Notas de pesquisa
Utopia: categoria da análise social?
Utopia: categoria da análise social?
História Unisinos, vol. 24, núm. 3, pp. 516-523, 2020
Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Recepción: 31 Octubre 2019
Aprobación: 17 Diciembre 2019
Resumo: Utopia foi o nome que Thomas More deu à ilha descoberta por Rafael Hitlodeu, o navegador português personagem do seu livro. Desde o século XVI, outras ilhas e sociedades ideais foram criadas por escritores insatisfeitos com o mundo em que viviam. Entretanto, uma mudança ocorreu no século XIX. Utopia deixou de ser apenas o nome da ilha de More e se tornou um conceito amplamente utilizado por filósofos e cientistas sociais. O objetivo deste trabalho é acompanhar o processo de transformação da utopia em categoria da análise social. Gostaríamos de ressaltar as limitações que o uso indiscriminado dessa categoria impõe ao estudo de textos e fenômenos considerados “utópicos”. Por fim, analisaremos brevemente o caso das missões jesuíticas na antiga Província do Paraguai, reputadas como “utopias” desde meados do século XIX.
Palavras-chave: Utopia, Conceitos teóricos, Práticas letradas, Utopia, Theoretical Concepts, Literate Practices.
Abstract: Utopia was the name given by Thomas More to an island discovered by Raphael Hythloday, the Portuguese navigator who is the main character of his book. Since the 16th century, other islands and ideal societies were created by writers who were unhappy with the world in which they lived. However, a change occurred in the 19th century. Utopia was no longer just the name of More’s island, but it became a concept which was going to be widely used by philosophers and social scientists. The aim of this paper is to follow the process of transforming utopia into a category of social analysis. We would like to emphasize the limitations that the indiscriminate use of this category imposes on the study of texts and phenomena considered “utopian”. Finally, we will briefly investigate the case of Jesuit missions in the former Province of Paraguay, reputed as “utopias” since the middle of the 19th century.
Para Karl Marx e Friedrich Engels, a utopia não era apenas uma ilha imaginária ou um adjetivo. Era uma categoria que se definia em oposição à revolução, à cientificidade e à realidade social. O seu caráter “não revolucionário” e “não científico” foi sublinhado, por exemplo, em As lutas de classes na França. O chamado “socialismo doutrinário”, que Marx relacionava ao conceito de “utopia”, baseava-se em “fantasias individuais” e “idealizações”. Ao contrário, o “socialismo revolucionário” seria coletivo (revolucionário) e se sustentaria no método científico, não em “idealizações”. Nas palavras de Marx:
Assim, ao passo que a utopia, o socialismo doutrinário, subordina a totalidade do movimento a um de seus momentos, substitui a produção comunitária, social, pela atividade cerebral do pedante individual e, sobretudo, suprime a luta de classes revolucionária com suas exigências, fantasiando pequenas proezas ou grandes sentimentalismos; ao passo que esse socialismo doutrinário, no fundo, apenas idealiza a atual sociedade, assumindo dela uma imagem desprovida de sombras e querendo impor o seu ideal à realidade dessa sociedade; ao passo que esse socialismo é cedido pelo proletariado à pequena burguesia; ao passo que a luta dos diversos líderes socialistas entre si evidencia cada um dos assim chamados sistemas como adesão pretensiosa a um dos pontos de transição para a convulsão social contra o outro - o proletariado passa a agrupar-se cada vez mais em torno do socialismo revolucionário, em torno do comunismo, para o qual a própria burguesia inventou o nome de Blanqui (Marx, 1850/2012).
Todo sistema de ideias “utópico” era considerado um “sistema imaginário”, na medida em que se abstinha de considerar as condições reais da sociedade. Os sistemas utópicos criavam “imagens fantasiosas” e “planos de uma nova sociedade” como meios para atingir a “superação do sistema do trabalho assalariado”. Apesar dos mesmos objetivos, Marx opunha o seu sistema materialista a esses sistemas imaginários, como fica claro no trecho a seguir:
Os fundadores utópicos de seitas, enquanto em seu criticismo da sociedade atual descreviam claramente a meta do movimento social, a superação do sistema do trabalho assalariado com todas as suas condições econômicas de domínio de classe, não localizavam na própria sociedade as condições materiais de sua transformação, tampouco na classe trabalhadora o poder organizado e a conscience de seu movimento. Eles procuravam compensar as condições históricas do movimento com imagens fantasiosas e planos de uma nova sociedade em cuja propaganda viam o verdadeiro caminho da salvação. A partir do momento em que o movimento dos operários tornou-se real, as utopias fantásticas esvaeceram-se, não porque a classe trabalhadora houvesse desistido do fim pretendido por esses utopistas, mas porque encontraram os verdadeiros meios para realizá-lo, surgindo em seu lugar uma visão real das condições históricas do movimento e uma força cada vez mais agregadora da organização militar da classe trabalhadora. Mas os dois fins últimos do movimento proclamado pelos utopistas são os fins últimos proclamados pela Revolução de Paris e pela Internacional. Somente os meios são diferentes, e as condições reais do movimento não estão mais encobertas por fábulas utópicas (Marx, 1871/2011).
Alguns comentadores demonstraram o uso político que Marx e Engels fizeram da “utopia”. Ao conceituar utopia e utilizá-la para caracterizar obras, sistemas de ideias e pessoas como “não revolucionários”, “não científicos” e “não reais”, Marx e Engels deslegitimavam seus concorrentes. Essa é a interpretação de Guy Bouchard:
A utopia é um sistema imaginário, portanto irrealista e, assim, não revolucionário, que, sem ser científico, parece pré-científico quando precede o movimento revolucionário, e, reacionário no caso oposto. No entanto, na medida em que conota essa concepção, a função denominativa da utopia está subordinada à sua função retórica: qualificar uma seita socialista como utópica é, na melhor das hipóteses, enfatizar seu caráter pré-científico e, na pior, acusá-la implicitamente de entrar no reino das quimeras. Nos dois casos, é um ato político que permitiu ao comunismo de Marx e Engels prevalecer sobre seus concorrentes (Bouchard, 1983)[4].
Ernst Bloch recuperou a categoria “utopia” no interior do marxismo e ampliou seu significado para além das acusações políticas[5]. Em Princípio Esperança, ele a definiu como “consciência antecipadora”. A “vontade utópica” conduziria todos os “movimentos de libertação” na história. Ele transformou o próprio marxismo em “utopia concreta”, na medida em que Marx conferiu objetivos práticos à esperança. Em suas palavras:
Éste es y sigue siendo el camino del socialismo, es la práctica de la utopía concreta. Todo lo que no es fantástico en las visiones de esperanza, todo lo real-posible tiene sus orígenes en Marx, labora - variando en cada caso, racionado según las situaciones - en la transformación socialista del mundo. En virtud de ello, la arquitectura de la esperanza se hace así realmente una arquitectura del hombre, del hombre que sólo la había percibido como sueño y como vislumbre elevado, harto elevado, se hace una arquitectura de la tierra nueva. En los sueños de una vida mejor se hallaba siempre implícita una fábrica de felicidad, a la que sólo el marxismo puede abrir camino. Ello abre un nuevo acceso - también de contenido pedagógico - al marxismo creador, un acceso desde nuevas premisas, de naturaleza tanto subjetiva como objetiva (Bloch, 1954/2004).
A utopia se tornou o conceito central de sua “teoria do ainda-não-ser”. Para Bloch, o homem e o mundo ainda não estavam concluídos. Essa incompletude era o que possibilitaria o “princípio esperança”. A utopia exercia a função de categoria ontológica nessa teoria, uma vez que Bloch identificava o homem como “ser utópico”. Francisco Serra definiu a característica principal da obra de Bloch nos seguintes termos:
La consideración antropológica del hombre como ser utópico, como expresión de una realidad aún no conclusa y que se trata de ir transformando. De ahí que el punto de partida lo constituya la idea de que "pensar significa traspasar": lo que Bloch pretende es una filosofía que sea capaz de poner los medios para la edificación de un mundo nuevo, en el que se haga al fin la realidad, que el hombre deje de ser considerado como un objeto y que se sitúe en el centro de la historia (Serra, 2004).
Michael Löwy diria que a “latência” do mundo é o que se encontraria na essência da “teoria do ainda-não-ser”. A filosofia, por exemplo, atuaria nessa latência. Ela seria responsável por apontar caminhos que os homens pudessem seguir. Teria “intenção utópica”, já que antecipava possibilidades não vislumbradas. Löwy sintetiza:
A filosofia da esperança de Bloch é acima de tudo uma teoria do ainda não ser, em suas várias manifestações: o ainda não consciente do ser humano, o ainda não tornado da história, o ainda não manifestado no mundo. Afinal, para ele, o mundo humano está cheio de disposição para algo, de tendência para algo, de latência de algo, e esse algo para o qual tende é o culminar da intenção utópica: um mundo libertado do sofrimento indigno, da angústia, da alienação (Löwy, 2003)[6].
Em Bloch, utopia é a expressão filosófica de um princípio inerente aos seres humanos, que é o princípio esperança. Nesse sentido, ela não se resume aos problemas políticos. Ela pode ser identificada em diversas manifestações humanas. De acordo com Serra:
[...] hay además utopías médicas, utopías geográficas, anhelos utópicos en la música, en las figuras paradigmáticas de nuestra cultura y, de forma especial, en la religión. No es uno de los méritos menores de Bloch el haber abierto el marxismo al tratamiento de la religión. (Serra, 2004).
Apontar o caráter utópico de algo é o mesmo que sinalizar sua “potência emancipadora” e legitimar seu estudo como “efeito” do “princípio esperança”.
No início do século XX, delineavam-se dois significados de utopia. Ambos estão presentes no Vocabulaire de la philosophie, obra de referência em relação à terminologia filosófica, que foi coordenada por André Lalande entre 1902 e 1923. O primeiro significado se liga mais diretamente à utopia de More. A utopia se define como um “quadro que representa sob a forma de descrição concreta e detalhada a organização ideal de uma sociedade humana” (Lalande, 1926). O segundo significado relacionava-se com a conceituação do termo empreendida por Marx e Engels: utopia era um conceito que englobava tudo o que fosse não revolucionário, não científico e não real (Lalande, 1926). A interpretação de Bloch ainda não figurava como predominante.
Desenvolvimento do conceito na segunda metade do século XX: utopia como método e como imaginário
Raymond Ruyer transformou a utopia em método no seu livro Utopie et utopies, publicado em 1950. Ele se distanciou tanto da conceituação de Marx e Engels quanto daquela de Bloch. Para Ruyer, a utopia era a descrição de um mundo imaginário que se encontrava fora de nosso espaço e tempo. O escritor de utopias não queria a mesma credibilidade do romancista – momentânea e estética – para a sua descrição. Ele esperava do leitor a crença no “possível”. Nesse sentido, utopias não eram romance, ficção científica ou conto fantástico. Elas eram um “jogo sério” com a realidade. O escritor de utopias conhecia as possibilidades oferecidas pelo real. Ele não se distanciava da realidade, como fariam os escritores de contos fantásticos.
As “utopias propriamente ditas” se destacavam especialmente por seu caráter criador; elas eram especulativas e práticas ao mesmo tempo. O seu caráter prático era garantido pela aplicação de um procedimento que uniria todas as utopias. Ruyer denominava esse procedimento unificador de “modo utópico”. Ele era um “exercício mental sobre as possibilidades laterais” do real. De acordo com suas próprias palavras:
O modo utópico pertence, por natureza, à ordem da teoria e da especulação. Contudo, em vez de buscar, como a própria teoria, o conhecimento do que é, trata-se de exercício ou jogo a respeito das possibilidades paralelas à realidade. O intelecto, no modo utópico, torna-se um poder de exercício concreto; ele se diverte ao testar mentalmente as possibilidades que vê transbordando do real. É relativo ao entendimento; depende de uma primeira compreensão do real e, por sua vez, ajuda a uma melhor compreensão (Ruyer, 1950)[7].
O modo utópico se aproximava do método científico, uma vez que ambos eram procedimentos baseados em experiências mentais. O utopista, por sua vez, era mais flexível na utilização das experiências do que o cientista. A partir do momento em que a experiência mental deixava de servir, o escritor de utopias simplesmente a abandonava. O cientista, ao contrário, aprimorava o método até encontrar os resultados desejáveis. Para Ruyer:
De fato, é preciso deixar claro, quando se compara o procedimento utópico com a hipótese científica, com o raciocínio hipotético-dedutivo, com o experimento mental, seja uma hipótese ou um experimento mental, não proíbe uma certa trapaça em favor do desejo pitoresco ou subconsciente ou, novamente, no caso de uma utopia satírica, de criar uma caricatura. O cientista usa a hipótese e a experiência mental como caminhos para a verdade. Ele imagina apenas para confirmar sua hipótese. Ele faz testes com a realidade, que o levam a retoques perpétuos, pacientes e dóceis. O utopista, especialmente o criador de utopias sociais, toma o veículo do experimento mental, mas ele o abandona arbitrariamente. Ele salta do veículo em movimento assim que percebe que corre o risco de ser desviado da direção que deseja seguir (Ruyer, 1950)[8].
O modo utópico e o método científico eram meios para alcançar a resposta de uma pergunta. Ora, mas o que os escritores de utopias queriam responder? O estudo das utopias, proposto por Ruyer, tem o objetivo de elucidar essa questão. Ao categorizar obras “utópicas”, o estudioso seria capaz de isolar o procedimento utilizado pelo “utopista” e buscar apenas as intenções por trás do procedimento. Ruyer definiu seis intenções possíveis para se escrever utopias: a) intenções imaginativas, que criam um lugar perfeito como forma de evasão da realidade; b) intenções críticas, quando o autor, ao invés de criticar diretamente sua sociedade, cria mundos às avessas, utópicos, para expor os vícios dos homens de seu tempo; c) intenções neutras, quando o utopista quer apenas estudar as possibilidades ao seu dispor; d) intenções construtivas, quando se apresentam propostas de mudança da sociedade de forma direta; e e) intenções puramente literárias. Os utopistas, portanto, como os cientistas, tinham diversas perguntas para responder.
Ruyer via as utopias com desconfiança. No capítulo mais longo de sua obra, “As taras profundas da utopia social”, a conclusão foi que as utopias eram mais nocivas que úteis aos homens, uma vez que a especulação utópica, em última instância, servia a um sonho de dominação. Essa visão negativa de Ruyer se aproximava daquela de Marx e Engels. A utopia era, na visão de Ruyer, Marx e Engels, um meio negativo de alcançar um fim positivo.
No final da década de 1970, Bronislaw Baczko vai de encontro ao trabalho de Ruyer. Ele propõe uma nova “teoria” para a utopia. Ao invés de procedimento, a utopia seria a chave para acessar um nível mais profundo das experiências coletivas: o imaginário. Desde o século XIX, os estudiosos se incomodavam com o conceito “imaginário”. Tanto os historiadores quanto os outros cientistas sociais queriam identificar os agentes sociais por trás das representações. Baczko, por outro lado, recuperou o “imaginário” e defendeu sua existência enquanto ferramenta analítica. O imaginário social não era, contudo, um poder autônomo. Ele era um aspecto da vida social e um lugar de conflito. O imaginário se sustentava através de técnicas. Em sociedades primitivas, por exemplo, ele ocuparia o campo do sagrado e as técnicas para mantê-lo se relacionavam com esse campo. Com o surgimento do Estado e do poder centralizado, as técnicas de conservação do imaginário se autonomizariam. Os mitos se tornariam ideologias e requereriam “manipulação sofisticada”, normalmente de uma nova classe “intelectual” – o ator social por trás dos imaginários.
O imaginário se estruturava a partir de paradigmas. Ele se tornava inteligível e comunicável através da produção de discursos pertinentes ao paradigma específico de um tempo e lugar. A partir dos discursos, seria possível acessar os imaginários, e estes permitiam o investigador se aproximar do sistema simbólico de uma coletividade. Utopia seria o conceito-chave do “paradigma utópico”, que estruturou o imaginário social ocidental entre os séculos XVI e XVIII. O “paradigma utópico” definiu a sociedade como uma instituição puramente humana, que dependeria apenas dos homens para ser transformada. O exemplo de More inspirou outros a criar utopias. Para Baczko:
O paradigma utópico não se estabelece em terreno virgem. Assim como Utopus, que tomou posse de uma terra povoada por uma “horda selvagem”, as representações que constroem e codificam a felicidade social ganham terreno em um espaço-tempo já povoado por lugares paradisíacos. Ao contrário, no entanto, dos Édens e das Ilhas Afortunadas, a utopia é uma construção multiplicável e modificável. Além de nada impedir a invenção de novas comunidades perfeitas, a instalação, mesmo no imaginário desse paradigma, incentiva e estimula a “brincar de Utopia”. Assim, o exercício intelectual do paradigma utópico contribui de maneira própria para fornecer respostas à grande questão da modernidade, que é pensar a sociedade como autoinstituída, não baseada em nenhuma ordem fora do mundo, como um encontro de indivíduos formando uma comunidade que detém todo o poder sobre si (Baczko, 1984)[9].
A forma discursiva que a utopia tomou podia se repetir. O modelo moreano foi adotado por muitos escritores. Ainda assim, a imitação dessa forma discursiva não seria uma condição necessária para o reconhecimento das utopias. Elas seriam extremamente variadas, de acordo com o tempo e o lugar. O próprio Baczko afirma:
Uma vez instalado como um regime de imaginário social, o paradigma utópico adquire inércia e dinamismo. Por imitação, as histórias utópicas se multiplicam e já formam uma série bastante longa. Todavia, o discurso utópico não se encerra no modelo narrativo inventado por More. A utopia, como representação da alteridade social, da Nova Cidade situada em outro lugar imaginário, se torna, rapidamente, multiforme no plano discursivo. Em certos momentos, as utopias representam apenas um fenômeno marginal e isolado. Em outros, a criatividade utópica se intensifica. À medida que o número de textos utópicos aumenta, uma afinidade singular liga as utopias às estruturas mentais e às ideias principais do período (Baczko, 1984)[10].
O caráter permanente da utopia seria a “representação da alteridade social”. Nesse sentido, elas se aproximavam das ideias filosóficas, da literatura, dos movimentos sociais, das correntes ideológicas, dos símbolos, enfim, do imaginário coletivo. Elas ofereciam as “estruturas para recepção das esperanças coletivas” (Baczko, 1984). As “cidades ideais” eram o lugar privilegiado para identificar traços da imaginação social. O interesse em estudá-las se daria porque elas seriam um dispositivo que permitiria a interpretação do “campo das experiências sociais” e dos “horizontes de expectativa” das sociedades de onde se originavam. A partir da obra de Bronislaw Baczko, utopia deixou as apreciações positivas ou negativas dos analistas anteriores. Ela se tornou apenas uma ferramenta analítica disponível para o cientista social ganhar acesso aos imaginários.
Um objeto privilegiado para a observação dessas flutuações teóricas da categoria “utopia” são as missões jesuíticas na antiga província do Paraguai. Elas foram consideradas, desde o século XIX, “utopias realizadas” e, por isso, representam um estudo de caso emblemático para as disputas em torno do conceito “utopia”.
As missões jesuíticas entre os Guarani como exemplo de utilização da categoria “utopia” na análise de práticas letradas anteriores ao século XIX (relatos missionários)
Diversos trabalhos interpretaram documentos referentes ao continente americano como “utópicos”. Obras excelentes como La utopia de América, de Pedro Henríquez Ureña, e Visão do paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, são exemplos. Essa perspectiva é especialmente evidente no que se refere à historiografia sobre as missões jesuíticas entre os Guarani. A apreciação negativa do empreendimento missionário, especialmente difundida pelos philosophesdo século XVIII, deu lugar à acepção das missões como “utopias realizadas” do século XIX em diante.
O economista e historiador alemão Eberhard Gothein publicou um ensaio no século XIX, em que comparava as missões jesuíticas na Bacia do Prata com a Cidade do Sol, de Tomasso de Campanella (Gothein, 1883/1987). Para Gothein, os missionários “fundadores” das missões no Paraguai provavelmente não tiveram contato com a obra de Campanella. Todavia, concepções “utópicas” estavam “pairando” no meio letrado do período. Assim, religiosos como José Cataldino e Simón Maceta entraram em contato com as ideias de um “estado ideal” e as “transladaram” para as Américas. Gothein assumiu a hipótese do “espírito do tempo”, própria da historiografia alemã do período. As concepções dos personagens históricos seriam orientadas por esse espírito do tempo. A premissa do seu ensaio demonstrava a tentativa de classificar as missões como “utopias”, de acordo com o significado moreano, isto é, uma organização social ideal.
Desde o final do século XIX e no decorrer do século XX, diversos estudos vão definir as missões como “utopias comunistas”[11]. O trabalho do sacerdote e historiador suíço Clovis Lugon é um dos exemplos mais claros (Lugon, 1949). A hipótese da sua obra é que as missões jesuíticas no Paraguai foram a realização da “utopia comunista”. Nas palavras de Lugon, a experiência missionária
[...] desde que se queira revelá-la, retirando-a do esquecimento sem procurar encobrir sua dupla luz, nos aparece na História como a mais fervorosa das sociedades cristãs e a mais original das sociedades comunistas realizadas até à criação da União Soviética (Lugon, 1949).
Lugon remonta à interpretação marxista de “socialismo utópico”. Opõe as missões e outras experiências “utópicas”, tais como: as comunidades criadas por Owen, Cabet e Fourier e algumas comunidades religiosas como “Amana” e os “huterianos”, ambas localizadas nos Estados Unidos. O caso do empreendimento jesuítico na América do Sul era emblemático, porque não era uma das “tentativas artificiais e frágeis dos idealistas religiosos ou leigos”. Ao contrário dessas experiências, as missões eram “harmoniosas e prósperas” e só foram destruídas devido à “hostilidade encarniçada” da estrutura colonial ibérica. As missões foram utopias, mas não daquelas caracterizadas por Marx e Engels como negativas.
Outra vertente foi representada por Bartolomeu Melià, jesuíta e linguista, reconhecido estudioso das missões na Província do Paraguai. Ele publicou um artigo na Revista Acción, em 1972, no qual investigava a relação entre as missões e a utopia. Ele alertava os leitores para o risco de interpretação do projeto missionário jesuítico como um “idílio conservador”, ou seja, uma espécie de “sociedade cristã perfeita” e alinhada com os ideais coloniais. De acordo com Melià, as missões jesuíticas no Paraguai poderiam ser interpretadas como “utópicas”, na medida em que foram um projeto anticolonial no interior da colônia.
Para os jesuítas, um dos principais objetivos das missões entre os indígenas era a politização desses povos. Politizar, nesse contexto, era sinônimo de viver em cidades, isto é, fora da selva. Neste sentido, o projeto jesuítico também intencionava uma transformação radical do estilo de vida dos indígenas. No entanto, as missões se colocaram, desde o início, como contrárias à exploração indígena. Como dizia Melià, elas eram anti-encomienda e foram interpretadas como tal pelos colonos, que expulsaram os jesuítas diversas vezes de Assunção.
Além desse caráter anti-encomienda, as missões também seriam antiespañolistas. Os missionários valorizavam a língua Guarani e incentivavam o seu uso no interior das missões. Um dos objetivos dessa valorização era a manutenção da distância entre os indígenas e os colonos. Os jesuítas temiam a “corrupção” dos Guarani no contato com os colonos espanhóis. Como lembra Melià, a propósito do “antiespanholismo” jesuítico:
[...] se puede hacer una antología con sus frases despectivas hacia los españoles colonos, como aquella en que se dice que ‘nombrar español entre ellos (los indios) no es sino nombrar un pirata, ladrón, fornicario y adúltero, mentiroso... (Melià, 1997).
Em outro artigo, publicado em 1978, na Revista Estudios Paraguayos, Melià definiu o último aspecto que sustentaria a interpretação das missões como utopia. Os jesuítas desejavam criar outro espaço no interior da colônia. Esse espaço era diferente do espaço colonial, caracterizado pela desaculturação dos Guarani, e do espaço indígena, caracterizado pela liberdade da floresta. Os missionários queriam criar um espaço de “liberdade reduzida”, que protegesse os indígenas dos colonos. Como diria Melià:
A través de no pocas vicisitudes y tensiones, que duraron desde casi la misma fundación de las primeras reducciones jesuíticas en 1609 hasta la expulsión de los jesuítas en 1768, los jesuítas entendían crear y organizar un espacio de libertad para el indio guaraní, contra el encomendero colonial. Porque si la reducción era una libertad reducida respecto a aquella libertad más auténtica que tenía el pueblo guaraní antes de la entrada colonial, era también una liberación respecto a la amenaza continua de las agresiones encomenderas (Melià, 1997).
Os jesuítas tentaram construir um “espaço utópico”, uma vez que era um espaço “sem lugar e sem possibilidade de ter um lugar” no interior da colônia. De acordo com Melià, as missões foram anti-encomienda, anti-espanholistas e um espaço de liberdade possível. Assim, elas foram utópicas, mas acabaram destruídas pela realidade colonial.
No Brasil, destacamos os estudos feitos pelo historiador e arqueólogo Arno Alvarez Kern. Em sua opinião, as missões não correspondiam a nenhum “modelo utópico” específico. A estrutura do empreendimento e a prática dos missionários se deviam tanto à obediência às normas da Ordem quanto à legislação da Coroa espanhola. A experiência dos jesuítas em outras regiões também concorreu para dar forma ao projeto na Província do Paraguai. Ainda que defenda essa hipótese, Kern não foge à tradição historiográfica que interpretou as missões em chave utópica. Para ele, ao invés de se relacionar com utopias específicas, as missões seriam reflexo de uma “mentalidade utópica”. Em suas palavras:
Uma concepção popular de utopia relaciona este conceito com a ideia de um plano ou projeto impossível de ser realizado. Sabemos que as sociedades possuem aspirações e desejos muito humanos de suplantar as contingências e superar as limitações, na busca de uma organização social mais justa e sem grandes contradições. A criação literária das utopias está relacionada a esta mentalidade utópica, e faz parte de uma visão social do mundo(Kern, 2004).
O projeto missionário refletia o “desejo humano” de alcançar uma organização social mais justa. Esse desejo seria compartilhado por todas as utopias literárias. As missões não deixaram de ser vistas como “utópicas”, uma vez que a utopia é entendida nos termos de Bloch, como princípio ontológico.
Essas interpretações se baseiam em textos setecentistas, que não eram “utopias”. No entanto, as missões são tratadas como “utopias realizadas”. A nossa hipótese é que a naturalização do conceito utopia tenha levado à tentativa de adequação de textos e fenômenos variados nessa categoria, entre os quais se destaca a experiência jesuítica entre os Guarani. Basta que o pesquisador identifique alguns lugares-comuns da utopia moreana, tais como: comunidade de bens, geometrização do espaço e autarquia, para classificar o seu objeto como “utópico”. Acreditamos que retomar esses textos sem essa “etiqueta” teórica pode contribuir para a descoberta de outros aspectos até então negligenciados.
Considerações finais
A desnaturalização de conceitos da análise social não é um processo desconhecido. Norbert Elias, por exemplo, empreendeu esse esforço ao investigar a transformação de “civilização” (Elias, 2011). A desnaturalização de ferramentas teóricas que nos acostumamos a usar traz questionamentos férteis. O uso frequente pode levar a simplificações. Por vezes, a conceituação pode aproximar obras ou ideias muito distantes e criar ficções teóricas com vida longa. O conceito utopia engloba fenômenos tão díspares que sua capacidade heurística se enfraqueceu. Como vimos ao longo desse trabalho, ela pode ser usada como ferramenta explicativa para ideologias, para características humanas, métodos ou imaginários. Utopia se tornou um “não-lugar teórico”.
A nossa intenção não é refutar os trabalhos aqui analisados. Não pretendemos tampouco demonstrar a utilização “correta” de utopia. O nosso objetivo é tão somente problematizar esse conceito. A nossa proposta é retomar obras ou fenômenos tradicionalmente interpretados como “utópicos” para investigá-los sem esse a priori. Acreditamos que essa retomada pode apresentar novos aspectos ocultados pela “etiqueta” teórica “utopia”.
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Notas