ehlers chegou em 6 de novembro de 1824, viúvo, acompanhado dos filhos Maria Regina Georgina, Augusta Francisca e Alexandre Constantino; Voges, em 11 de fevereiro de 1825, solteiro; e Klingelhoeffer, em 17 de abril de 1826, casado, acompanhado da esposa Luisa Stapp e dos filhos Carolina, Joana Sofia, Jorge Carlos Herrmann, Augusta Carolina Elisa, Ernestina Guilhermina Hedwig e Emília. Ainda, segundo Hunsche, apenas Ehlers e Klingelhoeffer parecem ter comprovado sua profissão de pastor (Hunsche, 1977, p. 487-489; Hunsche, 1975, p. 221-222, 286-287).

Ferdinand Schröder, ao trazer informações sobre Ehlers, constatou que ele atuou como “sacristão-mor na igreja de São Tiago em Hamburgo, foi ordenado com a concordância dos pastores dessa igreja e de seu Sênior e enviado como pregador de São Leopoldo” (Schröder, 2003, p. 69). Hans-Jürgen Prien também concluiu que Ehlers possivelmente chegou ao Brasil como pastor ordenado:

[...] não obstante, o agente Major Schaeffer foi solicitado a recrutar Ehlers como clérigo. Visto que numa carta ao governo com data de 05/04/1824 Schaeffer coloca como condição a ordenação de Ehlers, pode-se pressupor, junto com Schröder, com grande probabilidade que Ehlers emigrou para o Brasil como clérigo ordenado (Prien, 2001, p. 51, nota 102).

Quanto a Klingelhoeffer, o religioso apresentou às autoridades brasileiras três documentos a fim de comprovar sua formação teológica e/ou sua atuação eclesiástica nos territórios de língua alemã. São cópias dos originais traduzidos para o português datados de 23 de janeiro de 1819, no qual se informa que trabalhou em Bobenhausen; de 7 de junho de 1825, atestando que ele foi demitido do emprego em Bobenhausen para empreender viagem ao Brasil; e de 6 de agosto de 1825, o qual se constitui em um atestado de boa conduta, assinado pelas lideranças da cidade onde atuou como religioso. E, no que se refere a Voges, segundo ele mesmo informou às autoridades, toda documentação que comprovaria o estudo teológico perdeu-se durante o naufrágio do bergantim Flor de Porto Alegre, naufragado nos bancos de areia de Mostardas, litoral da província do Rio Grande do Sul, em dezembro de 1824[4].

Após a chegada e a comprovação da formação teológica, Ehlers permaneceu como pastor na região central da Colônia alemã de São Leopoldo; Voges acompanhou os colonos evangélico-luteranos que formaram a Colônia alemã das Torres, no Litoral Norte da província do Rio Grande do Sul; e Klingelhoeffer atendeu aos colonos situados na Costa da Serra, região pertencente à Colônia de São Leopoldo em direção ao norte.

Os conflitos

As trajetórias dos pastores Ehlers, Voges e Klingelhoeffer foram marcadas pela existência de inúmeros conflitos. Equivocadamente, Janaina Amado, em sua tese de doutorado, publicada pela primeira vez em 1978, percebeu a Colônia alemã de São Leopoldo como uma comunidade fraterna, sem conflitos, especialmente nas décadas iniciais da colonização. Para Amado, o período compreendido entre os anos de 1824 e 1846 caracterizou-se pela fase pioneira – assentamento dos colonos e auxílio mútuo entre as famílias. Somente após o vilamento, em 1846, quando a Colônia recebeu instituições políticas e burocráticas, passou a haver maior desnivelamento social entre os colonos. A quebra da fraternidade, conforme Amado, levou à explosão de conflitos. A análise da autora apresenta aspectos muito relevantes para a vida dos colonos no início do século XIX, pois a difícil arte de sobreviver contava com o apoio comunitário de todos os seus membros. Uma das características marcantes da vida camponesa do Oitocentos foi a da reciprocidade, sem a qual muito dificilmente as famílias teriam suportado os momentos de escassez alimentar, conseguido erguer suas casas, igrejas e escolas e vencido as angústias e medos pelo porvir. Todavia, o estudo das trajetórias dos três primeiros pastores que atuaram na Colônia alemã de São Leopoldo relativiza as considerações de Amado.

As considerações de Amado sobre uma comunidade de imigrantes na província do Rio Grande do Sul, no início do século XIX, levaram à formulação de algumas questões: como os colonos reagiam quando as autoridades descumpriam suas promessas? Como agentes históricos que dominavam outros códigos culturais, como os dialetos alemães, conseguiram vencer a desconfiança típica do mundo camponês em relação aos estranhos, aos outros? Ao aproximar e cotejar inúmeros tipos de fontes sobre a vida dos pastores, percebi que os agentes históricos analisados estabeleceram conflitos à medida que seus anseios deixavam de encontrar ouvidos atentos junto às autoridades nacionais e mesmo entre os pares. Tão logo chegaram ao Brasil, os religiosos transformaram suas bíblias em espadas e passaram a disputar o cargo de primeiro pastor para a Colônia alemã de São Leopoldo. Assim, os conflitos envolvendo Ehlers, Voges e Klingelhoeffer, suas comunidades e as autoridades às quais estavam submetidos tiveram início quando o presidente da província instituiu somente uma vaga para pastor titular da Colônia.

A oferta de apenas uma vaga bateu de frente com os interesses dos três religiosos contratados pelo agenciador e major von Schäffer, segundo os quais o império, através de seu representante, havia assegurado a cada um a contratação para o cargo de pastor titular nas Colônias a serem formadas no Brasil. A alternativa encontrada, longe de contentar os interessados, foi a implementação do posto de segundo pastor, o qual ficaria como auxiliar e com uma remuneração menor, razão pela qual os futuros dirigentes espirituais da Colônia redigiram diversos requerimentos solicitando a sua nomeação e/ou permanência no pastorado, bem como que fossem equiparados à situação do titular. De pronto, João Jorge Ehlers foi instituído oficialmente como pastor principal com o dever de orientar espiritual e culturalmente os alemães estabelecidos na Colônia recém-formada. A portaria de 23 de novembro de 1824 informava que sua “gratificação” de 200$000 seria “à semelhança da Côngrua dos nossos vigários” (Revista do Arquivo Público do Rio Grande do Sul, 1924, p. 25).

A nomeação de Ehlers como pastor titular fez com que Voges reagisse imediatamente, o qual se sentiu diminuído com a condição de segundo pastor – pois estava subordinado ao titular – e também recebia salário menor. Somente em 21 de novembro de 1825 o governo concedeu oficialmente a Carlos Leopoldo Voges o título de “Coadjutor ao Pastor Ehlers”, com a gratificação anual de cem mil réis (Conforme aviso de 13 de dezembro de 1825, Revista do Arquivo Público do Rio Grande do Sul, 1924, p. 169). Do mesmo modo que os outros dois, Klingelhoeffer articulou-se no sentido de garantir o exercício de sua profissão. Em 8 de maio de 1829, 254 colonos do lado ocidental da Colônia de São Leopoldo solicitaram a confirmação de Klingelhoeffer como pastor e que lhe fosse dado “o mesmo ordenado que se dá ao Pastor João Georg Ehlers”. Agilidade, perspicácia e domínio dos códigos culturais da sociedade receptora encontram-se presentes nas solicitações dos religiosos. O levantamento total dos conflitos vivenciados por eles demonstrou que, além do clima de animosidade causado pela disputa do cargo de pastor titular, Ehlers, Voges e Klingelhoeffer também estabeleceram contendas com suas respectivas comunidades de fiéis e com as autoridades que representavam os poderes provincial e imperial.

Como os conflitos ocasionados pelos pastores envolveram agentes históricos de grupos e instituições distintos, as fontes nas quais os desentendimentos ficaram registrados apontam indícios que permitem a tentativa de se responder às duas questões já enunciadas neste texto: como os colonos reagiam quando as autoridades descumpriam suas promessas? Como agentes históricos que dominavam outros códigos culturais, como os dialetos alemães, conseguiram vencer a desconfiança típica do mundo camponês em relação aos estranhos, aos outros? Ehlers, Voges e Klingelhoeffer estiveram envolvidos em brigas de intensidades variadas, como xingamentos orais e agressões físicas. A análise de processos-crime demonstrou, empiricamente, que todos os imigrantes e seus descendentes, independentemente de escolaridade, religião e riqueza, verbalizaram seu descontentamento quando seus interesses deixaram de ser contemplados. O cruzamento de fontes também deixou muito evidente que autoridades – de todos os tipos – foram vistas com desconfiança, afinal, detinham conhecimento, leis, regras que poderiam servir para ludibriar os que desconheciam aqueles códigos culturais. Muito embora a vida dos religiosos não esteja nas fontes produzidas por e sobre eles, conforme afirma Levi, suas trajetórias evidenciam que o mundo colonial oitocentista, formado por imigrantes, seus descendentes e a população nacional do Brasil, foi tudo menos pacífico, ordeiro e isolado.

Testando o conceito de excepcional normal

A ideia de testar o conceito de excepcional normal na figura dos pastores Ehlers, Voges e Klingelhoeffer tem origem no diálogo estabelecido com o historiador Alexandre Karsburg. Após estudar parcialmente a vida do monge João Maria, Karsburg resolveu avaliar o quanto excepcional e normal havia sido a trajetória de seu investigado. Via de regra, espera-se dos líderes religiosos certo comportamento que os aproxime de modelos, referências, exemplos a serem seguidos. Contudo, há o risco de se enveredar por uma análise anacrônica ao se comparar os pastores de hoje com os do século XIX. Para evitar este equívoco, busquei mapear na historiografia da imigração e na historiografia da história da Igreja Evangélico-Luterana no Brasil[5] o que se esperava de um pastor. Quais seriam as suas atribuições, as suas responsabilidades, a que atividades deveria se dedicar? Afora a leitura de obras que poderiam responder a tais dúvidas, consultei os acervos das bibliotecas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e das Faculdades EST e empreendi diálogo com pesquisadores destas temáticas no afã de elucidar as questões antes enunciadas[6].

Apesar de tais esforços, foi possível responder apenas satisfatoriamente às questões levantadas no parágrafo anterior. Muitas obras trazem somente fragmentos sobre o que se esperava de um pastor ao longo do século XIX. Portanto, torna-se difícil construir uma ideia mais geral sobre o perfil destes líderes religiosos no Oitocentos, já em solo americano. Mesmo nos territórios de língua alemã, de onde saíram em direção à América, os pastores nem sempre correspondiam à expectativa de seus fiéis. Segundo Wilhelm Wachholz,

embora não de maneira generalizada, houve lugares onde o pastorado correu o risco de desaparecer. Isso ocorreu basicamente por dois motivos. De um lado, por causa da má remuneração, o que colocava em risco a própria sobrevivência dos pastores. Por outro lado, por causa do pouco reconhecimento e valorização da função pastoral e até mesmo pelo questionamento da necessidade de sua existência. Os pastorados que se encontravam nestes contextos só eram aceitos e reconhecidos se as ‘pregações’ dos pastores fossem discursos de cunho acentuadamente moral e se os pastores se engajassem em obras e colaborações no âmbito social (Wachholz, 2003, p. 34).

A partir da citação de Wachholz, pode-se perceber que os pastores eram cobrados por suas comunidades e que se esperava deles determinado comportamento. Se foi assim nos territórios de origem, é lícito pensar que os colonos alemães estabelecidos no Brasil também impunham condições para aceitar ou rejeitar um líder espiritual. Wachholz, ao pesquisar a vida dos pastores ainda na Europa, deixou evidente a grande complexidade que rondava a sua formação. De acordo com o autor, os movimentos “pietismo” e “iluminismo”, por exemplo, impactaram teologicamente e intelectualmente a vida dos religiosos. Por consequência, “a pregação dos pastores reavivamentistas enfatizava a moralidade, a disciplina e a honestidade. O combate ao uso de bebidas alcoólicas tornou-se um dos principais, se não o principal, alvo das pregações. Além disso, atacou-se o jogo de cartas, a dança, a superstição, a prostituição” (Wachholz, 2003, p. 59). Muitos destes homens estudaram na “Sociedade Evangélica de Barmen”, da qual saíam com a seguinte missão: “também existe afinidade estreita entre ambos os tipos de enviados e obras: uns têm a tarefa de levar o cristianismo para os gentios; os outros têm a tarefa de proteger os cristãos para que não voltem ao gentilismo” (Wachholz, 2003, p. 161). Portanto, a conduta do pastor também estava condicionada ao seu envio, isto é, ao tipo de missão em que deveria se envolver depois de formado.

Ao chegar ao Brasil, todos os pastores, independentemente de sua formação, estabeleceram contato com as autoridades que representavam a sociedade receptora. Muitos deles logo assumiram a condição de broker – mediadores (Grendi, 2009) – entre estas autoridades e a sua comunidade de fiéis. Isso leva a crer que o seu desempenho teve que atender, imediatamente, a duas frentes: os assuntos terrenos, normalmente relacionados às questões jurídicas, políticas e sociais, e os assuntos sagrados, vinculados à atividade de líder religioso (realização de cultos, aconselhamento, assistência em caso de doença e morte). Nesse sentido, os pastores foram duplamente observados e cobrados: não poderiam falhar como mediadores e nem como religiosos. Mas a cobrança pressupunha compará-los com um perfil que, via de regra, era complexo e mudou ao longo dos séculos XIX e XX.

Em um período no qual havia falta de pastores, sobretudo de 1824 a 1868[7], muitas comunidades empenharam-se em resolver por conta própria esta dificuldade. Muitas vezes, os colonos mais letrados, ou o próprio professor, assumiram as funções de líder espiritual. Osmar Luiz Witt, ao citar o parecer do pastor Max Dedekind, publicado em 1912, faz uso de suas palavras e pergunta:

Mas quem eram esses homens que, naquela época, foram chamados pelas comunidades evangélicas alemãs no Brasil para serem seus ‘pastores’? [...] Então eles contratavam como ‘professor’ e ‘pastor’ quem podiam conseguir, desde que soubesse instruir as crianças, batizar, casar, confirmar, falar nos sepultamentos e celebrar ‘culto’. [...] Certamente encontravam, de vez em quando, homens fiéis – especialmente os idosos – que ainda tinham vindo da Alemanha e trazido junto a sua Bíblia e seu Hinário, como joias caras, para a nova pátria. Estes reuniam, aos domingos, suas famílias e vizinhos em torno da palavra de Deus e administravam os sacramentos como presbíteros fiéis e auxiliares de emergência da Igreja (Witt, 1996, p. 61-62).

Em tempos de urgência, quando a ausência de um pastor formado não podia ser suprida, as qualidades mais básicas de um letrado se colocavam como norma para a contratação de um substituto. Assim, características como “instruir as crianças, batizar, casar, confirmar, falar nos sepultamentos e celebrar culto” foram entendidas como o capital inicial que um homem deveria possuir para assumir a tarefa de líder religioso de uma comunidade.

Eliseu Teichmann, ao estudar as comunidades livres do Rio Grande do Sul[8], as quais não se sujeitaram à tentativa de unificação das comunidades evangélico-luteranas em torno da criação do Sínodo Rio-grandense[9], verificou que as exigências mais importantes para a contratação de um pastor eram as seguintes: espírito de liderança, conhecer o dialeto alemão falado na comunidade, cantar e falar bem, tocar algum instrumento, realizar o culto, dar atenção aos ritos (batizado, casamento, sepultamento, por exemplo), atender aos confirmandos, administrar a Santa Ceia e ter uma postura ética, evitando bailes, jogos e diversões (Teichmann, 1996, p. 102-103). No entanto, Roberto Radünz encontrou postura diferente em determinadas regiões da Colônia de Santa Cruz do Sul. Ao privilegiar sua liberdade frente à tentativa de unificação da Igreja Evangélico-luterana no Rio Grande do Sul, os colonos buscaram encontrar um pastor que tivesse hábitos semelhantes aos seus. Segundo Radünz,

por conta dessa liberdade, os membros passaram a estabelecer um perfil pastoral. O melhor sacerdote, via de regra, era aquele que mais se assemelhasse à liberdade dos membros. Numa comunidade onde diferentes esferas da vida social se intercambiavam, a presença pastoral nesses espaços de sociabilidade era admirada, exceto pelos puritanos e pietistas. “Este serve para nós, não é um Mucker, sabe lidar com as pessoas, também toma seu traguinho conosco e não estraga as brincadeiras” (Radünz, 2008, p. 184).

Ao que tudo indica, a solicitação de parte dos colonos de Santa Cruz do Sul foi uma exceção se comparada com os demais perfis apontados neste texto. Porém, Teichmann e Radünz deram voz aos colonos que estavam descontentes com a tentativa de centralização da Igreja Evangélico-luterana e que optaram por se manter independentes. É bastante provável que em outras regiões de colonização no Brasil, onde houve a necessidade de se contratar um pastor, os colonos também desejassem um líder espiritual que estivesse mais perto de suas realidades e que fosse aceito como um igual, como um par.

Todavia, o perfil de pastor desejado pelos investigados de Teichmann e Radünz bate de frente com a descrição apresentada por Hunsche. O autor publicou, como anexo, as “instruções para os pregadores enviados pelo Comitê para os Alemães Protestantes no Brasil”, de 1872 (Hunsche, 1981, p. 201-203). Ao resumi-las, registrou que

depreende-se destas Instruções, datadas de 2.8.1872, que as normas dadas aos pregadores, ao viajarem ao Brasil, eram bastante complexas: fidelidade perante o cargo assumido; dedicação à juventude; comportamento digno de servos de Cristo; concórdia entre os irmãos eclesiásticos; esforço para unir as paróquias; respeito e obediência ante as autoridades sinodais (se houver); reconhecimento do Conselho Diretor Evangélico de Berlim (se houver filiação); relatórios semestrais e, se possível, um anual (Hunsche, 1981, p. 201)

No século XX, quando o Sínodo Rio-Grandense já estava formado desde 1886, a discussão em torno de quais deveriam ser as funções de um pastor ainda ocupava parte da agenda da Igreja Evangélico-Luterana. A 44ª. Assembleia Sinodal, de 1937, promulgou a “Ordem da Vida Eclesiástica nas Comunidades do Sínodo Rio-Grandense”. De acordo com Fischer,

[...] o capítulo 6 desta Ordem, em sua letra B, trata ‘das funções do pastor’. Consta ali que o pastor deve desempenhar seu ministério conforme o voto de ordenação, ‘em fidelidade à palavra de Deus e à confissão da nossa Igreja, conforme as ordens do Sínodo Rio-grandense e em harmonia com os estatutos e ordens da comunidade, aprovados pela Diretoria do Sínodo’; ele está subordinado à direção do Sínodo ‘quanto à sua missão de pregador, professor ou cura d’almas’. São feitas ainda algumas prescrições referentes à administração dos livros de igreja, dos arquivos, etc., bem como a respeito da colaboração com a diretoria, da qual o pastor deve fazer parte segundo os estatutos, e ainda sobre férias, ausência em serviço e vacância. É regulamentada ainda a troca de colocação do pastor, ponto este em que é determinado que a relação entre comunidade e pastor somente pode ‘ser resolvida em conformidade com a Diretoria do Sínodo’, assim como também o novo preenchimento da vaga somente pode suceder com intervenção da Diretoria do Sínodo através do presidente do Concílio Regional (Fischer, 1986, p. 31).

Antonio Mendonça e Prócoro Velasques, em seu livro sobre o protestantismo no Brasil, afirmam que havia controle rigoroso sobre a vida profissional e particular dos pastores por parte das comunidades, no século XX[10]. De acordo com os autores,

o controle disciplinar é exercido por toda a comunidade. Contudo, a situação mais complexa é a dos pastores. Ao mesmo tempo que são os principais responsáveis pelo controle e aplicação da disciplina, são igualmente os mais controlados pela comunidade. Como herança pietista, o protestantismo acha que alguém que não seja absolutamente puro de coração e não dê testemunho impecável, tanto dentro da comunidade religiosa como no mundo, não tem condições espirituais de pregar o Evangelho, exortar os crentes ou ministrar os sacramentos. A eficácia da pregação, da exortação e dos sacramentos não repousa na ação do Espírito Santo ou na graça preventiva de Deus, mas na santidade da pessoa que executa essas tarefas divinas. A casa, família e a vida privada ou pública do pastor são mais vigiadas que as de qualquer outro membro da comunidade. A esposa do pastor também é alvo de vigilância dobrada. Além do seu testemunho pessoal, deve estar presente em todas as atividades da comunidade. De preferência deve ser organista, participar do coral, da sociedade de senhoras, ser professora de crianças e adolescentes na escola dominical e ainda estar sempre disponível para atividades e campanhas especiais que a comunidade promover. Mas os mais sacrificados talvez sejam os filhos. Eles devem ser modelos para todos, sem direito a serem crianças ou adolescentes normais como os demais de sua idade. Os problemas que afetam a vida conjugal do pastor ou que envolvam seus filhos não podem ser do conhecimento da comunidade. Além disso, em geral o pastor não tem suficiente confiança em seus colegas para tomá-los como confidentes e conselheiros. Uma confidência pode transformar-se em arma na mão do colega, em disputa de cargo eclesiástico ou em discussão doutrinária (Mendonça e Velasques, 1990, p. 228-229).

O levantamento parcial de obras e autores que trazem informações sobre o perfil dos pastores que atuaram no Brasil ao longo dos séculos XIX e XX revela complexidade e interesses diversos que, via de regra, levaram ao estabelecimento de conflitos. Como síntese, é possível perceber que os pastores atenderam a duas demandas: da Igreja institucionalizada, principalmente a partir das tentativas de formação do Sínodo, e da comunidade de fiéis, os quais também impuseram regras para a conduta do líder espiritual por eles contratado. De acordo com Wachholz, os estudantes e futuros pastores dos territórios de língua alemã deveriam observar a moral, a disciplina, a honestidade e combater o uso de bebidas alcoólicas, o jogo de cartas, a superstição e a prostituição. Além disso, as suas atribuições envolviam a atuação no âmbito social. Portanto, não seriam contratados apenas como líderes espirituais, mas como agentes que estavam aptos a resolver problemas do cotidiano (Heller, 2014). O Quadro 1 sintetiza o perfil dos pastores a partir de duas categorias: as atribuições que a Igreja lhes destinava e as habilidades desejadas pelas comunidades em relação ao pastor.

Quadro 1.
Igreja e comunidade.
IgrejaComunidade
Fidelidade perante o cargo assumido; desempenhar seu ministério conforme o voto de ordenação, ‘em fidelidade à palavra de Deus e à confissão da nossa Igreja, conforme as ordens do Sínodo Rio-grandense e em harmonia com os estatutos e ordens da comunidade, aprovados pela Diretoria do Sínodo’.Instrução das crianças
Dedicação à juventudeBatizado
Comportamento digno de servos de CristoConfirmação
Concórdia entre os irmãos eclesiásticosCasamento
Esforço para unir as paróquiasSepultamentos
Respeito e obediência às autoridades sinodais; subordinado à direção do Sínodo ‘quanto à sua missão de pregador, professor ou cura d’almas’Celebração do culto
Reconhecimento do Conselho Diretor Evangélico de BerlimEspírito de liderança
Relatórios semestrais e relatório anualDomínio do dialeto alemão falado na comunidade
Administração dos livros de registro da igreja, dos arquivosCanto e prédica (eloquência)
Colaboração com a diretoria, da qual deve fazer parte segundo os estatutosConhecimento de algum instrumento musical
Administração da Santa Ceia
Postura ética, evitando bailes, jogos e diversões

Chart 1. Church and community.

Em relação ao propósito maior deste texto, isto é, verificar a excepcionalidade e a normalidade na atuação dos três primeiros pastores evangélico-luteranos no Rio Grande do Sul, o Quadro 1 sintetiza os dados e permite o início deste exercício. Sobre o que a Igreja esperava de um pastor, Ehlers, Voges e Klingelhoeffer atenderam alguns dos predicados listados na coluna “Igreja”, uma vez que muito do que ali está observado tem a ver com as tentativas de criação de um sínodo a partir de 1868. Mesmo que muitas das normas elencadas no Quadro 1 tenham sido formuladas anos ou décadas após a sua formação, pode-se inferir que os seminários teológicos dos quais saíram esperavam comportamento semelhante de um jovem pastor. O Quadro 2 sistematiza esta análise.

Quadro 2.
Igreja e pastores.
“Igreja”EhlersVogesKlingelhoeffer
Fidelidade perante o cargo assumido; desempenhar seu ministério conforme o voto de ordenação.Atendeu parcialmente, pois aderiu ao discurso ideológico dos farroupilhas e encerrou sua carreira como professor ao falecer em 1850.Atendeu plenamente, pois manteve-se no cargo de pastor até a sua morte, em 1893.Atendeu parcialmente, pois aderiu às tropas farroupilhas morrendo em combate em 1838.
Comportamento digno de servos de Cristo.Criticado pelos conflitos e pouca aptidão para resolvê-los.Criticado por envolver-se em outros negócios, como a venda (armazém) e a posse de escravos.Criticado por envolver-se com a Revolução Farroupilha.
Concórdia entre os irmãos eclesiásticos.Criticado por envolver-se em conflitos com seus fiéis e com as autoridades da Colônia.Com exceção dos primeiros conflitos estabelecidos com Ehlers, não há maiores críticas sobre este item.Criticado por envolver-se em conflitos com Ehlers e parte de sua comunidade.
Esforço para unir as paróquias.Criticado por permitir a criação de facções dentro de sua comunidade.Com exceção dos conflitos estabelecidos com o colono Mittmann, o qual atuou como pastor durante a sua ausência de Três Forquilhas, não há maiores críticas sobre este item.Criticado por permitir a criação de facções dentro de sua comunidade.
Administração dos livros de registro da igreja, dos arquivos.Criticado parcialmente em relação ao zelo desta função.Muito criticado, pois parece ter sido relapso no cuidado desta função.Em função da morte prematura, deixou poucos registros.

Chart 2. Church and religious people.

Os dados coletados no Quadro 2 demonstram excepcionalidade quando os pastores se envolveram com questões que extrapolavam muito o seu ofício. A participação na Revolução Farroupilha e o incremento dos negócios desviaram o foco e reduziram o tempo dedicado às comunidades. No Quadro 3, estão sintetizadas as informações sobre o que a comunidade esperava dos religiosos e como eles corresponderam a estas expectativas.

Quadro 3.
Comunidade e pastores.
“Comunidade”EhlersVogesKlingelhoeffer
Instrução das criançasAtuou como professor em São Leopoldo e Rio de Janeiro.Atuou como pastor em Três Forquilhas, mantendo uma escola junto à sua casa.Provavelmente atuou como professor durante seu breve ministério.
Batizado, confirmação, casamento e sepultamentoOs livros de registros paroquiais demonstram que os três pastores efetuaram registros de nascimento, batizado, confirmação, casamento e sepultamento. Ao que parece, os primeiros livros das comunidades atendidas por Klingelhoeffer foram extraviados. Quanto aos livros da comunidade de Três Forquilhas, atendida por Voges, eles se encontram junto à comunidade e atestam o atendimento destas funções. No entanto, Voges foi criticado pelo pouco zelo em relação às informações ali descritas.
Celebração do cultoCriticado parcialmente em função dos conflitos estabelecidos com a comunidade.Os pastores que chegaram à comunidade de Três Forquilhas logo após a morte de Voges, em 1893, criticaram duramente a realização dos cultos: segundo eles, o pastor apenas lia textos já compilados e se valia de folhetos para realizar a prédica.Em função do pouco tempo de sua atuação, não há maiores críticas em relação aos cultos. No entanto, há um documento de parte da comunidade que prefere os cultos de Ehlers aos de Klingelhoeffer.
Espírito de liderançaParece ter havido dificuldade com este item, pois Ehlers se envolveu em inúmeros conflitos com a comunidade.Talvez, esta tenha sido uma das maiores capacidades de Voges, pois manteve-se no pastorado durante 66 anos.Tudo indica que Klingelhoeffer direcionou seu espírito de liderança para as questões militares ao se transformar em soldado durante a Revolução Farroupilha.
Domínio do dialeto alemão falado na comunidadeOs livros de registros atestam que todos os pastores tinham domínio dos dialetos. Voges também redigiu documentos em francês.
Postura ética, evitando bailes, jogos e diversõesOs três pastores foram criticados pelo envolvimento com guerras ou política. Não há maiores críticas sobre a questão dos bailes, jogos e diversões. Porém Voges foi alvo de muitas críticas em função de vender aguardente na venda (armazém), que ficava ao lado da igreja.

Chart 3. Community and religious people.

O Quadro 3 evidencia que os três pastores atenderam parcialmente os desejos de suas comunidades. Neste sentido, atuaram dentro da normalidade sem, no entanto, escaparem de críticas por terem desviado parte do tempo para a realização de outras atividades. A análise dos Quadros 2 e 3 parece indicar que Ehlers, Voges e Klingelhoeffer estiveram mais para excepcional quando foram testados no plano da institucionalização, ou seja, quando confrontados com o que os seminários e a futura Igreja unificada entendiam como perfil de um pastor. E, mais para normal, quando sua atuação é comparada com as expectativas que seus fiéis lhes depositaram. Em ambas as situações houve flutuação entre excepcionalidade e normalidade. A partir dos fragmentos coletados em obras e autores que tomaram a trajetória dos pastores como objeto de estudo, e da confrontação destes recortes com as fontes já mapeadas em relação à chegada e atuação dos pastores, é possível perceber que o conceito de excepcional normal pode ser aplicado a Ehlers, Voges e Klingelhoeffer sem haver a necessidade de enquadrá-los totalmente na categoria de excepcional ou normal. O cotidiano oitocentista muitas vezes fez com que estes religiosos optassem por caminhos que os distanciaram de sua função primeira. Por isso, décadas depois foram julgados e sentenciados, anacronicamente, por seus colegas que chegaram ao Brasil a partir de 1868. Impregnados pelos ideais do germanismo (Grützmann, 1999), julgaram seus pares mediante o que entendiam como cultura e o que esperavam de um pastor na virada do século XIX para o XX.

Palavras finais

Os investimentos material e imaterial dos guias espirituais analisados neste texto indicam excepcionalidade e normalidade. Refiro-me à inserção política, à diversificação econômica e ao aprendizado dos códigos culturais da sociedade receptora. Variantes, como a longevidade de Voges e a aplicação de recursos em áreas que se conectam, como economia e cultura, complexificam a presente análise. Ehlers, ao ser empossado como pastor titular da Colônia alemã de São Leopoldo, foi privilegiado pelo governo provincial e deixou seus dois colegas em condição subalterna. Porém seus problemas muito rapidamente apareceram e se tornaram incomodativos. Os primeiros conflitos estão vinculados à insistência de Voges em se tornar, também, pastor titular. Entretanto a documentação revelou que Ehlers se desentendeu com a comunidade de fiéis e com autoridades que regulavam a vida na recém-criada Colônia alemã. Seu posicionamento favorável aos farrapos, durante a Revolução Farroupilha, colaborou para que ganhasse novos inimigos e deixasse a Colônia em 1843.

Voges, além de pleitear o lugar conquistado por Ehlers, encontrou resistência para a sua atuação na Colônia alemã de Três Forquilhas. Nicolau Mittmann, colono próspero e com razoável nível escolar, atuou como pastor no período em que Voges retornou à Colônia de São Leopoldo a fim de tentar, mais uma vez, recuperar a vaga de pastor titular. Com o regresso de Voges, Três Forquilhas se dividiu e somente parte dos colonos apoiou o seu reingresso. Apoiado por outras famílias de destaque, Voges conseguiu empalidecer a atuação de Mittmann, colocando a família em posição subalterna ao longo do século XIX. Sobre a atuação profissional, Voges administrou sua vida de forma mais complexa do que Ehlers. A família Voges adentrou o espaço da política e diversificou seus investimentos de tal modo que atuou na agricultura, processamento de grãos (moinhos, atafona e alambique), comércio (armazém), transporte fluvial, escravidão e extração de madeira. Adolpho Felippe Voges, herdeiro que recebeu a maior parte da herança material e imaterial, tornou-se chefe do partido liberal no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Seu filho, por sua vez, imbuído dos ideais republicanos, filiou-se ao Partido Republicano Rio-Grandense, tornando-se líder desta agremiação no mesmo litoral.

Klingelhoeffer marcou sua trajetória ao participar da Revolução Farroupilha (1835-1845) como soldado. Se, por um lado, atuou como pastor, nem todos os fiéis viram com bons olhos o fervor farroupilha que, pouco a pouco, ganhava mais espaço na vida do pastor. Ciente da causa que abraçava, Klingelhoeffer trocou o púlpito pelo cenário da guerra, onde faleceu em combate. Da mesma forma que Voges, competiu com Ehlers e recebeu como proposta acompanhar os colonos que se estabeleceram mais ao norte do centro da Colônia, na região que recebeu o nome de Costa da Serra. Estes colonos se sentiam prejudicados, pois nem sempre conseguiam atravessar o rio dos Sinos para participar dos cultos ministrados por Ehlers. Em alguns momentos, o grupo de fiéis se dividiu e parte apoiou o pastor titular. Não obstante estas pequenas intrigas e conflitos, a trajetória de Klingelhoeffer ganhou dimensão épica ao aderir à causa dos farrapos, pegar em armas e compor o exército farroupilha.

As breves sínteses das trajetórias de Ehlers, Voges e Klingelhoeffer fornecem indícios de que houve excepcionalidade em suas vidas. As fontes produzidas por e sobre eles relativizam a ideia de líder religioso que o senso comum guarda como referência. Já no plano da normalidade, os documentos arquivados no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, no Arquivo Histórico da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e em suas próprias comunidades testemunham que os três atuaram como guias espirituais ao realizar cultos, celebrar batismos, casamentos e sepultamentos e atender os fiéis em situações de doença e morte. Não menos importante foi a atuação deles como conselheiros e mediadores, uma vez que seu repertório intelectual lhes permitia estabelecer contato com autoridades e dirimir eventuais pendengas entre os fiéis ou entre eles e os nacionais. Impregnados de forte capital simbólico (Bourdieu, 1989), a mediação exigiu tempo, prudência e capacidade de resolver conflitos, embora nem sempre os três pastores tenham conseguido dialogar entre si.

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Notas

2 Detalhes sobre as trajetórias de Ehlers, Voges e Klingelhoeffer podem ser encontrados no primeiro capítulo da tese que defendi junto à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em 2008. Ali, no capítulo intitulado “Disputa pastoral: em vez de espadas, bíblias”, dei ênfase aos conflitos que os três religiosos estabeleceram entre si, mas, também, com suas comunidades. Todos desejavam o cargo de pastor titular junto à sede da Colônia alemã de São Leopoldo, instalada em 1824 (Witt, 2015).
3 Como a unificação da Alemanha ocorreu somente em 1871, optei por usar a expressão “territórios de língua alemã” para designar o local de origem dos três pastores analisados neste texto.
4 Sobre o naufrágio do bergantim Flor de Porto Alegre, embarcação que trazia imigrantes alemães do Rio de Janeiro para Porto Alegre, ocorrido em dezembro de 1824, pesquisei as versões que narram o trágico acidente que resultou em mortes e na perda dos documentos que comprovariam a formação teológica de Voges. Uma das versões afirma que os náufragos caminharam pela beira da praia, em direção norte, até alcançar a Colônia alemã de Três Forquilhas. Essa versão parece inverossímil, uma vez que os colonos alemães chegaram ao Litoral Norte do Rio Grande do Sul somente em novembro de 1826 (Witt, 2009, p. 243-250).
5 Refiro-me à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB, a qual tem origem no processo migratório iniciado no Brasil no século XIX. Esta Igreja também é conhecida como “luterana” ou “protestante”, porém, não deve ser confundida com a Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), proveniente do Sínodo de Missouri, EUA, no início do século XX.
6 Agradeço aos pesquisadores Alexandre Karsburg, Cristiano Christillino, Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos, Isabel Cristina Arendt, Osmar Luiz Witt, Paulo Henrique Silva Vianna e René Ernaini Gertz pelas informações que me foram alcançadas na forma de diálogo, e-mail e indicação de obras.
7 A falta de pastores foi uma constante na história da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. De 1824 a 1868, pastores imigrantes e homens mais ou menos letrados atuaram como líderes espirituais junto aos colonos instalados no Sul do Brasil. Depois de 1868, começaram a chegar de modo mais sistemático pastores enviados pela Sociedade de Barmen, os quais tinham a missão de tentar suprir a deficiência de religiosos acatólicos. Entretanto, a falta de pastores continuou a ocorrer até que fosse criado o seminário de formação teológica no Brasil.
8 Conforme Roberto Radünz, “a forma autônoma como se formaram as comunidades, permitiu-lhes desenvolver uma vivência própria de religiosidade, que não raras vezes foi vista pelos pastores como indiferentismo religioso. Na realidade, tratava-se de uma nova forma de vivência religiosa, fruto da autonomia constitutiva desses grupos” (Radünz, 2008, p. 11).
9 A primeira tentativa de se criar o Sínodo Rio-Grandense deu-se com o pastor Borchard, após 1868. Não obstante todo o empenho de Borchard em unificar as comunidades evangélico-luteranas (protestantes) no Brasil em torno de uma entidade centralizadora, os conflitos e as desconfianças em relação a essa medida impediram a concretização do projeto. Mais tarde, com a chegada do pastor Rotermund, em 1874, deu-se início à nova tratativa de criação do Sínodo. Sua realização ocorreu em 1886, mediante o empenho de Rotermund em congregar as comunidades em torno de uma instituição que regulasse o trabalho da igreja e dos pastores no Brasil. Contudo, muitas comunidades permaneceram independentes e não se sujeitaram ao projeto centralizador. O pedido de registro do Sínodo Rio-Grandense encontra-se no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS) – Requerimentos – maço 236 e o dos Estatutos no AHRS – Requerimentos – maço 196 (Witt, 2015).
10 As citações de Fischer e Mendonça e Velasques, muito embora se refiram ao século XX, são importantes para demonstrar que os pastores continuaram sendo cobrados por suas comunidades e por setores institucionalizados da Igreja mesmo após a formação do Sínodo Rio-Grandense, em 1886.
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