Resumo: O estado de sítio como instituição é uma criação jurídica francesa do final do século XVIII e está no campo da exceção. Com a normatização francesa, a medida reafirmou o sentido transitório do instituto, pois o estado de sítio flerta com o autoritarismo ao hipertrofiar o poder no Executivo e permitir medidas de repressão mais severas. O artigo trabalha com fontes francesas (documentos militares, legislativos e jurídicos) para, após apresentar as noções de formulação constitucional do instituto, analisar a sua utilização na França da Revolução Francesa à Primeira Guerra Mundial. A medida, que não foi letra fria da lei, esteve presente nos regimes políticos seguintes depois da fase revolucionária e conquistou grande repercussão em outras legislações. Metodologicamente, recorre-se à perspectiva normativa para definição do instituto do estado de sítio, avaliando-se o seu desenvolvimento, bem como promovendo uma análise quantitativa e qualitativa do uso do instituto. Os dados levantados são colocados em diálogo com o que há de mais recente na historiografia internacional, sobretudo francesa, sobre o assunto. Conclui-se, então, que sua transposição de uma noção militar de campo de batalha para uma noção fictícia aplicada em contexto político foi repleta de aplicações viabilizando o uso expressivo do arbítrio por meio legal.
Palavras-chave:estado de exceçãoestado de exceção,estado de sítioestado de sítio,FrançaFrança.
Abstract: The state of siege as an institution is a French legal creation of the late eighteenth century and it lies in the field of exception. With the French regulation, the measure reaffirmed the transitional sense of the institute, because the state of siege flirts with authoritarianism by hypertrophying power in the Executive and allowing more severe measures of repression. The article works with French sources (military, legislative and juridical documents) to, after presenting the notions of constitutional formulation of the institute, analyze its use in France from the French Revolution to the First World War. The measure, which was not a cold letter of the law, was present in the political regimes following the revolutionary phase and gained great repercussion in other legislations. Methodologically, the normative perspective is used to define the state of siege institute, evaluating its development as well as promoting quantitative and qualitative analyses. The data are put into dialog with the most recent international historiography, especially the French one, about the matter. The article concludes that its transposition from a military notion of battlefield to a fictitious notion applied in a political context was full of applications enabling a significant use of arbitrariness by legal means.
Keywords: state of exception, state of siege, France.
Artigos
“Si la France le savait...”: a utilização do estado de sítio na França (1791-1918)
“Si la France le savait...”: uses of the state of siege in France (1791-1918)
Recepción: 12 Septiembre 2019
Aprobación: 21 Noviembre 2019
O enfrentamento de crises e de ameaças é uma realidade comum a muitas sociedades, que se valeram de medidas emergenciais para lidar com situações de extrema gravidade que colocavam em risco a própria existência das sociedades. De acordo com Moacyr Amaral Santos (1981, p. 27), hebreus, cartagineses e gauleses, diante de situações anormais, já elegiam magistrados extraordinários com poderes quase ilimitados para superar tais adversidades. No contexto dessas práticas emergenciais comuns na Antiguidade, a que mais influenciaria sociedades futuras seria a romana. Alexandra Pierré-Caps (2016) argumenta que os romanos, mesmo sem uma Constituição escrita no sentido moderno, já previam que a prática institucional pudesse se adaptar a situações de exceção, de tal forma que sua vida cívica já previa a ampliação de um quadro normativo para elas. No entanto, a institucionalização da exceção não era entendida como uma falha do Estado para autorizar o arbítrio, e sim como uma modulação dos princípios fundadores da República de anuidade e de colegiado de magistrados.
Autores como John Ferejohn e Pasquale Pasquino entendem que os poderes emergenciais da contemporaneidade estão, em maior ou menor (2004, p. 211) extensão, referenciados no modelo antigo de ditadura romana. Esta correspondia a medidas emergenciais dentro da ordem estabelecida para lidar com sérias crises ou ameaças. A função de ditador era de imenso prestígio, uma vez que o indivíduo escolhido para exercer tal função seria responsável por reconduzir o Estado a uma situação normal. Seu período de poder excepcional era limitado e poderia até mesmo se encerrar antes do previsto, caso a emergência geradora da ditadura houvesse sido solucionada (Tavares, 2008, p. 49-52). Por sua vez, a ditadura romana estaria mais próxima do que entendemos e tratamos no decorrer do texto como a exceção normatizada, ou seja, prevista, de certa forma, dentro das leis vigentes[2].
Em geral, as pesquisas sobre o estado de exceção pulam diretamente da Roma Antiga para a Revolução Francesa e sua formulação constitucional. Ignora-se, muitas vezes, o uso da exceção durante a Idade Média, algo que Guy Lurie (2015) e François Saint-Bonnet (2001) se esforçam para reabilitar em seus trabalhos. Saint-Bonnet (2001, p. 120 e 181) verificou que, em certas ocorrências durante a Idade Média, todos os elementos do estado de exceção estavam reunidos: uma lógica própria de governo, a definição do bem comum como imperativo, a tomada de consideração da tensão localizada na ideia de necessidade entre obediência e derrogação da norma, tendo sido especialmente seu período final um laboratório marcante para o estado de exceção. Já Lurie alega que o Estado francês, foco de sua abordagem, usou e abusou da exceção, tornando-a quase ordinária (2015, p. 54).
Esse roteiro descrito até aqui de práticas da Antiguidade e da Idade Média justifica-se por guardar muitas analogias com o estado de sítio dos séculos XVIII e XIX. Todavia, o instituto demanda ainda um desenvolvimento dos direitos público e internacional, questões que não haviam sido aprofundadas no período. Em síntese, antes da formulação constitucional francesa, outras sociedades já haviam vivenciado diferentes experiências do que convencionaríamos chamar de estado de exceção. As medidas emergenciais estavam presentes na Antiguidade e durante a Idade Média, geralmente atribuindo o poder excepcional a uma pessoa para a solução das crises. Rearranjos institucionais já eram vislumbrados como alternativas para a defesa da ordem e das próprias sociedades.
A Revolução Francesa, como um todo, é um período de grande experimentação, seja qual for a abordagem de sua duração. Boa parte desses empreendimentos institucionais duradouros data do período compreendido entre 1789 e 1791, fase que inclui a Assembleia Nacional Constituinte, quando emergem elementos, por exemplo, de repercussão internacional. É justamente deste período que provêm as formulações constitucionais pioneiras acerca do estado de sítio. Naturalmente, o trabalho da Assembleia Nacional Constituinte foi muito mais extenso; Pierre Goubert (2013, p. 252) diz que se desejava refundar tudo, passando pelas instituições, pela legislação, pela administração, pela justiça, pelas finanças e mesmo pelos pesos e medidas e a religião. O que se verá a seguir é o desenvolvimento da formulação de um instituto constitucional que adquiriria grandes proporções na França, e em diversos outros países, entre a Revolução Francesa (1791) e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Trata-se de um recorte temporal particularmente escolhido em função da recorrente utilização do instituto, que, após o conflito internacional do início do século XX, teria seu uso restringido.
No que tange ao instituto do estado de sítio e às medidas emergenciais, a França revolucionária elegeu a valorização de elementos tanto da Antiguidade Clássica (Bouineau, 1986; Mossé, 1989) como da vizinha Inglaterra. Da primeira, os franceses debateram na Constituinte um modelo democrático com referenciais na Antiguidade e, muito especialmente, resgataram o termo sítio para denominar certo tipo de combate em que há o isolamento de um exército por soldados inimigos (Bartolomeu, 2015). Da Inglaterra, os constituintes franceses incorporaram o Riot Act[3] inglês de 1714, que continha disposições sobre a Lei Marcial, recebendo a denominação na França de Loi Martiale. Esta foi adotada por decreto do dia 21 de outubro de 1789, como lei policial rigorosa com disposições e implicações a cargo da autoridade civil, e ampliada pelos decretos de 26-27 de julho e 3 de agosto de 1791. No dia 28 de agosto do mesmo ano se tornou também aplicável a tropas revoltosas (Romain, 1918, p. 33-36). Esta medida, que seria aplicada em Paris e nos seus arredores, foi empregada contra reuniões públicas, tumultos e desordens, legalizando a intervenção das forças armadas contra os cidadãos e declarando a imunidade das autoridades pelo uso da força. Diferentemente do instituto inglês, a versão francesa permitia até a pena de morte e não tinha limite e local de aplicação definidos (Meléndez, 1997, p. 21). Por isso, Carl Schmitt comenta que os jacobinos foram violentos adversários da Lei Marcial francesa, pois, em primeiro lugar, o desfreio das massas não organizadas do povo podia ser contido com a ajuda da Lei Marcial, algo que não os agradava, já que foi por meio delas que os jacobinos alcançaram o poder político. Em segundo lugar, a Lei Marcial dava às autoridades municipais uma disposição sobre as forças armadas que lhes permitia fazer uso de seu serviço para repressão do movimento revolucionário radical centralizado em Paris (Schmitt, 1968, p. 237). A Lei Marcial foi mal recebida pelos distritos, e seu uso rigoroso aumentou ainda mais sua impopularidade; assim, a Convenção a aboliria no dia 23 de junho de 1793 (Romain, 1918, p. 33-36). O estado de sítio, por sua vez, escaparia destas críticas jacobinas porque sua concepção era distinta e de aplicação muito específica.
Sébastien Le Gal (2011, p. 33) demonstra que o instituto do estado de sítio deve ser compreendido por meio de sua gênese militar e de sua passagem do direito militar para o direito público, de tal modo que a compreensão das praças de guerra se revela indispensável para entender como foi construído o estado de sítio como ordem jurídica alternativa. Ele foi concebido para encerrar a crise que atingia o exército e para reformar a constituição militar, algo que foi abordado pela Assembleia Nacional Constituinte em 1791. Não se tratava de uma legislação de exceção ainda, mas atendia a necessidades militares. Como mencionado, a guerra de sítio[4] era uma característica proveniente da Antiguidade, mas que estava também muito presente nos séculos XVI e XVII.
Sébastien Le Gal (2011, p. 59-152) explica que, no século XVII, o sistema de defesa generalizado se articulava por meio de uma antiga concepção de fronteira, não concebida como uma linha, porém como uma faixa de terra de certa profundidade. Elaborou-se, então, uma nova concepção do espaço territorial como um espaço absoluto e que supunha uma aproximação inédita da fronteira e do território. Essa noção repercutiu na construção progressiva de uma percepção do território nacional como um espaço homogêneo, espaço absoluto, que passaria a ser regulado por leis uniformes e derivadas de um princípio organizador, envolvendo domínios geográficos, políticos, econômicos e jurídicos. Essa aproximação inédita entre os planos político, econômico e militar fez com que fossem repensadas as noções de fronteira e de território. Assim, no século XVIII, a administração militar se lançou em um projeto muito ambicioso de codificar o direito militar e o serviço das praças de guerra.
O estado de sítio é, originalmente, uma disposição técnica do direito militar, de tal forma que ele foi introduzido na Constituinte por meio das reformas militares que estavam em andamento. A lei elaborada entre os dias 8 e 10 de julho de 1791 com as primeiras disposições sobre o estado de sítio tratava, então, sobre a conservação das praças de guerra e dos postos militares. Não eram as primeiras disposições sobre as praças de guerra, mas era a primeira vez que se adotava o termo “estado de sítio” para definir uma condição previamente estabelecida em um texto constitucional.
A lei que se tornou referência basilar para a temática foi elaborada através de um decreto da Assembleia Nacional Constituinte no dia 8 de julho de 1791 e sancionada pelo rei Luís XVI no dia 10 de julho. A conservação das praças de guerra e dos postos militares era algo aplicável em casos de guerra previamente declarada e de investidas de tropas inimigas, dando exclusividade de comando à autoridade militar. Não havia qualquer disposição sobre a ocupação de comunas internas[5] ou acerca de investidas de rebeldes franceses, insurreições ou guerras civis. O estado de sítio do período da Revolução Francesa tratava também da regulação das relações entre as autoridades civis e militares nas praças fortes através da clara enumeração de 109 praças fortificadas e de 59 postos militares em que os militares poderiam agir (Schmitt, 1968, p. 234).
Foi apenas no encerramento da votação dos termos relativos às praças de guerra que as disposições sobre o estado de sítio foram votadas. Naquele momento, as relações entre as autoridades civis e militares passaram a ser tratadas em três categorias: estado de paz (état de paix), estado de guerra (état de guerre) e estado de sítio (état de siège). Na primeira categoria, as praças de guerra eram consideradas pela normalidade de seus serviços e pela independência das autoridades civil e militar (França, 1791, Artigo 6º). No segundo caso, a autoridade militar ganharia o direito de requisitar a autoridade civil para o compartilhamento das decisões de batalha (França, 1791, Artigo 7º). Já o estado de sítio faria das praças de guerra instrumentos inteiramente consagrados à destinação militar, mobilizando todos os seus elementos para a defesa (França, 1791, Artigo 10º). Ou seja, a autoridade civil passava a estar subordinada à autoridade militar. As circunstâncias que definiriam o estado de sítio estavam descritas pelo artigo 11 da lei de 1791, de tal modo que dois elementos eram fundamentais para a sua viabilidade: a sua existência em uma praça de guerra e a interceptação da comunicação pelos inimigos a uma distância específica de 1.800 jardas (3.508 metros) do seu pórtico de entrada (França, 1791, Artigo 11º). Eram critérios não jurídicos, mas de preocupação militar. O estado de sítio cessaria, de acordo com o artigo 12, com critérios igualmente objetivos determinantes do fim das investidas (França, 1791, Artigo 12º). Ou seja, nenhum procedimento ou declarações eram necessários, pois o estado de sítio resultava de um fato determinado por critérios militares, resultante de guerra estrangeira.
A guerra teve uma implicação rápida na legislação sobre as praças de guerra, pois já no mês de maio de 1792 um decreto passava a permitir que as cidades fossem consideradas praças de guerra e que, assim, recebessem um comandante militar para as dirigir (França, 1792). Isso criava o precedente para levar o estado de guerra ou o estado de sítio também para as cidades do interior, embora ainda permanecesse como disposição militar, e não um estado de exceção. Dessa forma, as aplicações do recurso em Ancenis e Lyon oferecem uma importante via de compreensão das implicações do período sobre o instituto.
O caso de Ancenis é emblemático para o uso do estado de sítio repressivo. Foi o primeiro caso em que as autoridades recorreram ao instituto fora das condições da lei, já que Ancenis não era uma praça de guerra e não havia a marcha de uma tropa em sua direção, o que inviabilizava sua colocação em estado de sítio. Ainda assim, a cidade assumiu tal condição no dia 8 de julho de 1793 sob a justificativa de que a ameaça era difusa, porém real, o que permitiria que as autoridades militares pudessem implementar as medidas necessárias. Nesta localidade não prevaleceu o critério técnico; tratou-se de uma inovação no uso do estado de sítio que revelava o potencial escondido do recurso, a despeito do rigor das disposições iniciais (Le Gal, 2011, p. 325-328).
Lyon, que era a segunda maior cidade da França, foi literalmente sitiada no dia 9 de outubro de 1793 e, no intervalo de alguns meses, foi classificada em estado de rebelião, estado de sítio e estado de guerra revolucionário. No entanto, somente o segundo era amparado por disposições legais previamente definidas. O estado de rebelião, que, mesmo com a declaração do estado de sítio, nunca foi cessado, permitia medidas contra a cidade para reprimir os rebeldes, enquanto o segundo confiava à polícia e à ordem pública a autoridade militar, como previa a legislação de 1791. O estado de guerra revolucionário, por sua vez, fazia uma confusão sobre a interpretação e a aplicação da lei baseando-se na prevenção (Le Gal, 2011, p. 303-323).
Percebe-se, então, que as ocorrências em Arcenis e Lyon acrescentaram à história do estado de sítio as noções de repressão de rebeldes e de prevenção para além das praças de guerra, iniciando um deslocamento do instituto de seu aspecto puramente técnico militar para abordagens distintas. Durante aquela fase do Terror, Éric de Mari (2015) revelou ainda, através de profunda investigação, as atrocidades jurídicas movidas pelos ideais políticos, destacando o uso de um mecanismo jurídico qualificado como Hors de la loi, que permitia ao Judiciário uma capacidade singular de julgamento, criando mais condicionantes para a formulação de um regime de exceção.
A Constituição do ano III da República (1795), do Diretório, não continha disposições sobre o estado de sítio e nem poderes emergenciais para as autoridades militares em casos de graves ameaças. No entanto, sob a pressão das circunstâncias, o Diretório continuou recorrendo massivamente ao estado de sítio, mesmo com sua ausência no texto normativo. O decreto de 30 Messidor do ano III (18 de julho de 1795) foi o primeiro texto legal fora das condições previstas pela lei de 1791. Ele articulava as disposições de maio de 1792, que permitia que as cidades fossem consideradas praças de guerra e recebessem um comandante militar, e de maio de 1793, que excluía a supressão de comandantes de praça de guerra e do estado maior de algumas localidades, e concedia à autoridade militar a capacidade de colocar em vigor o conjunto de disposições relativas a uma praça de guerra em estado de sítio. Aplicava-se o princípio de polícia e de manutenção da ordem da autoridade civil pela autoridade militar, dando capacidade ao braço armado de suplantar a autoridade política. O decreto seria decisivo para a história do estado de sítio por tornar lícita a sua declaração em quaisquer circunstâncias sem as questões de direito das praças de guerra e confiando a ordem pública à autoridade militar. A partir de então, as autoridades militares multiplicaram os recursos ao estado de sítio, que se acumulariam em centenas nos cinco anos seguintes. Essa prática só seria freada posteriormente pelo Império (Le Gal, 2014, p. 254-258).
As leis do ano V da República (1797) fizeram nascer duas concepções sobre o estado de sítio na França. A lei de 10 Frutidor (27 de agosto) foi a primeira a tratar do estado de sítio nas comunas do interior e de casos de insurreição e guerra civil. Inserida em um contexto específico que envolvia a recente utilização do recurso na cidade de Lyon, a lei também representava a vontade de membros influentes do Conselho dos 500[6] em reformar a organização do exército reduzindo a capacidade do Poder Executivo do Diretório sobre os militares (Le Gal, 2011, p. 361-362). Ela cobria a lacuna deixada pela lei de 1791 sobre as cidades do interior determinando o modo como poderiam ser colocadas em estado de sítio e de guerra, de tal forma que o Diretório não poderia utilizar esses recursos sem uma lei que lhe desse autorização (França, V, Artigo 1º). Ou seja, submetia o Poder Executivo à autorização do Legislativo nessa matéria. Alguns dias depois, contudo, em 18 Frutidor (4 de setembro), um golpe de Estado foi executado pelo Diretório dando ao Poder Executivo a supremacia sobre o Legislativo. Foram invalidadas eleições, destituídos diretores e deportados 53 deputados. A lei de 19 Frutidor (5 de setembro) deu, então, ao Diretório o direito de colocar uma comuna em estado de sítio (França, V, Artigo 39º).
Dessa forma, as leis de 10 e 19 Frutidor proporcionavam novas concepções à lei de 1791. Em primeiro lugar, elas assimilavam inteiramente as comunas do interior às praças de guerra. Em segundo lugar, e de modo muito significativo para a história do instituto, elas admitiam também as investidas de rebeldes (rebelles) como equivalentes a investidas de tropas inimigas. Se a lei do dia 10 subordinava o estado de sítio ao estado de guerra, mantendo-o como um fato militar, a lei do dia 19 submetia as comunas a um regime excepcional sem a necessidade dos critérios militares anteriores e mesmo na ausência de um estado de guerra. É neste momento que surgem duas questões de destaque, a noção de ficção para qualificar um estado de sítio não militar e o poder do Executivo de declarar o estado de sítio. Passa-se, então, a falar de estado de sítio real ou militar (état de siège réel ou militaire), para praças fortes atacadas por inimigos externos, e de estado de sítio fictício ou político (état de siège fictif ou politique), para as comunas e cidades abertas ameaçadas por sedições[7]. Mas não havia mudança de jurisdição; os efeitos do estado de sítio real ou fictício continuam ligados à passagem dos poderes de polícia da autoridade civil para a autoridade militar.
Assim, o estado de sítio real ou militar fazia menção a uma praça de guerra atacada e sitiada, como previsto pelo regulamento de 1791, e o estado de sítio fictício ou político para tratar de uma situação especial que se aproxima das circunstâncias do interior de uma praça de guerra sitiada, podendo ser aplicado em qualquer parte do território. No entanto, esta condição fictícia ou política só receberia uma regulamentação em meados do século XIX.
O Diretório fez vasto uso da jurisdição militar, embora nem sempre sob o fundamento do estado de sítio, mas permitiu que a autoridade militar dispusesse de amplos poderes para reprimir violentamente as agitações. A militarização foi um dos aspectos mais salientes do regime, mas a dimensão militar do estado de sítio se tornou secundária, no sentido de que seu uso foi intenso para a repressão de movimentos internos e não ataques externos (Le Gal, 2011, p. 358-403).
Outra noção muito importante para o desenvolvimento do instituto, de suspensão da Constituição vigente em locais de ameaça, seria concretizada pela Constituição francesa de 22 Frimário ano VIII (13 de dezembro de 1799). Não havia em seu texto a expressão “estado de sítio”, mas o recurso estava implicitamente consagrado pelo seu artigo 92 (França, VIII, Artigo 92º), só podendo ser acessado mediante lei em casos de sublevações e revoltas armadas contra o Estado. Na obra de Théodore Reinach (1885, p. 95-97), o autor afirma que o recurso foi utilizado já em 23 Nivoso (13 de janeiro de 1800) do mesmo ano, suspendendo a Constituição por três meses nos departamentos do Oeste agitados por insurreições. De acordo com Paul Romain (1918, p. 55-58), a suspensão da Constituição criava um regime bem mais rigoroso que o estado de sítio, uma vez que este não dava ao comandante militar o direito de imputar penas por não estar em um espaço vazio de leis, mas submetido a elas. Com a suspensão da Constituição, até a pena de morte era viabilizada. Assim, duas instituições distintas passaram a vigorar na França, o estado de sítio, para as praças de guerra, e a suspensão da Constituição para rebeliões, guerras civis ou insurreições em qualquer parte do território.
Sob o Consulado, Napoleão Bonaparte centralizou mais ainda o poder, reprimiu os oposicionistas jacobinos e realistas e tomou diversas medidas antidemocráticas. Segundo Albert Soboul (2007, p. 82-97), houve uma prática política e administrativa de exceção durante essa primeira fase napoleônica que impôs uma paz forçada para estabilizar a sociedade. Napoleão encerrou a Primeira República para iniciar o Primeiro Império, autoproclamando-se Imperador. Foi somente o decreto de 24 de dezembro de 1811 que revisou as leis de 1791 e de 1797 para rever as distinções entre estado de paz, estado de guerra e estado de sítio[8], dando ao Imperador o poder de sua decretação. As novas disposições, associadas com as de 1791, permitiam a declaração de estado de sítio em caso de ataques iniciados por forças externas ou internas, de investidas de tropas inimigas, de interrupção da comunicação a partir de determinada distância, de ataque de viva força, de ataque surpresa, de sedição interna e de encontros sediciosos feitos sem autorização dos magistrados no raio das investidas (Chénier, 1849). Ou seja, o decreto napoleônico previa todas as eventualidades e se aplicava em todos os casos. Além disso, as ameaças internas poderiam ocorrer tanto durante a paz quanto durante a guerra. Se o estado de sítio era uma consequência forçada do estado de guerra na lei de 1791, isso deixaria de prevalecer em 1811, dando ao Chefe de Estado o poder de declarar uma localidade em estado de sítio sem guerra ou ameaça estrangeira e sem sítio. Outra novidade foi permitir que a autoridade civil agisse por delegação da autoridade militar na localidade em estado de sítio. Mas a inovação capital estava no artigo 103, que dava ao tribunal militar a competência sobre os não militares durante a exceção. Enquanto a combinação das leis de 10 e 19 Frutidor do ano V fizeram nascer o estado de sítio político nas comunas do interior, o decreto de 1811 tornou o estado de sítio político igualmente aplicável nas praças de guerra por simples decreto do Imperador. Esse decreto estava inserido em um contexto de extensão geográfica do Império em que se fazia necessária a reforma das disposições sobre as praças de guerra. De acordo com Eric Eduardo Palma González, Napoleão já havia, inclusive, antecipado alguns aspectos da regulação do estado de sítio de 1811 em sua campanha militar na Espanha[9]. A alteração abriu caminho, no entanto, para a utilização política do instituto e permitiu a Napoleão fazer seu uso em Brest e Arras, que estavam sob invasão militar, e em outras cidades onde havia revoltas internas. Ao fim do Primeiro Império, como comenta Paul Romain (1918, p. 59-67), o estado de sítio era um poderoso instrumento de ditadura.
Em 1814, a França passou a viver sob nova Constituição. A Charte de 1814 não previa explicitamente o estado de sítio, mas autores como Giorgio Agamben (2004, p. 15-17) e Sébastien Le Gal (2011, p. 419-438) acreditam que seu recurso estaria fundamentado no artigo 14 (França, 1814), que atribuía ao soberano o poder de fazer os regulamentos e os decretos necessários para a execução das leis e para a segurança do Estado. Nessa trajetória, o Ato Adicional de 22 de abril de 1815 ofereceu uma distinção entre estado de sítio militar e político ligando o primeiro à invasão de força estrangeira, decretado por ato do governo, e o segundo a problemas civis, submetido a uma lei (França, 1815, Artigo 66º). Isso seria uma consequência, segundo Le Gal (2011, p. 405-417), de seu uso massivo durante a campanha da França no Governo dos 100 Dias.
Nesse período, que se inicia com a Revolução Francesa e vai até a queda definitiva de Napoleão, o instituto do estado de sítio adquiriu, gradualmente, interpretações que o deslocaram de um artifício técnico-militar para uma legislação alternativa. As disposições de 1791 e de 1811 são fundamentais para o período, mas ambas se restringiam ao funcionamento das praças de guerra. Somente o período pós-Império Napoleônico iria consolidar certa noção de exceção.
O afastamento de Napoleão Bonaparte do poder na França, em 1815, encerra um ciclo que se iniciou com a Revolução Francesa em 1789. No que se refere ao instituto do estado de sítio, sua noção original era estritamente militar, seu uso era apenas uma aplicação de técnica de defesa do território francês através de localidades consideradas fundamentais, as praças de guerra e os postos militares. Previsto para ser utilizado contra o inimigo externo, gradualmente o estado de sítio se tornou também um recurso contra o inimigo interno, servindo para controlar revoltas e sedições, ao mesmo tempo em que se introduziu a ideia de suspensão da lei vigente para contenção das ameaças, ou seja, uma noção de estado de exceção. A distinção entre estado de sítio real ou militar e estado de sítio fictício ou político passou a tomar forma naquele período. Mas ainda não era uma noção plenamente consolidada.
O que vem após o Império de Napoleão, de acordo com François Furet (1989, p. 18), é uma luta que se desenrola por todo o século XIX entre a Revolução e a Restauração. A França ainda teria muitas trocas de regime (1830, 1848, 1852 e 1875), até que, ainda para Furet, a Revolução se consolidasse com a vitória dos republicanos sobre os monarquistas na Terceira República (1875).
Um exemplo desse embate alegado por Furet pode ser visto em um documento escrito pelo advogado Debeaufort (1820), que é muito representativo para o que vem após 1815, seja para o desenrolar da história francesa ou para o instituto do estado de sítio. Em um texto intitulado Le despotisme en État de Siège, Debeaufort discorre sobre o despotismo do rei, abordando-o como sitiado pela Constituição. O autor argumenta que não havia mais espaço para o absolutismo, nem existiam mais reis por direito divino. Em seu lugar, havia leis e Constituição que determinavam os poderes existentes e suas incumbências, e, mais do que isso, caberia ao povo apenas o direito de fazer, conservar e destruir a Constituição. O que é interessante notar no decorrer de seu texto é que o autor menciona várias vezes o termo “leis excepcionais” para atacar o arbítrio monárquico. No entanto, em nenhum momento ele vincula tal termo ao estado de sítio, uma noção que se consolidaria a partir da década de 1830. Porém é um demonstrativo de que a expressão já fazia parte do vocabulário político e jurídico do período, muito embora não houvesse ainda uma associação muito clara com o estado de sítio.
Para Carl Schmitt (1968, p. 246), o governo da Restauração encontrou violenta resistência nas Câmaras e no povo. Os restauradores entendiam o estado de sítio como meio técnico-administrativo, no sentido de um estado de exceção, em que a autoridade poderia fazer o que fosse necessário diante das situações, sendo utilizado, assim, na luta contra o inimigo. Schmitt (1968, p. 255) afirma que a discussão entre o estado de sítio militar e o estado de sítio político só aconteceria, pela primeira vez, em 1829, de modo que o estado de sítio político foi classificado como fictício para expressar que não existiria liberdade incondicionada de ação, como na operação militar. Um projeto de lei foi apresentado naquele ano, mas nem chegou a ser votado (Romain, 1918, p. 81-83). O ano seguinte, 1830, reservaria mais uma etapa violenta para a história francesa.
O reinado impopular de Carlos X[10], que tentava restaurar o Antigo Regime, o levou a graves conflitos com a Assembleia Nacional. Carlos a dissolveu em 25 de julho de 1830, modificou a Charte e suprimiu a liberdade de imprensa na França. Durante uma insurreição de três dias no mês de julho de 1830 (Trois Glorieuses), o estado de sítio foi utilizado pelo rei Carlos X para tentar conter as ameaças ao seu trono, que tentavam colocar outro rei no poder. François Saint-Bonnet (2001, p. 316) entende os três dias de insurreição como um ato de proteção da Constituição e de aplicação de um poder de exceção para restabelecer a ordem rompida pelo rei e seus ministros. De toda forma, o poder passaria dos Bourbons para os Orléans.
Os anos entre 1830 e 1832 são de extrema tensão no tocante à manutenção da ordem, e é por isso que o rei recorreu sucessivamente ao estado de sítio. Uma ordenação real de 1º de junho de 1832 declarou em estado de sítio três arrondissements[11] de Paris, determinando que se fizesse o necessário para reprimir o movimento subversivo rapidamente e com todos os meios legais. Dois dias depois, outro estado de sítio foi declarado sem razões especiais em municípios de vários departamentos. Em 6 de junho, uma terceira ordenação declarou o estado de sítio em Paris com a adição de que nada deveria mudar no comando e no serviço da guarda nacional (Schmitt, 1968, p. 250). Isso demonstra a vinculação do recurso com a intensidade do período para assegurar o reinado de Luís Filipe. Mas, como alega Paul Romain (1918, p. 87-88), sua forma de utilização não se encaixava nas prerrogativas de nenhuma lei anterior, tendo sido muito questionada por isso. Seria a última vez que o instituto seria utilizado como medida discricionária com a ideia de que suspendia todas as leis e instaurava uma ditadura, pois a repercussão negativa fez com que o próprio rei sugerisse uma revisão do instituto. Ainda assim, o projeto que foi apresentado para discussão recebeu muitas propostas de emendas e de alterações e não houve resultado.
De acordo com Sébastien Le Gal (2011, p. 225-226), foram esses recursos ao estado de sítio em 1832 em Paris e também em Vendée que fizeram com que ele passasse a ter um novo uso. O instituto ainda era visto como disposição técnica militar sobre as praças de guerra, muito embora tivesse sido vastamente utilizado durante o período imperial, só que as utilizações de 1832 depreciaram a lei e atribuíam aos militares a capacidade de julgar. A princípio, os desdobramentos do estado de sítio chegaram à Corte de Cassação[12], e esta julgou que não poderia apreciar as questões de legalidade durante o uso do recurso, denotando certa condição excepcional. Mas a Corte de Cassação encerraria o recorrente uso do estado de sítio (Le Gal, 2011, p. 770) feito pelos sucessivos regimes na França[13]. Mesmo com uma reforma da legislação do estado de sítio, o recurso permaneceu sendo mais pertinente a uma legislação militar do que uma legislação de exceção (Le Gal, 2014, p. 254-258), só que as ocorrências e disposições do período fomentariam, nos anos seguintes, uma discussão responsável por alterar a noção do estado de sítio.
O período 1830-1832 é o mais profícuo para a discussão sobre o estado de sítio desde sua formulação inicial em julho de 1791. Desde então, apesar de suas muitas utilizações e alterações nas disposições legais, o estado de sítio não havia sido colocado em debate tão intenso e aberto. O início da década de 1830 oferece fontes que marcam os posicionamentos diversos acerca do instituto.
A título de ilustração do que transcorria naquele momento, Auguste Barthélemy[14] (1832) defendeu o estado de sítio utilizado durante e após os eventos de junho daquele ano. O autor questionou a decisão da Corte de Cassação da França de suspender o estado de sítio que estava em vigor, alegando que os acontecimentos dos dias 6 e 7 de junho foram uma insurreição republicana que colocou Paris e a França em risco, demandando o estado de sítio. Barthélemy se amparou em três proposições sobre a utilização do recurso. Em primeiro lugar, argumentou que o estado de sítio era fruto dos próprios insurgentes, que causaram sua decretação. Logo, seria um dever do governo utilizar represálias contra a ameaça sofrida. Em segundo lugar, o autor julgava que todo cidadão armado que se envolvesse em combate deveria ser considerado como militar e, assim, estaria sujeito às leis militares e ao julgamento do tribunal militar em exercício durante o sítio. Por fim, o autor sustentou a utilização do estado de sítio mesmo após a vitória do governo frente aos eventos de junho, pois seria um ato de prudência política para tranquilizar tanto aquele momento quanto o futuro. Barthélemy concluía que o estado de sítio tinha sido a salvação da França, defendendo sua utilização e suas consequências.
Outro defensor do instituto foi Banse (1832), um soldado francês que também manifestou sua opinião sobre o recurso ao estado de sítio em junho de 1832. Seu discurso fazia a defesa do estado de sítio, argumentando que medidas severas eram necessárias para evitar a revolução e a desordem. O soldado atacou a Corte de Cassação, que vedou a formação de um tribunal militar, pois considerava uma consequência natural do estado de sítio atribuir o poder à autoridade militar, assim como a justiça. No seu entendimento, isso corresponderia ao cumprimento de prerrogativas estabelecidas pela lei de 1791 e pelo decreto de 1811. Era um argumento não procedente, em vista do artigo 54 da Charte de 1830.
Entre os opositores, um autor não identificado criticou sua utilização no Oeste da França argumentando que se tratava de uma medida ilegal. O autor reforçou que as prerrogativas das leis de 1791 e de 1811 estavam estritamente vinculadas às ações militares em praças de guerra. Mais do que isso, o texto revela uma noção de estado de exceção que se desenvolve em torno do estado de sítio, pois o autor clama pelo retorno da legalidade da Constituição vigente, solicitando a revogação de todas as medidas irreparáveis tomadas (De la mise, 1832). Também cabe menção à crítica feita por Hippolyte de Regnon (1832) sobre a impossibilidade da declaração do estado de sítio apenas pelo Poder Executivo ou a imputação de penas a quem foi preso antes de sua declaração. Sua nota de contestação foi recusada em dois jornais, mas o autor não desistiu de denunciar o estado de sítio em Paris e no Oeste da França, assim como os jornais que recusaram sua publicação.
O que se pretende demonstrar é que o debate se tornou público, envolvendo os mais diversos indivíduos. De poetas a soldados, todos tinham uma opinião para expressar sobre o estado de sítio e suas implicações. Foi um momento para a história do instituto em que, se não constitui o apogeu de sua noção de exceção, estava claro que não era mais restrito ao linguajar técnico militar. As fontes consultadas indicam que o instituto era de conhecimento amplo, defendido ou criticado. Não era mais o estado de sítio militar, porém o estado de sítio político, especialmente se entendermos seu adjetivo como suscitador de ideias e de debates.
Com a queda da Monarquia de Julho, nasceu uma nova e reformadora República em 1848. Mas, mesmo com a emergência do debate público acerca do estado de sítio nas últimas duas décadas, ou por causa dele, a Constituição promulgada naquele ano não estabelecia as regras, os efeitos e os limites do estado de sítio. Em vez disso, determinava o estabelecimento de suas normas por lei própria (França, 1848, Artigo 106º). Para Karl Marx (2011, p. 7-11), “o estado de sítio foi a parteira da Assembleia Constituinte em seus trabalhos de criação republicana”, pois os republicanos chegaram ao poder através de um levante do proletariado e exerceram um poder exclusivo marcado pela elaboração da Constituição e pelo estado de sítio em Paris.
Coube ao Conselho de Estado a tarefa de redigir a lei orgânica sobre o estado de sítio, antes ainda da promulgação da nova legislação, em que seus membros direcionavam questões para os Ministros da Guerra, da Justiça e do Interior a fim de ponderar sobre sua reestruturação (Archives Nationales, C 921). Um projeto de lei foi apresentado no ano seguinte, em 28 de julho de 1849, pelo Ministro do Interior, M. Dufause, contendo 13 artigos que resultavam do debate da comissão, tratando das seguintes disposições: declaração em caso de guerra ou insurreição, as formas de declaração do estado de sítio, os efeitos do estado de sítio reafirmando a passagem da autoridade civil para a militar na vigência do recurso, as prerrogativas atribuídas ao poder militar e a suspensão do estado de sítio. A dimensão técnica militar foi mantida no projeto, que continuava se referenciando à lei de julho de 1791 e ao decreto de 1811, ou seja, permanecia permitida aos comandantes das praças de guerra e de postos militares a declaração do estado de sítio. Duas novas disposições dignas de destaque foram sobre a declaração do estado de sítio nas colônias (Artigo 5) e a permissão dada ao tribunal militar de conhecer os crimes e os delitos que tenham sido perseguidos durante o período de vigência do recurso mesmo após o cessar do estado de sítio (Archives Nationales, C 994).
Após várias propostas de modificação apresentadas ao projeto de lei nº 100 (Archives Nationales, C 3278), a lei foi promulgada no dia 9 de agosto de 1849 definindo um regime de estado de sítio mais amplo e distinto do projeto inicial. As alterações foram a substituição da previsão de estado de sítio em caso de guerra ou insurreição pela expressão “perigo iminente para a segurança interna e externa” (França, 1849, Artigo 2º) e a exclusividade dada ao Parlamento de declarar o estado de sítio na França (França, 1849, Artigo 2º), retirando do texto inicial a proposição do Presidente para a adoção de tal medida. No restante, as propostas apresentadas foram mantidas, devendo-se destacar as prerrogativas dadas à autoridade militar (França, 1849, Artigo 4º) de fazer perseguições em domicílio, de exilar os detidos, de recolher armas e munições e de intervir em publicações e reuniões (França, 1849, Artigo 9º). Como comenta Carl Schmitt (1968, p. 253-254), a lei considerou a abolição das liberdades constitucionais ao enumerar os direitos que seriam suspendidos durante o estado de sítio, o que ele considera a culminância de um estado de exceção. Ao contrariar um princípio constitucional, em função de circunstâncias determinadas por um tempo e um lugar circunscrito, e conceder à autoridade militar poderes estendidos que restringiam as liberdades públicas consagrando a competência da jurisdição militar para julgar os não militares (França, 1849, Artigo 8º), tratava-se verdadeiramente de uma legislação de exceção, uma lei para definir o estado de sítio fictício ou político. Torna-se importante fazer essa distinção, agora, pois o estado de sítio militar, tal como previsto pelas leis de 1791 e de 1811, continuou assegurando aos comandantes militares das praças de guerra e dos postos militares a possibilidade de sua declaração. Sua disposição estava restrita a um único artigo da lei de 1849 (França, 1849, Artigo 5º) porque o estado de sítio militar passava a ser tratado como algo distinto do estado de sítio político. As duas modalidades passariam a figurar em condições claramente distintas, o estado de sítio militar como recurso técnico e muito específico, e o estado de sítio político como recurso mais amplo em suas prerrogativas, em suas utilidades e em seus efeitos.
Na clássica obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx (2011, p. 18-22) atribui ao estado de sítio a capacidade do partido da ordem, aliado de Bonaparte[15], de assumir um poder sem limites a partir de 1849, permitindo amordaçar a imprensa e destruir o direito de associação. O estado de sítio foi declarado, inicialmente, para conter a conturbação causada pelo projeto de impeachment apresentado contra Luís Bonaparte por Ledrou-Rollin[16], que deixou a oposição em alvoroço. O recurso serviu para quebrar a influência da oposição no Parlamento e ainda combater uma insurreição operária em Lyon. Só que daí em diante, segundo Marx, o estado de sítio se tornaria instituição regular na França, algo orgânico.
Por volta de 1850, Edgar Quinet[17] era um dos maiores expoentes da denúncia dos abusos e arbítrios do estado de sítio na França. É dele a citação que consta no título desse trabalho, quando se referia aos problemas causados pelo estado de sítio na França e lamentava, pois, se a França soubesse, conforme sua manifestação, não investiria na formulação de tal instituto. Através de seus escritos, constata-se também o processo de transformação pelo qual passou o instituto. O autor afirmava, por exemplo, que o estado de sítio havia se tornado um instrumento de exceção (Quinet, 2003) ou mesmo, como em discurso que seria publicado anos mais tarde em sua memória, uma exceção na exceção, já que apontava vários atos de violência cometidos pelas autoridades sem nenhuma punição e sem que a Justiça identificasse qualquer erro (Quinet, 2003, p. 12-13). Outro que tratava o estado de sítio como medida de exceção era o advogado Chadal (1851), que discorreu sobre o uso do instituto que dobrou os poderes policiais em Lyon, Ain, Isère e Rhône, alegando que já não havia qualquer necessidade para isso nas localidades que já estavam submetidas ao recurso ao longo de dois anos.
Gilles Lebreton (2007) considera o estado de sítio de 1849 perigoso porque a lei daquele ano foi votada em um contexto de aguda crise política, o que explicaria sua capacidade de atentar contra as liberdades públicas, justificada pela necessidade da ordem. A lei foi votada em um quadro de reação autoritária por uma Assembleia Nacional majoritariamente monarquista que temia o espectro vermelho da extrema-esquerda e seu calor revolucionário em curso desde 1848. A maioria monarquista, amedrontada, decidiu acabar com o problema votando duas leis de circunstância, dando ao governo o direito de intervir em clubes e reuniões políticas, em 19 de junho de 1849, e uma mais completa que forjava um regime de poderes militares excepcionais a serem utilizados contra motins, caso da lei de 9 de agosto de 1849 sobre o estado de sítio. No segundo caso, a fórmula de 1849 para o estado de sítio, que permitia sua utilização em caso de perigo iminente da segurança interna ou externa, possibilitava que fosse utilizada abusivamente, servindo para o golpe de Napoleão III. A consciência de sua característica perigosa convenceu a Assembleia Nacional majoritariamente republicana de 1878 a restringir a hipótese de seu uso a uma ameaça à mão armada.
A França de Napoleão III[18] seria a sexta troca de regime em 50 anos. O Segundo Império nascia de um golpe de Estado e, de acordo com Pierre Goubert (2013, p. 331), praticava a mistura de massacres, de aprisionamentos e de deportações. A Constituição (França, 1852) que regeria o novo regime trazia em seu artigo 12 o direito do Presidente de declarar o estado de sítio, tendo que comunicar o uso do recurso imediatamente ao Senado. As consequências da medida continuariam vinculadas à lei de 1849, a qual seria usada frequentemente pelo novo governante.
O Segundo Império morreria como o primeiro, de uma derrota e de ocupação em decorrência da Guerra Franco-Prussiana[19]. O envolvimento em uma guerra efetiva aumentou a demanda por estados de sítio na França, especialmente nas regiões do Leste do país, para se defender dos ataques dos alemães. As declarações se multiplicaram e se prolongaram pelo tempo, mesmo após encerrado o conflito e alguns movimentos de insurreição[20]. Por esse motivo, o estado de sítio esteve novamente na pauta dos debates naquela época, aparecendo nas discussões na Assembleia Nacional (Detourbet, 1875) e sendo muito questionado especialmente pela censura que era imposta à imprensa (Perrin, 1874). Por consequência, vários projetos de lei foram apresentados solicitando o encerramento do estado de sítio em departamentos e cidades da França (Archives Nationales, C 3101).
A emergência de uma nova República demandou novas leis para regular o regime. Era a primeira e única vez, no entanto, que um regime republicano não seria regido por uma Constituição propriamente dita. A Lei Constitucional de 1875, como se convencionou chamar, era curta e foi apresentada nos dias 24 e 25 de fevereiro e 16 de julho, tratando, respectivamente, sobre a organização do Senado, a organização dos poderes públicos e a relação entre os poderes públicos. As disposições juntas somavam apenas 34 artigos e eram omissas quanto à questão do estado de sítio. Em março do mesmo ano, 1875, já havia discussão na Assembleia Nacional sobre revisão dos artigos do código militar tendo como objeto o estado de sítio (Detourbet, 1875), mas o instituto foi revisto, efetivamente, por comissão própria que debateu alterações na lei de 1849 no ano de 1877 e pelas duas casas legislativas (Archives Nationales, C 3278). O mais interessante a se destacar é que o estado de sítio era tratado naquele momento claramente como regime excepcional (Archives Nationales, C 3161), o que demonstra a conclusão de sua transposição de uma disposição militar, de 1791, para um regime de exceção, através da lei de 1849.
Com a queda do Segundo Império e da Constituição de 1852, a competência de declaração do estado de sítio que esta atribuía ao Executivo voltava para o Legislativo, como previa a lei de 1849. No novo regime, as disposições da Lei Constitucional de 1875 não faziam menção ao estado de sítio; então, após as múltiplas e conturbadas experiências francesas da década de 1870, a revisão das disposições sobre o estado de sítio foi aprovada como lei no dia 4 de abril de 1878. Na verdade, os seis novos artigos não apresentavam uma significativa mudança em relação às disposições de 1849, que seriam as bases fundamentais para o estado de sítio na França durante o restante do século XIX e boa parte do século XX[21], além de exercer influência em outros países. O que havia de novo em 1878 era muito pontual, como a definição de “perigo iminente”, fórmula já adotada em 1849, condicionadora do estado de sítio, em decorrência de guerra estrangeira ou de insurreição à mão armada (França, 1878, Artigo 1º) e prevendo sua revogação imediata em caso de dissidência entre as câmaras legislativas (França, 1878, Artigo 5º). Ao Presidente da República era permitida a declaração do estado de sítio em recesso da Assembleia Nacional (França, 1878,: Artigo 2º), mas não quando estivesse dissolvida (França, 1878, Artigo 3º).
O último momento desta trajetória que marcaria um grande uso do estado de sítio, no sentido territorial, e alguma alteração em suas disposições legais seria o da Primeira Guerra Mundial, iniciada em 1914. Diante da ameaça armada estrangeira, o Presidente da França, Raymond Poincaré, declarou o estado de sítio no dia 2 de agosto de 1914 em todo o território francês, algo inédito na história do instituto. Porém, a resposta dos opositores ao instituto foi rápida; já no dia 5 de agosto, Paul-Meunier[22] apresentou uma proposição de lei solicitando a suspensão do estado de sítio, uma peça documental importante em que o autor demonstra a clara dissociação estabelecida ao longo do tempo entre o estado de sítio como técnica militar da lei de 1791 e as disposições que vigoravam no momento de sua redação, provenientes da lei de 1849 e de seus adendos de 1878, já entendidas como medidas de exceção. Ainda que houvesse um contexto claro de guerra no continente europeu, Paul-Meunier alegava que a França ainda não havia sido atacada por forças externas, o que inviabilizaria o uso do instituto e ignorava as disposições em vigor. Mais do que isso, o recurso também estava fora das prerrogativas legais por ter sido decretado pelo Presidente, sem consulta e aprovação das Câmaras, ausentes no momento. O autor também fez uso de argumentos históricos para sustentar a ligação do estado de sítio com a vigência de uma ditadura. Desta forma, o que é interessante no documento de Paul-Meunier é o tratamento que dá aos estados de sítio militar e político. O primeiro, ou o estado de guerra, atenderia ao contexto internacional restringindo-se às praças de guerra, sem afetar a sociedade civil à qual as disposições técnico-militares não se aplicariam, sem submeter todo tipo de crime à justiça de exceção. O segundo, contudo, era entendido por Paul-Meunier como recurso para o enfrentamento de ameaças internas e insurreições que colocassem em risco a existência do país e de sua ordem, o que justificaria a censura de imprensa e o estabelecimento de um tribunal de exceção. Compreendendo que a guerra internacional requisitaria a medida apenas no Norte e no Leste da França, o autor solicitou o fim do estado de sítio em Paris, no interior da França e na Argélia (Archives Nationales, C 7725). Mas a demanda não vingaria, e o Presidente concederia ao poder militar, no dia 9 de agosto, a capacidade de aplicar penas durante a vigência das hostilidades da guerra e pelos seis meses seguintes à sua cessação (Archives Nationales, C 7725). Naquele momento não se imaginava que a guerra duraria tanto tempo na Europa, tampouco podia-se esperar que o estado de sítio vigoraria em todo país por longos anos.
A demanda de Paul-Meunier nos oferece duas questões para observação. A primeira delas é de que o recurso foi contestado por um grupo de deputados desde o início de sua aplicação, mesmo com uma guerra internacional em curso. Esses parlamentares questionavam fortemente a limitação das liberdades e a censura imposta à imprensa em todo o território nacional. Mesmo com o prosseguimento do conflito, que se revelou de proporções jamais vistas, em pelo menos duas outras oportunidades, 1916 e 1918, houve nova insistência para suspensão do estado de sítio em todo o território. Esses deputados que insistiam na suspensão demonstravam o temor pelo arbítrio político de experiências passadas (Archives Nationales, C 7725). Ou seja, estava claro que o somatório de ocorrências na França e as várias modificações na legislação não eram fruto de um recurso constitucional pacífico. A história da França suscitava uma forte desconfiança em relação à criação constitucional revolucionária de 1791.
Uma segunda questão é que o conflito internacional acarretou novas alterações no instituto. Uma lei do dia 27 de abril de 1916 (França, 1916) atualizou as disposições do artigo 8º de 1849 regulando detalhadamente o funcionamento e a competência dos tribunais militares em tempos de guerra, de tal forma que a autoridade dos tribunais militares sobre os civis automaticamente acabaria quando a paz fosse restabelecida (Radin, 1942, p. 639). Certamente foi uma conquista daqueles deputados que militavam pelo fim do estado de sítio e que apresentaram peças em defesa das liberdades individuais naquele ano, denunciando medidas arbitrárias que levaram ao aprisionamento de cidadãos franceses sem que houvesse qualquer denúncia, investigação ou condenação contra eles. Também foram denunciados os tratamentos desumanos a que os detidos eram submetidos em seus cárceres e suas deportações ilegais e forçadas (Archives Nationales, C 7734).
Diferentemente do que diz Marcelo Leonardo Tavares (2008, p. 60), de que o estado de sítio durante a Primeira Guerra Mundial na França havia sido surpreendentemente liberal, sem registros relevantes de arbitrariedades institucionais e com intervenções do Estado apenas na economia direcionada ao esforço de guerra, na censura à imprensa e no racionamento de água e víveres, documentos de deputados da época parecem revelar que a mínima alteração da lei que regulava o instituto foi justamente decorrente do contrário, do arbítrio apontado por parlamentares. Isso é algo que está mais próximo do que diz Jean-Claude Farcy (2014), de que a prática do Direito durante a Primeira Guerra Mundial na França mostrou que o estado de exceção gerado pelo conflito se traduziu no recuo de um ideal de justiça que sempre foi convocado pela propaganda de defesa nacional. Em suma, começando como legislação técnica militar, a questão do estado de sítio se consolidou, com o tempo, como legislação de exceção. Junto com esta nova dimensão atribuída ao instituto surgiram novas e distintas complicações, muito especialmente no que se refere à violação das liberdades fundamentais. Da metade do século XIX em diante, considerando-se o que dispunha a lei de 1849, este seria o cerne das preocupações com o estado de sítio, algo que seria potencialmente agravado pela ocorrência de uma guerra de enormes proporções.
O estado de sítio permaneceria em vigor na França até 1919, quando já havia se encerrado a guerra. O conflito com a Prússia em 1870-1871 já havia causado grande impacto à organização militar do país, já que a França foi rapidamente derrotada pelo inimigo, mas a Primeira Guerra Mundial assumiu proporções e intensidade muito maiores em vários sentidos. Houve grande esforço para se repensar a administração do Estado em caso de guerra, assim como repensar a estrutura militar francesa. Mas, se o estado de sítio utilizado durante a Primeira Guerra Mundial deixou lacunas que embasaram um pequeno requerimento de análise sobre o que poderia ser alterado em suas disposições (Service Historique de L’Armée de Terre, 2 N 201), as leis existentes foram julgadas suficientes, de modo que não se deu continuidade à proposta (Service Historique de L’Armée de Terre, GR 7 N 2494). Somente a Quinta República, estabelecida em 1958, formularia um novo sistema de defesa do Estado em situações de emergência[23].
Analisar a história do estado de sítio na França exige a compreensão de sua gênese militar e de sua passagem do direito militar para o direito público. Diante desse cenário, há um ponto de inflexão no ano de 1849, que é considerado quase unanimemente pela historiografia como o momento fundador de uma legislação de exceção. Esta é uma noção presente no aprofundado estudo de Théodore Reinach (1885) e que é consolidada por Carl Schmitt (1968), em 1922, que seria uma das maiores referências no debate sobre o estado de exceção no século XX. Recentemente, o francês François Saint-Bonnet (2001) e o italiano Giorgio Agamben (2004) recuperaram as ideias dos escritores precedentes sustentando a mesma constatação. Ainda que a noção de suspensão da Constituição tivesse sido introduzida e experimentada no período anterior a 1849, a lei daquele ano introduzia detalhadamente quais seriam as liberdades fundamentais suspendidas na vigência de um estado de sítio que não era mais primordialmente militar, ou seja, voltado para a guerra contra o inimigo externo, mas político, voltado para o combate de ameaças internas.
O levantamento de dados, assim como o que já foi demonstrado até aqui, deixou claro que o instituto do estado de sítio não foi apenas letra fria da lei. A criação constitucional francesa marcou profundamente a história do país no fim do século XVIII e no decorrer do século XIX. É claro que não se pode utilizar o estado de sítio para explicar toda a história da França nesse período, no entanto, ele esteve inegavelmente presente, manifestando-se em grande quantidade e em ampla territorialidade. Em que pese a existência de possíveis lacunas documentais no decorrer da pesquisa, foram encontradas 359 ocasiões em que o estado de sítio foi declarado na França entre 1791 e 1930[24]. Indo mais além, outras duas ocasiões ainda se somariam a esse número[25].
Vejamos, então, alguns dados sobre o estado de sítio na França:
Em outras palavras, o instituto foi utilizado 359 vezes no intervalo de 122 anos, uma quantidade tão elevada de ocorrências que representaria uma média de quase três estados de sítio por ano na França. No entanto, a tabela nos mostra que em determinados anos houve maior concentração de uso do recurso do que em outros. Por exemplo, o alarmante número de 107 declarações em 1799, ano recordista em toda a história, corresponde a um momento de passagem do Diretorismo para a Era Napoleônica, corroborando o que foi dito no tópico anterior sobre seu uso massivo para repressão e centralização do poder. Essa escalada se iniciou em 1795 e totalizou 204 ocorrências até 1799[26].
Se observarmos essas ocorrências pelo prisma dos diferentes regimes políticos na França no decorrer do referido período, teremos a seguinte composição:
Esta tabela nos oferece uma leitura diferenciada sobre o que representou o instituto do estado de sítio para os diferentes momentos da França entre o final do século XVIII e o início do século XX. Nota-se um acentuado desequilíbrio entre as ocorrências no período revolucionário e napoleônico e nos demais. Vale, então, lembrar que aquele era o momento de sua gênese como técnica e artifício militar, no qual o estado de sítio era utilizado com mais simplicidade pelos comandantes militares de praça e, muito especialmente, contra o inimigo estrangeiro em combate. Corroborando também o que já foi apresentado em tópico anterior, a partir de 1792 a França se envolveu em guerras que repercutiram no desenvolver da Revolução, e, sob o comando de Napoleão, houve constante tentativa de expansão do Império, algo feito, naturalmente, através de batalhas. Deste modo, as frentes de combate dos conflitos travados nesse período foram submetidas ao estado de sítio sempre que houvesse a necessidade militar para tanto.
Ainda assim, o número de ocorrências seria muito elevado para estar restrito às praças de guerra e aos postos militares nas linhas de fronteira; então convém ressaltar que data desse período também a expansão do estado de sítio para as cidades do interior da França. Essas tantas ocorrências representaram um laboratório de experimentação para novas noções que foram adicionadas ao estado de sítio, como a suspensão da Constituição, a opressão a inimigos políticos, o contingenciamento da participação popular no processo revolucionário ou a centralização do poder no Executivo. Além, claro, da submissão da população civil ao controle militar.
Não se pode atribuir, contudo, a Napoleão Bonaparte um uso extremado do instituto. Isso porque o Diretório já havia feito boa parte do trabalho ao excluir do processo revolucionário a participação popular e ao promover a centralização do poder no Executivo. Napoleão, como já mencionado e pode ser constatado pela Tabela I, frearia o uso do estado de sítio até 1815, quando retornaria em seu Governo dos 100 Dias para tentar vencer a guerra que estava perdendo e havia causado seu primeiro exílio. Com uma explicação pautada pelo artifício militar, o ano de 1815 seria o de maior uso do instituto do estado de sítio durante seu período como líder francês.
Durante o período da Restauração, a monarquia também recorreria ao estado de sítio, com destaque para os anos de 1830 e 1832, não pela quantidade que representam, mas pela representatividade do recurso nos eventos que transcorreram naqueles anos. Tanto em 1830 quanto em 1832, o instituto do estado de sítio foi utilizado como forma de proteção para as monarquias vigentes, ameaçadas por uma troca de rei e por republicanos, respectivamente. Isso é muito emblemático, pois demonstra, primeiro, a importância assumida pelo caráter constitucional, após a Revolução, com reis recorrendo a leis superiores para a defesa da monarquia, e, segundo, pela significância atribuída ao estado de sítio no combate a movimentos insurgentes.
Cumpre ainda ressaltar que o número igual de declarações de estado de sítio, 18, na Segunda e na Terceira Repúblicas é, no entanto, algo bastante diverso. Isto porque os regimes representam os opostos na França em matéria de durabilidade. A Segunda República durou apenas quatro anos, 1848-1852, mais curto período republicano francês, enquanto a Terceira República durou 70 anos, o mais longo período republicano até hoje. Desta forma, em termos comparativos, a Segunda República teria acumulado uma média de 4,5 estados de sítio por ano, e sua sucessora uma média de apenas 0,25. Ou seja, algo muito intenso estava ocorrendo em meados do século XIX na França para haver tanta instabilidade pautada pelo uso do estado de sítio. A resposta para essa questão está ainda inserida nas disputas entre Revolução e Restauração, que derrubariam novamente a monarquia, através de forte movimento progressista, e que retornariam com um Império da linhagem de Bonaparte. A República triunfaria apenas com a Terceira República, mas enfrentaria guerras internacionais de grandes proporções.