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Recepción: 24 Noviembre 2019
Aprobación: 24 Enero 2020
Resumo: O início do período Regencial (1831-1840) no Brasil foi marcado pelo movimento de transformação nas instituições e normas herdadas do período colonial, abrangendo a justiça, o serviço militar de segunda linha, entre outras. Na área fiscal, essas reformas se deram inicialmente pela a lei do orçamento de 1832 que estabeleceu a divisão dos impostos e despesas que cabiam ao governo central e às províncias e pelo Ato Adicional de 1834 à Constituição que concedeu às assembleias provinciais o poder de legislar sobre seus impostos. Em consequência, as províncias tiveram que progressivamente estabelecer órgãos e nomear funcionários encarregados da administração fazendária. No Rio Grande do Sul, a província mais meridional do Brasil, esse movimento foi especialmente conturbado devido à guerra civil (1835-1845) e à secessão do território provincial sob o controle dos rebeldes que proclamaram uma república, o Estado Rio-Grandense. O presente artigo tem por objetivo analisar como se deu a administração tributária em tempo de guerra nas duas entidades políticas existentes no território sul-rio-grandense entre 1836 e 1845, observando os limites impostos pela necessidade de mobilizar recursos para o conflito e pela relação como governo central brasileiro.
Palavras-chave: Província do Rio Grande do Sul, Estado Rio-Grandense, Revolução Farroupilha, Administração Fiscal, Fiscalidade.
Abstract: The beginning of the Regency period (1831-1840) in Brazil was marked by the transformation of institutions and norms inherited from the colonial period, including the justice system and second line military service. These reforms were initially brought about by the budget law of 1832, which established the division of taxes and expenditures for the central government and provinces, together with the additional act to the Constitution, of 1834, which granted provincial assemblies the power to legislate on taxes. As a result, the provinces had to establish bodies and appoint officials to manage the country’s financial administration. In Rio Grande do Sul, Brazil's southernmost province, the establishment of these changes was hindered by the civil war (1835-1845) and the secession of part the provincial territory. This part was under the control of rebels, who proclaimed it the Estado Rio-Grandense. This article will examine the impact that the wartime tax administration had on the two political entities existing within the territory of Rio Grande do Sul between 1836 and 1845. This article will seek to outline the limitations / restrictions that arose from the need to mobilize resources for the conflict, and the relationship between them and the Brazilian central government.
Keywords: Province of Rio Grande do Sul, Rio Grande State, Farroupilha Revolution, Tax administration, Taxation.
A questão da extração de recursos é uma importante via para a reflexão acerca da relação entre o Estado e a sociedade, a qual é permeada por coação, por cooperação e pela construção de legitimidades. Como salientou Schumpeter (1954;Moore, 2004), enquanto marco para a análise dos momentos de mudanças, a fiscalidade permite pensar a construção e a disputa de alternativas/projetos para os estados nacionais em formação.[2] Ainda que a ideia de fiscalidade envolva a extração e o dispêndio de diferentes tipos de recursos, o sistema e a administração de tributos são mecanismos privilegiados nessa relação. Se a definição do conjunto de impostos e taxas a serem arrecadados envolve a disputa pela definição da distribuição do ônus tributário na sociedade, o orçamento e, especificamente, o dispêndio revelam outro lado desse embate. Nesse jogo de interesses, muitas vezes conflitantes, a administração fiscal manifesta-se como a estratégia usada pelo Estado para viabilizar o recolhimento de suas receitas e a execução das despesas. Assim, essa perspectiva de análise permite desvendar as tensões que envolvem o fisco no dia a dia da relação contribuinte x Estado e como se manifestam as imposições, as negociações e as resistências.
As primeiras décadas do século XIX foram marcadas, no Brasil, por reformas diversas; mudanças que estimularam a elaboração de novos projetos políticos, mas que também contrapuseram distintas expectativas com relação ao futuro (Jancsó, 2005). As reformas institucionais promovidas no esforço de construção da máquina estatal[3] – outorga da Constituição, criação da Guarda Nacional, aprovação do Código de Processo Criminal, o Ato Adicional à Constituição de 1834 – foram permeadas por tensões, as quais se agudizaram no início dos anos de 1830, através das Revoltas Regenciais (Ribeiro, 2013).
Na área fazendária, essas mudanças trouxeram a alteração na distribuição de recursos e das competências tributárias e criaram instâncias separadas para a administração fiscal do governo central e das províncias. A reforma ou supressão de instituições como as juntas da fazenda e dos antigos fluxos de recursos que haviam sido preservados nos primeiros anos pós-independência implicaram a redistribuição de poderes e de papéis entre o centro e as unidades administrativas e constituíram-se em fator gerador de instabilidade e questionamentos. No Rio Grande do Sul, província localizada no extremo meridional do Império do Brasil e fronteira com os países platinos, essas reformas foram especialmente conturbadas, contribuindo para a eclosão da guerra civil em 20 de setembro de 1835 que levou à secessão de parte do território provincial, no qual foi proclamada uma república, o Estado Rio-Grandense (1836-1845). Assim, as duas entidades políticas que dividiram a antiga Província de São Pedro – os governos da província e o republicano – enfrentaram o desafio de reorganizar a administração fiscal e de viabilizar a extração de recursos tributários em meio ao conflito armado. Se para a província tratava-se de adequar a estrutura administrativa e fiscal às reformas emanadas do governo central, para as autoridades republicanas impunha-se adequar as antigas instituições às necessidades do novo Estado. O presente artigo tem por objetivo analisar como se organizou a administração fiscal em tempo de guerra nas duas entidades políticas existentes no atual território sul-rio-grandense, observando os limites impostos pela necessidade de mobilizar recursos o conflito militar, pela instabilidade territorial e pela relação com o governo central brasileiro. Através dessa análise, procuramos vislumbrar alguns dos mecanismos que contribuíram para a pacificação da província em 1845, ou seja, buscaremos indícios de como foi possível superar as tensões geradas pelas reformas regenciais.
1. Reformas na administração tributária e secessão
A primeira mudança na estrutura fazendária no Brasil pós-Independência deu-se através da Lei de 4 de outubro de 1831 que criou o Tribunal do Tesouro Público Nacional como órgão central e estabeleceu órgãos locais demarcando a relação entre essas duas instâncias (Camargo, 2017). As antigas juntas da fazenda foram transformadas em tesourarias diretamente subordinadas ao Tesouro Nacional. Presididas pelos presidentes das províncias, estas eram os órgãos responsáveis pela administração, arrecadação, distribuição, contabilidade e fiscalização de todas as rendas públicas.
No ano seguinte, a Lei do orçamento de 24 de outubro de 1832 instituiu uma mudança profunda no fluxo de recursos, com a separação de competências tributárias entre o governo central e os governos provinciais. Essa lei listava as fontes de receitas gerais, entre as quais estavam aquelas de mais expressiva arrecadação e fácil fiscalização, ficando as demais definidas por exclusão (Miranda, 2015). Para além de mera formalidade, a divisão de competências tributárias envolveu pelo menos três consequências administrativas. Em primeiro lugar, como não havia estruturas separadas para a arrecadação das rendas provinciais e gerais, as tesourarias em cada província arrecadavam todas as receitas, as quais passaram a ser recolhidas em dois cofres separados. A segunda consequência era que agora havia dois orçamentos distintos, cabendo aos conselhos gerais a definição da receita e despesa provinciais a partir de proposta encaminhada pelo seu presidente. Por fim, alterava-se o fluxo de recursos no território do Império do Brasil. Até então, as províncias, como fizeram as capitanias no passado colonial, arrecadavam todas as rendas e eram responsáveis pela execução e controle das despesas públicas nos seus territórios, obrigando-se a remeter as sobras e os tributos de aplicação específica[4] ao governo central. Agora, as províncias passavam a contar com um número menor de fontes de receitas e não dispunham do direito de legislar sobre elas.
Assim, as reformas implementadas a partir da abdicação de D. Pedro I (1831) aprofundaram o processo de construção do Estado brasileiro com a constituição de seus instrumentos específicos, os quais implicavam a constituição ou definição de novos papéis e hierarquias entre os territórios que formavam o Império. Estas posições eram estabelecidas pelas mudanças no sistema tributário (criação de novas fontes de recursos, manutenção de tributos exclusivos, separação de receitas provinciais e gerais), na definição das instâncias administrativas (criação do Tesouro Nacional, separação entre tesourarias provinciais e geral), de novos procedimentos (definição de fluxos de recursos) e na distribuição desigual do ônus tributário.
Para a Província de São Pedro, essas reformas colocavam novas dificuldades e foram fontes de descontentamentos, agravando a crise econômica e orçamentária vivenciada desde o término da Guerra Cisplatina (1825-1828). Como província fronteiriça, palco e ponto de partida para as batalhas desse conflito, parte expressiva dos encargos da guerra recaíram sobre os cofres provinciais e sobre sua população. Medidas impopulares como a suspensão do pagamento das dívidas – relativas a soldos, pensões para órfãos e viúvas, fornecedores das tropas e empréstimos[5] – paralisaram os negócios e dificultaram a reconstrução econômica,[6] disseminando descontentamentos entre diversos setores da sociedade provincial no início dos anos de 1830.
Nesse cenário, a divisão de competências tributárias representava o agravamento da situação orçamentária, provocando a redução drástica de recursos à disposição do governo provincial, em especial, pelo fato das principais fontes de receitas como o dízimo sobre o gado vacum e cavalar e os 20% sobre os couros exportados haverem passado à esfera do governo geral.
Em 1834, a Regência concedeu às províncias o direito de legislar sobre suas fontes de receitas, através do Ato Adicional à Constituição que criou as assembleias legislativas provinciais. Segundo Dolhnikoff (2000), o Ato Adicional estabeleceu um novo arranjo institucional alicerçado no fortalecimento das elites provinciais em detrimento dos poderes locais, criando as condições para o alargamento da presença do Estado através da articulação entre esses segmentos e os presidentes nomeados pelo governo central. No entanto, essas reformas tiveram um efeito adverso na Província de São Pedro, ficando aquém das mudanças almejadas ao manter a indicação do presidente pelo Imperador e ao conceder limitada margem para que o Legislativo deliberasse sobre as receitas provinciais.[7]
Assim, a primeira legislatura da Assembleia Provincial em 1835 tornou-se o foco de embates, acirrando as divergências entre os setores da elite,[8] opondo os interesses dos estancieiros da zona da fronteira (Campanha) ligada à pecuária aos dos negociantes e charqueadores da região litorânea (Laguna) (Leitman, 1979). Para além da política provincial, essas tensões também eram expressão de variadas clivagens decorrentes da perda de autonomia na condução dos conflitos fronteiriços, da questão do trânsito do gado e das relações entre os estancieiros rio-grandenses e os caudilhos orientais (Miranda, 2009).[9] A revolta, liderada pela elite estancieira, teve início no dia 20 de setembro de 1835 e tinha por objetivo imediato a deposição do Presidente da Província Fernandes Braga, mas, progressivamente, encaminhou-se para a secessão, com a proclamação da república e a criação do Estado Rio-Grandense em 11 de setembro de 1836. Tinham início as trajetórias de duas entidades políticas paralelas, que disputavam não apenas o território, mas também a lealdade dos cidadãos e o poder de extrair recursos.
2. Administração tributária na Província em tempos de guerra
Logo no início da revolta, com a tomada de Porto Alegre, o Presidente Fernandes Braga refugiou-se em Rio Grande. Proclamada nova sede do governo, foi nessa cidade que começou a ser restruturada a administração leal ao governo do Império do Brasil (Araripe, 1986; Assis Brasil, 1989). As ordens de Fernandes Braga demonstram a preocupação em reestabelecer o controle sobre os funcionários e sobre os recursos da província. A incerteza tomou conta das repartições fiscais. Nem todos os funcionários fazendários seguiram os exemplos do inspetor da Alfândega de Porto Alegre e do coletor da vila do Rio Pardo que, fugindo dos seus postos, recusaram-se a obedecer ao governo rebelde (Registro, 1929, p. 226; O Mensageiro, 13/11/1835, n. 4, p. 16). Assim, Fernandes Braga determinou que os agentes fazendários não dessem mais execução às ordens do Inspetor da Tesouraria Provincial sediada em Porto Alegre.[10] Em substituição àquela repartição, organizou provisoriamente uma tesouraria na Alfândega em Rio Grande para efetuar o pagamento das folhas civil e militar e constituir-se no centro da estrutura fazendária da província (Registro, 1929, p. 144-145, 172-173).
Apesar da tentativa de retomar a normalidade, diante do avanço rebelde sobre Rio Grande, o Presidente da Província refugiou-se em um vaso de guerra ancorado naquele porto e ordenou ao Inspetor interino das alfândegas daquela cidade e da vila de São José do Norte que fizesse embarcar também na escuna de guerra “Rio Grandense” “o caixote de sedulas (sic.), que se acha em seu poder, e todos os mais dinheiros das Repartições a seu cargo” (Registro, 1929, p. 210).[11] Em 23 de outubro, Fernandes Braga partiu rumo à Corte, levando consigo “grande porção de papeis dos archivos públicos, 70 contos de réis em dinheiro dos cofres nacionaes, a maior parte dos empregados das repartições geraes [...]” (Araripe, 1986, p. 28), deixando o território destituído de comando e de recursos monetários (O Mensageiro, 13/11/1835, n. 4, p. 16).
Dias depois, ao chegar a Rio Grande, José de Araújo Ribeiro, o novo presidente nomeado pela Regência, tomou medidas no sentido de reorganizar a arrecadação visando angariar fundos e reafirmar a sua autoridade (Apontamentos, 1929, p. 622).
Assim, autorizado pelos decretos de 3 de março daquele ano, o Presidente restabeleceu a Tesouraria da Província na cidade do Rio Grande e determinou a suspensão do expediente na Alfândega de Porto Alegre (Brasil, 1861). Também proibiu a comunicação fluvial com aquela cidade, tornou pública, por editais, a decisão de que “somente serião levados em conta os pagamentos de impostos e dividas actuaes da Fazenda Nacional, que fossem feitos nas Estaçoens que obedecem á legitima Authoridade” (Apontamentos, 1929, p. 638) e que os empregados fazendários que se encontrassem “nos lugares ocupados pelos anarquistas” teriam um prazo de 30 dias para se apresentar na cidade de Rio Grande (Apontamentos, 1929, p. 658).
Não apenas as questões da fuga de empregados e do controle rebelde sobre estações fiscais eram empecilhos à arrecadação. A eclosão do conflito implicou a dissolução da Assembleia Legislativa, a qual foi novamente reunida em regime extraordinário e sob o controle rebelde entre novembro de 1835 e março de 1836.[12] Diante disso, Araújo Ribeiro informou à Corte desconhecer a lei do orçamento que deveria reger o exercício fiscal de 1836-1837 (Apontamentos, 1929, p. 655). Com a retomada de Porto Alegre pelos legalistas,[13] a Assembleia voltou a se reunir em regime ordinário entre 30 de setembro e 30 de novembro de 1837, quando foi finalmente votada a segunda lei do orçamento para o exercício de 1837-1838.[14] No entanto, com o agravamento e prolongamento da guerra, os trabalhos do Legislativo acabaram suspensos por oito anos (1838-1845).[15]
Outro obstáculo à arrecadação foi o fato de a eclosão do conflito ter ocorrido quando o processo de separação das estações fiscais (coletorias e alfândegas) e dos órgãos centrais (tesourarias)[16] da província e do governo central brasileiro ainda não havia se concretizado. Os mesmos órgãos fazendários e os mesmos funcionários eram responsáveis pela arrecadação e administração das rendas provinciais e gerais, separadas apenas nos cofres e livros de registro.[17]
Os dados da arrecadação são importantes indicadores da progressiva estruturação do sistema de estações fiscais e do alcance e limites da ação do governo provincial no cenário da guerra.[18] O exercício de 1835-1836 seria aquele em que, pela primeira vez, se arrecadariam os impostos votados pela Assembleia Legislativa; no entanto, com o início da revolta, o processo de recolhimento de tributos foi conturbado. Para esse exercício fiscal só há registros da arrecadação em estações fiscais identificadas como alfândegas e coletorias provinciais. Nenhuma receita geral foi registrada. Sendo as principais fontes de receitas gerais compostas por tributos relacionados ao comércio externo, em parte essa ausência pode ser explicada pelo fato dos valores arrecadados nas alfândegas de Porto Alegre, Rio Grande e São José do Norte entre agosto e outubro de 1835 haverem sido levados para a Corte pelo Presidente deposto e pela paralisação dessas estações fiscais em decorrência da tomada da capital e da expansão da rebelião.[19]
O avanço do conflito ampliou a desorganização administrativa, pois para o exercício seguinte, de 1836-1837, não há registros do recebimento de rendas, sejam provinciais ou gerais. A retomada do funcionamento dos órgãos fazendários foi gradual. No exercício de 1837-1838 só houve arrecadação em cinco alfândegas e coletorias, todas localizadas na zona da Laguna, ou seja, em Porto Alegre, Rio Grande, São José do Norte, além da Tesouraria Geral. Nos períodos seguintes, o número das repartições em funcionamento aumentou à medida que as forças legalistas avançavam: em 1839-1840, havia seis estações provinciais e cinco gerais (mapa 1).
Em 1841-1842, passava-se a contar com 14 coletorias e alfândegas provinciais e 13 gerais (mapa 2), chegando, finalmente, a 17 provinciais e 19 gerais no exercício de 1844-1845, quando se aproximava o término do conflito e as forças imperiais ampliavam o território sob seu domínio (mapa 3).[20]
A dificuldade em retomar a organização tributária tinha reflexos diretos sobre a disponibilidade de receitas gerais. Ao longo do período da guerra, a principal fonte desses recursos estava associada aos “Movimentos de Fundos” (gráfico 1), contas que, a partir de 1837-1838, superaram em muito as receitas tributárias gerais na província.
Essa conta, classificada como “Receita Fictícia”, era composta principalmente pelos saques e repasses feitos sobre e pelo Tesouro Nacional, destinados ao pagamento de soldos, fornecimento do munício[21] e aquisição de montarias, armamentos e munições para as tropas (gráfico 2).
Essas informações indicam que, mesmo com a retomada e a progressiva ampliação do número das estações fiscais gerais em funcionamento, as demandas por alimentos, armamentos, etc. e os movimentos da guerra de guerrilhas acabavam por fazer com que a maior parte dos recursos administrados pelo Tesouro Geral na província tivesse origem não tributária. Por outro lado, observa-se pelo gráfico abaixo que a distância entre as receitas e despesas gerais tendeu a se ampliar ao longo do período, sendo compensada pelo Movimento de Fundos (gráfico 3).
Obs.: o valor da despesa imperial do exercício de 1838-1839 estava rasurado no original. * Receita Tributária (importação, despacho marítimo, exportação, interior, extraordinária, rendas extintas e depósitos, renda especial) ** Receita Tributária e Movimento de Fundos. Fonte: Camargo, 1868, p. 244, 247.
Mas, ao mesmo tempo, os balanços provinciais eram superavitários e, a partir do exercício de 1842-1843, a Fazenda Provincial passou a fazer empréstimos regulares à Fazenda Geral (gráfico 4).
* Receitas tributárias, extraordinárias e depósitos, excluídas as receitas gerais indevidamente arrecadadas. ** Inclui valores do empréstimo que fez a Renda Provincial à Renda Geral a partir do exercício de 1842-1843.
Fonte: Camargo, 1868, p. 250, 276.Considerando os dados acima, observa-se que coube às rendas gerais o suprimento da maior parte dos recursos necessários à guerra, o que em grande parte decorreu da divisão de competências estabelecida pela legislação de 1832 e 1834 e, consequentemente, da separação das tesourarias provincial e geral. Dessa forma, eram de responsabilidade do governo central os encargos com o pagamento de soldos, munício, montarias, armamentos e munições. Se, no início da década de 1830, a avultada dívida passiva e os encargos com pensões decorrentes da Guerra da Cisplatina (1825-1828) couberam exclusivamente aos cofres provinciais e foram, ao lado da nova divisão de competências tributárias, fatores que agravaram o déficit orçamentário da província, agora essas mesmas reformas desenharam as condições para que, no decorrer da Revolução Farroupilha, o ônus da guerra não recaísse sobre esse tesouro. Neste sentido, ao tornar possível a desoneração dos cofres provinciais das despesas e dívidas da guerra, essas reformas contribuíram para preparar o caminho para a pacificação e para o retorno dos antigos rebeldes ao Império.[22]
3. Administração tributária na República em tempos de guerra
Se, nos primeiros meses, os farrapos visavam controlar a Presidência da Província e afastar seu ocupante e seus partidários, a partir de 11 de setembro de 1836, com a proclamação da república, impunha-se um novo sentido ao movimento. Nos primeiros anos, houve um esforço para dotar o governo republicano das estruturas mínimas necessárias para seu funcionamento na parcela do território sob o controle rebelde, assim como sobre os funcionários e instituições governamentais preexistentes.
No dia seguinte à proclamação da república, um decreto declarou sem efeito quaisquer graças ou mercês, ofícios da Justiça ou Fazenda pertencentes àqueles que se mantinham fiéis ao Império ou que residissem no território brasileiro. Foram também demitidos aqueles que pegassem em armas contra seu governo e os que, num prazo de dois meses, permanecessem em território brasileiro (AHRS, maço FR 39, doc. 29).
Nesse processo de reorganização administrativa, segundo Laytano, a questão fiscal tinha precedência a outras:
Talvez fosse mesmo a única matéria em que se tivesse legislado com tanta unidade, pelo menos, com tanta abundância. [...]
A legislação republicana, se foi incipientemente civil, penal e comercial não foi, entretanto, militar, eleitoral e fiscal (Laytano, 1983, p. 198-199).
Mas esse esforço encontrava um grande obstáculo: o conflito armado que se estendeu por nove anos foi caracterizado por investidas rápidas e pela elevada mobilidade característica da guerra de movimento, cuja arma principal era a cavalaria ligeira (Guazzelli, 2013). Ou seja, o território dominado pelos republicanos era instável, sofrendo expansões e recuos frequentes, obrigando o estabelecimento da capital do Estado Rio-Grandense sucessivamente em três localidades distintas.[23] Esses fatos representaram importantes barreiras à estruturação da administração republicana, assim como à criação de uma rede arrecadadora estável. Desta forma, a “provisoriedade” do território em litígio, a ausência de um porto marítimo e a instabilidade política no Prata[24] marcaram as formas utilizadas para financiamento da guerra.
Apesar disso, houve um grande esforço, em especial de Domingos José de Almeida quando esteve à frente do Ministério da Fazenda, para dotar o Estado Rio-Grandense de instrumentos e estruturas capazes de viabilizar a arrecadação tributária e o controle sobre o dispêndio.[25] Nos primeiros anos, leis, decretos e regulamentos do Império mantiveram-se em vigor, e o governo republicano fez uso das estações fiscais preexistentes (Araripe, 1986). Mas, progressivamente, o governo passou a agir sobre essa questão. Foi o que aconteceu com a Coletoria de Alegrete, para a qual, em 1837, o Inspetor do Tesouro republicano nomeava um novo coletor e o instruía para que,
Existindo nessa Fronteira uma Colletoria estabelecida pelo Governo do Brasil, eu autorizo a V. Mce para que não só possa tomar conta dos dinheiros que possão existir nessa Collectoria, assim como de todos os livros, papeis e mais utencilios que ahi existão, dando de tudo parte e hé de esperar que se encontre todas as Leys, e Regulamentos relativos a arrecadação dos direitos, impostos, que outrora se arrecadava, as quaes se achão em vigor, e caso nada disto exista mo deverá communicar para immediatamente providenciar (Thesouro, 1929 p. 75-78).
A revolta gerava um panorama de incertezas, impunidades e violências que dificultavam a manutenção de funcionários e da arrecadação. Segundo Antônio Vicente da Fontoura, em outubro de 1837, na comarca de Rio Pardo não havia “uma só coletoria, perdendo destarte o Estado os direitos que podia ter havido e que tão necessários se fazem, e nem há quem queira ser coletor sem ter segurança” (AHRS, CV 4783, v. 8, 1984, p. 321-322).
Foi somente no ano seguinte, pelo Decreto de 14 de agosto de 1838 (AHRS, CV 2846 e CV 2847, v. 5, 1981, p. 85-107), que foram criadas e regulamentadas as 23 estações fiscais do Estado Rio-Grandense, assim como estabelecido o conjunto de impostos republicanos (Miranda, 2015). No entanto, como bem salientou Flores (2002), nem todas as coletorias efetivamente entraram em funcionamento dada a dinamicidade da guerra, mas, por outro lado, é interessante observar que as localidades com estações fiscais republicanas previstas pelo decreto extrapolavam aquelas preexistentes à guerra; assim, novas localidades passaram a contar com estações fiscais num esforço para aumentar a arrecadação através de um maior controle, em especial sobre o trânsito de mercadorias.
Essa organização inicial foi alterada pelo Aviso de 1º de outubro de 1838 que determinou a criação de quatro coletorias gerais, as quais agregariam as parciais.[26]
Em 1839, a república tinha em funcionamento o maior número de repartições, chegando a 24 coletorias (mapa 1). No entanto, a guerra implicou continuada adaptação da administração fiscal. Dada a incorporação da vila de Lages ao Estado Rio-Grandense, decidiu-se pela extinção da Coletoria de Santa Vitória, passando sua jurisdição àquela da vila catarinense (O Povo, 06/04/1839, p. 3; AHRS, CV 851, n. 3, 1978, p. 247).[27] No mesmo ano, devido à invasão do inimigo, a Coletoria de Santo Antônio da Patrulha teve suas atividades suspensas, “aonde pelo mesmo motivo se naó pode fiscalisar, e arrecadar todo o direito da passagem dos gados, e outros Animaes que vaó para a Provincia da Santa Catharina” (O Povo, 08/06/1839, p. 2, 3).
Em março de 1840, Domingos José de Almeida comunicou a Vicente da Fontoura que, estando as repartições parciais “soffrivelmente organizadas, e em regular andamento”, deliberou-se a abolição das quatro coletorias gerais (Antonio, 1928, p. 315; O Povo, 07/03/1840, p. 2), ficando cada coletoria diretamente subordinada ao Tesouro republicano.
Nas estações fiscais, serviam um coletor, um escrivão e um número variável de guardas (O Povo, 07/03/1840, p. 1, 2; 11/03/1840, p. 1). Conforme o artigo 46 do Regulamento das Coletorias de agosto de 1838, esses empregados eram isentos do serviço militar e de polícia. No entanto, recomendava-se que nelas servissem preferencialmente aqueles que não se encontravam nesses serviços (AHRS, CV 2846 e CV 2847, v. 5, 1981, p. 85-107) e/ou fossem inválidos da guerra de independência (O Povo, 14/03/1840, p. 3). Poucos meses depois da publicação do Regulamento, uma circular reiterava que os coletores, escrivães e fiscais eram isentos do serviço das armas, “pois que estes naó podem nem devem ser distrahidos do Serviço da arrecadação dos Direitos, de que o Governo lança maó para suprir, inda que escassamente, aos Patriotas dedicados á defesa de nossa Liberdade e Independencia” (O Povo, 28/11/1838, p. 2; AHRS, CV 2868, AHRS, v. 5, 1981, p. 125). A república enfrentava o dilema entre priorizar a mobilização de guerra e garantir as condições de arrecadação, já que não eram raros os casos em que fora necessário mobilizar os servidores fazendários (O Povo, 28/11/1838, p. 2; AHRS, CV 2868, v. 5, 1981, p. 125).
Se, quando havia paz, o controle do descaminho era um desafio constante, a aplicação das multas e penalidades previstas no Decreto de 14 de agosto de 1838 era ainda mais difícil em tempos de guerra, quando as lealdades e os interesses se mostravam mais fluidos, assim como os caminhos. Em junho de 1839, Vicente da Fontoura, ainda exercendo o cargo de Coletor Geral, afirmava:
Parece que não existe nesta lei o artigo 47 das Instruções, porque nem juízes de paz, comandantes de polícia, inspetores de quarteirão e nem os próprios coletores se lhes dá que sejam ou não fiscalizados os direitos, que passem ou não contrabandos. Todo este mês tenho empregado em correr estes dois distritos [1v.] e tudo é desleixo, tudo abandono! Diariamente cruzam as carretas e cargueiros de mascateação sem que se saiba de onde vêm, se pagaram ou não os direitos, se trazem ou não guia (AHRS, CV4796, v. 8, 1984, p. 329-330).
Mas não eram apenas a instabilidade do território e o número de funcionários das estações fiscais que dificultavam a maior participação das receitas tributárias nas rendas republicanas. A grande autonomia dos comandantes militares impunha limites ao controle sobre a arrecadação e o dispêndio de recursos, da mesma forma que obstaculizava a circulação de informações entre as instâncias do governo.
Corriqueiramente, os comandantes militares utilizavam mecanismos próprios para reunir os meios para alimentar, vestir e fornecer montaria, munição e armamentos para seus homens: apropriavam-se do gado das fazendas dos inimigos, negociavam os recursos da república (gado, erva-mate, couros) mesmo sem o aval do governo e, continuamente, adquiriam os bens de que necessitavam lançando letras ou bilhetes sobre as coletorias. Assim, essas repartições funcionavam como cofres à disposição dos comandantes, que com frequência as deixavam deficitárias e desprovidas de numerário. Em muitos casos, as rendas correntes e futuras encontravam-se totalmente comprometidas, como expunha Domingos José de Almeida: “Repetidas vezes tem sucedido fazer-se transações sobre fundos existentes em várias coletorias à vista de seus balancetes mensais e na ocasião de serem as letras ou ordens apresentadas já não existirem tais fundos” (AHRS, CV 572, v. 3, 1978, p. 20-22). Essa prática tinha reflexos negativos sobre o Tesouro, incapaz de precisar o comportamento das despesas e a situação dos cofres republicanos. Segundo informações da receita e despesas de 22 estações fiscais para diversos períodos de 1839 publicadas no jornal republicano O Povo, cerca de 48,77% das receitas do Estado Rio-Grandense foram despendidos diretamente pelos comandantes e generais sacando sobre as coletorias. Essas retiradas representavam 79% da receita da coletoria de São Gabriel, 77% da de Alegrete, 75,76% da de Rio Pardo, 74% da de Triunfo, 69% da de Santana do Livramento e 65,5% da de São Borja (O Povo, 08/06/1839, p. 4). Essa prática, segundo Domingos José de Almeida, “além de tirar o crédito do Governo, pode bastante influir nos futuros destinos do país” (AHRS, CV 572, v. 3, 1978, p. 20-22). Conforme o gráfico abaixo (gráfico 5), observa-se que os saques feitos pelos comandantes incidiam pesadamente sobre as estações fiscais cujas arrecadações eram mais expressivas naquele momento, como nos casos de Alegrete e São Borja.
Observação: meses da arrecadação informados para cada estação fiscal não são coincidentes. Fonte: Quadro demonstrativo dos Rendimentos das Collectorias do Estado e quaes os seus destinos 7c. &c. &c., O Povo, 08/06/1839, p. 4
Submetendo os coletores à vontade dos comandantes militares, essa forma de agir contribuía para a incerteza quanto aos recursos fiscais disponíveis e funcionava como mecanismo autônomo de crescimento da dívida passiva. Sucessivamente, os ministros da Fazenda[28] relataram as dificuldades decorrentes dos saques sobre os caixas das coletorias, da emissão descontrolada de letras, da falta de numerário e de controle sobre a arrecadação. Em janeiro de 1842, Vicente da Fontoura afirmava que o “sistema seguido de transações com os direitos a entrarem nas coletorias é horrível, precário e a primeira alavanca com que até hoje se tem aluído o crédito do Governo e mesmo a reputação nacional” (AHRS, CV 4555, v. 8, 1984, p. 254-256).
A partir de 1840, o recuo progressivo do território dominado pelos farrapos ao lado dos crescentes obstáculos para continuar a realizar o comércio com o Estado Oriental do Uruguai[29] refletiam-se na redução progressiva das estações fiscais em funcionamento. As evidências documentais, ainda que lacunares devido à destruição de parte dos arquivos do Ministério da Fazenda do Estado Rio-Grandense e à dispersão dos documentos remanescentes (Miranda, 2016), permitem inferir a trajetória das estações fiscais republicanas.[30] Para 1837, foram localizadas referências a dez coletorias em funcionamento. Já no ano seguinte, o Decreto de 14 de agosto previa a existência de 23 estações (AHRS, CV 2846 e CV 2847 v. 5, 1981, p. 85-107); no entanto, foram localizadas referências ao funcionamento de 25 repartições. Para 1839 e 1840, há registros de 24 coletorias (mapa 1), número que teve uma redução drástica em 1841, para oito, chegando a 12, no ano seguinte (mapa 2). Para o ano de 1843, foram localizadas referências a apenas sete repartições – Alegrete, Bagé, Itaqui, Piratini, Ponche Verde, São Borja e São Gabriel (CV, maço 75). À medida que as forças legalistas impunham derrotas aos farrapos, a estrutura administrativa republicana ia deixando de existir.
Essa trajetória corrobora as evidências de que, ao longo do período de existência do Estado Rio-Grandense, apesar dos esforços para viabilizar a arrecadação de tributos, utilizaram-se em larga medida mecanismos não tributários, ou seja, a guerra alimentava a própria guerra (Abreu, 1936) através do butim, do corso, do sequestro dos bens dos inimigos, de empréstimos e doações voluntárias e de requisições (Miranda, 2015; Schmitt, 2016; Leitman, 2018).
Como demonstram vários documentos, entre os quais os lançamentos dos anos de 1840 e 1841 do Livro de Registros da Fazenda, as receitas do governo provinham em grande parte da comercialização de tropas de gado oriundas de empréstimos voluntários dos cidadãos e, principalmente, dos rebanhos retirados das estâncias confiscadas ao inimigo (AHRS, maço 70, CV 10784). Ao longo da existência do Estado Rio-Grandense, o gado constituiu não apenas a maior riqueza econômica da região, mas também o principal recurso de sustento do Estado, assumindo o papel de moeda de troca nas transações governamentais. Como demonstrou Leitman (2018), essa importante fonte tendeu a diminuir em decorrência do avanço das forças imperiais pela Campanha, da influência de fatores ambientais, além das epizootias, situação agravada pela restrição crescente ao acesso aos mercados platinos em decorrência da instabilidade política na região. Nesse movimento, as “coureções” – abate de animais com o único objetivo de extrair o couro – autorizadas pelo Estado Rio-Grandense avalizaram um comportamento predatório, considerado por Vicente da Fontoura como medida “antieconômica, imoral e arbitrária” (AHRS - CV 4553 v. 8, 1984, p. 253-254).
Incapaz de manter uma estrutura fiscal que garantisse a extração e distribuição de meios para manter suas tropas, os mecanismos utilizados atuavam como elemento disruptivo que, associado à destruição crescente das riquezas da região, às divisões entre os líderes do movimento e à instabilidade política no Estado Oriental, colocava em xeque a possibilidade de manutenção da luta. Segundo Leitman (2018), ao priorizar o sequestro dos bens dos inimigos (terras, escravos e gado) como uma das principais fontes de rendas, os republicanos puderam renunciar a formas mais violentas de espoliação e, ao término do conflito, as restituições desses bens contribuíram para pavimentar o caminho para a pacificação.
Para o Império, a conjuntura política no Prata evidenciava a importância de negociar a pacificação, trazendo para seu lado os líderes militares que haviam defendido o Estado Rio-Grandense. Assim, depois da batalha de Porongos e superado o entrave nas negociações representado pelo destino dos escravos que lutavam nas linhas republicanas,[31] as cláusulas do acordo, negociado no Rio de Janeiro por Antônio Vicente da Fontoura e assinado por Davi Canabarro em nome dos rebeldes em 1º de março de 1845 em Ponche Verde, traziam várias condições favoráveis: os republicanos indicariam o próximo presidente da província, a dívida nacional seria assumida pelo Império, a possibilidade de incorporação dos oficiais republicanos ao Exército brasileiro nos mesmos postos (exceto os generais), garantias de segurança individual e da propriedade privada (AHRS, CV 3731 v. 7, 1983, p. 31-32). Conclamando os ex-republicanos, Davi Canabarro afirmava:
Ao desprender-me do grau que me havia confiado o poder que dirigia a revolução, cumpre-me assegurar-vos que podeis volver tranquilos ao seio de vossas famílias. Vossa segurança individual e vossa propriedade estão garantidas pela palavra sagrada do monarca, e o apreço de vossas virtudes confiado ao seu magnânimo coração (Spalding, 1980, p. 222).
Ao contrário da Guerra Cisplatina, ao término da Revolução Farroupilha, eram os cofres do governo central brasileiro os únicos responsáveis pelas dívidas de ambos os lados. Antônio Vicente da Fontoura assumiu a tarefa de coordenar o reconhecimento das dívidas e efetuar o pagamento dos credores do Estado Rio-Grandense. Desta vez, o Império preocupou-se em garantir as bases materiais para a consolidação da paz, no preparo da nova guerra no Prata.
Conclusão
Por nove anos, duas entidades políticas coexistiram e disputaram o território da Província de São Pedro. A questão fiscal foi um dos fatores fomentadores da revolta farrapa ao lado de outras questões como os direitos dos rio-grandenses sobre suas propriedades no Estado Oriental, as lealdades que uniam os estancieiros rio-grandenses às lideranças orientais e as divisões políticas internas.
À desestruturação inicial decorrente da rebelião e da proclamação da república seguiu-se de ambos os lados a busca de estratégias para viabilizar a construção de uma administração fiscal que não apenas gerasse recursos para a manutenção da estrutura administrativa, mas que contribuísse para o sustento da guerra. Acompanhar a estruturação e a trajetória das estações fiscais de ambas as entidades políticas e verificar os mecanismos utilizados para financiar seus gastos coloca em evidência a disparidade de forças e possibilidades de êxito.
As forças legalistas mantiveram o controle na maior parte do tempo sobre o único porto marítimo do território e sobre as três alfândegas (Porto Alegre, Rio Grande e São José do Norte), mantendo abertas as vias para a chegada de dinheiro e suprimentos diversos enviados pelo governo central. As reformas do início dos anos de 1830, como a divisão de competências tributárias e a separação das administrações fiscais, que haviam sido apontadas pelas lideranças farrapas como espoliadoras e injustas, mostraram-se, ao longo dos anos, como estratégias importantes para viabilizar a guerra, minorando seus efeitos sobre os cofres da província, inclusive após a pacificação.
O Estado Rio-Grandense, por sua vez, empreendeu um grande esforço para dotar a administração das estruturas necessárias para a guerra. No entanto, não foi apenas o avanço legalista sobre a zona da Campanha o único, ainda que decisivo, fator responsável por inviabilizar essa estratégia. O desempenho das estações fiscais foi comprometido pelas dificuldades ou desinteresse em controlar o descaminho e, principalmente, pela incapacidade do governo em centralizar e controlar a arrecadação e o dispêndio. Os mecanismos não tributários utilizados pelo Estado Rio-Grandense para financiar a guerra, ainda que tenham viabilizado a mobilização militar por muitos anos, acabaram, progressivamente, por comprometer a sua existência.
Em 1844 e 1845, as negociações de paz ocorreram numa nova realidade institucional. Esse novo cenário era produto do Adicional de 1834, uma vez superados os anos iniciais e as tensões da sua implementação. Se, na década de 1830, as reformas regenciais, em especial aquelas relativas à questão fiscal, contribuíram para acirrar os conflitos e alimentar a cisão no sul do Império, progressivamente, como demonstrou Dolhnikoff (2000), esse novo arranjo federativo operou para criar as condições para a aproximação dos interesses dos distintos setores da elite provincial com os do Estado Imperial.
Assim, o acordo de paz, assinado pelos farrapos, com o respeito à propriedade privada, sejam terras, escravos ou gado, e a assunção da dívida republicana pelo governo central brasileiro estabeleceram as bases materiais para a pacificação da província; condições para que os antigos inimigos pegassem novamente as armas para lutar pelo Império. Iniciava-se uma nova fase, na qual, segundo proclamava Caxias às margens do Rio Santa Maria no 1º de março de 1845, “Maldição eterna a quem ousar recordar-se das nossas dissensões passadas...” (Spalding, 1980, p. 222).
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Notas