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A construção do “Brasil Potência”: a propaganda de estímulo a migração para o Norte do Brasil – um estudo a partir do caso de Rondônia (1968 – 1981)

The construction of “Brazil as a World Power”: The propaganda to stimulate migration to the North of Brazil –A study based on the case of Rondônia(1968-1981)

Gilmara Yoshihara Franco
Universidade Federal de Rondônia, Brasil

A construção do “Brasil Potência”: a propaganda de estímulo a migração para o Norte do Brasil – um estudo a partir do caso de Rondônia (1968 – 1981)

História Unisinos, vol. 23, núm. 1, pp. 96-109, 2019

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Concedo a Revista História Unisinos o direito de primeira publicação da versão revisada do meu artigo, licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution (que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista). Afirmo ainda que meu artigo não está sendo submetido a outra publicação e não foi publicado na íntegra em outro periódico e assumo total responsabilidade por sua originalidade, podendo incidir sobre mim eventuais encargos decorrentes de reivindicação, por parte de terceiros, em relação à autoria do mesmo. Também aceito submeter o trabalho às normas de publicação da Revista História Unisinos acima explicitadas.

Recepção: 17 Dezembro 2017

Aprovação: 22 Julho 2018

Resumo: A ascensão dos militares ao poder em 1964 era, na perspectiva de parcela expressiva da sociedade brasileira, uma resposta contundente ao ambiente de instabilidade política, econômica e social que “ameaçava” levar o país ao “caos” durante o governo de João Goulart. Enquanto esteve à frente do governo, a ditadura civil-militar desenvolveu e implementou um conjunto de ações e projetos com vistas à expansão da fronteira agrícola e à ocupação de áreas situadas no Norte do Brasil. A intenção era tornar a Amazônia, em particular Rondônia, parte do sistema produtivo nacional. Tais medidas, veiculadas cotidianamente pelos mais diversos meios de comunicação, levaram milhares de pessoas a migrarem para a região. Na esteira desse processo, o presente texto toma o jornal O Globo e a revista Veja como fontes de investigação,objetivando compreender como o ideário de progresso se apresenta vinculado ao processo de expansão da fronteira agrícolae como este discurso contribuiu para compor a narrativa daquilo que a ditadura-civil militar passou a chamar de “Brasil Potência”.

Palavras-chave: ditadura civil-militar, imprensa, Rondônia.

Abstract: The rise of the military to power in 1964 was, from the perspective of a significant part of Brazilian society, a strong response to the environment of political, economic and social instability that “threatened” to lead the country to “chaos” during the João Goulart administration. While at the head of the government, the civil-military dictatorship developed and implemented a set of actions and projects aimed at expanding the agricultural frontier and occupying areas in northern Brazil. The intention was to make the Amazon, in particular Rondônia, part of the national productive system. These measures, disseminated daily by the media, led thousands of people to migrate to the region. In the wake of this process, the present text takes the newspaper O Globo and Veja magazine as sources of research, aiming to understand how the idea of ​​progress is linked to the process of expansion of the agricultural frontier and how this discourse contributed to compose the narrative of what the civil-military dictatorship began to call “Brazil as a World Power”.

Keywords: civil-military dictatorship, press, Rondônia.

Introdução

A chegada dos militares ao poder no Brasil, por meio do golpe deflagrado em 31 de março de 1964, era, segundo seus apoiadores civis e militares, uma resposta contundente ao ambiente de instabilidade política, econômica e social que “ameaçava” levar o país ao “caos” durante o governo de João Goulart (1961-1964). Depois de conquistar o poder, os militares passaram a agir em diversas frentes, objetivando trazer o Brasil de volta à “ordem”. Além de afastar os opositores do regime e da busca em criar instrumentos legais que dessem sustentação ao arbítrio, uma das questões que se tornou objeto central de atenção do governo do general Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura civil-militar, foi a economia. Uma das metas centrais do governo era reverter as taxas de inflação e trazer este índice para a casa de 10% ao ano. Para nortear as ações da equipe econômica foi criado o Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) (Prado; Earp, 2007).

Embora as taxas de inflação tenham sido controladas, a política econômica formulada nos primeiros anos após o golpe sofreu duras críticas. No âmbito social, cresciam as manifestações de estudantes e opositores ao regime. À medida que o governo imposto pelo golpe tentava se consolidar, verificou-se a formação de grupos de resistência que protagonizavam atos de protesto. Os palcos para manifestação de descontentamento com a ordem estabelecida eram muitos: ruas, praças, escolas, universidades. As manifestações que movimentavam as cidades e o campo culminaram com a decretação do Ato Institucional nº 5, que cerceou, ainda mais, direitos e liberdades dos cidadãos brasileiros.

Como resposta às tensões presentes no final dos anos 1960 e propondo uma agenda positiva que reformulava as bases da política econômica elaborada por seus antecessores, a equipe econômica dogeneral Emílio Garrastazu Médici, que governou o país entre 1969 e 1974, desenvolveu as bases de um novo ciclo de desenvolvimento econômico para o Brasil. Entre as medidas elaboradas estava o Plano de Integração Nacional (PIN).

Com oslogan “integrar para não entregar”, oPIN possuía caráter geopolítico e contemplava medidas que visavam criar infraestrutura e fomentar ações necessárias para estimular a ocupação de espaços tidos como vazios e improdutivos na região Norte do Brasil, como a venda e distribuição de terras. A intenção era tornar áreas localizadas ao norte de Mato Grosso, no então Território Federal de Rondônia, Amazonas, Pará e em toda a chamada Amazônia Legal[1], parte ativa do sistema produtivo nacional. Previa, ainda, a abertura de rodoviascomo a Transamazônica, a conclusão da BR 364[2] (ligando Cuiabá a Porto Velho), a construção da BR 425 (ligando Porto Velho a Guajará-Mirim), ampliação e modernização daRodovia Belém-Brasília, chamada rodovia da integração nacional. Tais medidas, aliadas à ampliação do parque industrial e investimentos em infraestrutura portuária, hidrelétricas, termelétricas e pontes monumentais como a Rio-Niterói, foram apresentadas como sinônimos de integração, modernização e progresso.

A Região Amazônica e, em particular, Rondônia, já tinham sido alvo de ações do Estado brasileiro visandoàintegração e ao desenvolvimento durante a primeira metade do século XX, no entanto, ainda eram percebidas como “vazias” e “distantes”, conforme abordaremos adiante. Dessa maneira, à medida que as políticas da ditadura civil-militar passaram a ser implementadas e veiculadas nos meios de comunicação, houve uma intensa mobilização de pessoas que, saídas das mais diversas regiões do país,migraram em busca de um pedaço de terra e/ou de oportunidade de trabalho nestas paragens.No período em tela, milhares de migrantes[3] chegaram a Rondônia. Para atraí-los, a propaganda realizada por intermédio de matérias e reportagens publicadas em jornais, rádios e televisão teve papel fundamental.

A partir das distinções propostas porLuis Fernando Cerri (2005),a propaganda não é entendida aqui, especificamente, como marketing publicitário, mas como instrumento de divulgação de ideiaspraticada por veículos de mídia sem vinculação direta com o governo, notadamente pela imprensa escrita. Ou seja, a imprensa escrita, aqui tomada como fonte, ao mesmo tempo que reporta as ações do Estado acaba por divulgar um conjunto de ideias que nos permite entender como o governo conceitua progresso, integração e desenvolvimento no período em tela. E, ainda, como estas noções acabam por servir de estímulo às migrações em direção ao Norte do Brasil, em particular para Rondônia.

A atmosfera de euforia tomava conta da sociedade naquele período, traduzida em expressões como “90 milhões em ação”, presente no hino da Copa do Mundo de 1970 e no ânimo que embalava a jornada dos migrantes em direção à Região Norte, denotandoa leitura otimista do Brasil produzida durante a ditadura civil-militar. Esta leitura buscava sustentação no “vasto material” da história nacional, no suposto destino manifesto de um país que deveria assumir seu gigantismo por meio da ação dos patrícios que o constituíam em nação, e na qual deveriam reinar a ordem e o progresso. Desse modo, “a missão civilizadora de que se achavam imbuídos os militares se expressou, portanto, através da firme convicção de estarem construindo um novo patamar econômico para o Brasil” (Fico, 1997, p.41).

A busca pelo desenvolvimento nacional, traduzido em expressões como “Brasil Grande” ou “Ninguém segura este país”, é síntese do clima que a conjuntura econômica de fins dos 1960 e início da década seguinte, anos do “milagre econômico”, projetou para a sociedade brasileira; e, naquele cenário, a expansão da fronteira agrícola era parte integrante do projeto que a propaganda do governo apresentava para o Brasil presente e futuro. Diante de tal contexto, tomando a imprensa escrita como fonte de pesquisa, o presente artigo busca compreendercomo o ideário de progresso se apresenta vinculado ao processo de expansão da fronteira agrícolae, ainda, os efeitos de sentido presentesneste discurso que contribuiu para compor a narrativa daquilo que a ditadura-civil militar passou a chamar de “Brasil Potência”.

Integração,progresso. civilizaçãona selva: Rondônia e as ações de ocupação daRegião Norte nasdécadas do século XX

A Região Amazônica, que engloba o atual Estado de Rondônia, foi, ao longo do último século, objeto de diversas ações governamentais com vistas àsua melhor integração ao “corpo da nação”.Os estudos que abordam o processo de ocupação da Amazônia, em interface comas ações do Estado brasileiro, voltadas para a integração/modernização desta região,ou seja, na virada do século XIX para o século XX, trazem elementos que identificam esta espacialidade como um lugar “distante”,“selvagem” e “vazio”.

Nos primeiros anos do século XX, a Amazônia era ocupada, em grande medida, por populações indígenas, que compreendiam povos de diversas etnias, e por trabalhadores que movimentavam a indústria da borracha. A exploração do látex atraiu para diversos pontos da região um contingente significativo de trabalhadores oriundos, sobretudo, do Nordeste do Brasil. A presença destes, todavia, não significava para intelectuais contemporâneos àquele processo, como Euclides da Cunha, uma forma ordenada e racional de ocupação do espaço afeita aos moldes tidos como civilizados. Ao contrário, o autor observou que

[...] não se conhece na História exemplo mais golpeante de emigração tão anárquica, tão precipitada e tão violadora dos mais vulgares preceitos de aclimatamento, quanto o que desde 1879 até hoje atirou, em sucessivas levas, as populações sertanejas do território entre Paraíba e Ceará para aquele recanto da Amazônia. Acompanhando-a, mesmo de relance, põe-se de manifesto que lhe faltou desde o princípio, não só a marcha lenta e progressiva das migrações seguras, como os mais ordinários resguardos administrativos (Cunha, 2000, p. 149/150).

Para o escritor de Os Sertões, a forma de ocupação que empurrou levas de nordestinos para o Norte a fim de ocupar áreas no Acre e outros cantões da Amazônia estava “fora da diretriz do progresso”. Isto, porque a exploração dos seringais cumpria a missão de isolar e degradar os sujeitos que se embrenhavam na mata para a coleta do látex. A degradação se dava pela forma como a vida humana se organizava naquelas paragens; ali, os indivíduos, em um cotidiano movente, se sujeitavam a sobreviver em barracões, sob as ordens e a rígida vigilância dos patrões que haviam arregimentado sua força de trabalho, mantendo-os afastados do mundo civilizado, imersos nas entranhas da selva bruta, segundo a narrativa de Euclides da Cunha.

Nas primeiras décadas do século XX, as ações para integrar a Amazônia ganharam contornos mais definidos. Impulsionada pelos valores positivistas,a intenção da elite políticarepublicana em fazerencurtar a distância entre os brasis– representados pelo litoral e pelo interior – e levar progresso. desenvolvimento aos sertões tidos como incivilizados, traduziu-se em ações como a construção de ferrovias, entre as quais a Madeira-Mamoré (1912), e na ampliação dos meios de comunicação, por meio da expansão da rede de linhas telegráficas (1907-1915), ligando Cuiabá, capital de Mato Grosso, até Manaus, no Amazonas.

Os processos de modernização dos meios de transporte e comunicação, ocorridos no começo do período republicano, eram desdobramentos do que já vinha ocorrendo no Sudeste do Brasil desde meados do século XIX. Assim, símbolos da modernização como ferrovias, telégrafos, urbanização, entre outros, revelam “desejos, sonhos e projeções” de se alcançar o progresso também onde reinava a selva.

Neste sentido, uma das medidas que traduzem estas aspirações foi a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, na região que corresponde ao atual Estado de Rondônia. A ferrovia ligava o porto de Santo Antônio, no rio Madeira (Porto Velho), a Guajará-Mirim.Situada às margens do rio Mamoré, foi construída entre os anos de 1907 e 1912, como contrapartida do Brasil ao governo boliviano, nos termos do Tratado de Petrópolis, celebrado em 1903. Uma das primeiras referências a Madeira-Mamoré, o Álbum Gráfico de Mato Grosso, publicado originalmente em 1914, reportou-se à ferrovia como

[...] uma obra cuja importância excede a previsão do presente pelo futuro no extraordinário impulso que dará ao progresso, povoamento e desenvolvimento da riqueza de todo o vale do rio Madeira, tanto no que se refere a Mato Grosso, como à República da Bolívia e ao Território Federal do Acre, pela facilidade de comunicação que proporcionará ao comércio e à exploração das riquezas dessas regiões [...] (Cardoso Ayala; Simon, 2011, p.165).

Para além de seu caráter geopolítico, o fragmento acima evidencia que o objetivo de levar progresso e desenvolvimento estava muito presente na execução da ferrovia.Responsável pela vinda de imigrantes de diversas partes do mundo para os trabalhos de assentamento dos trilhos, a construção da Madeira-Mamorédeixou um rastro enorme de mortos. Geralmente, as vítimas eram acometidas por doenças tropicais,dentre as quais a malária era a mais letal.

Mesmo tendo provocado a morte de muitos trabalhadores,o que contribuiu para dar à Madeira-Mamoré o epíteto de “ferrovia do diabo”,ostrilhos trouxeram consigo asmarcas daquilo que, na ocasião, se concebia comoprogresso. Em Porto Velho, núcleo urbano constituído para atender ao staff de engenheiros e construtores, podiam-se observar

Sinais de progresso: arruamentos simétricos e largos, serviços de esgoto e distribuição de água dos mais modernos, uma lavanderia a vapor organizada sob moldes industriais, uma grande fábrica de gelo produzindo mais de uma tonelada por dia – o gelo, essa mercadoria evanescente na selva tropical, sua transparência e frio esfumaçante sendo motivos de encantamento dos que o tocam ou possuem como em Fitzcarraldo –,um hotel construído mediante padrões sóbrios e higiênicos, um ateliê fotográfico, uma competente tipografia, o serviço de telégrafoe, enfim, a oficina-monstro da estrada de ferro, podendo rivalizar com as mais adiantadas da Europa e da América (Hardman, 2009, p. 196).

Para Foot Hardman, a ferrovia era como “miragem” capaz de “aplacar a vertigem de vazio” provocada pela selva.E, além de secontrapor àquilo que a selvaoriginalmente simbolizava, a ferroviaconstituía-se como “um meio de ligar alguma área produtora de bens primários a um porto” ou a lugares que possibilitassem o escoamento da produção (Hobsbawm, 2007, p. 91).

Neste sentido, a conclusão daMadeira-Mamoré ligando Porto Velho a Guajará-Mirim– na divisa com a Bolívia – contribuiu, ainda, para facilitar otransporte da produção seringueira e ampliou os canais de comunicação interna quese restringiam,até então, basicamente à navegação. Possibilitou, ainda, a presença de contingentes populacionais mais expressivos nas duas localidades. Estes núcleos habitacionais, por sua vez, se ergueram de forma racional e ordenada, seguindo os moldes das modernas espacialidades urbanas, tornando-se, assim, mesmo que de forma um tanto quanto precária, afeitas aos padrões de civilização preconizados pelas elites republicanas.[4]

Paralelamente ao processo de construção da ferrovia, os trabalhos de instalação de linhas telegráficas, ligando Cuiabá, capital de Mato Grosso, a Manaus, no Amazonas, realizados pela Comissão de Linhas Telegráficas do Mato Grosso ao Amazonas, também conhecida como Comissão Rondon, durante os anos de 1907-1915,foram tomados como símbolo de outra ação deavanço do progresso pelo meio da selva.

Os trabalhos de expansão das linhas telegráficas levados a cabo pela Comissão Rondon, revelam a ação de expansão telegráfica como estratégia do Estado com o objetivo deintegrar as áreas mais remotas do interior do Brasil. Neste sentido, o trabalho de Rondon junto às populações indígenas, com vistas a tornar estes povos parte da população brasileira, e todo o levantamento geográfico realizado pela Comissão, juntamente com a ferrovia Madeira-Mamoré,constituem-se como iniciativas que simbolizam os esforços de integração .progressono sentido dedomar a selva e levar os pressupostos dacivilização aos recantos mais distantes do Brasil. Conforme analisa Laura Antunes Maciel,

Na verdade, o telégrafo era parte de um grande plano da República nascente, para delineamento, ocupação e ‘colonização militar’ das fronteiras brasileiras. Tratava-se, portanto, de uma estratégia definida no interior do Ministério da Guerra para a consolidação e defesa das fronteiras nacionais, a ser executada e conduzida por engenheiros militares conjugando telégrafo e ferrovia – instrumentos modernos de civilização -, que deveriam imprimir na natureza as marcas da tecnologia mais avançada (Maciel, 1998, p. 109).

Muito mais do que enfrentar o estigma da selva incógnita, tida como inferno verde, a construção de postos telegráficos“cumpriria o papel de orientar a penetração e a ocupação da hinterlândia brasileira” e de dar forma ao projeto de um país moderno e civilizado (Maciel, 1998, p. 109).

As ações governamentais naRegião Amazônica na virada do século XIX para o XX, incluindo-se a espacialidade que, mais tarde, veio a tornar-se Rondônia,denotam o esforço estratégico com vistas à integração, pautada nos pressupostos deprogresso e civilização que orientavam o pensamento e as práticas da elite brasileira no início do período republicano. Constituíram-se, assim, como formas de exaltação da modernidade, ou seja, eram ações centradas nas formas mais genuínas da expressão do progresso associado àquilo que de melhor o conhecimento tecnológico podia produzir à época: ferrovias e formas mais ágeis de comunicação.

Tais medidas, entretanto, não resultaram em um aumento significativo do número de habitantesnãoindígenas existentes na região[5], elemento apontado como fundamental por especialistas do Instituto Nacional de Estatísticas (INC) para denotar uma ocupação do espaço, quando instalados de maneira racional, ordenada e efetiva. Deste modo,à medida que o século XX avançava, o desafio do governo central em relação às áreas situadas do interior do Brasil ainda se fazia sentir. Para tanto, novas formulações e ações foram colocadas em prática, conforme análise que se verifica na sequência.

Uma nova etapa da conquista do Brasil interior ocorreu durante o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), momento no qual houve um esforço sistematizado de ocupação dos territórios situados a oeste do litoral brasileiroe na Amazônia. O maior símbolo da tentativa de integrar . desenvolver o sertão iniciou em 1938, já na fase do Estado Novo, com a chamada Marcha para o Oeste, que tinha entre seus objetivos dinamizar a ocupação do território por intermédio de ações voltadas à colonização e ao povoamento.Neste sentido,

A conquista do oeste significava para o regime a integração territorial como substrato simbólico da união de todos os brasileiros. A ocupação dos espaços ditos vazios significava não simplesmente a ocupação econômica da terra, transformada em geradora de riquezas; sua pretendida ocupação seria procedida de maneira especial, a ponto de fixar o homem na terra através de métodos cooperativos, que redimensionassem as relações sociais, de acordo com a orientação política vigente (Lenharo, 1986, p.18).

Na trilha dos objetivos da Marcha para o Oeste, uma das medidas adotadas pelo Governo Vargas foi a criação de sete territórios federais: Amapá, Acre, Fernando de Noronha, Iguaçu, Guaporé, Ponta Porã e Rio Branco. O Território Federal do Guaporé (futuro Estado de Rondônia) foi constituído a partir do desmembramento de áreas pertencentes aos Estados de Mato Grosso e Amazonas. A proposta de criação dos territórios federais, “[...] visava consolidar a presença do Estado federal em áreas fronteiriças tidas como instáveis ou com fraca densidade civilizatória” (Maia, 2012. p. 57).

Com a criação do Território do Guaporé, as ações implementadas pelos governos federal e local incluem, ainda, a abertura da estrada que ligava a região ao Estado de Mato Grosso,a qual, posteriormente, tornou-se a BR-364.Cumpriam-se, assim, mesmo que de forma muito incipiente, os objetivos da Marcha para o Oeste, voltados para “fixar o homem à terra”.Buscou-se, também, atrair a população movente e grupos indígenas para espaços que se constituíam sob os pressupostos do mundo ordeiro e racionalizado. Para tanto, “foram criadas escolas e postos de saúde pelo interior, em pequenas localidades à beira dos grandes rios como o Jamari e o Machado” (Souza, 2002, p. 122).Para este autor, a Marcha para o Oeste e a criação dos territórios federais convergem para uma nova percepção que se formava sobre as áreas interiores do Brasil desde a Proclamação da República, qual seja, a busca da superação da dicotomia do pensamento que aliava a imagem do litoral ao mundo civilizado e o sertão como “vazio a ser domado”, “inferno verde”, etc., passando este a ser (re)significado como “espaço vital para a renovação da identidade nacional” (Souza, 2002, p. 70/71).

Em outra frente de ações para ocupação e desenvolvimento da Região Amazônica, a política varguista, em cenário marcado pela necessidade de matéria-prima para a fabricação de equipamentos de guerra durante a Segunda Guerra Mundial, empenhou-se no recrutamento de pessoas para trabalhar na extração do látex. Tal como havia ocorrido na virada do século XIX para o XX, outra vez a atividade seringueira ocupou lugar de destaque na economia do território. Através do Serviço de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (SEMTA), do Departamento Nacional de Imigração (DNI)e da Comissão Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para Amazônia (CAETA),recrutou-se mão de obra para os seringais, num grande esforço de guerra. Esses homens eram chamados de soldados da borracha. Mas eles não vieram só: “a nova corrente migratória permitiu ao seringueiro trazer sua família, a qual acabou inserida no processo produtivo do seringal. Mulheres e filhos assumiam parte na colocação, contribuindo, sobremaneira, na produtividade da[s] casa[s] aviadora[s]” (Silva, 2010, p. 89).

Mesmo com a atração de migrantes, o esforço de guerra responsável também pela reativação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e, mais tarde, com a descoberta de jazidas minerais, como a cassiterita e o ouro, a percepção que se tinhanos anos finais da década de 1950, tanto por parte de governos como por uma fração expressiva da sociedade, era a de que a Amazônia permanecia “despovoada”. Desse modo, observa-se que, ao longo da primeira metade do século XIX,as ações voltadas à integração espacial, de racionalização de alguns espaços e de estímulo à migração, apresentaram caráter difuso, ou seja, não obedeceram a um único planejamento geopolítico, e resultaram numa espécie de epopeia inconclusa. Na percepção das elites brasileiras, portanto, seria necessário fazer muito mais para que o progresso,de fato, chegasse até aquelas paragens.

Rondônia na imprensa:os sentidos da propaganda deexpansão da fronteira agrícoladurante a ditadura civil-militar

Em 1970, o general-presidente Emílio Garrastazu Médici, em badalada visita a Manaus e Belém, anunciou as bases da estratégia de governo para a Amazônia. A cobertura da viagem rendeu matérias que foram veiculadas nos mais diversos meios de comunicação. O Globo, um dos maiores jornais do país, produziu ampla reportagemsobre a viagem. Na chamada, o título “Amazônia para todos os brasileiros” revela as intenções da ditadura-civil militar para a região, ou seja, concluira “epopeia” que, há pelo menos meio século, os governos republicanos vinham tentando promover: “integrar” e “desenvolver” a Amazônia. Nas palavras do próprio general-presidente: “a Amazônia ainda não [havia encontrado] sua vocação econômica. Por isso, [...] a política de meu Governo na Amazônia está voltada prioritariamente para a realização de um gigantesco esforço de integração” (O Globo, 1970, p.11). Ou seja, a intenção erater a região como centro de ações de caráter estratégico, de natureza marcadamente geopolítica e econômica.

À época, passadoscerca de seis anos da chegada dos militares ao poder,as ações implementadas para dar respostas à conjuntura de instabilidades que ensejaram o golpe estavam em pleno curso. Apremissa dos militares de que os conflitos precisavam ser apaziguados de modo que o status quo da sociedade e a ordem não fossem perturbadas foram objetos de estratégias várias que incluíam perseguição política, repressão, censura e, também, uma agenda de ordem econômica que desse visibilidade e projeção para a construção de um Brasil novo. Em outras palavras,as respostas dadas pelos militares às questões postas naquele período colocavam-se no centro do pensamento formulado pela Escola Superior de Guerra, no qual desenvolvimento .progresso constituíam-se como axioma a ser conquistado sob um ambiente de absolutaordem (Duarte, 2009).

Obedecendo a esta lógica, a chamada Amazônia Legal passou a terfunção estratégica central. Daí a importância do discurso que anunciava a necessidade de“fazer andar o relógio amazônico”[6].Para a cúpula do governo, a sentença se traduziu em ações destinadas à ocupação de espaços ditos vazios, por colonos dispostos a domar a selva. Desconsiderando a existência de populações indígenas, caboclos, ribeirinhos e todos aqueles que já estavam estabelecidos na região em decorrência de migrações anteriores, o objetivo do governo era tornar a terra “vazia”instrumento de geração de riquezas, por meio do desenvolvimento da agricultura e da pecuária. Era, portanto, a forma de pôr termo à “epopeia” que, até os anos 1950, havia ficado “inconclusa”.

Para tanto, um volume considerável de investimentos foi destinado a setores considerados estratégicos, tais comoinfraestrutura rodoviária,distribuição e vendas de terras devolutas. A intenção era integrartodas as áreas que formavam a Amazôniaao sistema produtivo brasileiro.Dentre os objetivos do governo descritos no Plano de Valorização da Amazônia, destacam-se:

[...] d) formação de grupos populacionais estáveis, tendentes a um processo de auto-sustentação; e) adoção de políticas imigratórias para a Região, com aproveitamento de excedentes populacionais internos e contingentes selecionados externos; [...]; h) incentivos e amparo à agricultura, à pecuária, como base de sustentação das populações regionais (Brasil, 1968, p. 58/59).

Além do Plano de Valorização da Amazônia, o I e o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) apresentaram diretrizes geopolíticas e econômicas para a Região Norte. Conforme escreve Bertha Becker, naquele período, a Amazônia tornou-se peça-chave do projeto de expansão da fronteira agrícola brasileira. Assim,

A ocupação da Amazônia se torna prioridade máxima após o golpe de 1964, quando, fundamentado na doutrina de segurança nacional, o objetivo básico do governo militar torna-se a implantação de um projeto de modernização nacional, acelerando uma radical reestruturação de investimento de mão-de-obra, sob forte controle social (Becker, 1997, p. 12).

O“controle socialda mão de obra” objetivava reduzir focos de tensão oriundos de contingente de trabalhadores desempregados e, sobretudo, dos movimentos de luta pela reforma agrária, que se tornaram uma “ameaça” no contexto anterior ao golpe de 1964.Uma das preocupações dos militares era impedir que as demandas dos trabalhadores rurais tornassem a ter uma face marcadamente política. Por esta razão, uma das primeiras medidas do governo foi propor um novo Estatuto da Terra – Lei 4.504, que foi aprovadoem novembro de 1964, meses após o golpe.Também por isso, o deslocamento de contingentes de trabalhadores rurais para a Amazônia. Ou seja, a Amazônia tornou-se a solução para as demandas por reforma agrária. Todavia, na compreensão do governo, era necessáriofazer uma reforma agrária controlada, que não escapasse aos pressupostos da ordem.Essa estratégia se traduziu na expressão “terra sem homens para homens sem-terra” e transformou a região Norteem palco e pauta do modelo de desenvolvimento proposto pelos militares (Grynspan, 2007).

O Programa de Integração Nacional, de 1970, foi responsável por implementar formas de distribuição de propriedades que contemplaram tanto o grande capital, como a massa de trabalhadores que migraram em busca de um pedaço de terra. Em Rondônia, entre as empresas beneficiadas estavam aGuaporé Agro-Indústria S/A–GAINSA, Herdeiros de Roman Chávez,Colonizadora Itaporanga, Condomínio Bonanza,Irmãos Freitas,Irio Spiardi,Agro-Pecuária Indústria e Colonizadora Rio Candeias Ltda,Laminasa–Laminados da Amazônia S/A, Grupo Terra Rica, Oscar Martinez,Madeirama, Grupo Zillo,Empresa Frey Rondônia Florestal S/A e, talvez, a mais conhecida delas, a Calama (Cunha; Moser, 2010, p.127-131).

Para atender aos colonos,diversos projetos de distribuição e venda de terras foram desenvolvidos a fim de promover a ocupação do espaço. Dentre os projetos implementadosem Rondônia, destacam-se os Planos Integrados de Colonização (PICs), a exemplo dos PICs Ouro Preto (1970), Sidney Girão (1971), Ji-Paraná (1972), Paulo Assis Ribeiro (1973), Padre Adolpho Rohl (1974); os Programas de Assentamento Dirigidos (PADs)que destinaram terras, especialmente,a médios e grandes empreendedores, e os Projetos de Assentamento (PAs), que distribuíam lotes de 50 hectares para pequenos agricultores, além dos programas Polamazônia e Polonoroeste,que datam dos anos 1970 e 1980.

Os programas implementados pela ditadura civil-militar atraíramgrande contingente de trabalhadores para Rondônia.Com a chegada dos migrantes, sobretudo, com o objetivo de adquirir terras junto aos projetos de colonização, tornou-se necessário que a natureza, sob forma de selva ainda preservada, fosse domada. Para racionalizar o espaço era preciso derrubar a mata, demarcar os lotes que seriam distribuídos e/ou vendidos, abrir as linhasque compunham o sistema viário de transporte e dar assistência técnica aos que chegavam.Deste modo, a floresta deu lugar à produção agrícola, com destaque para a produção de cacau, café, milho e arroz. Neste processo, as serrarias tiveram um papel central. Rolim de Moura, município que se originou a partir do desmembramento de Cacoal, chegou a ter cerca de 200delas em funcionamento (Silva, 2015, p. 86).

Este processo de doma da natureza bruta é narrado pela imprensa como a própria materialização da conquista do progresso. Nas linhas e entrelinhas das reportagens veiculadas pelos periódicos, é possível perceber a tessitura dos sentidos que envolvem a complexa engrenagem socioeconômica montada para dar visibilidade e significado ao que se propôs, como formas para o desenvolvimento de Rondônia e da Amazônia.

As ações com vistasà ocupação da Região Norteforam amplamente propagandeadas pelos mais diversos meios de comunicação.A propaganda, como dito anteriormente, entendida como o conjunto de matérias que cobriam as ações de governo, desempenhou papel fundamental paratraduzir para o leitor as intenções geopolíticas e econômicas do governo, expressar o que significavam as noções de integração, desenvolvimento e progresso, e para estimular a vinda de pessoas para o norte do Brasil. Essa propaganda, sob as diferentes formas de circularidade da notícia, fomentou a vinda de milhares de migrantes para Rondônia, como o Sr. José Alves da Silva, que, em seu relato, afirma:

Eu ouvi falar que Rondônia era bom de fartura. Eu tinha vontade de vir para cá. Ameacei vim uma vez, esmoreci. Ela [a esposa] não queria vim de jeito nenhum. [...] Ela veio na marra, mas quando chegou aqui, com um pouco de tempo, ela não quis nem saber de voltar, de jeito nenhum. Nós toda vida fomos da roça. Era plantar e querer colher. E aqui a gente plantava e via a produção (Silvaet al., 2017, p. 93).

O testemunho acima, recolhido em forma de livro que narra a trajetória dos que chegaram aRondônia nos anos 1970, torna possível compreender algumas das características presentes na propaganda utilizada tanto para difundir as ações do governo como para estimular trabalhadores a migrarem para estas áreas.

Diferentemente de como agia o órgão oficial de imprensa durante o governo Vargas (1930- 1945), a leitura otimista do Brasil produzida durante o regime civil-militar (1964-1985) não estava calcada na figura de lideranças políticas, ou seja, no culto de personagens como os generais-presidentes.Ao contrário do culto à personalidade ocorrido na Era Vargas, durante a ditadura, a propaganda buscava sustentação no “vasto material” da história nacional, como a ideia da Amazônia representada tal qual um “gigante adormecido” que precisava ser despertado, entre outros elementos que faziam das terras localizadas na regiãoobjeto de cobiça (Fico, 1997).

Sob o clima de euforia estimulado pela conquista da Copa do Mundo de 1970, com seu hino que impelia os 90 milhões de brasileiros, de mãos dadas, a levarem o país “pra frente”, e na esteira do “milagre econômico”, o noticiário jornalístico dava contada construção de uma nação forte e pujante, na qual a ocupação da Amazônia, em particular de Rondônia, era um dos carros-chefes.Naquele contexto, veículos de imprensa, como o jornal O Globo e a revista Veja,tiveram papel fundamental em fazer chegar ao público leitor as ações realizadas pelosgovernos civis-militares. Ao mesmo tempo que amplificavam a atmosfera de otimismo, as matérias publicadas nos periódicoscontribuíram para dar visibilidadeao ideário de progressopresente nas representações discursivasque narraram a construção do “Brasil Potência”.

O jornal O Globo,um dos principais veículos de comunicação da imprensa escrita nos anos 1970,deu ampla cobertura a todo o conjunto de medidas econômicas implementadas pela ditadura civil-militar.Sobre a expansão da frente agrícola para o Norte do Brasil, matérias publicadas pelo periódico reportam tanto a formulação das políticas como a concretização das ações. Na reportagem “Rondônia: o grande pólo no Oeste da Amazônia”, por exemplo, afirma-se que o então território federal “é como o próprio Brasil: ninguém segura”. Ao narrar o caráter promissor da região, o texto afirma que

[Rondônia] é a província estanífera mais importante do País, sendo o nosso maior produtor de estanho, metal de importância fundamental para o mundo moderno; tem reservas de ouro em pesquisa que muitoprometem; terras para agricultura e pecuária como poucas áreas brasileiras possuem e um serviço de extensão rural de primeira ordem (O Globo, 1973a, p.41).

A matéria reproduz a atmosfera de otimismo dos anos do “milagre econômico”, aposta no potencial mineral e agropecuário de Rondônia, produzindo uma narrativaque reatualiza o imaginário da terra de farturas, em que se plantando, tudo dá.Num momento no qual o jornalismo econômico ampliava sua presença nos periódicos impressos, esta mesma página de O Globo trazia, ainda, a reportagem comercial intitulada“Teleron: o progresso implantado pela técnica da comunicação”, que apresenta a ampliação não apenas das comunicações, mas, também, de água e esgoto, nos seguintes termos:

Servido por aviões a jato e pela Embratel, e possuindo boa energia, asfalto, hotel de primeira classe e uma disposição extraordinária para crescer, o Território Federal de Rondônia, com a presença da Companhia de Pesquisa e Recursos Minerais e do Departamento Nacional da Produção Mineral, um pesquisador e outro normativo, mostra a quem chega sua importância no cenário nacional, muito embora não tenha uma promoção à altura de suas expectativas.

Participando de uma malha rodoviária da maior importância, Rondônia tem hoje sua vida intimamente ligada a São Paulo e muito em breve será uma saída para o Pacífico, através da Bolívia.

O Governo atual, liderado pelo Cel. Theodorico Gahyva, já começa a sentir os efeitos de uma política de desenvolvimento planejado; principalmente no que toca a energia (Ceron), águas e esgoto (Caerd) e comunicações (Teleron), esta subsidiária da Telebrás. [...]

Rompendo o silêncio eterno e exasperado em que vivia o território, a Teleron, Telecomunicações de Rondônia S/A, do Grupo Telebrás, realiza trabalho espetacular na área (O Globo, 1973b, p. 41).

Ao tecer loas ao progresso, esta matériae muitas outras de natureza semelhante publicadas por O Globotornam possível verificar como elementos comuns à racionalização dos espaços urbanos buscavam (re)produzir os efeitos de sentidos que davam sustentação às narrativas daocupação do espaço.Na mesma proporção da repercussão das medidas implementadas pelo staff da ditadura civil-militarem peças publicitárias e matérias jornalísticas,crescia o número de pessoas que chegavam a Rondônia. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)demonstram o aumento demográfico no estado. No final da década de 1970, a população chegava a 116.620 habitantes.No fim da década seguinte, o contingente habitacional aumentou expressivamente, totalizando 503.125 habitantes (IBGE, 2010).

Assim como O Globo, a revista Veja deu destaque às ações da ditadura civil-militar na Amazônia. Inspirada na revista Timesdos Estados Unidos, o primeiro número de Veja circulou em 1968, pouco antes do Ato Institucional nº 5. Mesmo contando com know-how jornalístico, testado de forma exitosa em publicações como a revistaRealidade,a Veja enfrentou dificuldades até se firmar no mercado. A saída encontrada pelo Grupo Abril para reestruturar a revista foi investir na publicação de encartes e fascículos, em entrevistas semanais que, com o tempo, consagraram as Páginas Amarelas de Veja, num caderno de investimentos, além de ampliar o espaço de anunciantes e as estratégias de distribuição. No que diz respeito à ampliação de matérias de economia, esta foi uma decisão “tão bem-sucedida” que, inclusive, oportunizou a criação de outro periódico, a revista Exame (Villalta, 2002). Desse modo, as matérias sobre economia tornam-se um dos carros-chefe da revista.

Ao reportar a ocupação da Amazônia, os sentidos presentes na estratégia econômica pensada para a região pela ditadura civil-militar também estiveram presentes nas páginas de Veja. Em matéria publicada em março de 1970, com o título “Rondônia: terra em explosão”, procura-se reforçar no leitor, ou naquele que de outras formas se apropria da notícia, uma atmosfera de otimismo em relação à expansão da fronteira agrícola. No texto, chama a atenção o modo como a distribuição e/ou venda de terras funcionou como chamariz para atrair o/a migrante:

A notícia de que em Rondônia havia terras baratas à venda resistiu às mortes e ao desumano dos que voltaram: nos Estados mais populosos do sul ela continuou a povoar os sonhos de muitos lavradores sem terra. Em quantidades pequenas – cerca de um caminhão por semana – mas num fluxo constante, os paus-de-arara foram chegando, trazendo os que haviam decidido “tentar a sorte em Rondônia” (Veja, 1970, p. 73).

Além de apresentar Rondônia como uma terra de oportunidades, lugar onde seria possível alcançar o sonho da “terra prometida”, a matéria também explora um dos pilares do projeto de desenvolvimento implementado pela ditadura: as rodovias.Modal de transporte que se consolidou entre as décadas 1930 e 1960, o investimento em infraestrutura rodoviária, como dito anteriormente, foi significativamente ampliado durante os governos militares, constituindo-se como parte da estratégia de integração nacional formulada à época (Campos, 2017).

Com estímulo promovido pelas políticas de Estado, a partir dos anos 1970, a BR-364 tornou-se a espinha dorsal ou eixo principalde acessoa Rondônia.Matéria publicada por O Globo apresentaao leitor a rodovia e as cidades que estavam sendo criadas às suas margens como expressões dovir a ser do desenvolvimento rondoniense. A citação é longa, mas plena dos efeitos de sentidospresentes no ideário deprogressoque significa aexpansão da fronteira agrícolano período. Segundo a matéria intitulada “BR-364: 1.463 quilômetros asfaltados até 1984”, a rodovia,

Vinda de Cuiabá[...] penetra em Rondônia a 13 km de Vilhena e percorre uma distância de 1.069 km no interior do território até a divisa com o Acre. Vilhena tem sua economia voltada para a industrialização da madeira. O ponto seguinte é Pimenta Bueno, onde diariamente chegam dezenas de famílias de migrantes procedentes de Minas Gerais, Espírito Santo, do Nordeste e de alguns estados do Sul, para se estabelecer em Ji-Paraná, o primeiro produtor rondoniense de arroz, feijão, banana e madeira, e o segundo de mandioca. A 400 km de Porto Velho fica a vila de Presidente Médici, surgida há oito anos e em franco desenvolvimento. A seguir, várias estradas vicinais, construídas pelo governo do Território, indicando o prolongamento do projeto de construção do Incra. Depois de uma área de plantio de cacau (Ceplac) atinge-se a localidade de Ouro Preto.

Depois de atravessar as localidades de Jaru, Seringal Setenta e Nove, surge Nova Ariquemes, ao lado da estrada, com vários hotéis e postos de gasolina. A velha Ariquemes, da época de Rondon, ficou fora do traçado da estrada. Nas proximidades, o entroncamento com a BR-421, a estrada da cassiterita, que permite o acesso a inúmeras minas onde se extrai o minério de estanho.

Percorrendo-se mais 195 km, chega-se a Porto Velho, cuja população era de 50 mil habitantes em 1960 e atingiu 135 mil em 1980. É o primeiro produtor de mandioca de Rondônia, segundo de borracha nativa e terceiro de madeira. Sua população estimada, hoje, é de 200 mil habitantes.

[...] A BR-364 e as outras rodovias da área levarão aos centros de consumo e para os portos de exportação a crescente produção de grãos já prevista (O Globo, 1981, p. 9).

O asfaltamento da BR-364 propiciou o surgimento e/ou ampliação de diversos núcleos urbanos. Alguns deles, como Vilhena, Pimenta Bueno e Ji-Paraná (antiga Vila de Rondônia), eram pequenos lugarejos que surgiram em razão da instalação das linhas telegráficas pela Comissão Rondon, no começo do século passado, e que, na década de 1970, tornaram-se importantes núcleos urbanos. Outros, como Cacoal, Jaru, Ouro Preto do Oeste e Ariquemes, surgiram em face da dinâmica populacional decorrente dos projetos de colonização. São cidades que, de maneira geral, se caracterizavam e/ou se caracterizam por aquilo que Bertha Becker denominou de urbanismo rural. Ou seja, são núcleos urbanos que tinham comopremissa básica o suporte ao universo rural que os circundava, entre os quais se destacam: oferecer assistência técnica, insumos, financiamento, saúde e todo tipo de serviço necessário à manutenção do campo. Segundo a autora, o objetivo desses municípios era

[...] circular mercadorias, capital, informações, etc., mas sua significância na região decorre de sua condição da organização do mercado de trabalho, como pontos de concentração e distribuição da força de trabalho. São residência e mercado de trabalho alternativo para os trabalhadores agrícolas assalariados; são também residência para pequenos produtores, em sua maioria semiproletários, atraídos pela presença da escola, por oportunidades de emprego e expectativa de acumulação; é ainda neles que residem temporariamente os migrantes que chegam, antes de se redistribuírem em ocupações diversas (Becker, 1997, p. 54).

Alguns municípios que surgiram no processo de “vertebração” do eixo constituído pela BR-364 foram constituídos como Núcleo Urbano de Apoio Rural (NUAR) (Silva, 2010). É o caso, por exemplo, de Vale do Paraíso, Urupá, Mirante da Serra e Theobroma.Ainda no que diz respeito às cidades que surgiram naquele período, é importante notar que suas constituiçõessão profundamente afetadas pelos sentidos do ideário de progresso presente no processo de ocupação de Rondônia promovido pelos militares. Muitas delas trazem grafadas no próprio nome a ideia do “novo” e de “integração”,como, por exemplo, Nova Brasilândia d’Oeste, Alta Floresta d’Oeste, Alvorada d’Oeste, Campo Novo de Rondônia, Colorado do Oeste, Espigão d’Oeste, Machadinho d’Oeste, Nova Mamoré, Nova União, Novo Horizonte do Oeste, Ouro Preto do Oeste, Santa Luzia d’Oeste, São Felipe d’Oeste. Esta toponímia, diametralmente distinta daquela que deu forma ao primeiro eixo de núcleos urbanos, formados em torno das cidades de Porto Velho e Guajará-Mirim, traz em seu bojo, ao meu ver, um exemplo de apropriação do discurso produzido pelos governos militares.

Nesta mesma linha de apropriação de sentidos está a constituição do Estado. Com a transformação do território federal em unidade federativa, no ano de 1982, a permanência do nome Rondônia, homenagem ao militar tornado herói, Cândido Mariano Rondon, remete a significados colocados tanto em passado mais distante como no contexto do surgimento da “nova estrela do Oeste”.

Conforme dito na primeira parte deste texto, Rondon foi responsável pela instalação das linhas telegráficas no início do século XX. Com o passar do tempo, sua permanente atuação contribuiu para ele que fosse alçado à categoria de lenda, descrita como “[...] conquistador pacífico e defensor dos índios”, louvado como destemido pioneiro (O Globo,1975b, p.5). Depois dele, a mística estendeu-se aos demais migrantes, que passaram a ser exaltados e a ser reconhecidos também como “destemidos pioneiros”. Assim, a criação e a permanência da denominação Rondônia serviram para amalgamar passado e presente, como elemento que rememora e presentifica a simbologia dos militares, ligando-os às noções de integração e desenvolvimento, promovidas pelos governos, em especial os do período republicano, nesta região do Brasil. Essa presentificação se amplia e, ao mesmo tempo, se aprofunda à medida que outros militares passaram a estar presentes na toponímia de munícipios como Presidente Médici, Ministro Andreazza, Governador Jorge Teixeira e Teixeirópolis. Estas duas últimas cidades marcam a louvação ao coronel Jorge Teixeira, primeiro governador de Rondônia. Conhecido como Teixeirão, o nome do militar também está presente em ruas de diversos outros municípios e no principal aeroporto do Estado, localizado na capital, Porto Velho. Rondônia (re)atualiza a presença militar em sua formação e trajetória histórica.

Outra face das narrativas presentes nas matérias jornalísticas sobre Rondônia dá formaao discurso da “terra das oportunidades”. Em matériaintitulada “Cacoal. Terra de Plantar, terra de colher”, aparece estampadauma imagemmostrandotrês mulheres adultas, quatro crianças– todas do sexo feminino– e uma criança de colo, como uma espécie de metáfora visualda prosperidade. A mesma matéria traz a propaganda de um dos agentes financeiros que haviam se instalado em Rondônia, o Banco Bradesco, denominado pioneiro.Registra os equipamentos urbanos da cidade, com os seguintes destaques:trêscinemas, dezserrarias, trêshotéis, quatroescolas de 1º e 2º graus, cincohospitais, umamaternidade (funcionando desde dezembro de 1976) e 16igrejas, tais como Avivamento Bíblico, A Volta de Cristo, Brasil para Cristo e Igreja Betel(Veja, 1978, p. 96/97).Para o/a migrante, a chegadaa Rondônia concretizava a expectativa de progredir, a partir da aquisição de um lote de terra, de uma colocação no serviço público ou no comércio, tornando o progresso individual parte do progresso global. Era, ao cabo da longa travessia representada pelo percurso da BR-364, uma espécie de chegada àCanaãbíblica, situada em pleno Norte do Brasil.

Em meados da década de 1970, momento em que a ditadura civil-militar enfrentou os efeitos da crise internacional do petróleo e de resistências que ganhavam corpo no interior da sociedade brasileira, a imprensa passou areportar conflitos que tornavam evidentes algumas das fissuras presentes nos projetos de colonização na Amazônia; uma delas diz respeito ao enfrentamento entre colonos e as populações indígenas que habitavam a região.

Em Rondônia, dentre os conflitosrelacionados ao contato entre colonose cerca de 80grupos indígenas que estavam na área, destaca-se o caso queenvolve os índios Paiter Suruí, na região de Cacoal.Segundo Chicoepab Suruí Dias (2015), os Paiter Suruí constituem-se, originalmente, como um povo seminômade que vivia em uma vasta área que corresponde, atualmente, à região Norte de Mato Grosso até o Centro-Sul de Rondônia. Desde há muito, este povo vinha sendo acossado por não-indígenas, mas, na década de 1960, a presença de migrantes/colonos se tornou mais intensa. No contexto da ocupação de áreas correspondentes ao atual município de Cacoal, pertencente ao PIC Ji-Paraná,

[...] colonos, vindos de outros estados, avançam sobre o nosso território Paiter Suruí. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) abriu linhas de acesso para o interior do “estado” de Rondônia: Linha 15, Linha 14, Linha 13, Linha 12, Linha 11, Linha 10, Linha 9, Linha 8, Linha 7. Essas foram as linhas que, criadas no município de Cacoal, facilitaram o ingresso dos colonos ao território do povo Paiter Suruí (Dias, 2015, p. 40).

Os enfrentamentos,em pouco tempo, extrapolaram as fronteiras de Rondônia, sendo reportados com destaque na mídia nacional. Para solucionar a questão, o povo Suruí, formado por vários clãs, foi dividido e cada clã foi acomodado no final de uma linha – espécie de estradas – que dava acesso à Terra Indígena 7 de setembro, criada em 1976. Nessa época, grande parte dos Suruí havia morrido: muitos acometidos por sarampo, gripes e tuberculose; outros,em decorrência de enfrentamentos, morreram para “dar exemplo a esses bugres”, conforme aparece em reportagem de O Globo,que ainda dizia o seguinte:

O líder Oréia Suruí, depois de esquartejado e queimado por seus algozes, ficou tão decomposto que os índios se negaram a recebê-lo e enterrá-lo segundo costumes da tribo: dentro de uma maloca especialmente construída para esse fim, com todos os pertences do morto e diante de todos os membros da aldeia, reunidos em círculos, cantando e dançando rituais fúnebres (O Globo, 1976, p. 18).

A narrativa do jornal revela como a sociedade brasileira se colocavadiantedas muitas contradições que o avanço intenso e sistemático sobre a floresta e as terras indígenas gerou. De todo modo, e apesar dos conflitos, a tendência predominante do periódico foi destacar a necessidade de integração do índio aos valores da nacionalidade brasileira. Como exemplo desta tendência,na reportagem “Brasil empenhado na batalha da integração”, que veio a lume no momento do clímaxque opunha as disputas pelas terras dos Suruí em Rondônia, o articulista escreve que

Mais longe vão os agentes do Governo na sua missão, pois, pondo em prática o lema de Rondon – morrer se preciso for,matar nunca – algumas dezenas de pioneiros desses contatos civilizadores têm sido vítimas fatais de massacres ou contraindo enfermidades de que, afinal, sucumbem, formando uma larga galeria de heróis que a História haverá de reconhecer como padrões de dedicação à pátria e ao idealismo tornado prática (O Globo, 1975a, p. 86).

A matéria, publicada um ano antes do governo admitir que o conflito entre índios e posseiros estava fora de controle, revelaa tentativa de criar no leitor a perspectiva de que o objetivo maior era de estabelecercom os índios relações forjadas nos padrões de civilização,mas, aomesmo tempo, denota a intenção de integrá-los aos pressupostosde uma vida pautada pela busca do progresso e desenvolvimento que movia– “pra frente”– a sociedade brasileira, à época.

De maneira geral, parece evidente que grandes veículos de comunicação, como o jornal OGlobo,da família Marinho, e a revistaVeja, dos Civita, grupos que se alinhavam às diretrizes política e econômica da ditadura civil-militar, ao reportarem o avanço da fronteira agrícola e demais ações do governo, em especial, no que se refere às medidas de estímulo à colonização, acabam por propagandear a ocupação da Amazônia e, em particular, de Rondônia. A circularidade da notícia contribuiu para produzir no sujeito comum, que das mais diversas formas recebia a mensagem sobre as possibilidades de adquirir um pedaço de terra e conquistar um “lugar ao sol”, aquilo que Eni Orlandi (2001), a partir da obra de Michel Pêcheux, chama de efeitos de sentido acerca da atmosfera de desenvolvimento e progresso formulada para a expansão da fronteira agrícola na Amazônia.

Em matérias que reportam o processo de ocupação da região fica evidenciadoo discurso que consagrou o constructo material e simbólico da imposição do homem sobre a natureza, abrindo espaço para a mineração, ampliando o sistema de comunicações, a integração rodoviária, o surgimento e/ou ampliação de núcleos urbanos destinados, sobretudo, ao apoio rural à agricultura e à pecuária, as tentativas – mesmo que conflituosas – de integração dose com os indígenas. Assim, ao narrar o processo de conquista da selva bruta e os atosdecorrentes de domá-la,as matérias jornalísticas transformam Rondônia em verdadeira “terra da promissão”: espaço em que o migrante, transmutado no pós-migração em colono e pioneiro, constituía-se em alguém que, tal como os gestores do Estado brasileiro, tinha como horizonte o progresso.

Com efeito, convém observar que o progresso que se pretendia instalar não era necessariamente o conceito vinculado essencialmente à formulação de conhecimento científicoe do desenvolvimento técnico, nos termos analisados por John Bury (1920) e por Gilberto Dupas (2012), masrelacionado à forma mesma como o Brasil se prestou a instrumentalizar o ideário de progressoe se estabelecer na estrutura do sistema capitalista do pós-Segunda Guerra Mundial.Em conformidade com o discurso de integração . desenvolvimento,concebido sob os pressupostos da Doutrina de Segurança Nacional e propagandeado pela ditadura civil-militar das mais diversas formas, projetou-se, como base do progressopara o Norte do Brasil, em particular no que concerne à agricultura e à pecuária, uma fórmula que pode ser resumida na máxima já presente na famosa Carta de Pero Vaz de Caminha: “esta é uma terra em que se plantando, tudo dá”.Em outras palavras, tratava-se de uma apropriação do progresso científico, em grande medida desenvolvido por empresas multinacionais instaladas – ou não – no Brasil, que desenvolviam tecnologias diversas que propiciavam as condições necessárias à expansão da fronteira agrícola e, portanto, à transformação da selva bruta em locus de desenvolvimento.

Em relação ao papel da imprensa, em particular da imprensa escrita daquele período, mesmo considerando o fato já bastante analisado pela historiografia do papel da censura imposta pelo Ato Institucional nº 05, é importante ressaltar que,durante os chamados “anos de chumbo”,o jornalismo econômico não fora objeto de importantes sanções. Se os Cadernos de Política eram objeto de atenção dos censores, osde Economia, pelo contrário,noticiavam fartamente as transformações implementadas pelo governo. Isso significa dizer que, naquele período “[...] o jornal se colocava como um espaço de informação aplicada ao próprio desenvolvimento da economia”. Em muitos casos, era, inclusive, porta-voz do governo (Silva, 2016, p. 274).

Dessa forma, entendemos que a imprensa escrita, ao publicizar as ações econômicas empreendidas pela ditadura civil-militar, muitas delas envolvendo projetos e ações relacionadas à expansão da fronteira agrícola para o Norte do Brasil, mobilizava nas narrativas elementos presentes naquilo que Carlos Fico (1997), mencionado anteriormente, chama de “vasto material” da história nacional que reforça a atmosfera de otimismo cuidadosamente cultivada naquele período. Assim, era construído o discurso que dava por concluída a missão de “integrar” e “desenvolver” a Amazônia.

O material aqui analisado torna possível entrever o êxito da construção discursiva que traduz os objetivos formulados para a Amazônia desde, pelo menos, o início do século XX e que ganharam força durante a ditadura civil-militar:integração, desenvolvimento . progresso. Como parte deste projeto,as matérias sobre Rondôniacontribuíram para embalar os sonhos daqueles que colocaram o pé na estrada para chegar àquelas paragense que, ao envidar esforços para domar a selva, colocando abaixo a mata virgem, foram reportados e representados como parte da epopeia da construção do progresso.

Considerações finais

Na passagem do século XIX para o XX, notadamente, a partir do regime republicanoinstaurado em 1889, ganha impulso a ideia de que seriam necessárias ações para “ocupar” a vasta região genericamente denominada Amazônia. Desde então, ações desta natureza foram formuladas pelos governos republicanos. Algumas delas, como a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, constituíram-se tanto como ponto final de questões que envolviam, há tempos, problemas de fronteira e são fruto do Tratado que pôs termo às querelas envolvendo Brasil e Bolívia, como ponto de partida para a presença efetiva do Estado brasileiro na rica região de seringais situada na parte ocidental da Amazônia.

Ao longo do tempo, a intenção de desenvolver e integrar a Amazônia ao chamado “corpo da nação” por intermédio dos trabalhos da Comissão de Linhas Telegráficas do Mato Grosso ao Amazonas, ou Comissão Rondon, e de avançar em direção ao Oeste como formulado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas compõe um conjunto de estratégias que, de maneira difusa, não trouxeram os resultados esperados pelos governos brasileiros, ao menos até a primeira metade do século passado.

A partir da instalação da ditadura civil-militar, as ações que tinham como objeto central a Amazônia, em particular Rondônia, passaram a ser propagandeadas como páginas da “epopeia da ocupação” no Norte do Brasil. As notícias veiculadas cotidianamente pelos mais diversos meios de comunicação, tanto oficiais quanto privados–jornais, rádios e a televisão–, davam contadas políticas e ações que transformavam a economia e a paisagem da região, propagandeando a expansão da fronteira agrícola como parte do esforço para a construção da “grandeza viável e tangível do Brasil”.

Nas reportagens veiculadas em O Globo e Veja é possível perceber a tônica de otimismo, bem como os efeitosdesentidodestes projetos e ações, com destaque para a construção de estradas, reportadas como caminho para oprogresso, ea ideia do“novo” vinculadaà expansão da fronteira oeste, pautada na (re)fundação ou evocação a eventos e personagens que teriam sido vitoriosos em projetos e intentos pregressos, como o legado doMarechal Rondon, vinculado ao esforço passado e presente de integraçãonacional.

Neste sentido, o “novo” e a exaltação dos militares constituíram-se como elemento simbólico que passou a cartografar e significar uma curiosa toponímia presente em cidades, monumentos e equipamentos públicos que eram gestados e ganhavam sentidos e formas de representação bastante expressivas a fim de fundar e comunicar o sentido de progresso presente na ocupação de Rondônia.

Para além de noticiar o processo de ocupação,as reportagensveiculadas pelos periódicos aqui analisados contribuíramna divulgaçãodas ações e intenções do projeto de desenvolvimento dos governos civis-militares. Mais do que informar, estes veículos de comunicaçãoforam fundamentais para dar visibilidade ao ideário de progressopresente nas ações e representações que tinham por objetivo a construção do “Brasil Potência”.

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Notas

1 Em 1966, durante o governo de Castelo Branco, depois de criada a Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), vinculada ao Ministério da Integração Nacional e como uma das ações desta Superintendência, ocorreu a instituição da chamada Amazônia Legal, que abrangia aproximadamente 5.217.423 km², o equivalente a 61% do território brasileiro. Contemporaneamente, a Amazônia Legal corresponde aos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins e engloba, ainda, parte do Mato Grosso e do Maranhão.
2 Até a construção da BR-364, o acesso a Porto Velho, principal cidade do então Território Federal de Rondônia, era realizado por via fluvial, aérea ou pela ferrovia Madeira-Mamoré, que ligava Guajará-Mirim àquela que seria, depois, a capital do estado.
3 A partir dos dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), sobre o crescimento demográfico em Rondônia, tem-se ideia aproximada da proporção do deslocamento populacional a essa espacialidade: em 1950, o território contabilizava 36.935 pessoas; em 1960, 70.783; uma década depois, 111.064; em 1980, 491.069 e em 1991, chegava a 1.130.874 habitantes.
4 A exemplo do Estado brasileiro, alguns trabalhos desconsideram a presença de populações tradicionais e, notadamente, de etnias indígenas como agentes povoadores. Essa é uma percepção importante, porque será em contraposição à presença destes sujeitos que se delimitará, posteriormente, uma cultura política que se afirma por meio da presença do agente colonizador identificado pelo migrante sulista, como representante idealizado do pioneirismo ocupacional.
5 Segundo dados da década de 1940, a região que passou a compreender o Território Federal do Guaporé contava com uma população nãoindígena estimada em 21.297 habitantes. Todavia, a publicação ressalta as dificuldades em se obter dados confiáveis sobre o contingente populacional da região, em face das dificuldades em se fazer a coleta de dados. Cf. Guerra, 1953, p. 217.
6 As frases são atribuídas ao presidente Emílio Garrastazu Médici quando de sua viagem para a inauguração dos trabalhos de construção da Rodovia Transamazônica. Cf. Arquivo Nacional. A Transamazônica. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZdJjxzFLLHM. Acesso em: 25 de jul. de 2017.
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