Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


A masculinidade de Otaviano sob ataque: relações de poder e potencialidade para liderança de Roma, no século I AEC
Octavian’s masculinity under attack: power relations and potentiality for leadership in Rome during the 1st century BCE
História Unisinos, vol. 25, núm. 1, pp. 01-07, 2021
Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Artigos

Concedo a Revista História Unisinos o direito de primeira publicação da versão revisada do meu artigo, licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution (que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista). Afirmo ainda que meu artigo não está sendo submetido a outra publicação e não foi publicado na íntegra em outro periódico e assumo total responsabilidade por sua originalidade, podendo incidir sobre mim eventuais encargos decorrentes de reivindicação, por parte de terceiros, em relação à autoria do mesmo. Também aceito submeter o trabalho às normas de publicação da Revista História Unisinos acima explicitadas.

Recepción: 07 Noviembre 2018

Aprobación: 03 Agosto 2019

Resumo: No que tange à Antiguidade, verificamos que os discursos dos escritores latinos e gregos, geralmente, representavam os feitos do princeps Augusto, em Roma, como um exemplum de “uir bonus” (bom cidadão). Entretanto, devido à diversidade textual sobre Otávio Augusto, tivemos de estabelecer uma seleção documental. Sendo assim, elencamos Marco Túlio Cícero e Veleio Patérculo para problematizar as evidências que expressam os ataques, as tensões e as defesas na cultura literária sobre a masculinidade do jovem Augusto, complementando-as com os escritos posteriores de Suetônio. Desse modo, analisaremos a ênfase discursiva sobre a sexualidade e a moralidade como elementos intrínsecos às relações de poder e a potencialidade para o governo de Roma, no século I AEC.

Palavras-chave: Otávio Augusto, masculinidade, efeminado, discurso, poder.

Abstract: As far as antiquity is concerned, Latin and Greek writers’ discourses generally represented princeps Augustus’ deeds in Rome as an exemplum of “uir bonus” (good citizen). However, due to the textual diversity regarding Octavius Augustus, a documentary selection was required. Thus, Marcus Tullius Cicero and Velleius Paterculus were selected for the discussion of the evidence that expresses the attacks, tensions and defenses present in literary culture concerning young Augustus’ masculinity, complemented by later writings by Suetonius. With this, the discursive emphasis on sexuality and morality as intrinsic elements concerning power relations and potentiality for Rome’s government during the 1st century BCE will be analyzed.

Keywords: Octavius Augustus, masculinity, effeminate, discourse, power.

Em nossas leituras sobre a Antiguidade, muitas vezes, ficamos fascinados com os incríveis feitos dos líderes antigos, continuamente emulados por nossos contemporâneos. Nesse sentido, o estudo sobre o pensamento político e social clássico é importante para a reflexão dos estudiosos da atualidade, principalmente por possibilitar o alargamento de visões sobre aspectos antropológicos do cenário atual. A História de Roma é repleta de personagens e líderes que nos propiciam diversas análises sobre as suas condutas e ações; entre eles ressaltamos, no período em estudo, Júlio César, Pompeu Magno, Marco Antônio e o princeps Otávio Augusto.

Os dois últimos governantes são o nosso objeto de análise, em razão das acusações que detectamos de desvio do ideal fálico. Afinal, destacamos que as disputas entre o general Marco Antônio e Caio Júlio César Otaviano, o futuro Augusto, são um assunto recorrente em manuais de História Antiga, bem como em seriados e filmes históricos. Tais agentes sociais eram figuras polêmicas, as quais instigam e inquietam pesquisadores pelo mundo, como foi possível observar no bimilenário do falecimento de Otávio Augusto, em 2014.

Segundo Veleio Patérculo, historiógrafo do século I EC, os problemas entre os herdeiros políticos e militares de Júlio César se iniciaram logo após a morte do ditador e duraram até 30 AEC (História Romana, 2.60, 3). Em outras passagens da obra, verificamos uma construção do consul Antônio como uma personagem que visava a controlar Otaviano e que agia de forma arrogante (superbe excepit), além de ser repleto de vícios, elementos esses que produziram um contexto de disputa entre ambos (História Romana, 2.60, 3). Dentre as acusações feitas pelos agentes em conflito, desperta a nossa atenção o ataque empreendido por Antônio à pudicitia de Otaviano, pois almejava deturpar publicamente a masculinidade do seu rival. Provavelmente, esse embate ocorreu em 44-43 AEC, recorte esse no qual iremos nos centrar.

Utilizaremos como base de nossas reflexões os escritos de Cícero, Veleio e Suetônio, já que eles fornecem indícios dos embates político-discursivos de Otaviano e Antônio. Saliento que, para construirmos as nossas considerações, foi preciso lidar com uma documentação literária que apresenta natureza variada. Compreendemos que os gêneros literários possuem especificidades, estratégias, propósitos e audiências heterogêneas. Além do fato de cada autor e obra estarem vinculados a uma tradição e visão de mundo próprias, ressaltamos ainda que os textos sobreviventes foram compostos, em sua maioria, por cidadãos para uma audiência que era composta essencialmente por homens entre os séculos I AEC-II EC. Logo, a análise conjunta dos textos reflete e reforça padrões culturais os quais tanto o escritor quanto o público reivindicam como ideais. Assim, ao operacionalizarmos metodologicamente o nosso corpus documental, assumimos uma posição relacional e de cruzamento de dados para procurar o que eles comumente atacam e o que eles geralmente suprimem ou exaltam, buscando, assim, nos aproximar de representações vigentes na época. Um discurso de Cícero, um escrito de Veleio, uma biografia de Suetônio, apesar das suas diferenças de gêneros e estilos, trazem traços desse ideal de masculinidade e da sua antítese, o desvio.

Tais construções sobre o campo da masculinidade de Otaviano foram observadas através dos jogos discursivos e pelas representações que compreendemos como construções elaboradas acerca de um sujeito, um grupo e/ou um objeto no intuito de interpretar/explicar as práticas desempenhadas em um meio social. Todavia, as representações desenvolvidas em uma sociedade não são neutras e correspondem aos interesses dos grupos que as elaboraram (Greimas e Courtés, 1979, p. 382-383). A partir dos estudos teóricos de Algirdas Julien Greimas e Joseph Courtés, percebemos que essas representações podem apresentar um ato de euforizar, que consiste na valoração positiva de um sujeito ou objeto de interesse, por meio da exaltação no âmbito discursivo (Greimas e Courtés, 1979, p. 170). Temos ainda o ato de disforizar, que reside na valorização de um microuniverso semântico, cujo propósito seria desqualificar práticas políticas, culturais e sociais de um dado grupo de sujeitos (Greimas e Courtés, 1979, p. 130). Essas reflexões são importantes para diversas temporalidades, incluindo a de nosso objeto de análise.

As mudanças introduzidas pelos movimentos feministas, essencialmente a partir de 1970, conduziram a uma revisão dos trabalhos que abordam a questão da sexualidade e do gênero em diversas áreas e recortes temporais. Logo, os movimentos feministas e a revolução cultural de 68 são símbolos de um processo de luta e libertação da mulher, bem como das lutas ligadas à homossexualidade em geral. Michel Foucault (1988, p. 9-50) expõe, em História da Sexualidade: a vontade de saber, publicado em 1976, que há uma construção de discursos institucionais sobre as práticas sexuais que também envolvem o gênero no cotidiano. A partir de suas análises, notamos o quanto é importante entender o gênero e a sexualidade tanto no âmbito pessoal quanto no político, para melhor entender as tensões, negociações e alianças que envolvem o poder. Assim, Foucault, ao tratar da sexualidade como uma construção normativa, possibilita-nos também refletir sobre o gênero por salientar a existência de um processo de reprodução e propagação dos discursos de que o poder se utiliza para construir, moldar, combater e reatualizar o meio social.

Nessa perspectiva, um discurso está atrelado aos diversos interesses pessoais de tal maneira que a ação discursiva não deve ser pensada de forma simplista, em razão da mensagem contida em seu conteúdo (Greimas e Courtés, 1979, p. 125-130). Foucault (1996, p. 8-10) esclarece, na obra Ordem do discurso (1970), que em toda sociedade o discurso se constitui por meio de um controle, de uma seleção, de uma organização e redistribuição, que busca disseminar poderes e minimizar perigos – todo discurso estaria dotado de uma intencionalidade que causa impacto no grupo social e, por isso, é controlado pelas instituições. O discurso seria o lugar no qual os embates políticos são desenvolvidos, organizados e efetuados. Aplicando essa chave de leitura para a questão do gênero, percebemos que os discursos são dispositivos capazes de construir um modelo de homem enquanto agente social, bem como de modelo desviante, ou seja, aquilo que não condiz com o ideal de homem.

Entendemos que os discursos e a sua propagação produzem um expressivo impacto no imaginário social[2]. Esse elemento é atual, vide a situação política e econômica vivenciada pelo Brasil, que, em termos de impacto e ação humana, aproxima-se daquilo que encontramos na Antiguidade e em outros períodos históricos quanto à produção de rumores e boatos na guerra pelo poder. Os pesquisadores Anderson Martins Esteves e Alexandre Moraes (2016) apontam para a necessidade de desnaturalizarmos as relações sociais, bem como os modelos e categorias de análise para o campo dos Estudos da Antiguidade, principalmente quanto ao gênero. No jogo político romano, é possível dizer que os discursos forenses e deliberativos, por exemplo, foram capazes de apoderar e desapoderar cidadãos, e, mesmo com resistências individuais e/ou coletivas, o gênero foi um dispositivo utilizado para a ação hierárquica e legitimadora da masculinidade, ou seja, o estabelecimento de uma primazia do phallus. Em muitos casos, aqueles que não se enquadravam nesse perfil de masculinidade foram tratados como não cidadãos, pois não eram aptos para a atividade política por não atender aos padrões de masculinidade da época. No entanto, é essencial demarcar que sempre existiram e existirão as exceções a esse ideal ao longo da História de Roma.

Em nossa perspectiva, o que era considerado masculinidade na Roma Antiga é extremamente difícil de precisar por ser algo idealizado (Sartre, 2013, p. 19). Essa conceituação era enunciada em termos de valores sociais, tais como: o sucesso militar, a bravura, a riqueza, o envolvimento político, o controle da família, a reprodução de um legítimo herdeiro masculino, a virtude, o papel ativo em uma relação sexual, o correto equilíbrio de honra e de humildade, o respeito religioso pelos deuses, o zelo com os rituais, etc. (Walters, 1997, p. 29-43; Williams, 2010, p. 151-153; Thuillier, 2012, p. 71-124). Mas sabemos pelas linhas e entrelinhas, pelo explícito e implícito da cultura material e da literatura, que, na realidade, tais ideias de perfeição são “modelos” (Parker, 1997;Veyne, 2008; Williams, 2010). Sendo assim, para qualquer pessoa viver de acordo com esse modelo era um ideal inatingível.

Em nossa análise, direcionamos a atenção devida para o campo do ideal aristocrático do gênero masculino, isto é, do cidadão romano na Vrbs, utilizando documentos dos séculos I AEC-II EC. Assim, é preciso olhar para os termos latinos usados pelos romanos em referência a esse gênero. Por exemplo, a palavra para o homem, uir, que foi usada para descrever apenas o homem de elite, também formou a raiz do substantivo latino uirtus, que significa virtude ou coragem, bem como uirilitas, a virilidade, e que adquiriu um sentido de masculinidade (Vigarello, 2013, p. 12). A relação óbvia entre as três palavras mostra o tipo de conduta que era esperada dos homens. No caso das mulheres e dos homens sem recursos, também a eles se impunham padrões de comportamentos morais para a manutenção do código moral de virtude, mas o foco social dos documentos, em geral, eram os homens de elite, pois eles deveriam exibir com maior expressividade o seu papel político e de gênero. Por exemplo, era esperado que os homens de elite fossem mais autocontrolados do que as mulheres de elite, das quais se esperava que exibissem maior autocontrole do que as mulheres e homens de grupos sociais sem recursos (Williams, 2010; p.183-184; Thuillier, 2012, p. 71-124). Reitero que essa elite, a julgar pelo que nos é dado saber pelos documentos de que dispomos, quase nunca atendia a esse padrão, como no caso de figuras notórias da dinastia júlio-claudiana: Nero e Calígula, bem como Messalina e Agripina.

Retomando o nosso objeto, Otaviano e Marco Antônio, depreendemos que cabia a eles a adequação ao status de uir por causa de sua posição de comandantes políticos e militares, sendo, por esse motivo, julgados mais duramente do que os outros membros da elite romana. Em outras palavras, as suas posições os colocavam em um patamar em que a masculinidade era central para se constituírem no poder.

Nesse sentido, no território das práticas sexuais, Paul Veyne (2008, p. 229-244), em Sexo e poder em Roma, publicado em 2005, ressalta que o homem, o uir, deve assumir um papel ativo e de dominação. Quanto ao passivo, notamos que ele se vincula à concepção de ser dominado, o que o atrela ao âmbito feminino (Parker, 1997, p. 47-63). Essas construções discursivas vão além da divisão entre homem e mulher. Demarcamos que as definições de ativo como masculino e passivo como feminino foram metáforas utilizadas para elucidar também a relação entre atividade sexual e poder, pois, na sociedade romana, o poder era um traço da masculinidade. Portanto, impunha-se que o masculino fosse ativo na atividade sexual, pois o seu papel se ligava ao exercício do poder, enquanto ao feminino restava o papel de submissão (Edwards, 1993, p. 63-73). Logicamente, essa relação é um ideal e nem sempre o real. Dessa maneira, os uiri eram vistos na sociedade como “penetrantes” e “impenetráveis” que exibiam seu poder fálico não apenas em suas atividades sexuais, mas também na vida política, na domus e demais setores da sociedade (Walters, 1997, p. 32). O papel sexual passivo, embora considerado feminino, não era explicitamente exclusivo às mulheres. Em vez disso, qualquer pessoa que não fosse um uir poderia assumir esse papel (Walters, 1997, p. 29-42).

Frisamos que, na sociedade romana, era aceitável para um homem da elite social ter relações sexuais com qualquer pessoa, independentemente do seu sexo, desde que ele viesse a assumir o papel sexual ativo e que respeitasse certas restrições quanto aos seus parceiros. Assim, de acordo com o aparato moral, eram interditos ao uir: esposas de outros homens do mesmo status social; os jovens rapazes que amadureciam para serem homens de elite; outros homens de elite (Walters, 1997, p. 30-35). O grupo mais problemático destes três era o dos rapazes da elite. Afinal, o jovem era considerado um ser passível de dominação, quase “feminino”, e assim ele era um objeto legítimo do prazer sexual dos portadores da masculinidade. No entanto, a posição futura de um líder da elite, de um cidadão que poderia vir a liderar a cidade, proibia-o de ser identificado com o papel de penetrado, de passivo, ou seja, objeto de dominação por outro cidadão (Skinner, 1997, p. 129-150). Era do interesse dos cidadãos romanos que os seus jovens e futuros líderes não fossem manchados em sua moralidade por um tipo de conduta considerada não masculina (Walters, 1997, p. 35).

Além dos jovens de famílias com cidadania, outros homens do mesmo status social tampouco deveriam se envolver em atividades sexuais, com penetração, uns com os outros. Deve-se salientar, no entanto, que existiam rumores acerca dos relatos identificados em documentos literários antigos sobre esses tipos de atividades, pois transgrediam o mos maiorum (Edwards, 1993, p. 64). O poeta latino Catulo, no poema 16, apresenta uma defesa da sua masculinidade, de forma um tanto agressiva, em razão de Aurélio e Fúrio falarem mal de seus versos, da sua pessoa e colocarem a sua masculinidade em dúvida: “Male me marem putatis?”, “Vós me acusais de não ser um verdadeiro macho?” (v. 13). A resposta à acusação é incisiva: Pedicabo ego vos et irrumabo, Aureli pathice et cinaede Furi (v. 1-2), “Penetrar-vos-ei analmente e oralmente, Aurélio, passivo [pathice], e tu, Fúrio, efeminado [cinaede]”. A resposta, em tom agressivo, vale-se de duas ações ativas e dominantes, expressas pelos verbos pedicare (penetrar analmente) e o verbo irrumare (penetrar oralmente). Logo, aos dois rivais, cabe o espaço da passividade ao pathicus e ao cinaedus diante do seu macho viril. Esse tema assume centralidade nas invectivas políticas, como no uso dos rumores por Antônio, Sexto Pompeu e outros inimigos de Otaviano durante a sua ascensão ao poder, o que, contudo, deve ser compreendido dentro do contexto da época.

Com efeito, não há dúvidas de que havia uma considerável guerra discursiva que utilizava os rumores e acusações como propaganda e ataque. Detratores da imagem de Otaviano procuravam enfatizar a sua imoralidade sexual, talvez, com uma justificativa considerável, por ele ser o herdeiro de Júlio César (Suetônio, Vida de Augusto, 68). Suetônio argumenta da seguinte forma:

Prima iuuenta uariorum dedecorum infamiam subiit. Sextus Pompeius ut effeminatum insectatus est; M. Antonius adoptionem auunculi stupro meritum; item L. Marci frater, quasi pudicitiam delibatam a Caesare Aulo etiam Hirtio in Hispania trecentis milibus nummum substrauerit solitusque sit crura suburere nuce ardenti, quo mollior pilus surgeret. sed et populus quondam uniuersus ludorum die et accepit in contumeliam eius et adsensu maximo conprobauit uersum in scaena pronuntiatum de gallo Matris deum tympanizante:

Videsne, ut cinaedus orbem digito temperat?

Na primeira juventude, incorreu na má fama de várias desonras: Sexto Pompeu atacou-o como efeminado (effeminatum); M. Antônio disse que a adoção de seu tio fora paga pelo estupro (stuprum) que dele sofrera; Lúcio, o irmão de Marco, acusou-o de ter vendido a um preço de trezentos mil sestércios também a Aulo Hírcio na Hispânia o pudor que César lhe tirara e de ter o costume de depilar as pernas com uma noz ardente para que os pelos crescessem mais macios. Mas, certa vez, também o povo reunido em dia de jogos acolheu para sua desonra e aprovou com grande aclamação um verso pronunciado no palco a respeito de um sacerdote de Cibele que tocava tambor:

Vês como o efeminado (cinaedus) domina tudo com o dedo de sua mão? (Suetônio, Vida do Divino Augusto, 68).

A passagem acima expõe um modelo de masculinidade de Otaviano que não estamos acostumados a encontrar nos manuais e livros específicos, pois a historiografia tende para o campo da valorização da personagem Otaviano como uir bonus e optimus princeps. Nesse sentido, Suetônio expõe acusações que colocavam em xeque atividades sexuais que eram fundamentais para o ethos[3] político dos romanos. Apesar de os antigos romanos viverem em um ambiente cultural no qual os homens poderiam desfrutar de relações sexuais com os seus escravos do sexo masculino sem medo de críticas dos seus pares, a crítica de efeminação e impudicícia não era bem-vista. Craig Williams (2010, p. 3-4) frisa que devemos ter cuidado na compreensão do termo effeminatus. Afinal, homens notórios que eram mulherengos poderiam ser chamados de efeminados, já que o vocábulo situa-se no campo semântico do descontrole sexual e comportamental, o que extrapola a posição sexual. Quando Sexto Pompeu acusa Otaviano de efeminado, e Suetônio associa essa argumentação mais adiante com a depilação, a escolha do biógrafo foi crucial. Com isso, notamos uma quebra no tocante ao paradigma de masculinidade romana, segundo o qual o homem deve manter seus pelos como um símbolo da masculinidade e poder falocêntrico (Williams, 2010, p. 141-145).

A partir dos escritos de Jean-Paul Thuillier (2012) e Craig Williams (2010), evidenciamos que o homem aristocrata ideal em Roma não seria aquele detentor de expressões e/ou comportamentos femininos. Logo, devemos ter cuidado para não recair apenas sobre o âmbito do fenótipo ou da relação entre iguais. Os traços másculos, o preparo físico e a postura para se expressar, bem como as ações, eram elementos que integravam a concepção de uirilitas e da beleza masculina do homem romano. Marco Túlio Cícero (Dos Deveres, 1, 36, 130) relaciona a beleza com a dignitas de um aristocrata romano: “[...] a dignidade do aspecto físico deve ser salvaguardada pela qualidade da cor e esta cor pelos exercícios do corpo [...]”. Logo, pelo preparo físico do corpo e pela coloração da pele refletindo a exposição ao sol em atividades atléticas, os uiri romani eram construídos como modelos de beleza, em detrimento do que era considerado como não masculino. Logo, o efeminado poderia ser aquele sujeito de coloração alva, corpo delicado e incapaz para a atividade militar, com a voz fina e sem postura para o exercício da oratória, como também poderia ser aquele que detinha o modelo de comportamento estético masculino, mas que não conseguia manter o domínio de si, podendo cair em compulsões sexuais, fosse com outro homem ou mulher.

Nesse ponto, as acusações de stuprum e prostituição, assim como a condição de cinaedus, delas decorrente, são graves. Um homem romano não poderia vender o seu domínio sexual ao outro, pois esse ato representava submissão. O stuprum era uma palavra que originalmente significava “vergonha”. Os escritores romanos tinham o costume de utilizar esse termo para descrever a violação da integridade sexual dos romanos livres de qualquer sexo. Assim, Marco Túlio Cícero denuncia os negócios de Catilina com alguns de seus jovens seguidores masculinos por meio do conceito de stuprum, dando assim o sentido de “vergonhoso” (Cic., Catilinárias, 2.8 [turpissime]). Ou seja, em termos de valores romanos, o stuprum era uma atitude vergonhosa, por ser um comportamento ilícito, no qual a atividade sexual de penetração feria a função social do objeto de dominação por este ser livre (Williams, 2010, p. 66; 104). Tal conceituação não deve ser aplicada para o escravo, que é objeto passível de dominação e violação. Todavia, Otaviano, ao ser acusado de violado, estava discursivamente sendo visto como alguém que manchava a sua honra e assumia uma passividade diante de outro cidadão ativo, fosse ele Júlio César ou Aulo Hírcio. Lembremos que ele era um herdeiro político, sendo uma figura pública que assumiria cargos políticos cruciais na dinâmica romana. Desse modo, ao ser caracterizado como impudico, passava a não deter o conjunto de condições masculinas que o tornavam pleno para exercer o poder.

A pudicitia era uma virtude ligada a essa inviolabilidade em um sentido especificamente sexual, que, em muitos casos, é descrita como uma antítese ao stuprum. Portanto, são termos que estão em uma relação binária de oposição: os atos de stuprum violam a pudicitia dos cidadãos romanos. Um conjunto de algumas das virtudes e vícios romanos pode ser encontrado em Cícero, no contexto da sua disputa com Catilina, como vemos a seguir: “[...] hinc pudicitia, illinc stuprum; hinc fides, illinc fraudatio [...]”, traduzido como “[...] em nosso [lado] está a pudicitia, no lado deles o stuprum; em nosso lado a fidelidade, no deles o engano [...]” (Cícero, Catilinária, 2.25). A partir dos fragmentos acima de Cícero sobre o stuprum e a pudicitia, podemos inferir que o caso das acusações contra Otaviano por seus detratores o ligava à falta de uirtus. Nesse sentido, a efeminação era um caso romano vinculado à esfera da desordem, do descomedimento sexual, da falta de controle e exercício do papel viril que era esperado de Otaviano. Com isso, ao colocar Otaviano no rol dos homens que procuraram desempenhar o papel receptivo em atos de penetração (muitas vezes chamados de impudici, pathici ou cinaedi), associavam-no politicamente a um comportamento que não condizia com a esfera do masculino, reservando-lhe uma predileção pelo papel sexual “feminino”. Nessa ótica, o discurso constrói a imagem de um cidadão político que voluntariamente era capaz de ab-rogar sua própria masculinidade, elemento que era impactante na inexorável oposição lógica da masculinidade romana, dessa forma, não sendo capaz de gerir a si e menos ainda o poder da Vrbs.

Suetônio prossegue argumentando que a infâmia de impudicidade de Otaviano foi facilmente refutada pela vida casta do princeps (Vida de Augusto, 71). Infelizmente, o biógrafo não dá nenhuma indicação do quanto essas acusações e refutações se impregnaram na sociedade. Nesse viés, retrocedemos aos autores do período ou de época aproximada. Se havia o rumor de que Otaviano só recebeu a herança de César porque permitiu ser violado, a acusação explícita se perdeu nas fontes do período, de certa forma, apenas havendo a recepção em Suetônio daquilo que deveria circular no período antonino. Afinal, depois que Otaviano ganhou o controle do império e o apoio do público, tais boatos foram, em sua maioria, silenciados (Kiefer, 1964, p. 299). Entretanto, ao avançarmos para o campo do que está implícito nos discursos de Marco Túlio Cícero, notamos um dos poucos indícios sobre o tema, que foi, posteriormente, apontado por Suetônio.

Cícero, na Terceira Filípica, refere-se, em termos gerais, a esses maledicta, que eram insultos, assim defendendo Otaviano e enfatizando a sua castitas e modestia. Em Cícero verificamos uma defesa de Otaviano, como neste excerto: “Caesarem maledicta congessit deprompta ex recordatione impudicitiae et stuprorum suorum. Quis enim hoc adulescente castior, quis modestior [...]?”, “[Antônio] Proferiu calúnias contra César, criadas a partir das suas recordações compostas pela falta de pudor e de vergonha. Ora, quem é mais puro do que este jovem, quem é mais moderado [...]?” (Filípicas, 3.15). A defesa de Cícero endossa o que foi apresentado por Suetônio, isto é, que essas acusações eram infundadas pela própria conduta viril de Otaviano[4]. Adriano Scatolin (2015, p. 51-69) ressalta que Cícero elaborou um discurso que legitimava Otaviano como apto para exercer o comando de Roma, através da moralidade do jovem que se apresentava como um exemplum para os cidadãos. Logo, a virtuosidade de Otaviano era um elemento que poderia ser observado por todos e a imoralidade de Antônio também era visível.

Na Segunda Filípica (2.4-6; 2.44), Cícero também acusou Marco Antônio de ter desempenhado o papel de efeminado e cinaedus com o seu mestre Curião (Edwards, 1993, p. 63-66). É oportuno salientar que a Segunda Fílipica representa a arte persuasiva de Cícero em seu apogeu. Cícero utilizou todas as suas habilidades oratórias em seu discurso para persuadir a audiência de que Antônio era um homem a ser temido, porque o seu comportamento era imoral e perigosamente efeminado por não ter domínio sobre si e seu corpo, por não se controlar e permitir ser violado. Neste contexto, Cícero elabora uma imagem completamente condenatória de Marco Antônio para convencer o seu público contemporâneo de que o futuro de Roma estava em jogo e de uma forma que nunca havia ocorrido anteriormente. Na perspectiva de David William Andersen (2013, p. 08-09), o orador empregou técnicas e topoi que haviam sido usados há muito tempo em técnicas forenses da oratória, assim como características da invectiva. Ele, portanto, foi mais longe do que ninguém em seu uso de acusações de comportamento sexual desviante e vícios associados à embriaguez, jogos de azar e abuso de luxúria. O objetivo de Cícero, caracterizando Antônio como o fez na Segunda e Terceira Fílipica, foi demonstrar que Antônio não era um homem virtuoso para o poder. Ele era, então, impudico, ou seja, indigno de apoio e incapaz de governar Roma em contraste com Otaviano.

Um cidadão público não teria uma vida em privado, pois suas ações interferiam na sua trajetória social. Desse modo, Cícero, ao fazer uso da invectiva, buscava disforizar seu opositor relacionando o público com o privado. Para Veyne (2008, p. 112), tais acusações não pretendiam gerar convencimento da opinião pública, apenas servindo como um instrumento para impactar e fazer o adversário recuar. Em nossa visão, as acusações de Cícero contra Antônio deveriam ser pautadas em alguns elementos que eram de conhecimento público na época; afinal, não podemos anular o valor da audiência a quem esses discursos eram direcionados. Todavia, não encontramos maiores evidências sobre os argumentos contra Marco Antônio, assim como da defesa de Otaviano. Contudo, mediante a documentação que utilizamos, é possível frisar que ser acusado de efeminado e impudico era um dos piores insultos que poderia ser usado contra outro homem da elite, porque minava as habilidades de liderança do acusado, pondo, assim, em risco a presunção da sua masculinidade (Edwards, 1993, p. 63-66). Ademais, no plano ideal, seria negativo para todos os romanos que seu líder estivesse ligado a qualquer tipo de ato feminino, ou seja, uma representação da submissão.

Em suma, a questão sexual era um tópico retórico importante para a liderança na sociedade romana. Assim, tais temas eram relacionados discursivamente com o campo do status social que um cidadão ocupava ou almejava na sociedade, pois havia um ideal de comportamento e padrão estético. Nesse caso, o termo “efeminado” extrapola a questão corporal e sexual, avançando para o campo da conduta e controle social. O stuprum, por sua vez, está ligado à violação do corpo, o que remete à honra e subjugação pelo outro. Tais termos, relacionados com a pudicitia, foram elementos centrais para o jogo da oratória e visaram a euforizar ou disforizar políticos. Assim, estudar o uso de termos sexuais no cenário político romano endossa a visão de Foucault sobre o gênero e a sexualidade como dispositivos do poder. Por isso, os debates sobre a masculinidade de Otaviano e as acusações sobre Antônio extrapolam a questão sexual, pois entram no campo da moral como potencialidade para assumir o poder.

Referências

ANDERSEN, D.W. 2013. The Extraordinary Effeminate: The Characterization of Marcus Antonius in Cicero’s Second Philippic. Queensland, Qld - Australia. A Thesis presented in partial fulfillment of the requirements for the Degree of Bachelor of Arts with Honours in Classics and Ancient History at the University of Queensland, 67 p.

BACZKO, B. 1984. Imaginação social. In: R. ROMANO (org.), Enciclopédia Einaudi - Memória e História. Lisboa, Imprensa Nacional e Casa da Moeda, p. 296-331.

BOURDIEU, P. 2014. A dominação masculina: a condição feminina e a violência simbólica. Rio de Janeiro, BestBolso, 172 p.

BUTLER, J. 1990. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York, Routledge, 172 p.

EDWARDS, C. 1993. Politics of Immorality in Ancient Rome. Cambridge, Cambridge University Press, 229 p.

ESTEVES, A.M.; MORAES, A. 2016. Desnaturalizar a experiência humana: homoerotismo e Antiguidade Clássica. Revista Hélade, .(3):6-7.

FOUCAULT, M. 1984. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 150 p.

FOUCAULT, M. 1996. A ordem do discurso. São Paulo, Edições Loyola, 79 p.

GREIMAS, A.J.; COURTÉS, J. 1979. Dicionário de Semiótica. São Paulo, Ed. Cultrix, 493 p.

KIEFER, O. 1964. Sexual Life in Ancient Rome. New York, Barnes and Noble, 399 p.

MAINGUENEAU, D. 2011. A propósito do ethos. In: A.R. MOTTA; L. SALGADO (org.), Ethos discursivo. 2ª ed. São Paulo, Contexto, p. 11-30.

PARKER, H. 1997. The Teratogenic Grid. In: J. HALLETT; M.B. SKINNER (org.), Roman Sexualities. Princeton, Princeton University Press, p. 47-63.

SARTRE, M. Virilidades gregas. In: G. VIGARELLO (org.), História da virilidade: A invenção da virilidade da Antiguidade às Luzes. Vol. 1. Petrópolis, Vozes, p. 17-70.

SCATOLIN, A. 2015. A imagem de Otaviano nas Filípicas de Cícero. In: A.M.C. POMPEU; F.E. SOUSA (org.), Grécia e Roma no universo de Augusto. Coimbra – Portugal, Imprensa da Universidade de Coimbra, p. 51-69.

SCOTT, J. 1989. Gender: A Useful Category of Historical Analyses – Gender and the Politics of History. New York, Columbia University Press, 30 p.

SKINNER, M.B. 1997. Ego Mulier: The Construction of Male Sexuality in Catullus. In: J. HALLETT; M.B. SKINNER (ed.), Roman Sexualities. Princeton, Princeton University Press, p. 129-150.

THUILLIER, J.P. 2012. Virilidades romanas: vir, virilitas, virtus. In: G. VIGARELLO (org.), História da virilidade: A invenção da virilidade da Antiguidade às Luzes. Vol. 1. Petrópolis, Vozes, p. 71-124.

VEYNE, P. 2008. Sexo e poder em Roma. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 253 p.

VIGARELLO, M. 2013. A virilidade, da Antiguidade à Modernidade. In: G. VIGARELLO (org.), História da virilidade: A invenção da virilidade da Antiguidade às Luzes. Vol. 1. Petrópolis, Vozes, p. 11-16.

WALTERS, J. 1997. Invading the Roman Body: Manliness and Impenetrability in Roman Thought. In: J. HALLETT; M.B. SKINNER (ed.), Roman Sexualities. Princeton, Princeton University Press, p. 29-43.

WILLIAMS, C.A. 2010. Roman Homossexuality. Oxford, Oxford University Press, 471 p.

CATULLE. 1932. Poésies. Trad. G. Lafaye. Paris, Les Belles Lettres, 127 p.

CICERO. 1926. Philippics I-XIV. Trad. C.A. Ker. London, William Heinemann Ltd., 656 p.

CICERON. 1952. As Catilinárias. Trad. N. Firmino. Rio de Janeiro, H. Antunes, 126 p.

CICERON. 2009. Acerca de los deberes. Trad. R.B. Nuno. Ciudad de México, UNAM, 166 p.

V. PATERCULO. 2001. História Romana. Trad. M.S. Manzano. Madrid, Editorial Gredos, 269 p.

SUETÔNIO. 2007. Vida do Divino Augusto. Trad. M. Trevizam; P.S. Vasconcellos; A.M. Rezende. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 119 p.

Notas

1 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Curso de História da Faculdade de Ciências Humanas. R. UFMS - Vila Olinda. 79070-900 Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil.
2 O conceito de imaginário social foi assim definido por Bronislaw Baczko: “Trata-se de um aspecto da vida social, da atividade global dos agentes sociais, cujas particularidades se manifestam na diversidade dos seus produtos”. Os imaginários sociais iriam compor uma diversidade de referências, dentro do extenso sistema simbólico que qualquer coletividade seria capaz de produzir. De acordo como o desenvolvimento do imaginário social com que um grupo elaborasse a sua identidade social seria formulada, dessa maneira, uma imagem de si; ela estipularia a distribuição dos papéis e das posições sociais, assim ratificando a hierarquia social expressa e inserida pela autoridade. As crenças comuns, como forma de controle e coesão social, serviriam para construir uma espécie de código de ‘bom comportamento” (Baczko, 1984, p. 309).
3 Partilhamos da visão de Dominique Maingueneau sobre a complexidade do conceito de ethos. Logo, analisamos essa chave de análise como um tipo de comportamento que vincula ações verbais e não verbais, as quais se ligam à posição social e provocam efeitos “multissensoriais” na audiência (Maingueneau, 2011, p. 16).
4 Cabe lembrar que nesse período conturbado, após a morte de Júlio César (44 AEC), Cícero buscou construir uma relação com Otaviano para que o Senado mantivesse seu poder e ordem em Roma; apesar de posteriormente Antônio, Otaviano e Lépido unirem-se e formarem o Segundo Triunvirato, que veio a levar à morte de Cícero como um proscrito.


Buscar:
Ir a la Página
IR
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS4R por