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A guerra como instrumento da política imperial brasileira na Bacia do Prata (1852-1858)
Warfare as an instrument of Brazilian imperial politics in the Plata Basin (1852-1858)
A guerra como instrumento da política imperial brasileira na Bacia do Prata (1852-1858)
História Unisinos, vol. 23, núm. 3, pp. 324-331, 2019
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Recepción: 01 Mayo 2019
Aprobación: 09 Agosto 2019
Resumo: Como a guerra tornou-se instrumento político do Império do Brasil para alcançar seus objetivos na Bacia do Prata, contribuindo para o fortalecimento do Estado Nacional? A pesquisa foi realizada sobre os casos da guerra contra Oribe e Rosas (1851-1852) e do conflito político com o Paraguai entre 1852 e 1858, mediante abordagem teórico-metodológica da análise crítica do discurso sobre documentação produzida por diplomatas brasileiros, entre os quais destacamos Paulino José Soares de Souza, José Maria da Silva Paranhos e José Maria do Amaral. Como resultado, verifica-se que segmentos da elite brasileira foram responsáveis por criar um discurso com o qual legitimaram o direito a fazer guerra, forjando uma identidade e uma realidade social na qual o Império do Brasil recorria à guerra em nome da defesa da civilização e da manutenção da paz que, por sua vez, no âmbito do discurso, representa um estado no qual os interesses brasileiros como território, livre navegação e poder são alcançados.
Palavras-chave: guerra, Império do Brasil, República do Paraguai, Confederação Argentina, discurso.
Abstract: How did the war become a political instrument of the Brazilian Empire to reach its objectives in the Plata Basin, contributing to the strengthening of the National State? The article is based on research on the cases of the war against Oribe and Rosas (1851-1852) and the political conflict with Paraguay between the years of 1852 and 1858, through a theoretical-methodological approach of the critical discourse analysis of documents produced by Brazilian diplomats, among which we highlight Paulino José Soares de Souza, José Maria da Silva Paranhos and José Maria do Amaral. As a result, it is found that segments of the Brazilian elite were responsible for creating a discourse with which they legitimized the right to make war, forging an identity and a social reality in which the Empire of Brazil resorted to war for the sake of the preservation of civilization and the maintenance of peace, which in turn, within the discourse, represents a state in which Brazilian interests such as territory, free navigation and power are achieved.
Keywords: war, Empire of Brazil, Republic of Paraguay, Argentine Confederation, discourse.
Introdução
E, talvez, esse gabinete[1] apareça de repente, no caso em que seja inevitável a guerra do Império contra o Paraguai. – Será ela inevitável? That is the question[2] [...] Deveras, o visconde do Uruguai pode pedir conta, a seus sucessores, da política brasileira no Rio da Prata. O que é verdade é que ele nos deixou orgulhosos, triunfantes e dominantes em Caseros; e que hoje estamos humilhados, medrosos e quase suplicantes nestas regiões (Amaral, 1858, p. 118).
A transcrição acima refere-se ao trecho da carta redigida pelo diplomata brasileiro José Maria do Amaral[3] (1813-1883) ao seu irmão Ângelo Tomás do Amaral[4] (1822-1911) em 6 de janeiro de 1858, na província do Paraná – Confederação Argentina. O contexto histórico no qual o personagem estava inserido era o conflito entre os governos brasileiro e paraguaio, marcado pela disputa de poder, em face dos limites territoriais na fronteira mato-grossense e a livre navegação do rio Paraguai. Essa correspondência privada revela-se uma fonte histórica sob dois aspectos. Em primeiro lugar, contém o discurso político de um servidor do Estado brasileiro acerca das relações diplomáticas entre Assunção e o Rio de Janeiro, nos anos que antecederam a Guerra da Tríplice Aliança contra a República do Paraguai (1864-1870). Outro aspecto a ser considerado é a sua opinião particular imbuída nessa missiva m – afinal, era uma carta privada ao seu irmão –, em que transparece uma nostalgia de um passado recente e até certo saudosismo da política externa liderada pelo então chanceler brasileiro, Paulino José Soares de Souza (1807-1866), Visconde do Uruguai[5].
No manuscrito, coube aJosé Maria do Amaral, membro da elite política brasileira e homem do seu tempo, o desabafo crítico e irônico, considerando duas opções para responder sua própria pergunta. “Será [a guerra] inevitável?” (Amaral, 2007, p. 118). Iria o Brasil recorrer ao conflito armado para submeter o Paraguai aos seus interesses e retomar o “orgulho, o triunfo e o domínio” (Amaral, 2007, p. 118) no Prata? Ou utilizar apenas a diplomacia ou até mesmo o “suplício” com o governo paraguaio para assinar o Tratado de Limites e Navegação?
Não há resposta imediata ou simples para essa indagação. Afinal, o conflito é inevitável[6], mas os homens são capazes de evitar a guerra. O que essa fonte nos auxilia a problematizar é: porque a guerra era um instrumento político do Estado brasileiro? Ademais, permite pensarmos sobre uma segunda questão: considerando o caráter estratégico da Bacia Platina, em que medidaos países da região foram alvos daguerra ou da ameaça do uso desse instrumento violento?
A proposta é responder essas questões, com o emprego da metodologia deanálise de discurso sobre a seguinte documentação: as correspondências do diplomata José Maria do Amaral, publicadas nos Cadernos do Centro de História e Documentação Diplomática do Ministério das Relações Exteriores; discursos no Senado, na Câmara dos Deputados e no Conselho de Estado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros Paulino José Soares de Souza e as Cartas ao amigo ausente do político José Maria da Silva Paranhos, publicadas no Jornal do Comércio durante a década de 1850.
A análise desses documentos é relevante uma vez que as fontes são fragmentos, pistas e sinais que, relacionados mediante um paradigma investigativo, juntamente com a interpretação crítica, contribuem para a construção do conhecimento histórico (Ginzburg, 1989). Assim, a crítica das fontes deve ser empregada para analisar ações e planos do passado, através do significado dos textos. É a interpretação crítica sobre o documento que o transforma em fonte: “Uma fonte não pode nos dizer nada daquilo que cabe a nós dizer. No entanto, ela nos impede de fazer afirmações que não poderíamos fazer, [...] no âmbito da tensão entre a construção do pensamento teórico sobre história e a crítica de fontes [...] uma é completamente inútil sem a outra” (Koselleck, 2006, p. 188).
Quando uma documentação oficial é analisada, seja um discurso no Senado ou na Câmara dos Deputados, é pertinente o emprego do método de análise crítica do discurso. Norman Fairclough, no livro Discurso e mudança social (2001), explicou que o discurso pode ser definido como “o uso da linguagem como forma de prática social” (2001, p. 90) e possui uma tríade de funções: texto, prática discursiva e prática social. O discurso é suscetível à manipulação do orador, forjando uma realidade social. Portanto, a avaliação do discurso deve incluir também a análise sobre os autores e o local de fala.
Ao trabalharmos a guerra enquanto um objeto historiográfico, faz-se necessário interpretá-la como um fenômeno social, caracterizada pelo emprego da força militar e da coerção para fins políticos. Conforme a máxima de Carl von Clausewitz: a guerra é a continuação da política por outros meios. A partir do final do século XVIII, no processo de formação e consolidação dos Estados Nacionais mediante acúmulo da burocracia de coerção e ideologia, no Ocidente, o Estado obteve o monopólio da força como um direito constitucional, legitimado pela sua soberania. A criação de um aparato legal para a criminalização da violência interna e a manutenção da ordem doméstica implicou a condução da guerra para além das fronteiras nacionais. Sendo assim, “pertence à soberania o direito de fazer a guerra e a paz com várias nações e Estados. Decidir quando a guerra corresponde ao bem comum” (Hobbes, 2003, p. 104).
No século XIX, diante da racionalização desse fenômeno social e do uso da violência como um instrumento para conquistar as vontades nacionais, os elementos condicionantes para a guerra, como financiamento, material, pessoal, apoio da sociedade (coesão social), planejamento estratégico e tático mediante institucionalização das forças armadas e desenvolvimento tecnológico da indústria bélica, passavam a ser orientados para o cumprimento do propósito político. No caso específico da Bacia do Prata, verificou-se que as guerras ocorreram como resultado dos conflitos entre projetos de Estados Nacionais distintos. Nesse sentido, a relevância dessa pesquisa está em fornecer subsídios para a compreensão das causas dos conflitos violentos eclodidos na Bacia do Prata, como foi a Guerra do Paraguai (1864-1870), e imbricados no processo de consolidação dos países beligerantes. A hipótese defendida, a partir da análise dessa documentação, é que as relações políticas entre o Império do Brasil e os países hispano-americanos da região sul tiveram como principal fio condutor a guerra.
A pesquisa em questão, no âmbito da história política, vem sofrendo transformações. O estudo sobre as relações de poder incorporou novas perspectivas, objetos e metodologias. No tocante à abordagem metodológica, destaca-se a análise do discurso enquanto interpretação crítica. O discurso deixou de ser apenas um documento textual reconhecido como um testemunho, devendo a linguagem ser reconhecida como prática social a ser decifrada por si mesma. Os discursos políticos, portanto, são documentos que, nas mãos dos historiadores, tornam-se fontes relevantes para entender o fato histórico em si e ainda decifrar e criticar um discurso de época. Conforme fundamentação teórica de Norman Fairclough, e observado nesse texto, seus componentes são o texto, a prática discursiva e a prática social.
Portanto, a compreensão do emprego da guerra pelo Estado Imperial como um instrumento político para alcançar seus interesses regionais e, por consequência, obter seu fortalecimento e hegemonia regional perpassa os discursos políticos. Afinal, para o Estado dar sentido à guerra e promover a mobilização dos esforços necessários à empreitada, é necessário apoio da sociedade. Afinal, os interesses políticos que deveriam ser alcançados por meio da violência foram estabelecidos de acordo com os interesses da sociedade.
A guerra como instrumento político do Estado
A guerra é um fenômeno social. Sua natureza foi explicada por Carl von Clausewitz (1780-1831) como sendo “um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade” (Clausewitz, 1996, p. 7). A partir das observações sobre as Guerras Napoleônicas (1803-1815), teorizou a guerra não como um objeto independente, mas com um caráter instrumental, sintetizando-a na máxima: “A guerra é a continuação das relações políticas com o complemento de outros meios” (Clausewitz, 1996, p. 870).Osdesígnios, ou seja, os objetivos políticos estatais são determinantes no caráter do conflito armado.
O desenvolvimento da organização social do Estadocontribuiu para o crescimento da violência organizada. A justificativa para esse fenômeno foi o processo de fortalecimento da autoridade do Estado-Nação, fundamentado no liberalismo[7], acúmulo da burocracia de coerção, da ideologia centrífuga[8], a consolidação do direito constitucional do monopólio do emprego da violênciae funcionalidade administrativa. Na dinâmica das relações civis e militares, o Estado tornou-se capaz de mobilizar financiamento, material, pessoal e ainstitucionalização das forças armadas, garantindo sua superioridade técnica para ganhar as batalhas e eficácia durante a preparação e condução da guerra (Corvesier, 1999, p. 179). Soma-se à racionalização da guerra e à sistematização da destruição em massa a modernização tecnológica da indústria bélica que, por sua vez, determinou novas transformações da guerra no âmbito político, estratégico e tático.
A pacificação dos conflitos domésticos, com a criação de um aparato legal para criminalização da violência interna, implicou a condução das forças armadas nacionais para além dos limites territoriais, tendo a guerra como o instrumento de política do Estado. Durante o século XIX, em sua maioria, os conflitos armados eclodidos no Ocidente estavam relacionados às competições entre os projetos de construção dos Estados Nacionais (Malešević, 2010, p. 129). A externalização da guerra implicou a ação do Estado para defesa do território fronteiriço. O objetivo não era apenas defender o espaço físico, mas defender uma “entidade territorial com sólidas bases morais por tropas e fortificações” (Malešević, 2010, p. 186).
A política de guerra do Império do Brasil na Bacia do Prata
As relações internacionais do Estado brasileiro, a partir de 1849, obedeceram aos interesses políticos necessários ao fortalecimento do Império. A política externa orientada por Paulino José Soares de Souza (1807-1866), à frente do Ministério dos Negócios Estrangeiros (1843-1844; 1849-1853), foi marcada pela ação proativa, a partir de intervenções regionais, a fim de impedir a execução do projeto político de Juan Manuel de Rosas (1793-1877)[9], governador de Buenos Aires, baseado na formação do antigo Vice-Reinado do Prata, por meio da defesa da autonomia da Banda Oriental do Uruguai e da República do Paraguai.
Em 19 de abril de 1851, o político José Maria da Silva Paranhos escreveu no Jornal do Comércio: “[...] a nossa questão com Oribe, tenente do ditador de Buenos Aires[10], é uma questão de segurança para o presente e para todo sempre; é uma questão de progresso e civilização para nós, para nossos vizinhos, para humanidade em geral” (Paranhos, 2008, p.150). A guerra foi, naquele momento, instrumento da política externa do Império do Brasil. Para efetivar a retirada de Oribe e Rosas do poder epara garantir a soberania da Banda Oriental do Uruguai e da República do Paraguai, o conflito armado tornou-se imperativo.
Por meio do discurso político de José Maria da Silva Paranhos, é possível apreender sua interpretação acerca do significado da guerra para o Estado brasileiro. Em sua publicação de 31 de maio de 1851, no Jornal do Comércio, o político apresentou os debates no Parlamento sobre a declaração de guerra, defendendo a intervenção militar, a fim de conseguir o respaldo da população, demonstrando que a política platina era uma questão de “dignidade nacional” (Paranhos, 2008, p. 208). A percepção de ameaça baseada na anexação do Estado Oriental e da República do Paraguai por Buenos Aires e, com isso, o aumento do seu contingente militar e a expansão de sua fronteira, ameaçando as províncias brasileiras, eram as justificativas para o conflito. De acordo com o chanceler brasileiro, Paulino Soares de Souza,
perderíamos uma parte importante da província de Mato Grosso, que compreende sua capital, ficando a província e a navegação dos rios completamente abertas. Semelhantes questões de limites, que ainda não estão resolvidas, não tornariam inevitável uma guerra, com um vizinho que, absorvendo nacionalidades que temos reconhecido, teria aumentado extraordinariamente o seu poder e adquirido proporções gigantescas? (Souza, ap. Paranhos, 2008, p. 210).
Ao defender a perspectiva do Governo Imperial, o futuro Visconde do Rio Branco estabeleceu uma análise sobre a guerra e a paz nas relações internacionais do país, declarando:
[...] a paz é só a paz! A paz deve seguramente ser o alfa e ômega das nossas relações exteriores, é a condição indispensável de todo o progresso. Mas a paz é sempre preferível à guerra, embora com sacrifício do crédito, da dignidade e dos interesses nacionais? (Paranhos, 2008, p. 2010).
A guerra tornou-se uma estratégia do Estado Imperial para defender a honra e os objetivos políticos. Se o conflito armado era também um meio de alcançar a paz, era dever guerrear. Ao vencer, a vitória representava o triunfo do direito sobre a usurpação, d liberdade sobre a ditadura e da civilização sobre o vandalismo (Paranhos, 2008, p. 297).
No discurso de 7 de junho de 1851, o intelectual Paranhos manteve a defesa dos investimentos do Estado na guerra. Para legitimar sua posição, utilizou como referência a máxima: “Se queres a paz, prepara-te para guerra”[11]. Segundo Paranhos, “enquanto o congresso da paz universal não der leis ao mundo, o – Si vis pacem, para bellum – há de ser, não só uma máxima militar, senão também uma impreterível garantia de segurança interna e externa de todas as nações civilizadas” (Paranhos, 2008, p. 226).
Mediante análise dos discursos de José Maria da Silva Paranhos, destacam-se alguns pontos. Em primeiro lugar, seus textos não são imparciais, afinal, defendem a posição do ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulino Soares de Souza, e a ala do Parlamento que corrobora o chanceler, defendendo a intervenção militar na região platina. Ao publicar as Cartas ao amigo ausente,textos com análise da conjuntura de época da política externa nacional no Jornal do Comércio, principal veículo da imprensa na capital do Império, o autor formulouum discurso voltado para os leitores do jornal: a elite política brasileira.
O conceito de discurso é fundamentadono emprego de uma linguagem como forma de prática social (Fairclough, 2001, p. 90). A prática discursiva implica uma ação, enxergar a sociedade e os indivíduos. É um meio de representação e construção do mundo em significados. O discurso não é neutro. Pelo contrário, é influenciado pela estrutura social, como as classes e as relações entre os homens. A construção de um discurso apresenta efeitos. Norman Fairclough reconheceu três consequências principais: a construção de identidades sociais; estabelecimento de relações sociais entre as pessoas e a formação de um sistema de conhecimento e crença (2001, p. 91-92). Segundo o autor, os discursos textuais, dependendo do meio de circulação e do público atingido, são capazes de exercer influência nas relações de poder, condução das guerras, modificação das atitudes e crenças e nas práticas sociais (Fairclough, 2001, p.108).
Dessa forma, conforme a teoria de Fairclough, José Maria Paranhos, em seu discurso, contribuiu para a manipulação de uma identidade: o Império do Brasil como um país defensor dos ideais de civilidade e liberdade que, ao lutar, libertaria seus vizinhos da barbárie dos ditadores. Ao dissertar sobre a relação entre guerra e paz e o emprego da violência como meio de alcance dos objetivos políticos, o autor contribuiu para a construção de uma crença de que, de fato, a guerra era um direito e um recurso do Estado para obtenção dos seus interesses.
Por conseguinte, é necessário destacar que o que estava por trás do incentivo ao patriotismo e à luta pela liberdade erao jogo de poder. O discurso de Paranhos é considerado aqui um exemplo do pensamento do Estado brasileiro acerca dos desígnios políticos que levaram o Império a recorrer ao conflito armado. Era a disputa pelo poder hegemônico na região, a segurança do Império com a preservação das suas dimensões continentais e a integração do território mediante navegação dos rios da Prata, Paraná e Paraguai.
A denominada Guerra Grande (1850-1852) implicou a queda de Oribe em 1851 e a queda de Rosas, na batalha de Monte Caseros, em 1852. Mas a intervenção política e militar do Império do Brasil na região não terminou. O pensamento político sobre a guerra como um instrumento político para alcançar a paz, ou seja, os interesses brasileiros que assegurariam sua hegemonia regional, prevaleceu e foi projetado para novos autores, no caso o Paraguai.O período entre 1853 e 1864 foi caracterizado, na história política da Bacia do Prata, como pax armada (Aubert, 2015). O Estado brasileiro permaneceu com a mesma estratégia política: aumentou seu contingente militar no Prata (Aubert, 2015, p. 2268) e utilizou seu poder bélico como uma demonstração de poder e ameaça de guerra, devido ao acirramento das relações diplomáticas com a República do Paraguai.
Império do Brasil e a República do Paraguai: iminência de guerra
Sob a perspectiva da política externa brasileira, o Paraguai desempenhou o papel de Estado-tampão. A preservação da integridade paraguaia e o reconhecimento de sua autonomia eram fundamentais para a manutenção do equilíbrio de poder da região, evitando o aumento da extensão fronteiriça da Confederação Argentina e o bloqueio dos rios platinos que poderia culminar no conflito armado entre o Império do Brasil e Buenos Aires. Não por acaso, entre 1844 e 1852, as relações entre Assunção e o Rio de Janeiro mantiveram-se alinhadas, sobretudo, devido aos esforços brasileiros em garantir a soberania paraguaia frente aos interesses de Buenos Aires. Em 1850, ambos acordaram uma aliança militar, assegurando assistência mútua em caso de agressão argentina.
A queda do general Rosas em 1852não solucionou os conflitos na região. Embora fosse o fim da ameaça argentina à soberania e integridade do Paraguai, instaurou-se uma nova conjuntura política marcada pelo conflito político entre o governo do presidente Carlos Antonio López (1790-1862) e o Império do Brasil. As controvérsias giravam em torno das seguintes questões: disputa pelo território fronteiriço com a província de Mato Grosso entre o rio Branco e o rio Apa e a concessão da livre navegação do rio Paraguai, principal linha de comunicação entre o litoral do Império e a fronteira ocidental.
Diante desse conflito de interesses, entre 1852 e 1864, o Ministério dos Negócios Exteriores enviou diversas missões diplomáticas a Assunção com o objetivo de negociar tais pendências. O resultado foi o fracasso dessas mediações e o acirramento das relações políticas. Principalmente a partir de 1855, quando o governo paraguaio estabeleceu aReglamentación de la navegación hasta Asunción[12],medida que oficialmente buscava combater o contrabando, mas, na verdade, foi um dispositivo jurídico dos paraguaios para embargar a navegação dos navios de guerra brasileiros.Diante dessa medida, aumentava a percepção de ameaça em relação aoParaguai entre as instituições do Estado Imperial, que buscou recorrer àsua política de guerra.
O diplomata José Maria do Amaral (1812-1880) escreveu ao seu irmão Ângelo Tomás do Amaral (1822-1901), em 25 de outubro de 1857: “[...] a noite estiveram aqui o chefe [Jesuíno Lamego Costa] e o Paranhos. O chefe disse-me que o visconde do Uruguai vota pela guerra com o Paraguai e desaprova a missão especial que vai a Assunção” (Amaral, 2007, 9. 98). No Conselho de Estado, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulino José Soares de Souza declarou que, “no caso presente, tem toda a aplicação o princípio de que na paz cumpre-se preparar a guerra” (Doratioto, 2002, p. 33).
A declaração do Visconde do Uruguai demonstrou que o conflito armado deveria, mais uma vez, ser instrumentalizado pelo Estado. Apenas a força iria garantir a paz. Em seguida, no Senado, Paulino Soares de Souza defendeu que o país já havia conquistado os objetivos que poderiam ser alcançados pacificamente. Assim, a liberdade da navegação fluvial deveria ser alcançada por meio da guerra uma vez que, segundo os senadores brasileiros, o Império do Brasil teve seu direito à navegação sacrificado pelos paraguaios. O plano brasileiro consistia em: pela força, o presidente López seria coagido a abolir o regulamento proibitivoe, em tempos de paz, o Brasil iria definir os limites geográficos (Paranhos, 2008, p. 114).
Verifica-se, portanto, que o discurso de guerra influenciou no planejamento da ofensiva militar. Em ofício reservado do ministro dos Negócios Estrangeiros, José Maria da Silva Paranhos, ao ministro da Marinha, João Maurício Wanderley (1815-1888) ele informou o “plano que o Governo Imperial tenciona pôr direito à navegação do rio Paraguai” (Paranhos, apud Pinho, 1937, p. 442): “[...] o Governo Imperial deve estar preparado para usar daquele direito, fazendo subir alguns navios até as nossas possessões no rio Paraguai, e para defender por água, e por terra, aquela parte das fronteiras do Império” (Paranhos, apud Pinho, 1937, p. 440).
Enquanto caberia ao Exército prover a defesa por terra no Mato Grosso, nos varadouros próximos ao rio Ivinhema, nas populações de Miranda para o policiamento até a margem direita do rio Apa, a Armada Imperial iria atuar na expedição “composta por vasos apropriados pelo seu tirante d’água, para essa navegação e de força suficiente para vencer a resistência que o Governo da República do Paraguai se atreva a opor-lhes em seu pacífico trânsito” (Paranhos, apud Pinho, 1937, p. 441). A defesa da província do Mato Grosso foi planejada com “três vapores e duas canhoneiras de velas para composição da indicada flotilha para subir até a povoação de Coimbra ou de Albuquerque onde farão junção com a força fluvial” (Paranhos, apud Pinho, 1937, p. 442). Ademais,ordenou a preparação imediata de todos os requisitos necessários à logística de guerra na fronteira da província mato-grossense, especialmente, nas localidades do Forte Coimbra e Albuquerque, onde armazenariam “munições de guerra e navais, e os suprimentos necessários para pagamento e sustento das guarnições dos navios que ali têm de estacionar” (Paranhos, apud Pinho, 1937, p. 442). Finalmente, ordenou ao presidente da Província do Mato Grosso: “[...] leve, com efeito, a ocupação de Fecho dos Morros, e sua fortificação, que neste caso terá de ser defendida pela flotilha, e pela força de terra que guarnecer o dito ponto” (Paranhos, apud Pinho, 1937, p. 442). A preparação militar do país obedeceu ao princípio si vis pacem para bellum (se queres a paz, prepara-te para a guerra), uma medida a fim de dissuadir o Paraguai, conforme explicou o ex-ministro Paulino José Soares de Souza: “[...] sem desejar esse conflito, sem tê-lo provocado, o governo imperial excederia os limites da prudência e da moderação se não se preparasse para ele” (Souza, apud Aubert, 2015, p. 2272).
Em 1858, o diplomata José Maria da Silva Paranhos foi enviado em missão à região platina. Na Confederação Argentina, assinou com o governo da província do Paraná um protocolo reservado, estabelecendo uma cooperação em caso de guerra contra o Paraguai, obtendo autorização para passagem de tropas brasileiras com sentido a Assunção. Mais tarde, o futuro Visconde do Rio Branco chegou a Assunção com instruções para revisão dos regulamentos. Em seu relatório, o chanceler interpretou essa missão como a última tentativa diplomática para solucionar as controvérsias e responder às indagações paraguaias sobre a movimentação de tropas na fronteira brasileira[13] como medidas coerentes.
O governo paraguaio, ciente da aliança com a província do Paraná e despreparado militarmente, obrigou o ministro plenipotenciário Francisco Solano López (1827-1870) a conceder a livre navegação para o comércio nos rios Paraná e Paraguai e permitiu o trânsito de três embarcações sem exigência de peso ou armamento, suspendendo as antigas exigências. Ao final da audiência, foi assinado um protocolo determinando a neutralidade do território entre o rio Branco e o rio Apa e a proibição da ocupação militar do território pelos Estados signatários. Para o Brasil, significou uma aparente vitória. No caso do Paraguai, representou uma solução temporária para evitar a eclosão de um conflito no qual nãopoderia vencer naquele momento. Para ambos os atores, havia a percepção que uma solução diplomática era improvável. Afinal, eram projetos de Estados distintos e conflitantes. A disputa de poder culminou, em 1864, na eclosão da Guerra da Tríplice Aliança contra o governo do Paraguai.
Consideraçõesfinais
Na segunda metade do século XIX, o Estado Imperial experimentava o processo de consolidação das instituições monárquicas. Nesse sentido, as relações internacionais cumpriam o objetivo de fortalecer o seu poder no âmbito regional. A definição dos limites territoriais e a liberdade de navegação na Bacia do Prata eram elementos condicionantes para a preservação do Império do Brasil, uma vez que estavam relacionados à manutenção da unidade, integração e defesa do território. Contudo, os projetos nacionais, no caso de Buenos Aires e do Paraguai, que almejavam a construção de Estados com poder político regional, capaz de superar a hegemonia do Império do Brasil e suficiente para impedir o livre trânsito de navios brasileiros e ampliar as fronteiras, mediante aquisição das terras em disputas, ameaçavam os planos da elite política da Corte.
Diante das controvérsias entre Império do Brasil, Confederação Argentina e República do Paraguai, a ameaça do emprego da violência e o recurso à guerra foram instrumentos utilizados pela elite política brasileira com o propósito de alcançar as vontades nacionais. É importante ressaltar o significado daguerra como uma arte, um dispositivo do Estado para obtenção do seu progresso. A partir da documentação apresentada, investigou-se que o contexto histórico no qual esses homens estavam inseridos propiciou um discurso de valorização da guerra em nome da paz. Ou seja, diante do fracasso da diplomacia, apenas a guerra seria capaz de assegurar a obtenção dos interesses políticos. Nesse sentido, o discurso repercutiu em lugares de fala como o Parlamento, o Senado e o Conselho de Estado, assim como a publicação de discursos em jornais, principal veículo de informação da época, refletiu a relevância do discurso como prática social. A partir da circulação de um discurso que defendia a guerra como um meio de garantir a paz e o progresso e de conduzir a civilização aos países vizinhos, o governo imperial contribuiu para formação de uma identidade do Império do Brasil em relação aos vizinhos republicanos baseada na alteridade, ou seja, numa relação de poder marcada pela superioridade política e moral dos brasileiros. Dessa forma, foicabível ao Estado brasileiro impor a guerra contra os vizinhos, em vez de se submeter a eles, ou seja, não importando os meios, a dignidade e os interesses nacionais deveriam ser sempre alcançados.
É fundamental entendermos que não era qualquer “paz” que a elite brasileira almejava, mas sim um estado de paz no qual a conjuntura fosse marcada pelo território circunscrito sob limites jurídicos conforme os interesses nacionais, os navios mercantes e vapores de guerra tivessem liberdade de navegação e no qual os governos dos países vizinhos fossem aliados ao Rio de Janeiro, garantindo sua liderança regional.
No momento em que o discurso contribuiu para essa identidade forjada, a sociedade brasileira foi convencida a conceder apoio ao Estado para a guerra. Quando isso ocorreu, o Estado alcançou uma coesão social necessária para empregar a violência, além de apoio para direcionar seus recursos para o conflito armado, por exemplo, no tocante aos gastos públicos para compra de armamento, materiais e pessoal e o recrutamento militar. A vitória brasileira na Guerra contra Oribe e Rosas (1851-1852) demonstrou a relevância do discurso. Após o ingresso do Brasil no conflito, projetos políticos que poderiam enfraquecer a monarquia constitucional brasileira foram vencidos e os interesses políticos do Estado Imperial alcançados e preservados.
Por conseguinte, a República do Paraguai foi alvo da política de guerra do Império do Brasil mediante a ameaça do emprego da violência, conforme os discursos de servidores do Estado brasileiro entre 1852 e 1858. Mais uma vez, diante da percepção de ameaça aos objetivos brasileiros no tocante à preservação das fronteiras mato-grossenses e à livrenavegação do rio Paraguai não poderiam ser alcançados por meio das negociações, o governo imperial se preparava militarmente para o conflito e a diplomacia utilizou a prenúncio de guerra como um recurso estratégico. Afinal, representou um meio de demonstração de poder a fim de dissuadir o inimigo, ou seja, fazer com queele voluntariamente modificasse sua ação. Desse modo, o Império do Brasil obteve a concessão da livre navegação e a suspensão das negociações dos limites por seis anos. Mais tarde, em 1864, devido à eclosão da Guerra da Tríplice Aliança contra a República do Paraguai, a guerra como fenômeno social sofreu novas ressignificações e contribuiu para novas transformações regionais.
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Notas