Notas de pesquisa
O perigo dorme ao lado: estudos de caso de crimes passionais de internas do Manicômio Judiciário de Barbacena.
The pathologization of the feminine: gender, crime and madness – case studies of women admitted to the Barbacena Judicial Institution
O perigo dorme ao lado: estudos de caso de crimes passionais de internas do Manicômio Judiciário de Barbacena.
História Unisinos, vol. 23, núm. 2, pp. 310-316, 2019
Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Recepção: 09 Junho 2018
Aprovação: 14 Novembro 2018
Resumo: O Manicômio Judiciário de Barbacena começou a receber pacientes a partir de junho de 1929. Terceiro manicômio judiciário brasileiro e primeiro no estado de Minas Gerais, esta instituição fez parte de uma reforma realizada para melhorar o atendimento aos alienados mineiros, que sofriam com os maus tratos desde o começo do século. Dito isto, este artigo, fruto de uma pesquisa de doutorado ainda em andamento, almeja analisar os laudos periciais de internos do MJB que cometeram crimes passionais. Pretende-se compreender como se deu a constituição do saber médico criminológico em Minas, neste período em que várias modificações ocorreram no âmbito psiquiátrico e também da criminologia, concomitantemente ao debate de gênero. Dos 163 laudos periciais levantados até o momento, na sua grande maioria delitos masculinos, cometidos por lavradores (maior incidência de homicídios), temos 14 casos femininos, dos quais nós separamos três casos que se destacaram até momento, pelas suas similaridades e também pelos debates que suscitaram entre os peritos do MJB, principalmente no que tange ao debate em reação aos crimes que estas mulheres cometeram. Para isso dividimos nosso artigo em quatro partes: (i) a medicicalização do crime em fins do século XIX e começo do XX, (ii) apresentação metodológica da pesquisa, (iii) análise dos casos, (iv) a patologização do feminino e as relações entre loucura, gênero e crime.
Palavras-chave: Minas Gerais, Criminologia, Psiquiatria, Manicômio Judiciário, gênero.
Abstract: The Barbacena Judicial Institution (MJB) began to admit patients as of June 1929. As the third Brazilian judicial institution, and the first one in the state of Minas Gerais, it was part of a reform carried out to improve care for the mentally ill people of Minas Gerais who had been suffering ill-treatment since the beginning of the century. This article, which is the result of a doctoral research still in progress, aims to analyze the expert reports of inmates of the MJB who committed crimes of passion. It intends to understand how criminological medical knowledge was created in Minas Gerais, during a period in which several changes occurred in the psychiatric and criminological fields, connected to the gender debate. Out of the 163 expert reports examined to date, the majority of which consists of offenses committed by male farmers (a higher incidence of homicides), we have 14 cases of females, from which we separated three cases that stood out until now due to their similarities and also to the debates that they have aroused among MJB experts, especially regarding the reaction to the crimes that these women committed. For this, we divided our article into four parts: (i) the medicalization of crime in the late nineteenth and early twentieth centuries, (ii) methodological presentation of the research, (iii) case analysis, (iv) relationships between madness, gender and crime.
Keywords: Minas Gerais, criminology, psychiatry, judicial institution, gender.
Introdução
A relação entre crime e loucura tornou-se um campo de estudo com a área do direito e da psiquiatria bem imbricados, a partir da teoria alienista apregoada por Philippe Pinel (1745-1826) em fins do século XVIII e começo do XIX. Também tivemos Esquirol (1772-1840), seu sucessor, que trabalhou com o conceito de monomania homicida[1]Birman,1978; Costa, 2014); Facchinetti, 2008.
Principalmente a partir da segunda metade do século XIX, iniciaram-se na Europa os debates para a construção de um lugar adequado para os loucos que cometiam crimes, principalmente após os trabalhos realizados por Cesare Lombroso, Enrico Ferri, Rafaele Garofalo e os membros da escola sociológica francesa como Gabriel Tarde; com isso houve contendas que ajudaram na consolidação do saber criminológico tanto na Europa quanto no Brasil. Assim tivemos a partir deste período a “medicalização do crime” Alvarez, 2002; Augusto, 2010; Becker e Wetzell, 2009; Darmon, 1989; Dias, 2015; Ferla, 2009; Rauter, 2003.
O primeiro manicômio judiciário do mundo foi o de Broadmoor, na Inglaterra, que começou a receber pacientes a partir de 1863.
Esse momento histórico não somente assistiu ao aparecimento de um debate que, como veremos, interessava sobretudo à psiquiatria, ao direito, à antropologia criminal, à criminologia e à sociologia, mas também ao aparecimento mesmo das instituições destinadas aos loucos-criminosos. Efetivamente, parece ter sido a Inglaterra o primeiro país a erigir um estabelecimento especial para os delinqüentes alienados, a prisão especial de Broadmoor, em 1870 (Carrara, 1998, p.49).
Diferentemente das outras instituições, os manicômios judiciários poderiam ser considerados instituições híbridas, pelo fato de que não eram prisões comuns nem um ambiente para as pessoas consideradas alienadas. Era um local em que estava em pauta o debate não somente sobre o saber psiquiátrico, mas este estava amalgamado com os saberes jurídicos, principalmente o direito penal e a criminologia, porque eram internadas pessoas que, durante o delito, suspeitava-se que estivessem sob o estado de alienação mental, que enlouqueciam na cadeia. Para se saber qual era o estado mental do interno eram realizados exames. Caso fosse constatada a doença, ele permanecia internado; se não, era geralmente reenviado para cumprir a pena pelo seu delito.
Neste artigo, fruto de uma pesquisa de doutorado ainda em andamento, pretendemos analisar de que modo os saberes médico, psiquiátrico e jurídico se constituíram no estado de Minas, após o surgimento do primeiro manicômio judiciário do estado. Como a quantidade de documentos levantada até o momento é bastante extensa, iremos, como será explicado mais adiante, focar nossa análise nos crimes passionais.
Em Minas, o Manicômio Judiciário de Barbacena foi uma instituição criada a partir do decreto nº 7471 de 31 de janeiro de 1927, promulgado pelo presidente de Minas Gerais da época, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada (1870-1946).
Este decreto foi elaborado com intuito de realizar mais uma reforma dos institutos psiquiátricos mineiros e também para oferecer um melhor tratamento e assistência aos alienados do estado (Magro Filho, 1992).
Além da criação do Manicômio Judiciário de Barbacena, o decreto também visava ao surgimento de uma instituição para alienados na cidade de Oliveira, uma reforma no Instituto Médico Raul Soares na cidade de Belo Horizonte (antigo Instituto Neuro Psychiatrico), e também no Hospital Colônia de Barbacena, visto que o Hospital Colônia sofria com a questão de lotação desde a sua criação ocorrida em 1903. O surgimento do hospital de Oliveira visava desafogar a superlotação em Barbacena.
Assim sendo, de acordo com o decreto já citado, estabeleceu-se de que forma deveria ser organizado institucionalmente o Manicômio Judiciário de Barbacena e também quais indivíduos deveriam ser recolhidos nesta instituição, o corpo de funcionários, a constituição das alas femininas e masculinas, etc.
Desta forma, temos os termos bem definidos na seção III, artigo 8° do referido decreto:
Artigo 8° destina-se o Manicômio Judiciário
a) A internação e tratamento dos alienados criminosos e criminosos alienados existentes no estado;
A observação dos acusados que nele forem legalmente recolhidos para exame de sanidade mental, e dos delinquentes isentos de responsabilidade por motivo de afecção mental (Minas Gerais, 1927).
Além do artigo já citado, destacamos também o que dispunha o artigo 49º, § único:
Paragrafo único. Verificada a hipótese deste artigo, em se tratando do Manicômio Judiciário, será o internado posto a disposição da Secretaria da Segurança e Assistência Publica, que fará apresentar a autoridade que tenha solicitado sua admissão (Minas Gerais, 1927).
O MJB tinha inúmeras funções que lhe eram atribuídas, exames antropométricos, análise da vida pregressa do paciente por parte dos peritos, etc.; no entanto, para não alongarmos muito, destacamos somente duas: a internação e o tratamento dos alienados criminosos e dos criminosos alienados existentes no Estado de Minas Gerais.
É importante destacar esta diferenciação: alienados criminosos eram os pacientes que já sofriam de algum tipo de alienação mental (esquizofrenia, parafrenia, etc.) e cometiam determinado delito, ou seja, a pessoa já vinha com todo um histórico que, com base na documentação analisada, atestava sua doença, enquanto que os criminosos alienados eram os que, durante o crime, tiveram algum tipo de surto (parafraseando o código penal: “privação de sentidos[2]”), tendo-se a suspeita de serem alienados ou, durante todo o processo jurídico, terem enlouquecido na prisão e, por colocarem em risco a vida dos outros presos, eram enviados ao MJB.
Mais especificamente em relação à segunda função, é importante salientar que o Código Penal referido é o de 1890[3], e é com ele que trabalharemos os casos de crimes passionais que serão analisados a seguir (lembrando que a expressão “crime passional” não consta no Código Penal, nem no artigo específico para homicídio, que é o 294°) (Brasil, 1890).
Como chave de análise percebemos o Manicômio Judiciário como primeira instituição deste porte no Estado de Minas Gerais e a terceira do país, visto que, anteriormente, haviam sido inaugurados os Manicômios Judiciários do Rio de Janeiro em 1921 e de Porto Alegre em 1925.
Análise metodológica
Para isso iremos analisar laudos periciais de pessoas internadas no Manicômio Judiciário de Barbacena que cometeram os chamados crimes passionais ou uxoricídios (porque, até o momento, os casos de homens que cometeram este delito são imensa maioria – apenas três casos de mulheres homicidas em comparação com 33 casos de homens de um total de 163 pacientes encontrados até o momento). Para este trabalho separamos três casos todos eles de mulheres assassinas. Escolhemos estes casos porque, como veremos a seguir, possuem grandes semelhanças e também porque nosso propósito é entender a relação entre loucura, crime e gênero. Embora o conceito de gênero seja extremamente holístico, não abrangendo somente a questão feminina, utilizamos como aporte autores que trabalham com a questão de gênero associada ao feminino.
Deste modo, com a bibliografia analisada na pesquisa até o momento, percebemos de que modo e como ocorreram estes casos e de que forma o saber e os debates no campo médico-criminológico foram se constituindo em Minas e também no Brasil, nos primeiros anos do século XX, nas considerações feitas no que tange aos delitos passionais.
Os juristas, ao tratarem de crimes passionais, abordavam muito das fronteiras de consciência e de como um sentimento de amor poderia se transformar em ódio ao ponto de se agredir ou matar outrem. Podemos compreender como os crimes passionais recebiam destaque pelo fato de que, em torno do delito cometido, tínhamos “A atmosfera de desgraça, envolvendo lados opostos em uma questão que girava em torno de sentimentos e instintos básicos, como o amor, o ódio, e a traição, foi o que bastara para o caso tornar-se um sucesso” (Cancelli, 2001, p. 104).
Nesta fronteira de sentimentos entre o amor e o ódio, entre a razão e a perda de consciência, encontram-se os nossos laudos do Manicômio Judiciário de Barbacena. Analisaremos os delitos cometidos por mulheres, os diagnósticos das mulheres que os cometeram e também a tentativa dos peritos, pautados pelo saber psiquiátrico, de compreender tais crimes e a fronteira tão tênue entre um sentimento como o amor se transformar em ódio. Veremos a seguir que os três delitos possuem características em comum, que levaram três mulheres às últimas consequências.
Análise dos casos – os delitos passionais femininos
Os casos que serão analisados a seguir são de mulheres que foram internadas e examinadas no MJB após cometerem ou participarem dos assassinatos dos respectivos companheiros. As fontes se encontram no Arquivo Público Mineiro, localizado no município de Belo Horizonte, e nosso escopo para este trabalho está, mais especificamente, no Fundo do Manicômio Judiciário em que estão os laudos periciais das respectivas pacientes, após serem para ali enviadas com o intuito do exame de suas faculdades mentais. Preferimos usar as iniciais para preservar a identidade de todos os envolvidos, de acordo com o Comitê de Ética da pesquisa.
O primeiro caso é de F. U, empregada doméstica, 28 anos, de cor branca, analfabeta. Internada no Manicômio Judiciário em 16/11/1936, foi acusada de assassinar o marido B. da S. L, a machadadas, no município de Cambuquira, sul de Minas Gerais (Arquivo Público Mineiro, 1937).
De acordo com o promotor da Comarca de Cambuquira, o crime, descrito de forma bem pormenorizada, ocorreu da seguinte maneira: após uma discussão ocasionada por ciúmes, F.U., aproveitando-se da situação de seu marido encontrar-se de cócoras para se lavar em uma bacia, arma-se de um machado e desfere um golpe na cabeça da vítima. “Assustado e ferido, o marido consegue levantar e é atingido, a seguir, por mais dois golpes que lhe causaram a morte, conforme consta nas fls do auto de corpo de delito” (Arquivo Público Mineiro, 1937).
No entanto, ao analisarmos o depoimento de F.U., que consta no laudo pericial da paciente, podemos tentar compreender o que a levou a praticar tal ato contra seu marido. No dia fatídico, F. e o marido haviam discutido e, durante a discussão, os ânimos se acirraram a ponto de B. dar um soco na esposa. Logo em seguida, o marido sai de casa, não passa muito tempo na rua e retorna.
De acordo com o relato de F.U., nesse hiato, ela já estava decidida a matar o marido, por ter sido vítima de agressão outras vezes (a última teria sido o estopim), tanto que o relacionamento entre eles teve idas e vindas. Ao perceber o marido de cócoras, F agiu.
Os peritos que a analisaram são taxativos em afirmar que, em nenhum momento, ela mostra arrependimento ou remorso pela gravidade do crime que havia cometido, e que, durante a observação, a paciente não mostrou nenhum sinal aparente de transtorno mental, sendo considerada “calma e educada com os funcionários (auxilia as enfermeiras e os guardas em alguns serviços) do manicômio judiciário e as companheiras de cela” (Arquivo Público Mineiro, 1937).
Isso pode ser comprovado pelo fato de F.U. ter ido sozinha à delegacia e confessado o que havia acabado de fazer, e, durante o período de observação, ter possuído total noção da sua condição e das implicações legais a ela atribuídas, afirmando que estaria de total acordo com a pena que lhe fosse imposta pela justiça.
Como não possuímos o resultado do julgamento de F.U., que era paciente no hospital, mas que, de acordo com os peritos, não era alienada, e como não possuímos o processo em mãos, já que na documentação consta somente o laudo, não podemos afirmar se ela foi absolvida ou condenada por homicídio, mas apenas supor que, por ser considerada sã, ela foi condenada. Contudo, ao analisarmos outros casos de mulheres que cometeram crimes contra seus companheiros, podemos entender algumas questões no âmbito jurídico e médico psiquiátrico.
Um caso semelhante ao de F.U. é o da também doméstica M.F.N., 38 anos, de cor parda, no dia 6 de março de 1940, no município de Inhapim, localizado no Vale do Aço.
P.T.A., marido da indiciada, havia chegado em casa após mais um dia de trabalho na roça. “Sentindo-se cansado, deitou e acabou adormecendo, quando inesperadamente sua mulher pegou um facão e desfechou-lhe diversos golpes, quase decepando a cabeça de seu marido” (Arquivo Público Mineiro, 1941).[4]
Da mesma maneira que F.U., M.N. também confessou o delito que cometeu, foi até a casa do patrão de seu marido e lhe disse o que havia acabado de cometer.
Igualmente é considerada pelos peritos “como educada e bem prestativa no manicômio, nunca teve problema com os funcionários nem com as colegas de cela” (Arquivo Público Mineiro, 1941).
Para justificar o crime, M.N. afirma que “seu marido sempre a maltratou, e que, em um ímpeto de cólera, resolveu eliminá-lo” (Arquivo Público Mineiro, 1941).
Não se arrependia e estava completamente consciente das implicações legais que lhe eram imputadas. Considerada normal pelos peritos do Manicômio Judiciário, foi reconduzida à cadeia pública de Inhapim em 1º de setembro de 1941, para aguardar seu julgamento por homicídio.
O último caso de crime passional cometido por mulheres encontrado até o momento é o de M.B. de O., branca, doméstica, 50 anos, ocorrido em Bonfim, na região metropolitana de Belo Horizonte.
De acordo com as informações da investigação que estão presentes no laudo pericial da paciente, M. afirmou que há muito tempo sofria com o ciúme excessivo do marido, sendo proibida inclusive de ter novas amizades, e que havia contratado dois capangas para dar fim no marido. Um destes, de acordo com depoimento das testemunhas, seria seu amante, o que foi corroborado pela confissão do próprio amante I.I.C., afirmando que “os dois agiram em conluio” (Arquivo Público Mineiro, 1942).
Na versão contada por M., ela estava doente no dia do crime; por isso, estava em repouso no seu quarto, enquanto seu marido estava na cozinha preparando café para seus dois filhos pequenos. Ela afirma que estava deitada em seu leito, quando ouviu um estampido e que foi o mais rápido possível ver o que acontecera.
Ao chegar à cozinha, viu seu marido A.I. de O., 30 anos mais velho que ela, caído, já sem vida; apesar da diferença de idade entre eles, viveram um tempo em boa harmonia.
Ao chegar ao local, viu seus dois filhos pequenos assustados, começando a gritar que o pai havia sido morto. Ela ficou atônita e sem saber o modo como isso havia acontecido. M. é taxativa em dizer que não sabia “quem cometeu tão horroroso crime” (Arquivo Público Mineiro, 1942).
A psiquiatrização do feminino: alguns apontamentos sobre crime, gênero e loucura
Para nos entendermos a razão que teria levado estas mulheres a cometerem atos considerados tão lúgubres pela sociedade e também como a mulher estava inserida no contexto da sociedade vigente, em certos padrões que lhe eram impostos (cuidar da casa, casar, ter filhos, cuidar bem do marido, ser fiel, entre outras coisas), assim, toda a complexidade de um delito feminino deveria ser analisado em uma complexidade de fenômenos (Correa, 1981; ,Engel, 2000; 2001; 2008; Harris, 1993; Rinaldi, 2015; Wadi, 2006; 2009).
No contexto brasileiro deste período temos a seguinte situação:
Fins do século XIX, as transformações que a partir da década de 1850 começaram a se delinear nos horizontes da sociedade brasileira tornavam-se mais profundas e definidas [...] Em meio às mudanças consolidava-se o processo de medicalização da loucura, transformando-a em doença mental, em um objeto exclusivo de um saber e de uma prática especializados monopolizados pelo alienista (Engel, 2001, p. 322).
Ou seja, é um período, no Brasil, em que a psiquiatria começa a se tornar um campo autônomo de estudo, com uma grande efervescência de teorias psiquiátricas que vinham principalmente da Europa. Ainda que houvesse nesse período um predomínio do ensino de psiquiatria inspirada nos moldes franceses, há a entrada da psiquiatria alemã no Brasil, principalmente os trabalhos de Emil Kraeplin (1856-1936), “combatendo”, de certa maneira, a teoria da degenerescência de Bénédict Augustin Morel (1809-1873). Entretanto, é importante dizer que estas teorias se coadunam na psiquiatria brasileira, não havendo sobreposição de uma em relação à outra. Na análise dos laudos das pacientes do Manicômio Judiciário, vemos sendo utilizadas pelos médicos mineiros teorias de psiquiatras franceses, alemães, etc.
Harris, ainda que analise um período anterior ao nosso, pode nos auxiliar a compreender a maneira como esta psiquiatrização do feminino se constituiu em fins do século XIX e início do XX, período este em que, nos campos da criminologia, temos como destaque as escolas francesa e italiana.
O objeto de análise da autora se debruça principalmente sobre a França no período supracitado, com vários casos de mulheres que, como já mencionamos, também romperam com este papel social que lhe era imputado. No âmbito dos crimes passionais, que é o nosso objeto de estudo, Harris diz o seguinte:
[...] Embora as mulheres demostrassem uma forte consciência de sua situação, geralmente admitindo o delito, e até descrevendo os preparativos, por vezes elaborados, ainda assim os investigadores inclinavam-se a tratá-las como agentes irresponsáveis. Da parte dos médicos, os psiquiatras colocavam em ação ideias clínicas e científicas baseadas em teorias deterministas, ou desinibição neurofisiológica e degeneração hereditária (Harris, 1993, p. 230).
Em dois dos três casos encontrados no Manicômio Judiciário de Barbacena até agora, percebemos uma total consciência das mulheres do que haviam acabado de cometer, inclusive confessando o delito para as autoridades competentes. Podemos relacionar isso com o caso analisado por Wadi, o de Pierina, uma imigrante italiana que afoga sua filha pequena; tem-se toda uma análise, principalmente de suas cartas, para a tentativa de compreender o motivo de seu crime.
Pierina, assim com as mulheres analisadas, justifica seu assassinato pela vida sofrida que tinha e pelo seu péssimo casamento, sendo a relação ruim com o marido o estopim para ela assassinar a filha.
Tanto F.U. quanto M.N. não apenas confessaram o delito que cometeram, como em nenhum momento demonstraram remorso ou arrependimento. Apenas M.reluta em dizer que tinha participação na morte do marido. No entanto, como já vimos, a confissão de seu amante e um dos perpetradores do crime acabou colocando-a primeiramente na cadeia e depois no Manicômio Judiciário.
M. afirma ainda que sentia muita saudade dos filhos e que queria logo poder sair do lugar em que estava internada para poder encontrá-los, já que a todo o momento se dizia inocente. Harris complementa afirmando que “as mulheres usavam o homicídio para uma variedade de injúrias masculinas [...]” (Harris, 1993, p. 231). Isso pode ser relacionado tanto a injúrias físicas quanto psicológicas.
Ao sairmos do foco criminal e entrarmos no escopo da psiquiatria, vemos o modo como os laudos periciais do MJB eram constituídos. Tem-se uma busca das características hereditárias, tem-se toda uma análise da vida pregressa do paciente, desde a infância.
Adoeceu enquanto criança? Se sim, qual a doença? Há parentes próximos com transtornos mentais? Tem irmãos? Quantos? São saudáveis mentalmente? Estas eram apenas algumas das perguntas feitas aos pacientes. Vemos aí presente o que foi citado anteriormente: a biologização do crime. E também a individualização; cada pessoa possui seus caracteres físicos, biológicos e antropológicos, e, não obstante, terá determinado tratamento para aquilo que cometeu.
É bom lembrar que este processo não era exclusivo somente das mulheres. Homens que cometiam delitos tinham também suas características hereditárias analisadas.
Nos casos apresentados por Rinaldi, podemos também traçar um paralelo deles com o caso das mulheres internadas no Manicômio Judiciário de Barbacena. Mulheres que, cansadas do tratamento recebido por seus respectivos maridos, chegaram às últimas consequências, cometendo os crimes:
Pensavam ser a que cometeram “crimes passionais” ou de “honra” “as momentaneamente perturbadas”. Entendiam-nas como pessoas que delinquiram por estarem com “vontade alterada” no momento do crime. Eram pensadas como “autômatos” que agiram em um momento de paroxismo, em um momento de ciúme ou de noção de honra ultrajada (Rinaldi, 2005, p. 147).
M.N. assume ter matado o marido em um momento de cólera. Assim, podemos concluir do trecho acima que, ao dar facadas no marido, quase o decapitando, ela estava momentaneamente perturbada, provavelmente cansada dos maus tratos que sofria frequência. No entanto, salientamos que temos somente a versão da mulher, visto que na documentação analisada até o momento não há outros depoimentos para que possamos ter uma visão mais ampla do motivo do crime.
Este fato pode ainda ser associado com a opinião dos peritos sobre M.N.: era uma mulher tranquila, educada e sempre respeitosa, sendo considerada normal pelos peritos, tendo total noção da gravidade do crime que cometera e das implicações legais.
É importante salientar ainda que Rinaldi, nos casos que apresenta na sua obra, trabalha muito com a questão moral, que o crime feminino, como já foi dito anteriormente, seria uma quebra do papel atribuído às mulheres no Brasil.
Em fins do século XIX e começo do XX, tanto no Brasil quanto na França, podemos verificar no trabalho de Harris a diferença do tratamento de um crime cometido por um homem do cometido por uma mulher.
No Código Penal de 1890 não há nada sobre prisões femininas e também pouco se produziu sobre a história das mulheres dentro das prisões no século XIX. Com a criação de presídios femininos, o MJB continha uma ala feminina, ainda que em MG se tenham poucos trabalhos sobre o surgimento de presídios femininos no estado, e também em outros estados como é o caso do trabalho de Salla e Angliotti. De acordo com os autores, esta ausência na historiografia pode-se explicar pelo seguinte fato: “Há um conhecimento escasso, no âmbito das ciências sociais, sobre o jogo de forças no campo político-social e no meio jurídico e criminológico que levou à criação e instalação de presídios de mulheres, no Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e em São Paulo, no final dos anos 1930 e início dos anos 1940” (Angotti e Salla, 2018, p. 9). Portanto, ainda que não seja o escopo do nosso artigo, é relevante afirmar que há muito para se pesquisar sobre o surgimento de presídios femininos no Brasil.
Em todos os três casos, as mulheres saíram pouco tempo depois do MJB, onde esperavam julgamento, e voltaram para as cadeias das respectivas cidades onde os crimes foram cometidos. Entretanto, como não tivemos acesso aos dados processuais, não sabemos se foram condenadas ou não; como citamos anteriormente, nos laudos analisados até agora não há esta informação. O que temos para os três casos é uma carta do diretor da instituição avisando as autoridades de MG que estas mulheres foram encaminhadas e também sobre a transferência de tais pacientes do MJB para seus respectivos municípios.
Conclusão
Ao analisarmos alguns dos delitos passionais de internos do MJB, percebemos que, no caso das mulheres, o que levou ao crime pode ter como hipótese uma vida de sofrimento durante o matrimônio. E também há o papel atribuído às mulheres na época, com a complexidade de relações que estavam imbricadas ali. No terceiro caso, como vimos, o marido era muito mais velho, o que era algo comum, não somente em Minas Gerais, mas em outros lugares. Estas mulheres, com base no que documentação indica até o momento, chegaram ao fundo do poço, depois de tantas agressões e humilhações e ao fim ao cabo cometeram seus crimes.
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Manicômio Judiciário de Barbacena em 18 de dezembro de 1942 (Arquivo Público Mineiro Manicômio Judiciário Laudos Periciais. Série 2, subsérie 4. SL Cx 01-Bonfim).
Manicômio Judiciário de Barbacena em 19 de novembro de 1937 (Arquivo Público Mineiro Manicômio Judiciário Laudos Periciais. Série 2, subsérie 4. SL Cx 02-Cambuquira).
Manicômio Judiciário de Barbacena em 12 de maio de 1941 (Arquivo Público Mineiro Manicômio Judiciário Laudos Periciais. Série 2, subsérie 4. SL Cx 03-Inhapim).
Decreto nº 7471 de 31 de janeiro de 1927. Aprova o regulamento da Assistência de Alienados em Minas Gerais. Arquivo da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Leis e decretos mineiros.
Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Promulgação do 1º Código Penal Brasileiro. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 11/11/2018.
Notas
“Art. 27. Não são criminosos:
§ 3º Os que por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação;
§ 4º Os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de intelligencia no acto de commetter o crime.”
Ou seja, pautado no Código Penal, para ingressar ao Manicômio Judiciário de Barbacena, o criminoso deveria realizar exames de sanidade mental e, caso se atestasse sua afecção, ele deveria continuar recolhido no mesmo.