Dossie

Recepção: 24 Janeiro 2020
Aprovação: 09 Março 2020
DOI: https://doi.org/10.413/hist.2020.242.06
Resumo: A compreensão do setor elétrico no Brasil em meados do século XX deve ser alcançada mediante a análise de suas relações diplomáticas. Em 1945, com o final da Segunda Guerra Mundial, a geração e a distribuição da energia elétrica no Brasil estavam nas mãos de dois grupos privados internacionais, da empresa canadense Light e da norte-americana American & Foreign Company (Amforp), enquanto o governo ainda mantinha um papel muito limitado de atuação direta no setor. Dependendo de financiamento para novos projetos, no intuito de atender a demanda crescente de energia numa economia em processo acelerado de industrialização e urbanização, os governos de Eurico Gaspar Dutra (1946-50) e Getúlio Vargas (1951-54) travaram importantes negociações, não somente com as empresas elétricas, mas inclusive com instituições internacionais e o governo dos EUA. Eram negociações que exigiam definição de qual seria o papel das empresas privadas estrangeiras na economia brasileira, qual o volume de financiamento necessário para a crescente demanda de energia e, finalmente, qual o grau de cooperação técnica entre países para capacitar esses novos projetos. Num ambiente em que grupos nacionalistas questionavam a qualidade e os custos dos serviços dessas empresas estrangeiras, o governo brasileiro precisava estabelecer o diálogo entre empresas, sociedade e interesses estrangeiros. Em suma, o presente artigo pretende demonstrar como a negociação diplomática tornou-se espaço decisivo tanto para a definição da estratégia das empresas elétricas como para a construção do projeto de desenvolvimento do governo brasileiro.
Palavras-chave: energia elétrica, relações diplomáticas, Brasil, Getúlio Vargas.
Abstract: Understanding the electricity sector in Brazil in the mid-twentieth century is to be achieved through the analysis of its diplomatic relations. In 1945 the generation and distribution of electricity in Brazil were controlled by two multinational corporations, the Canadian company Light and US company American & Foreign Company (Amforp), while the government still had a very limited role in the sector. Depending on funding for new projects in order to meet the growing energy demand in an economy undergoing rapid industrialization and urbanization, the Eurico Gaspar Dutra (1946-50) and Vargas (1951-54) administrations conducted several negotiations, not only with those companies, but also with international institutions and the U.S. government. Negotiations demanded definition of what would be the role of foreign private companies in the sector, the amount of funding required to meet the demand and ultimately the degree of technical cooperation between Brazil and the US to enable these new projects. In a background where nationalist groups questioned the quality and costs of services of these foreign companies, the Brazilian government needed to establish dialogue between business, society and foreign interests. In short, this article aims to demonstrate how diplomatic negotiation became a crucial arena for both the definition of the strategy of power companies and the construction of the development project of the Brazilian government.
Keywords: electric power, diplomatic relations, Brazil, Getúlio Vargas.
A compreensão da dinâmica do setor elétrico brasileiro em meados do século XX deve ser alcançada mediante a análise de suas relações diplomáticas. Em 1945, com o final da Segunda Guerra Mundial, a geração e distribuição da energia elétrica no Brasil estavam nas mãos de dois grupos privados internacionais, a canadense Brazilian Traction Light & Power Co. (Light) e a norte-americana American & Foreign Company (Amforp), enquanto o governo ainda mantinha um papel muito limitado de atuação direta no setor. Dependendo de financiamento para novos projetos e no intuito de atender a demanda crescente de energia numa economia em processo acelerado de industrialização e urbanização, os governos de Eurico Gaspar Dutra (1946-50) e Getúlio Vargas (1951-54) travaram negociações, não somente com as empresas elétricas, mas inclusive com instituições internacionais e com o governo dos EUA. Eram negociações que exigiam definição de qual seria o papel das empresas privadas estrangeiras na economia brasileira, qual o volume de financiamento necessário para a crescente demanda de energia elétrica e, finalmente, qual o grau de cooperação técnica entre países para capacitar esses novos projetos. Num ambiente em que grupos nacionalistas questionavam a qualidade e capacidade de atendimento, como também os custos dos serviços dessas empresas estrangeiras, o governo precisava estabelecer o diálogo entre empresas, sociedade e interesses estrangeiros. Em suma, a negociação diplomática tornar-se-ia condição decisiva tanto para a estratégia das empresas elétricas, como para o projeto de desenvolvimento do governo brasileiro.
O cenário do Pós-Guerra tinha alterado consideravelmente o ambiente das relações econômicas internacionais. Se a rivalidade com o comunismo impôs maior participação do interesse norte-americano na economia internacional, por outro lado, a reconstrução da Europa e Japão como prioridades legou a América Latina a um plano secundário para os investimentos do governo dos EUA. O Brasil, no que diz respeito ao setor elétrico, continuava como um mercado relevante tanto por conta das duas maiores empresas atuantes no país manterem íntima relação com o capital americano, como por ser o Brasil um importador de equipamentos elétricos de empresas como General Electric e Westinghouse. Assim, se dificilmente o Brasil teria condições financeiras tão favoráveis para completar seus projetos do setor energético no contexto do Pós-Guerra – tanto elétrico como de petróleo, quanto tivera para o projeto siderúrgico concluído durante o conflito mundial –, seu mercado e sua posição estratégica na política e economia sul-americana impediam que o país fosse rejeitado pela política externa norte-americana. No cenário nacional, por outro lado, o governo brasileiro implementou mudanças no setor elétrico, estas iniciadas na década de 1930, momento em que a crise econômica internacional garantia maior autonomia às políticas nacionais (Hobsbawm, 1995, p. 91; Rothermund, 1996; Gourevitch, 1986, cap. 4). Se até meados do século XX as empresas estatais tinham papel limitado no setor elétrico, o governo, com o Código de Águas de 1934, vinha atuando mais incisivamente na regulação do setor limitando os rendimentos dos grupos privados.[2]
O Brasil respondia, nesse sentido, ao movimento internacional de domesticação do setor elétrico, quando empresas privadas tendiam a reduzir sua participação na prestação dos serviços elétricos, herdando aos governos nacionais o papel de gerar e distribuir energia elétrica (Hausman et al., 2008, cap. 6; Clifton et al., 2011, p. 659-672). Todavia, tratando-se da periferia do capitalismo, a capacidade técnico-financeira do governo de assumir um setor tão estratégico e decisivo para o projeto de industrialização mostrava-se limitada. Ao mesmo tempo, durante a década de 1950, o mercado brasileiro (assim como de outras nações periféricas) manteve-se como uma oportunidade de investimento para as multinacionais do setor elétrico (Wilkins, 1974). Em suma, numa era de ascensão do papel do governo na regulação da economia brasileira, de reordenação dos investimentos estrangeiros coordenados agora pelo governo norte-americano e, finalmente, de reavaliação das empresas estrangeiras de suas concessões, a diplomacia emergia como locus de definição desses embates. Enfatizamos que não foram apenas os embates internos entre privatistas e nacionalistas que direcionaram a dinâmica do setor elétrico naquele período.[3] O argumento deste artigo é justamente o de enfatizar esse novo espaço de disputas que nasceu com a reordenação da economia mundial no cenário do Pós-Guerra, observando como os projetos elétricos dos governos Eurico Gaspar Dutra e Getúlio Vargas dependeram desse trânsito entre interesses do governo brasileiro, dos empresários do setor elétrico e, inclusive, das disposições de investimento do capital americano coordenado pelo governo dos EUA.
1. A estrutura e os desafios do setor elétrico brasileiro no pré-1945
O setor elétrico brasileiro foi constituído historicamente de maneira bastante irregular, respondendo às desigualdades econômicas e demográficas nacionais. Regiões populosas e, especialmente, economicamente representativas rapidamente foram incorporadas ao mais moderno sistema de geração e distribuição de energia elétrica. Áreas com baixa densidade populacional, ou com estruturas de produção e comercialização ainda precárias, foram legadas aos parcos investimentos na modernização de seus sistemas elétricos. Nas regiões em que o serviço se manteve semelhante ao padrão internacional, acelerando o processo de modernização do padrão de consumo de sua população local, foi o capital internacional o responsável pelo fornecimento do serviço. Nas outras regiões, por outro lado, pequenas centrais elétricas montadas por iniciativas municipais ou de empresários locais tornaram-se a regra até os anos 1940. A inexistência de qualquer legislação nacional que versasse sobre os serviços públicos – a primeira legislação foi elaborada em 1934 – deixou extremo poder aos interesses privados que, em negociação com os poderes municipais, definiam os termos das concessões (Saes, 2010, cap. 5).
Assim, até a década de 1920 subsistiram experiências de empresas privadas nacionais de pequeno e médio porte, atuando em capitais regionais ou mesmo no interior de São Paulo e Rio de Janeiro. Todavia, especialmente depois da Primeira Guerra Mundial, e dos desafios impressos pela rápida expansão da demanda de energia, tais experiências mostrariam baixa capacidade de investimento perto dos necessários projetos de geração e transmissão de energia elétrica. Foi nesse contexto que, se de um lado as duas principais concessões brasileiras, as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, permaneceram nas mãos da empresa canadense Light, as concessões de importância secundária, em outras capitais regionais e no interior paulista e fluminense, foram adquiridas pela empresa norte-americana American & Foreign Power (Martin, 1966, p. 61-66).
Ambas as empresas estrangeiras seguiam um firme processo de investimento em sua capacidade produtiva até fins da década de 1920. Conforme relatório da Amforp de 1929, a empresa deveria assumir a organização financeira dos grupos privados adquiridos nos anos anteriores, expandindo a capacidade de suas plantas energéticas e modernizando os sistemas de transmissão e distribuição (Leite, 2007, p. 569). Ademais, esperava o desenvolvimento de novas formas de utilização de energia, aplicando tarifas especiais para promover o crescimento do consumo de eletricidade e da maior variedade do uso da energia elétrica. A modernização deveria passar pelas novas formas de operação e de métodos contábeis e o estabelecimento de relações mais próximas entre as empresas e as comunidades locais. Este projeto de modernização buscava desenvolver sistemas mais eficientes e rentáveis (Amforp, 1930, p. 7-8). O discurso era reforçado pelo relatório anual do ano de 1930, cujas metas eram garantir melhorias nos serviços, ampliação do consumo público, redução do custo do serviço fornecido e ampliação da rentabilidade em decorrência do volume de energia fornecida. Sobre seus investimentos, depois de dois anos de aquisição de empresas no interior de São Paulo como a CPFL, Southern Brazilian Electric Co., Empresas Elétricas de Araraquara e Campineira de Tração, Luz e Força, a Amforp iniciou a modernização de seu serviço, investindo na conclusão da Usina Hidrelétrica de Marimbondo, no Rio Grande (São Paulo), inaugurada em 1929, com 7.952 kW de potência e das linhas de transmissão na construção de um sistema elétrico regional (Amforp, 1930, p. 8-9).
De outro lado, a canadense Light teve uma significativa expansão de sua capacidade geradora durante os anos 1920 em São Paulo, como resposta à crise de energia que se observou em meados da década. Além das usinas hidrelétricas de Parnaíba (1901) e Itupararanga (1914), outras duas hidrelétricas foram concluídas no estado: Rasgão em 1925 e Cubatão em 1926-27.[4] Se Rasgão surpreendia pelo tempo recorde de construção, Cubatão seria o exemplo de um projeto audacioso e complexo que resolveria durante alguns anos o problema de falta de energia em São Paulo. O projeto de Cubatão envolvia a reversão do curso do Rio Pinheiros, a construção de usinas elevatórias e de uma represa que alimentaria a usina hidrelétrica e, como se não bastasse, uma queda d’água de cerca de setecentos metros, com aproveitamento do relevo da Serra do Mar. Com o início das operações, em 1926, a Usina de Cubatão ofereceria 28.000 kW e, em 1927, com a segunda turbina ligada, outros 28.000 kW. No total, a subsidiária de São Paulo passou dos 57.500 kW de capacidade instalada em 1924 para 178.724 kW em 1928. Até 1925 a Usina de Itupararanga completaria sua potência máxima de 56.124 kW, momento em que a Usina de Rasgão entraria em operação com 22.000 kW (Souza, 1982, p. 160-161). Em uma palavra: na segunda metade da década de 1920 a expansão da geração de energia elétrica pela São Paulo Light foi tamanha que garantiria segurança no fornecimento de energia para a região por alguns anos. Na cidade do Rio de Janeiro, por outro lado, a construção da Usina hidrelétrica de Ilha dos Pombos, em 1924, foi decisiva na elevação da capacidade instalada da região: eram mais 44.000 kW na inauguração e outros 29.000 kW em operação em 1929 que se somavam aos 24.000 kW da Usina de Fontes, a pioneira do grupo na região, inaugurada em 1909 (Castro, 1985, p. 45-46).
Esse cenário favorável para a expansão das plantas geradoras de energia e de seus sistemas de distribuição foi revertido por completo na década de 1930. Internacionalmente, a Grande Depressão impôs um redimensionamento financeiro em projetos custosos, não somente pelo encarecimento do crédito no exterior, mas também pelas incertezas de uma era de queda das atividades econômicas. Por outro lado, nacionalmente, a estrutura política brasileira fora alterada com a ascensão de Getúlio Vargas à presidência, quem colocou em prática as primeiras leis nacionais para o setor elétrico: as concessões tinham que ser autorizadas pelo governo central, perdiam as empresas estrangeiras a possibilidade de se valer da cláusula-ouro, medida usada para defender as receitas em moeda estrangeira nos momentos de desvalorização cambial.
Apesar do cenário desfavorável, mesmo sem construir novas plantas, a Light pôde expandir substancialmente suas antigas: expansão necessária para atender o que foi considerado pelos diretores da Light uma demanda surpreendente de energia em função do crescimento industrial do país (McDowall, 1988, p. 309). Destaque para a usina de Cubatão que, se aproveitando de um potencial elevado, ligaria novas máquinas: a n°3 em 1936 (54.000 kW) e n°5 e n°7 em 1938 (ambas com 65.000 kW). Em suma, graças ao projeto de Cubatão, desenvolvido em fins da década de 1920, a Light acompanhou a demanda de energia na região sem incorrer em custos mais elevados que a construção de novas usinas requeria, mas realizando a multiplicação da geração mediante a expansão de sua planta: na década de 1930, a Light em São Paulo passou dos 178.724 kW de capacidade instalada no início da década, para 366.739 kW em 1939 (Souza, 1982, p. 161). No Rio de Janeiro o crescimento de suas antigas usinas também seria a forma utilizada pela empresa para suprir o crescimento da demanda de energia na capital: a modernização da Usina de Fontes viabilizou a expansão da geração para 84 mil kW em 1940[5] enquanto na Usina Ilha dos Pombos a ampliação dos originais 44 mil kW elevaria a capacidade para 117 mil kW em 1937 (Dacorso, 2008, p. 275; McDowall, 1988, p. 406).
A Amforp, por sua vez, seguiu com a ampliação do número de cidades atendidas que, entre 1927 e 1939, passava de 78 para 309. Entretanto, diferentemente da Light, essa expansão pouco foi acompanhada por investimentos em novas centrais elétricas. A situação financeira não era muito favorável nos primeiros anos da década de 1930, exigindo que a empresa deixasse de pagar dividendos aos acionistas e que assumisse novos empréstimos com taxas de juros mais elevadas (Lanciotti, Saes, 2013, p. 7-9). As principais benfeitorias do período se relacionavam à construção de sistemas regionais de transmissão, garantido que a distribuição fosse realizada por meio de sistemas elétricos mais seguros (Amforp, 1930, p .8-9).
Passada quase uma década de depressão mundial, a capacidade ociosa das usinas elétricas dos anos 1920 começaria a chegar ao seu limite. Ademais, o acelerado crescimento da indústria e da urbanização durante a Segunda Guerra Mundial exigiria ainda mais da expansão da infraestrutura. No memorando de 24 de novembro de 1942 da Comissão técnica brasileira, apresentado aos representantes americanos naquilo que seria a Missão Cooke, eram destacados dez projetos para usinas geradoras de eletricidade, no intuito de superar os gargalos elétricos depois de anos com investimentos limitados no setor. As obras, em suma maioria, deveriam garantir a expansão da geração em usinas já instaladas, como Ribeirão dos Lajes e Cubatão do grupo Light, a construção de uma central elétrica, Avanhandava, no oeste de São Paulo, do grupo Amforp, entre outros projetos menores. No ambiente de guerra, o relatório ressalta que “a falta momentânea de meios financeiros leva à preconização de usinas menores, de baixo custo, que melhor venham a enquadrar-se em planos gerais do futuro” (Dickerman, s/d., p. 191-192).
E, de fato, durante a guerra foram poucos os investimentos no setor elétrico, baseados fundamentalmente na expansão da geração de usinas hidrelétricas construídas anteriormente. Em suma, o período inaugurado com o final da Segunda Guerra Mundial, que na economia mundial viu a ascensão dos Estados Unidos como centro dos países capitalistas, consolidou um novo espaço para as relações entre empresas estrangeiras e governos nacionais. O país assistiria, nesse sentido, ao acirramento das disputas entre privatistas, representantes originários da FGV e do Conselho Nacional de Economia que culpavam o Código de Águas pelos problemas do setor, e os nacionalistas que, na Assessoria Econômica de Getúlio Vargas, teriam grande presença, e defendiam o aperfeiçoamento da regulação com a ampliação da participação do estado no setor (Castro, 1985, p.88). Mas é preciso ressaltar que, no Pós-Guerra, a política externa norte-americana seria decisiva na condução dos projetos de política econômica dos governos brasileiros, condicionando, inclusive, as possibilidades de realização dos planos voltados ao setor elétrico. Em suma, a questão diplomática vai assumindo nesse período um significado novo e de grande relevância para a compreensão da dinâmica do setor elétrico no Brasil.
2. A diplomacia como arena de debate dos projetos para o setor elétrico brasileiro
É reconhecido que o fim da 2. Guerra Mundial e o prévio acordo de Bretton Woods imprimiram profundas mudanças à ordem mundial. A reincidência de uma guerra de proporções universais, num curto espaço de tempo, alertou os líderes mundiais para a importância de reconstruir a cooperação entre países no intuito de garantir a estabilidade internacional, o que culminaria com a criação da Organização das Nações Unidas em 1945. Os ares de mudança também chegaram ao Brasil. A vitoriosa participação brasileira junto aos Aliados em uma guerra contra o totalitarismo nazista, impôs o renascimento do espírito democrático. A ditadura do Estado Novo (1937-1945) já não era mais compatível com uma nação que aspirava ser uma potência regional. Se internamente o Brasil precisava caminhar em direção ao sistema político democrático, no que diz respeito ao cenário internacional, era preciso seguir os acordos travados em Bretton Woods em direção ao novo sistema monetário internacional.
Assim, diferentemente da suposta autonomia política ou do poder de barganha alcançado pelo governo Vargas com os Estados Unidos, especialmente depois de 1937 com a instalação do Estado Novo, no cenário do Pós-Guerra o Brasil precisava se adequar ao novo sistema de poder internacional, cuja capacidade de negociação conseguida anteriormente com os EUA por conta do alinhamento na Segunda Guerra não existia mais.[6] O governo de Eurico Gaspar Dutra, eleito em 1945, seria influenciado por esse novo ambiente internacional em formação, liderado então pela política externa norte-americana: o projeto de desenvolvimento seria encaminhado pelas diretrizes americanas. Nada mais enfático nesse sentido que o acordo firmado na Conferência de Chapultepec, em que era definida uma “assistência recíproca e solidariedade americana”, substituindo as relações bilaterais do período bélico, mas deixando os EUA sem compromissos de financiamento e apoio objetivos.[7] Isto é, nas entrelinhas previa-se privilegiar o fluxo de capitais privados internacionais ao invés de relações entre governos, característica que predominou durante a Segunda Guerra (Bastos, 2001, p. 185-186).
A linha americana para a América Latina era bastante influenciada por Nelson Rockefeller, líder do Office of the Coordinator of inter-American Affairs, que a considerava “uma região experimental da política de Boa-Vizinhança” americana, e que deveria receber investimentos estrangeiros, mas “dentro do espírito de defesa do livre mercado” (Tota, 2000, p. 185-186). A mensagem vinha estampada na Carta Econômica das Américas, de fevereiro de 1945, que reconhecia o desenvolvimento para a região como um programa positivo que permitiria a população local alcançar elevado nível de vida com liberdade de oportunidades. A cooperação no novo cenário liquidava com as esperanças existentes dos anos anteriores, como do relatório da Missão Cooke de 1942, que destacava os estrangulamentos para a contínua industrialização do país. A Missão abarcava os mais diferentes setores industriais, educação e infraestrutura. E, no que diz respeito à energia elétrica, o relatório reforçava o atraso no fornecimento de energia no país, que atingia apenas 0,03 kW per capita, enquanto a média americana era de 0,35 kW. A estrutura do setor era bastante dispersa e desigual, com poucas centrais elétricas com capacidade de geração comercial. Em parte, o relatório culpava o Executivo por ter congelado as tabelas tarifárias e proibido que as empresas estrangeiras construíssem novas plantas hidrelétricas.[8] A comissão responsável pela análise do setor recomendava ao governo americano apoiar dez projetos voltados para usinas geradoras de energia, que seriam consumidoras de equipamentos elétricos produzidos nos Estados Unidos.[9] A novidade era que a comissão abria espaço para a intervenção do Estado no setor, desde que de caráter complementar à iniciativa privada (Castro, 1985, p. 132).
Assim, a Missão Cooke seria muito mais um instrumento de avaliação do setor de serviços, estudo que seria resgatado ao longo da década, mas sem garantir a resolução desses gargalos. Numa sociedade em profunda transformação, em que a participação da indústria na economia crescia e a população se urbanizava, restava saber como financiar os projetos de infraestrutura. O presidente Dutra, nesse sentido, incorporava o discurso americano quanto à retomada da abertura comercial e dos grupos liberais brasileiros quanto ao processo inflacionário: criticava os privilégios recebidos pelos industriais brasileiros durante o período do conflito bélico que, sem competição externa, praticam preços abusivos. Para o Pós-Guerra, propunha Dutra que, em vez de um Estado protetor da indústria nacional, fossem resguardadas as condições necessárias para que o afluxo de capitais estrangeiros retomasse elevados níveis, garantindo a estabilidade de preços internos e as remessas de lucros para as empresas.[10] Mas a falsa imagem de um cenário confortável de reservas cambiais ficou escancarada nos primeiros meses de governo.[11] A expectativa de apoio dos Estados Unidos ainda estava no imaginário do governo, o que poderia sustentar nova cooperação entre os países; entretanto, em fins de 1946 o olhar do governo americano não estaria mais voltado à América Latina.
A Europa ainda destruída economicamente por conta da 2. Guerra Mundial, contudo, tornou-se a prioridade para os Estados Unidos, que deviam arregimentar aliados e um sistema político-econômico estável. A disputa pela influência na Europa com a URSS caracterizaria um longo período no qual os EUA priorizariam a reconstrução europeia em sua política externa. Durante seu primeiro mandato como presidente dos EUA, Harry Truman (1945-49) deu especial atenção aos acordos com a Europa, aprovando em 1947 o European Recovery Program, o conhecido Plano Marshall (Gilpin, 1975, cap. 5; Eichengreen, 2000, cap. 4).
Enquanto isso ao Brasil seriam reservadas as tradicionais tratativas da política comercial, limitando a discussão a eventuais acordos bilaterais. Em 1946, os documentos do Departamento de Estado dos EUA revelam que a preocupação do corpo diplomático do país se limitava ao comércio de café, deixando de lado os discursos de apoio ao desenvolvimento industrial. A discussão sobre os subsídios e o preço do café brasileiro ocupava parte significativa das correspondências internas do departamento, com o acordo travado entre Dean Acheson, então Secretário de Estado em exercício, e o embaixador americano no Brasil, Adolf A. Berle, Jr.[12]
A baixa prioridade que o governo dos EUA deu ao Brasil nesses primeiros anos de governo Dutra incomodava o governo brasileiro. No memorando de conversação, datado de maio de 1946, mostrava o ministro brasileiro da Viação e Obras Públicas, Macedo Soares, afirmando a necessidade de seu país obter a assistência financeira norte-americana para que a população melhorasse suas condições de vida, reproduzindo o discurso da Missão Cooke e da Carta Econômica das Américas.[13] A resposta do representante dos EUA reafirmava que o Brasil precisava buscar financiamento privado.[14] Macedo Soares simbolizava a decepção brasileira, dizendo que “o Brasil foi levado a acreditar que imediatamente após a guerra seria o momento mais favorável para levar adiante seu plano de desenvolvimento”, mas percebia que “o Brasil [...] estava equivocado”. Para Soares, “o governo tinha a esperança de [...] poder colocar em execução seu plano de desenvolvimento com capital americano e comprando somente equipamento americano”, o que se tornara impossível naquele contexto.[15]
Em 1948, os dois países estabeleceriam nova comissão, Missão Abbink, para discutir e analisar como o Brasil poderia acelerar seu desenvolvimento e atrair um fluxo maior de capital privado estrangeiro. A retomada dos investimentos no setor elétrico brasileiro deveria transcorrer em conformidade com as diretrizes da Carta Econômica das Américas, dependendo fundamentalmente dos recursos privados. Entretanto, as duas grandes empresas estrangeiras reclamavam da falta de recursos que poderiam permitir os investimentos necessários para superar os gargalos do setor: a diretoria da Light, na reunião de novembro de 1947, discutia a dificuldade de encontrar recursos no mercado de capitais de países como os Estados Unidos, Canadá e Inglaterra (Dacorso, 2008, p. 269). A Amforp buscava, por seu turno, colocar em prática o projeto de ampliação de sua geração previsto desde 1941, com a construção de nova usina que permitiria a geração de mais 20.000 kW em São Paulo (Amforp, 1941, p. 3). Assim como a Light, os diretores da empresa americana reconheciam que sem novas fontes de recurso seria impossível implementar projetos estruturais como pressionados pelo governo brasileiro: a estratégia passava neste novo cenário por buscar os recursos em instituições internacionais de empréstimos, como, por exemplo, o Banco Internacional de Cooperação e Desenvolvimento (BIRD) e do Banco de Exportação e Importação dos Estados Unidos (Eximbank).[16]
Apesar das demandas das próprias empresas estrangeiras, a Missão Abbink reforçaria o discurso do governo norte-americano. Valendo-se dos estudos prévios da Missão Cooke, o grupo de trabalho estava focado na melhor utilização dos recursos internos brasileiros, explicitando que “a comissão não deve comprometer-se a apreciar o mérito de projetos específicos ou para avaliar a conveniência de obter financiamento externo”.[17] Todavia, em seu relatório final, a comissão não descartava a energia elétrica como gargalo a ser superado. E, para atender as empresas privadas, a Missão apontava para se repensar a questão dos ajustes de tarifa que tinham se mantido congeladas entre 1933 e 1945: “Um bem-sucedido financiamento do programa de desenvolvimento de energia dependerá do ajuste adequado da tabela de taxas para dar uma razoável segurança de poder aquisitivo suficiente para justificar o investimento”.[18]
O governo brasileiro, observando a necessidade de expansão da capacidade da produção de energia do país, passou a defender a proposta de ampliar a capacidade instalada de geração hidroelétrica de 1,5 milhões de kW para 2,8 milhões de kW em 6 anos – como projeto a ser incluído no Plano Salte.[19] O relatório sustentava a orientação privatista de apoio ao capital estrangeiro, ressaltando que as empresas Brazilian Traction e Amforp deveriam ser responsáveis por mais da metade dessa ampliação.
Ao final do ano de 1948, entretanto, já era possível notar dentro do governo norte-americano o início de uma mudança de visão em relação à política econômica reservada à América Latina. Se no relatório a questão financiamento era legada ao BIRD, por outro lado, em mensagem ao governo americano, o próprio chefe da Comissão Técnica Brasil-Estados Unidos, John Abbink, sinalizava a necessidade de uma nova orientação nas relações entre EUA e América Latina. Em dezembro, Abbink envia telegrama ao Departamento de Estado dos EUA dizendo que o seu governo “estava tão preocupado com problemas urgentes na Europa e Ásia, que uma lamentável impressão de abandono das relações interamericanas tem avançado consideravelmente no hemisfério, especialmente na América Latina” (Malan et al., 1977, p. 31-32). Para o representante americano da missão, a “agitação política, usualmente, é um sintoma, não uma doença em si”.[20]
No que diz respeito ao setor elétrico, a Missão Abbink seguia os preceitos defendidos anos antes na Missão Cooke, isto é, confiando no papel das empresas privadas para o desenvolvimento do setor no Brasil, mas admitindo que a geração de energia poderia ser realizada pelo governo. Essa divisão de tarefas no setor elétrico é o que foi chamado de “pacto de clivagem” por Nivalde de Castro (Castro, 1985, p. 4). Mas de qualquer maneira perdurava uma questão: como financiar tais projetos, tanto governamentais como privados? Nesse cenário que Abbink clama por uma nova postura para a administração federal norte-americana que seria assumida em 1949.[21]
3. Assistência técnica para a América Latina: o Ponto IV e o setor elétrico no Brasil
Reeleito como presidente dos EUA em 1949, Harry Truman, logo em sua posse, sinalizava uma mudança de postura do governo em relação aos países subdesenvolvidos. O cenário de recuperação europeia e acirramento da disputa com a URSS exigia nova postura por parte dos EUA no cenário internacional com iniciativas de incentivo e fomento do desenvolvimento econômico. Assim, em seu discurso inaugural, Truman, além de reafirmar a importância da manutenção dos programas de incentivo à recuperação da economia global, destacava a necessidade de assistir as nações subdesenvolvidas rumo ao desenvolvimento. O presidente enumerava alguns pontos os quais seu novo governo devia priorizar, sendo que o quarto ponto expunha a opinião de que os EUA deviam disseminar os avanços científicos e industriais para países que sofriam com a fome e a pobreza, salientando a importância de que países democráticos prosperassem, mostrando aos críticos da democracia e do capitalismo a superioridade desse sistema de governo.[22]
O discurso era a primeira alusão de Truman ao programa que ficaria conhecido como “Ponto IV”. Esse programa priorizaria a assistência técnica aos países subdesenvolvidos (situação na qual se encontravam todos os países da América Latina) e deixava claro que o governo dos EUA não investiria diretamente nesses países.[23] Documentos internos do governo norte-americano evidenciam a intenção de levar a esses países novas formas de “melhor uso da terra, técnicas de gerenciamento, métodos de administração pública”, entre outras assistências, também para incentivar a entrada de capital americano nessas áreas.[24]
É evidente que, com esse programa, o governo dos EUA não estava interessado somente no bem-estar das nações assistidas, mas também na manutenção do ritmo de crescimento da própria economia norte-americana. A administração Truman estava ciente que o aumento do poder de compra dessas nações culminaria em demanda por produtos americanos, incentivando sua indústria e seu agronegócio. Esse era o argumento decisivo para convencer os empresários dos Estados Unidos da importância do setor privado abraçar o programa. Em uma convenção da National Eletrical Contractors Association, a associação que cuidava dos interesses das empresas prestadoras de serviços elétricos dos EUA, o assistente do presidente Truman, John R. Steelman, fornecia aos presentes a explicação da importância do “Ponto IV” para a economia norte-americana, também citando as razões humanitárias que reservariam ao país essa missão. Steelman diz: “Em uma extensão bem maior que no passado esse tipo de atividade (o ponto IV) vai utilizar os meios e experiência do setor privado e organizações sem fins lucrativos.”[25] Cooptar o empresariado norte-americano era meio para viabilizar a política externa e, por isso, a preocupação do governo Truman de participar de eventos como a convenção da National Eletrical Contractors Association. O apoio do empresariado deveria ser conquistado, afinal a periferia se consolidava como área para investimentos norte-americanos e que precisaria de novos projetos de financiamento para manter o ritmo de crescimento econômico.[26]
Em abril de 1950, entretanto, John Abbink alertava o Departamento de Estado dos EUA de que o fim da Comissão Técnica Brasil-Estados Unidos (Missão Abbink) teria decepcionado o governo brasileiro, já que este tinha anseios de conseguir manter uma comissão permanente entre os dois países.[27] O Plano Salte, nessa altura, já malograra por falta de recursos. Assim, Abbink transmitia a decepção brasileira, considerando que “como um dos ativos aliados dos Estados Unidos nas duas guerras mundiais [...] deveria ser um beneficiário dos fundos do Plano Marshall igualmente a outros aliados europeus”. O representante norte-americano considerava imprescindível que fosse criada nova comissão, pois, para ele, o Brasil necessitava urgentemente de ajuda, ao menos para apresentar boas propostas de financiamento dos Estados Unidos, por meio do Eximbank e do Banco Mundial, especialmente no intuito de suprir os urgentes gargalos na infraestrutura:[28] vale ressaltar que, em 1949, a cidade de São Paulo teria enfrentado duro racionamento de energia.[29]
Nos meses finais do governo Dutra, nova rodada de negociação seria selada entre os governos brasileiro e norte-americano. Na oportunidade, alguns empréstimos já estavam sendo negociados entre as instituições financeiras internacionais e as próprias empresas atuantes no mercado brasileiro. Em 1948, foi autorizado empréstimo do Eximbank à Amforp, alcançando a soma de aproximadamente US$ 6,5 milhões, valor que atendia oito concessionárias do grupo norte-americano. Dificilmente esse empenho poderia auxiliar na construção de novas plantas; certamente atendiam muito mais a reposição de equipamento obsoleto. No caso da Brazilian Traction, por outro lado, os recursos liberados pelo BIRD alcançariam valores bastante expressivos, de US$ 57,6 milhões em 1949, pagáveis em 25 anos, e outros US$ 15 milhões em 1951, ainda como empréstimos realizados diretamente ao grupo canadense, sem intermédio dos projetos de desenvolvimento do governo brasileiro. Certamente tais valores, como veremos mais à frente, atendiam aos grandes projetos de expansão da geração de energia do grupo. Finalmente, a Companhia Hidroelétrica do São Francisco, a primeira empresa federal do setor elétrico no país, em 1950 teria um empréstimo do BIRD, no valor de US$ 15 milhões, na fase de construção de sua primeira usina hidrelétrica, de Paulo Afonso na Bahia.
As conversações com o governo norte-americano tinham em mente, portanto, aproveitar-se desse novo cenário para aquisição dos empréstimos estrangeiros. Retomando os projetos e estudos da década anterior, o programa de reaparelhamento dos setores de infraestrutura do país, conhecido como Comissão Mista Brasil-Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico (CMBEU), seria oficialmente criado em julho de 1951, momento em que Getúlio Vargas voltava à presidência da República.[30] O presidente teria que lidar com o crescente endividamento do Estado e com as pressões inflacionárias logo ao assumir seu mandato. Ao menos pareceria ter a seu favor a elevação dos preços do café no mercado internacional e a nova postura dos EUA com a América Latina desde o lançamento do “Ponto IV” com maior abertura para a assistência ao desenvolvimento (Vianna, 1990, p. 125).
A prioridade assinalada pela CMBEU era de que o país precisar superar seus pontos de estrangulamento, isto é, criar condições para o desenvolvimento do setor agrícola, do transporte sobre terra e do fornecimento de energia.[31] Eram previstos gastos em torno de 22 bilhões de cruzeiros, desembolsados 14 bilhões pelo governo federal, e o restante, equivalente a 387 milhões de dólares, seria financiado externamente. Por isso mesmo era necessário garantir a cooperação econômica e financeira via Estados Unidos, por meio de instituições como o Eximbank e o BIRD,[32] com esse último mais propenso a liberação de crédito para a produção de energia.[33] Eram 41 projetos elaborados pela Comissão no total, sendo nove para o setor elétrico, que abarcavam cerca de 30% dos valores dos projetos previstos pela Comissão e gerariam um acréscimo de 50% na capacidade geradora do país (Tabela 1).

Os valores estimados pela CMBEU para financiamento dos projetos elencados não seriam totalmente desembolsados; contudo, aproveitando-se do ambiente favorável, Horácio Lafer, Ministro da Fazenda (1951-53) e chefe da Comissão Mista, conseguiu negociar parte dos recursos direcionados aos setores básicos da economia brasileira. Os principais beneficiados seriam os setores de transporte ferroviário e o setor de energia elétrica. Os documentos diplomáticos trocados entre agentes do governo norte-americano apresentam a preocupação de que os recursos fossem também viabilizados às subsidiárias norte-americanas sediadas no Brasil. Durante a negociação de um grande pacote de financiamento que incluía o aporte de U$ 41 milhões na Amforp por parte do Eximbank, o embaixador dos EUA no Brasil, Johnson, por outro lado, mostrava sua preocupação em fazer com que a Comissão Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul também recebesse aporte, de forma a não prejudicar a aprovação do financiamento à Amforp pelo governo brasileiro. De fato, em junho de 1952, o Eximbank liberou os U$ 41,140 milhões para sete subsidiárias da Amforp, enquanto o BIRD emprestou outros U$ 25 milhões para a Comissão do Rio Grande do Sul.[34] Nas palavras de Bastos, “as pressões diplomáticas dos Estados Unidos indicam a dificuldade de colocar em prática um projeto estatizante que não controlava com autonomia os recursos financeiros necessários”, especialmente por conta do poder dos interlocutores que controlavam a liberação de verbas exatamente para favorecer um projeto privatista (Bastos, 2012, p. 290).
Em suma, os projetos da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos estavam divididos entre as ampliações das empresas privadas nacionais e as empresas elétricas estaduais. Na perspectiva interna, o presidente Getúlio Vargas sabia que era preciso ceder frente ao interesse dos grupos privados para obter o financiamento para seus projetos dos órgãos de fomento internacionais: em junho de 1952, aprovou o desembolso da CMBEU para as Empresas Elétricas Brasileiras, concessionária da Amforp no Rio Grande do Sul, e em janeiro de 1953, num contexto de restrição de reservas internacionais, alterou a estrutura cambial do país com a Lei 1807, do mercado livre, para facilitar o trânsito do capital estrangeiro no país de maneira geral. Se não existia mais o cenário favorável da Segunda Guerra Mundial para barganhas entre governo-governo, certamente, o presidente não tinha desistido de sua concepção nacional-desenvolvimentista de construir instrumentos para domar o capital estrangeiro aos desígnios da nação.
Eram medidas necessárias para garantir essa cooperação bilateral, pois, ao abocanhar recursos para os projetos públicos estaduais ou mesmo para a formação do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) em 1952, o governo brasileiro precisava ceder aos interesses dos representantes americanos que condicionavam tais recursos à liberação dos empréstimos para a Amforp e Light. Entretanto, o compromisso com a cooperação bilateral não foi plenamente cumprido. Do lado privado, os desembolsos foram direcionados já em 1952 para a Amforp, e em 1954, para a Light: juntos alcançavam cerca de US$ 60 milhões de dólares, isto é, cerca de um terço de todos os 41 projetos aprovados na CMBEU para todos os setores com recursos destinados. Das empresas estaduais, apenas receberiam financiamento a Ceerg, Cemig e Uselpa, que, somadas, seriam atendidas com o valor aproximado de US$ 40 milhões recebidos pela Amforp. Outros projetos previstos pela própria Comissão seriam suspensos com a inflexão do governo norte-americano em 1953.
Em 1953 assumiria como presidente dos Estados Unidos Dwight D. Eisenhower, que, eleito pelo partido Republicano, mudaria a orientação da política externa norte-americana. O novo governo cedo abandonou a política de assistência aos países subdesenvolvidos e, em maio de 1953, já teriam início as trocas de correspondências entre a embaixada dos EUA no Brasil e o Departamento de Estado apontando para o término das atividades da Comissão Mista. O Secretário de Estado norte-americano, John Foster Dulles, orientava seu embaixador de que a Comissão deveria ser extinta, deixando claro que futuros empréstimos ao Brasil deveriam ser feitos dentro da capacidade de pagamento do país.[35] O país, ao longo de 1952, passava a enfrentar um cenário de deterioração cambial, induzindo que o discurso condicionador do Banco Mundial passasse a ser hegemônico entre as instituições norte-americanas. O governo Eisenhower reforçaria uma postura de distanciamento em relação à economia brasileira: quando indagado pelo governo brasileiro sobre uma possível formação de um novo conselho econômico conjunto, prontamente, o governo norte-americano recusou, por não estar disposto a conceder novos empréstimos.[36] É nesse quadro, das diferentes orientações tomadas pela política externa dos Estados Unidos no período do Pós-Guerra, que, superando explicações puramente dicotômicas entre estatistas e privatistas na política brasileira, podemos compreender o desenrolar das políticas voltadas ao setor elétrico entre os governos dos presidentes Dutra e Vargas.
4. Os projetos do setor elétrico na trajetória ao “pacto de clivagem”
O termo “pacto de clivagem” empregado por Nivalde de Castro explica a tendência de divisão do setor elétrico entre geração, transmissão e distribuição ocorrida nos anos 1950. Isto é, na origem, as empresas concessionárias do setor elétrico eram responsáveis pela construção de todo o sistema elétrico; afinal, tratando-se daquelas que atendiam os grandes mercados, era necessário aporte de capital e tecnologia que não estavam no horizonte de gastos para países como o Brasil antes da década de 1930. No período do Pós-Guerra, entretanto, com crescentes gargalos na infraestrutura do país, a intervenção do governo brasileiro passaria a priorizar investimentos em geração, o que poderia ser encarado com bons olhos para as empresas privadas que não precisariam imobilizar elevadas quantidades de capital, ficando com a parte mais rentável da cadeia do setor elétrico, a distribuição. Os planos de cooperação norte-americanos podem ser considerados, nesse sentido, como uma fase de transição nessa “clivagem” do setor elétrico: ainda favoreciam a liberação de recursos para as concessionárias privadas estrangeiras, mas também não deixaram de viabilizar recursos para empreendimentos do governo que, inclusive, poderiam atender às próprias concessionárias, como o caso da CHESF no Nordeste. Entretanto, seriam os planos governamentais, em especial o Plano Nacional de Eletrificação de 1954, que definitivamente vão distanciar as empresas estrangeiras de promoverem novos investimentos em geração (Castro, 1985, p. 3-5).
De qualquer maneira, apesar do desinteresse crescente das empresas privadas por empregar novos recursos na geração de energia elétrica, não é possível falar numa situação de baixa rentabilidade das empresas no Pós-Guerra. Especialmente no que diz respeito à empresa canadense Light, as receitas mais que dobram entre 1945 e 1950, resultado também de manobras técnicas e financeiras do grupo.[37] No que diz respeito às questões técnicas, ao longo do período a Light conseguiu reduzir a média de utilização da capacidade instalada, o chamado fator carga, permitindo que a empresa vendesse maiores quantidades de energia sem precisar ampliar a capacidade geradora. Essa medida foi possível por conta da política de racionamento do governo que autorizava a empresa ampliar a produção de energia, reduzindo a ociosidade de sua capacidade instalada, por meio da ampliação do fator carga, para níveis bem mais elevados do que os indicados por padrões internacionais. De outro lado, a política de expansão das plantas e de realização de investimentos por meio de empréstimos internacionais também foram favoráveis: com uma legislação brasileira que limitava a lucratividade em 10% ao ano, a Light passou a usar os empréstimos para conseguir realizar suas remessas de lucro. A holding Brazilian Traction era a responsável por assumir os empréstimos com o BIRD, à taxa de juros de 4,5%; por outro lado, a holding repassava esses recursos para suas subsidiárias, São Paulo e Rio de Janeiro Light, também como empréstimos, mas agora com juros de 8% ao ano. Esse diferencial entre as taxas de juros, muito mais do que uma resposta aos custos das operações financeiras, era uma forma de remeter lucros burlando a legislação em vigor (Castro, 1985, p. 104-117).
Por isso, a nova estrutura financeira internacional parecia favorável para as empresas estrangeiras. Enquanto o governo norte-americano no período do Pós-Guerra manteve seu compromisso de não assumir mais empréstimos entre governos, como era destacado nos discursos do próprio presidente Truman, eram as agências de fomento ligadas aos Estados Unidos – em tempos de Ponto IV –, que assumiriam a função decisiva nessa nova forma de financiamento à periferia. O Brasil se destacaria no volume de recursos recebidos a partir de então, tanto pelo BIRD como pelo Eximbank (Tabela 2). A priorização pelo Brasil – como pelo México – demonstra que o início do governo Vargas não era tido como um representante de posições políticas nacionalistas; pelo contrário, sustentava o país o papel de aliado fiel e de sede dos investimentos das empresas elétricas que estavam intimamente ligadas aos Estados Unidos.[38]

Não obstante o montante total de financiamento ter ficado aquém do planejado, o período de funcionamento da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos pode ser considerado o auge de cooperação entre os dois países quando levado em conta o período que vai de 1946 a 1964. Apoiada nos objetivos do programa “Ponto IV”, a comissão mista produzia exatamente o tipo de política externa que o presidente Truman almejava, na qual os EUA exerciam uma liderança ativa com a intenção de obter ganhos econômicos e garantir o predomínio do sistema capitalista no globo. A superação da condição de subdesenvolvimento de muitos países era parte essencial desse projeto de Truman, que deixaria também como herança no Brasil a constituição do BNDE para gerenciar os fundos concedidos ao país voltados ao desenvolvimento. Nesse sentido, no que diz respeito ao setor elétrico, por meio de recursos dos bancos de fomento internacionais – como veremos a seguir –, as duas grandes empresas privadas do setor elétrico no Brasil alcançariam maior fôlego para realizar seus últimos grandes investimentos.
Afinal, apesar da preocupação do governo federal com o fomento das empresas elétricas estatais e mesmo da CHESF sob responsabilidade do governo federal, no Brasil as duas principais empresas receptoras dos empréstimos do BIRD e Eximbank seriam justamente a canadense Light e a norte-americana Amforp entre 1949 e 1954: enquanto a Light recebeu mais de 91 milhões de dólares do BIRD, as subsidiárias brasileiras do grupo Amforp ficariam com toda a quantidade desembolsada pelo Eximbank, de 47 milhões de dólares. É preciso qualificar essa ênfase dada ao setor privado internacional, afinal juntas as duas empresas representavam cerca de 70% da geração de energia elétrica no país, o que por si justifica uma priorização na divisão dos recursos.
O Estado que iniciava seus projetos de atuação no setor elétrico, por outro lado, também teria sua parcela de recursos. Dos empreendimentos estatais, que somados alcançavam o valor de 57 milhões de dólares, os recursos seriam investidos na CHESF e nas empresas estaduais do Rio Grande do Sul (CEEE), Minas Gerais (CEMIG) e São Paulo (CESP). Esses investimentos ainda não chegavam a ameaçar as empresas estrangeiras, pois beneficiavam áreas preteridas pelos grupos internacionais e, acima de tudo, como acreditavam seus diretores, suas empresas eram muito mais eficientes do que os negócios do governo, não gerando um cenário potencial de competição entre os investimentos.[39] Pelo contrário, a CHESF, que receberia recursos para a construção da usina de Paulo Afonso, beneficiaria a Amforp ao ofertar energia para a companhia norte-americana que atendia os principais centros urbanos nordestinos.
O BIRD, banco criado para fomentar o financiamento de países em desenvolvimento – inicialmente a Europa em reconstrução – teria um papel mais flexível ao apoio das políticas da Secretaria de Estado dos Estados Unidos. Isto é, seria um instrumento de apoio ao desenvolvimento, mas atuando diretamente com a política do governo americano. Por isso, os créditos também corriam para empresas públicas em constituição, o que auxiliava a negociação com o governo brasileiro entre outros tantos temas pertinentes ao governo norte-americano, tais como garantir o acesso aos minérios do país (Tabela 3).[40]

Com os recursos do BIRD, a São Paulo Light conseguiu manter sua trajetória de expansão da geração de energia elétrica em Cubatão, colocando em funcionamento mais duas novas máquinas de 65.000 kW, além de implementar melhorias que permitiam a ampliação da geração de energia nas máquinas antigas.[41] Assim, em menos de quatro anos, a empresa saía de 374.304 kW gerados em 1945 para 545.304 kW em 1949. Já em 1952, valendo-se da segunda leva de recursos, agora dentro da CMBEU, novo programa de obras teve início também em Cubatão, com a construção da usina hidrelétrica subterrânea – Cubatão II – gerando a capacidade total de mais 390.000 kW. Sua inauguração ocorreria em março de 1956, com a operação do primeiro gerador de 65.000 kW. Ao mesmo tempo, para atender a falta de energia tanto por conta da expansão da demanda como devido à falta d’água no período, foi construída a usina termelétrica de Piratininga projetada inicialmente para operar com uma capacidade de 160.000 kW em fins de 1954. No início dos anos 1960, a potência instalada da usina de Piratininga atingiu o montante de 450.000 kW (Souza, 1982, p. 161 e Castro, 1985, p. 39-42).
No Rio de Janeiro, por sua vez, as ampliações dependiam da capacidade de armazenagem de água do sistema do Rio Paraíba do Sul. Nesse sentido, a construção de novas usinas estava subordinada às reformas em barragens e comportas. Estas obras tiveram início no Pós-Guerra, permitindo que em 1949 entrasse em operação novo grupo gerador na Usina da Ilha dos Pombos, que atingiria a capacidade de 162.000 kW. Mas a principal obra do sistema da Rio Light no período foi a Usina Subterrânea Nilo Peçanha, a primeira neste estilo na América Latina, que exigia uma ampliação do represamento nas cabeceiras. Sua inauguração ocorreu em 1953 e, em julho de 1954, atingiu a potência máxima de 330.000 kW.[42] Tais obras permitiram que a Light alcançasse o auge de sua participação na capacidade instalada do país, que representava 46% em 1945 e chegou aos 51% em 1950. Tamanho investimento da empresa canadense, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, contudo, não foi financiado somente com os recursos externos. Nos cinco anos entre 1946 e 1950, por exemplo, o investimento da empresa alcançou os US$ 212 milhões, com apenas cerca de 20% destes recursos obtidos por meio de terceiros.[43]
Diferentemente do BIRD, o Eximbank, apesar de ser uma agência de crédito ligada ao executivo do governo norte-americano, mantinha certa autonomia que lhe conferia poder de executar empréstimos por meio de instrumentos mais técnicos do que políticos.[44] Esta seria a deliberada política de William Mc Chesney Martin Jr., presidente da instituição entre fevereiro de 1946 e fevereiro de 1949. Sua posição era a de que o Eximbank deveria realizar empréstimos apenas para investimentos seguros, que estivessem associados aos setores importadores de produtos americanos, provocando potenciais conflitos com a Secretaria de Estado do governo americano no período de sua presidência, ao se opor aos empréstimos considerados de motivação política. É nesse sentido que os empréstimos do Eximbank ao Brasil, sob a presidência de Martin Jr. e de seu sucessor Herbert E. Gaston (1949-53), seriam direcionados basicamente para o apoio da empresa americana Amforp: divididos em duas fases, em 1948 cerca 6 milhões de dólares foram distribuídos para oito diferentes subsidiárias e, em 1952, ligado aos projetos da CMBEU, o volume de crédito ultrapassa os US$ 40 milhões. Os empréstimos atendiam às subsidiárias de todos os Estados, mas somente com empréstimos voltados à principal subsidiária da empresa, a Cia. Paulista, os valores alcançariam os 30 milhões de dólares (Tabela 4).

Fonte: CEPAL, 1956, p. 200.
Assim, no que diz especialmente ao desembolso da Amforp, em 1948, este ainda seria tímido, em torno de US$ 6 milhões, usado por oito subsidiárias e com financiamento, por exemplo, de empreendimentos como a Usina Termelétrica Carioba da CPFL, inaugurada em 1949 com 30.000 kW no estado de São Paulo. Conforme o próprio relatório anual da companhia, os empréstimos do Eximbank apoiariam novas construções, mas alertava que “o governo está construindo novas plantas”, geração dessas plantas que seria mais tarde aproveitada nas concessões norte-americanas (Amforp, 1948, p. 7-8). De qualquer maneira, ao completar os projetos de ampliação das antigas usinas, a capacidade geradora, entre 1945 e 1949, aumentaria mais 94.595 kW (Amforp, 1949, p. 5).
Foi com a CMBEU que o volume do empréstimo teria um expressivo salto para mais de 40 milhões de dólares em 1952, quando somente a subsidiária de São Paulo, CPFL, receberia 30 milhões para investimentos no grande empreendimento da companhia desde sua chegada ao Brasil, a construção da Usina do Peixoto, na época uma das maiores do mundo, permitindo que a subsidiária paulista ampliasse em 65% sua capacidade geradora; inaugurada em 1957, alcançaria em 1960 a capacidade de 192 mil kW (Cepal, 1956, apêndice X). Este seria o último grande empreendimento do grupo que, a partir de 1959, reverteria seus planos de permanência no país.
Efetivamente, a chegada dos empréstimos tanto do BIRD como do Eximbank se realizava num momento bastante oportuno para a economia brasileira. Afinal, a situação cambial brasileira vinha rapidamente se deteriorando: entre 1945 e 1947, com a retomada do mercado livre no governo Dutra, o Brasil comprometeu consideravelmente suas reservas, assumindo atrasados comerciais. Apesar de um interregno de recuperação da situação da balança comercial, o início do governo Vargas, em 1951, por conta da pressão inflacionária e do receio de uma redução do comércio internacional em função da Guerra da Coreia, levou o governo a flexibilizar o volume de importações, tornando as contas brasileiras novamente bastante frágeis no ano seguinte. Em suma, parecia uma tarefa bastante improvável que o governo conseguisse naquela oportunidade viabilizar o financiamento do setor.
O dilema de Vargas era que seu objetivo fundamental de avançar com o processo de industrialização no Brasil, medida que devia seguir as recomendações da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, não poderia ser efetivado sem reservas cambiais. Não seria possível garantir a importação de bens decisivos para avançar com a política de substituição de importações, desenvolvendo tanto a infraestrutura necessária, como a importação de bens de capital para a indústria. Segundo Pedro Paulo Bastos, Getúlio Vargas em sua mensagem presidencial de 1951 acreditava que as agências internacionais seriam a forma de financiamento do setor elétrico, garantindo a expansão das empresas públicas. Nas palavras de Vargas: “A falta de reserva de capacidade e as crises de eletricidade são processos de asfixia econômica de consequências funestas. É indispensável, por isto, que o poder público assuma a responsabilidade de construir sistemas elétricos, onde sua falta representa maiores deficiências” (Bastos, 2012, p. 280-281). Mas, na segunda metade de seu mandato, o cenário seria bastante alterado.
Com os atrasados comerciais de 1953, era preciso que novos acordos com o Banco Mundial fossem traçados, para somente assim existir condições objetivas para atingir as metas da CMBEU. Não previa Getúlio Vargas, todavia, que a reversão do cenário externo com a eleição do republicano Dwight Eisenhower (1953-1961) para a presidência dos EUA secaria as fontes de financiamento externo. Os projetos não financiados até então estavam definitivamente comprometidos. Somente então Getúlio Vargas, sem mais alternativas para financiar seu projeto de desenvolvimento do setor elétrico nos marcos do nacional-desenvolvimentismo, reuniu sua equipe para formar aquilo que seria o Fundo Federal de Eletrificação, uma medida para garantir o financiamento dos projetos do setor elétrico, mas agora por meio de fontes internas. O Fundo foi aprovado no ano seguinte e constituía uma parte decisiva no processo de construção do projeto da Eletrobrás que levaria uma década para ser formada.
Considerações finais
O artigo buscou demonstrar a estreita vinculação da trajetória do setor elétrico brasileiro com a diplomacia. Formado por meio de duas grandes empresas estrangeiras, a Light e a Amforp, o setor elétrico brasileiro teria desafios a superar na passagem da década de 1940 para a década de 1950, quando as dificuldades de fornecimento de energia se tornariam evidentes. Dependendo ou da retomada dos investimentos dos grupos estrangeiros ou de financiamento para iniciar os próprios negócios, o governo brasileiro estava preso às diretrizes da nova potência econômica internacional, os Estados Unidos. A centralidade dos Estados Unidos se justificava não somente pela sua decisiva participação hegemônica entre os países capitalistas, mas também pela estreita vinculação com os investimentos do setor elétrico brasileiro.
Assim, os governos de Dutra e Vargas, ao longo de uma década de planos econômicos e de infraestrutura, assim como de tratativas com os Estados Unidos, tentaram construir um caminho na direção de superar os gargalos na industrialização do país. Dutra receberia os estudos da Comissão Abbink, colocaria em prática o Plano Salte e observaria o cenário internacional mais promissor com a divulgação do Ponto IV de Truman. O governo Vargas, por sua vez, apesar de um início promissor com o estabelecimento da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, sofreria com um cenário nacional e internacionalmente conturbado a partir de 1952. A tentativa de uma política restritiva para saneamento e posterior recuperação econômica não foi bem-sucedida. Por outro lado, no contexto internacional, a política externa tomaria novo rumo com a eleição de Eisenhower, que, retirando os projetos e disposições aos países em desenvolvimento de seu antecessor, limitava ainda mais a reversão da crise econômica que emergia na segunda metade do governo varguista. Destarte, limitado interna e externamente, sem poder recorrer aos recursos internacionais para dar continuidade ao projeto de desenvolvimento de seu governo, Vargas precisou reunir forças políticas e econômicas internas para seguir com a transformação na economia brasileira.
Esse é o contexto de consolidação do pacto de clivagem, quando empresas estrangeiras vão perdendo seu interesse de manter aportes financeiros expressivos no setor elétrico, mas permanecendo com a distribuição de energia como atividade nuclear, enquanto os investimentos em geração seriam legados ao Estado. Portanto, no embate entre privatistas e nacionalistas ocorrido no Brasil durante o Pós-Guerra, a perspectiva de uma ascensão e vitória dos interesses nacionalistas com a constituição do Plano Nacional de Eletrificação e, posteriormente, de formação do projeto da Eletrobrás, não é de todo verídica. Não somente o governo se responsabilizava por parte da cadeia menos interessante para os grupos privados – algo que ocorreu de maneira geral no cenário internacional – como também refletia a reversão das relações econômicas internacionais, momento em que, por meio da diplomacia, eram fechadas as possibilidades para a construção dos projetos do setor elétrico com apoio do capital estrangeiro.
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Notas
Autor notes