Resumo: O Haiti suportou quase solitariamente a responsabilidade de defender a humanidade dos negros no final do século XIX. Buscando reagir ao colonialismo na África e suas teorias racistas, importantes intelectuais haitianos desempenharam um papel central na criação do movimento pan-africano que se iniciava nos anos finais do século e depois na criação do movimento da negritude na década de 1920. Esta temática é analisada desde a perspectiva do desenvolvimento desigual e combinado da história haitiana em relação à história contemporânea. Busca-se, desde uma crítica historiográfica e análise da produção teórica e documental dos principais autores, apresentar as temáticas que alimentaram o envolvimento dos intelectuais haitianos nos debates acerca do pan-africanismo, do novo nacionalismo pós-invasão dos EUA em 1915 e nos embates e divergências que permearam o rumo racista do movimento da negritude dirigido pelo grupo Griots de François Duvalier. Buscamos desenvolver duas hipóteses para uma compreensão das prováveis inter-relações com o nacionalismo haitiano. Em primeiro lugar, que os movimentos pan-africano e da negritude foram essenciais nas tentativas de construção ou reconstrução do nacionalismo do começo do século XX. Em segundo lugar, que os limites e restrições desses dois movimentos a uma abordagem econômica e social da questão negra abriram caminho a uma biologização racista e autoritária do discurso em defesa dos negros e do próprio nacionalismo, com prováveis repercussões nos atuais movimentos identitários negros.
Palavras-chave:pan-africanismopan-africanismo,negritudenegritude,François DuvalierFrançois Duvalier,Aimé CésaireAimé Césaire.
Abstract: Haiti bore the responsibility of defending the humanity of blacks in the late 19th century. In order to react to colonialism in Africa and its racist theories, important Haitian intellectuals played a central role in the creation of the Pan-African movement that began in the later years of the century and then in the creation of the blackness movement in the 1920s. The thematic is analyzed from the perspective of the unequal and combined development of Haitian history in relation to contemporary history. Based on a historiographical critique and analysis of the theoretical and documentary production of the main authors, the article presents the themes that fueled the involvement of Haitian intellectuals in the debates about Pan-Africanism, the new nationalism after the US invasion in 1915 and the conflicts and disagreements which permeated the racist course of the Négritude movement led by the Griots group of François Duvalier. Two hypotheses for an understanding of the likely interrelationships with Haitian nationalism. First, that the Pan-African and blackness movements were essential in the attempts to construct or rebuild early 20th nationalism. Secondly, that the limits and restrictions of these two movements to an economic and social approach to issues of the blacks paved the way for a racist and authoritarian biologization of the discourse in defense of blacks and of nationalism itself, with probable repercussions on the current black identity movements.
Keywords: Pan-africanismo, Négritude, François Duvalier, Aimé Césaire.
Artigos
Pan-africanismo e negritude na construção do nacionalismo haitiano
Pan-Africanism and Négritude in the building of Haitian nationalism
Recepción: 24 Diciembre 2018
Aprobación: 24 Junio 2019
Neste texto buscamos analisar as influências dos movimentos pan-africanista e da negritude sobre o nacionalismo haitiano desde os debates e ações iniciais ocorridos em torno do nacionalismo econômico ainda no século XIX. Em seguida, apresentamos a formação do movimento pan-africanista e a decisiva influência dos intelectuais haitianos. Com a invasão dos EUA em 1915, ocorrem rupturas que levam à formação de novos movimentos em torno de uma onda nacionalista expressa culturalmente no indigenismo e na negritude. Analisamos como o movimento da negritude se projeta desde o Haiti e o Caribe com traços progressistas e a importante contribuição do intelectual Aimé Césaire, entre outros. Por fim, debatemos acerca do movimento Griots e a sua leitura nacionalista, racista e conservadora da negritude, encabeçada por François Duvalier e tendo seus primeiros oponentes antes de sua chegada ao poder.
As contradições do capitalismo mundial em expansão no século XIX impuseram ao Haiti como nação negra e independente desde 1804 uma situação inédita. De um lado, fazer frente às consequências econômicas internas e, de outro, suportar a responsabilidade de ser e permanecer uma nação independente composta por seres humanos negros. A prática política da burguesia compradora haitiana em geral favorecera aqueles com posições ou interesses contrários às políticas nacionalistas (Pierre-Charles 1990, p. 182, Joachim, 1979, p. 197). As posições da maioria dos dirigentes haitianos historicamente depunham contra as perspectivas favoráveis a um desenvolvimento político e econômico soberano da nação, com vários exemplos de ofertas, pedidos de apoio e concessões às potências estrangeiras que marcaram as presidências haitianas. O presidente Fabre Geffrard pediu ajuda britânica para atacar a revolta de Sylvain Salnave em 1865. Nissage Saget ofereceu a região de Môle Saint-Môle aos britânicos. Michel Domingue sugeriu um tipo de protetorado sobre as províncias do sul. Lysius Salomon ofereceu a ilha de La Tortuga aos EUA em troca de apoio diplomático e militar. Nessa perspectiva, o autor haitiano Emmanuel Edouard, que escreveu Essai sur la politique intérieure d’Haïti. Proposition d’une politique nouvelle, de 1890, considerava positivo convidar capitalistas da França a investir no Haiti, afirmando que os investimentos franceses poderiam beneficiar ambos os países (Edouard, 1890).
No entanto, do ponto de vista do desenvolvimento econômico nacional provavelmente Lysius Salomon, que exerceu o cargo de presidente do Haiti entre 2 de outubro de 1879 e 10 de agosto de 1888 pelo Partido Nacional, foi talvez, e contraditoriamente, o mais notável presidente do final do século XIX em favor dos interesses dos capitalistas locais. Era de uma importante família que vivera muitos anos na França. Tentou realizar algumas medidas modernizantes na economia e retomou o apoio à agricultura em larga escala, ainda que as finanças públicas continuassem a se apoiar fundamentalmente na exportação de café. Ele buscou atrair capitais externos e estabeleceu um banco nacional, telégrafos e um mínimo de recursos para um sistema educacional (Trouillot, 1990, p. 99). Era, no entanto, o momento histórico em que a virada imperialista do capitalismo aguçava as pressões sobre os pequenos países, reduzindo os espaços para intentos nacionalistas de desenvolvimento, ainda que sem maiores rupturas com os interesses externos.
A primeira grande crise mundial do capitalismo em 1873 afetou diretamente o Haiti e suas tentativas econômicas de modernização [tentativas de modernização econômica?]. No fim do século, o preço do café conheceu [sofreu?] uma queda desastrosa entre 1895 e 1899, da ordem de 130%. Isso disseminou a ruína econômica por todo o território e fragilizou discursos e ações nacionalistas mais articuladas (Joachim, 1979, p. 221) [2]. Os tradicionais comerciantes franceses estavam a ponto de abandonar inteiramente o mercado haitiano. De fato, essa debilidade da economia nacional era complementar ao amadurecimento do mercado mundial, às consequências da grande crise mundial e à transição para o imperialismo. Foi neste momento, não por outra razão, que o problema nacional haitiano e o nacionalismo econômico, ainda que incipientes, ganharam maior intensidade nos debates políticos e intelectuais e se mesclaram, em outra perspectiva, com a busca de afirmação e defesa da capacidade dos negros de dirigirem um Estado nacional independente.
Esse debate vem sendo objeto de intensas e divergentes reflexões mesmo entre alguns mais recentes trabalhos sobre o Haiti. Uma abordagem apenas temática ou nacional da questão seria absolutamente insuficiente. Os limites evidentes do desenvolvimento econômico haitiano não restringiram, pelo contrário, deslocaram para um nível superior de reflexão teórica e articulação política a inserção dos intelectuais e políticos do país, e do Caribe por extensão, em relação à questão negra e nacional. A dinâmica econômica mundial do capitalismo fez saltar e englobou os antigos limites e tradições locais, provocou combinações novas nas sociedades e economias nacionais, deslocou as antigas perspectivas teóricas eurocêntricas, mesmo as economicistas de um marxismo vulgar e suas linearidades de abordagem da histórica contemporânea. O pan-africanismo e a negritude não surgiram ou ganharam intensidade no Haiti por um acaso da História, mas provavelmente como expressão do desenvolvimento desigual e combinado da história contemporânea (Ianni, 1989, p. 14-15)[3].
Para além dessa perspectiva teórica, a historiografia e os debates sobre a questão nacional haitiana ganharam maior densidade e diversidade com trabalhos publicados nas últimas décadas por historiadores e antropólogos como Michel-Rolph Trouillot, David Nicholls, Elizabeth Abbott, Patrick Bellegarde-Smith e Laënnec Hurbon, entre outros, o que pode permitir oferecer um breve balanço das linhas gerais em que se desenvolvem as pesquisas sobre o tema. Trouillot busca se utilizar de um aparato conceitual gramsciano para desvincular o nacionalismo haitiano em Haiti, state against nation, visto como uma ideologia dominante e acima das classes, quase a-histórico, dos vínculos com o poder político do Estado. Argumenta que a construção nacional pode operar sem o Estado, contra o Estado ou em nome do Estado, que se expressaria no caso haitiano através de uma desvinculação entre o nacionalismo e a questão do poder estatal (Trouillot, 1990, p. 30-31, 70). David Nicholls, por outro lado, enfatiza o que seria a consciência nacional haitiana construída a partir de uma identidade racial, base da unidade e independência do país. No entanto, para o autor de From Dessalines to Duvalier, as divisões fomentadas ao longo da história pelas diferenças de cor da pele como o “mulatismo” teriam enfraquecido a independência nacional e fomentado as intervenções estrangeiras (Nicholls, 1996, p. 22-36). Elizabeth Abbott reproduz em seu Haiti, the Duvaliers and their legacy um viés, em grande medida racialista, presente em certas leituras da história haitiana que enfatizam a oposição entre negros e mulatos. E, embora reconhecendo um “feroz orgulho nacional” dos haitianos que teria sido destruído pela ocupação dos EUA em 1915, não explica o renascimento nacionalista das décadas de 1920 e 1930 e muito menos seus possíveis vínculos com as relações conflituosas entre negros e mulatos enfatizadas anteriormente (Abbott, 1988, p. 8-48). Deve-se registrar que os trabalhos de Bellegarde-Smith, em particular Haiti: the breached citadel, que oferece um estudo geral sobre o país, e de Laënnec Hurbon e seu já clássico Le barbare imaginaire, de 1987, e Culture et dictature en Haïti incluem e enfatizam as questões étnicas e raciais na formação nacional peculiar do país. Uma abordagem que realce, de um lado, as contradições econômicas e sociais e, de outro, as articulações internacionais da resistência haitiana são pouco ou nada enfatizadas nesses trabalhos recentes.
Muitos intelectuais haitianos do século XIX acreditavam que a independência e a soberania econômica de seu país estavam ligadas à manutenção da propriedade comum aos haitianos e à proibição da propriedade por parte de estrangeiros. Esse tema do controle da terra pela nação era uma pedra angular para a soberania nacional haitiana, mas começaram a crescer propostas que sugeriam a flexibilização e correspondiam às necessidades dos investidores dos países imperialistas. Esses interesses econômicos muitas vezes vinham revestidos de um discurso cultural mais elaborado. Por força destas circunstâncias, parece ter havido nesse período uma gradual mudança e fragilização da ideologia nacionalista econômica, com muitos intelectuais passando a defender uma mudança na lei que proibia proprietários estrangeiros, como forma de encorajar investimentos no país. Mesmo intelectuais fortemente nacionalistas, como Rosalvo Bobo, eram favoráveis a investimentos dos EUA no país.
As rivalidades intelectuais que expressavam no fundo os embates econômicos em curso seguiam diferentes referências internacionais. Por exemplo, alguns setores defendiam a necessidade de se favorecer os supostos valores anglo-saxões e eram contra o que seria a mentalidade latina que desencorajaria o trabalho. Esses pensamentos levaram certos autores a defenderem a necessidade de uma ideologia do desenvolvimento econômico baseada na ética protestante. Essas divisões estavam muitas vezes ligadas à busca de oportunidades de negócios e em disputas, entre as potências, pela influência sobre a economia e a política do país.
O nacionalismo econômico, por outro lado, se entrelaçava em grande medida com a recusa a aceitar as teses racistas dos europeus e com a defesa da África e de seus povos contra o saque imperialista. Joseph-Anténor Firmin, em seu livro Da igualdade das raças humanas, afirmaria que “negros ou brancos são iguais em qualidades como são iguais em direitos” (Joachim, 1979, p. 222). Na mesma perspectiva, Hannibal Price publicou, em 1893, o livro De la réhabilitation de la race noire par la république d’Haïti, em que, como indica o título, proclamou sua vontade de realizar “a reabilitação da raça negra pela república do Haiti” (Price, 1900).
A crise econômica mundial de 1873 teve outros desdobramentos para o Haiti. Com permanentes dificuldades econômicas, políticas e sociais, o país viu-se, no fim do século XIX, sob ataques diretos das teorias racistas europeias formuladas para avalizar o avanço colonialista e imperialista. As teorias raciais e de cor receberam impulso justamente na França, na Alemanha, na Inglaterra e nos EUA. Esses países protagonizavam o expansionismo territorial colonial, e uma das justificativas se dava por meio do uso de pseudoteorias científicas de base biológica e antropológica.
Em 1853, Arthur de Gobineau publicou o seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. Nesse livro, buscou afirmar que as raças humanas seriam absolutamente separadas e que a negra seria incapaz de alcançar a civilização. Ele defendia que a suposta inferioridade do povo negro era baseada em fatores biológicos (Gobineau, 1855). E correntemente outros escritores que defendiam essas teorias raciais citavam o Haiti como uma evidência para apoiar suas posições. Talvez por isso, a resposta mais contundente ao livro de Gobineau tenha vindo do escritor haitiano Joseph-Anténor Firmin, que publicou em Paris, em 1885, um livro intitulado A igualdade das raças humanas (L'Egalite des races humaines) (Firmin, 1855), contestando Gobineau e destacando a cultura e potencial dos povos negros africanos. O Haiti era exposto pelos teóricos racistas como exemplo de falta de habilidade dos negros para constituírem uma sociedade estável, confirmando a suposta teoria da desigualdade racial. Um dos textos mais conhecidos e utilizados nessa época foi o livro Hayti, or, the Black Republic, de Sir Spenser St. John, que foi ministro britânico no Haiti por vários anos. Ele afirmava que os negros não conseguiriam originar uma civilização, mesmo com uma educação melhor, porque eram homens inferiores, sendo incapazes para a arte de governar.
Entre os intelectuais haitianos do período, a reação foi a de fortalecer uma identidade entre a população negra e o Haiti para afirmar a igualdade dos diferentes grupos humanos. Eles aceitaram essa associação entre o Haiti e os negros, entendendo que a história de seu país se constituiria numa evidência da igualdade de todos os seres humanos. Jacques Nicolas Léger afirmou que o Estado haitiano teria o papel de estabelecer ou reabilitar o lugar dos negros nessa mesma via. A nascente antropologia haitiana do século XIX também buscou refutar as teses de inferioridade racial dos negros e as definições que caracterizavam o mundo dos negros como espaço de tiranias e superstições. Um dos marcos fora justamente o livro de Anténor Firmin (De l'égalite des races humaines, 1885). Como outros intelectuais haitianos da época, no entanto, buscava, ainda que combatendo o racismo e a ideia de raças, um reconhecimento frente à civilização europeia e suas instituições em uma perspectiva assimilacionista (Hurbon, 1993, p. 43-55).
Os intelectuais e alguns dirigentes políticos haitianos do século XIX empenharam-se, em grande medida, em restabelecer uma ligação com a África. Em primeiro lugar, muitos deles insistiram que a civilização humana se originara na África entre os negros, refutando a ideia de inferioridade inerente das raças. Em segundo lugar, aceitavam em geral a visão de uma África agora mais selvagem e que poderia desejar o progresso aceitando a cultura da Europa contemporânea. Era uma posição conciliatória que revelava tensões mais profundas que poderiam desencadear rupturas indesejáveis para a elite intelectual e econômica do país. Por isso, muitos escritores haitianos desse período desejavam, contraditoriamente, separar o seu país tanto quanto possível do passado africano em vez de aproximá-lo da África. A Europa era vista como um modelo a ser seguido na literatura, na música, bem como no sistema legal e na política. O movimento pan-africanista desenvolveu-se inicialmente sob esta perspectiva ambígua.
Se, no plano interno, o final do século XIX impôs novos desafios ao Haiti como nação independente, no plano mundial o país protagonizou como Estado soberano uma iniciativa política pouco conhecida ao apoiar a articulação inicial do movimento pan-africano. Nesse mesmo período, relações entre as duas únicas nações negras independentes de então – Haiti e Etiópia – se desenvolveram a partir da enérgica atividade do presidente Bénito Sylvain, que visitou a Etiópia. Sylvain foi um dos três homens do Caribe que lançaram a ideia do pan-africanismo para combater o colonialismo na África. Junto com o advogado Henry Sylvester Williams, de Trinidad e Tobago, e seu colega haitiano Anténor Firmin, organizou a Conferência Pan-Africana que teve lugar em Londres, em julho de 1900. Embora continuasse a atacar o brutal tratamento dado aos africanos nas colônias de exploração, Sylvain acreditava que era possível um bom colonialismo, no qual os nativos africanos poderiam ser civilizados e eventualmente assimilados à cultura ocidental branca europeia. Compareceram a esse congresso delegações negras do Caribe, dos EUA e da África. O congresso apelou aos “países civilizados” para facilitar a educação e o desenvolvimento das pessoas de pele negra.
Em 1906 Bénito Sylvain fundou a organização “L’Oeuvre du Relèvement Social des Noirs” sob a proteção do imperador da Etiópia e do presidente do Haiti. O patrono foi o papa Pio X, e sua orientação era explicitamente cristã e baseada na doutrina de conciliação de classes católica. Entre os seus objetivos estava o de “trabalhar legalmente para estabelecer um satisfatório modus vivendi entre os colonialistas europeus e os nativos africanos” (Nicholls, 1996, p. 134-135). Essa perspectiva era plenamente coerente com a doutrina social da Igreja Católica, que defendia a colaboração entre o capital e o trabalho e se opunha explicitamente às propostas socialistas ou mesmo anti-imperialistas.
O fato de se vincular o movimento pan-africanista à religião católica, negando-se qualquer crítica ao imperialismo das grandes potências, voltou-se contra a maioria popular haitiana e sua própria cultura nacional. Ao contrário de favorecer a coesão nacional do país e sua defesa frente às diversas ameaças externas, a adesão ao movimento oficial pan-africanista fragilizou o Haiti. A adesão e apoio aberto da Igreja Católica aprofundaram um choque cultural intermitente e paralelo – que se relacionava com a busca de uma expressão para um nacionalismo haitiano, não necessariamente progressista e democrático – nas iniciativas da cúpula católica contra a religião vodu. O bispo da cidade de Capitain Haitien sentiu-se encorajado a denunciar o vodu como diabólico, defendendo o fim do que ele denominava paganismo ignóbil africano que continuava a existir. O clero foi instruído a impor penas severas a quem praticasse o vodu. Uma “Liga contra o Vodu” foi fundada e jornais atacaram a maior religião popular haitiana (Nicholls, 1996, p. 133). Era uma expressão do esforço contraditório de uma parte da elite intelectual e política haitiana, que buscava ao mesmo tempo reconhecer o lugar histórico da África e os valores europeus a serem seguidos como condição para afirmar uma identidade nacional, algo que deveria em última instância excluir as expressões culturais majoritárias do povo haitiano.
A defesa da soberania da nação haitiana estava em contradição com os interesses imperialistas das grandes potências, em particular no terreno econômico, mas envolvia vínculos culturais diversos. Isso não foi considerado pelos primeiros líderes pan-africanistas haitianos, o que levou o movimento a um impasse político que limitou seu alcance. Não havia caminho possível para a defesa da unidade nacional haitiana sem mobilizar as massas camponesas em defesa da terra e dos seus direitos de cidadania, o que incluía a liberdade de culto religioso e o respeito às manifestações culturais populares. Nem seria possível sem rupturas com os crescentes interesses econômicos das grandes economias capitalistas, já então profusamente entrelaçados com os negócios da burguesia compradora haitiana.
Por isso, a instabilidade política permanecia, e não por uma especificidade nacional ou em decorrência de limites de sua elite pensante. Tratava-se da fragilidade econômica da própria classe dominante, incapaz de construir um projeto nacional e democrático com o conjunto do seu povo, a massa camponesa alijada de qualquer direito de decidir sobre os rumos da sua nação. A guerra civil que ocorreu em 1902 não foi mais que uma tentativa infrutífera de setores do nacionalismo democrático de tomar o poder pelas armas, sem mobilização popular, e foi barrada pelas forças conservadoras, que deram o sabre ao velho general Nord Alexis.
Em 1915, o Haiti foi invadido pelos marines dos EUA, provocando uma profunda fissura nas relações sociais e econômicas estabelecidas até então. A resistência deu-se em diversos níveis, desde o institucional, que obrigou a dissolução sob baionetas do Parlamento, até a luta armada da guerrilha dos Cacos contra as tropas de ocupação. Derrotados e humilhados, feridos em seu orgulho nacional, muitos haitianos da elite cultural e da burguesia compradora aproximaram-se de setores das camadas populares que, a seu modo, buscavam resistir à desestruturação da nação.
De fato, a derrota dos guerrilheiros Cacos provocou um movimento com dimensões mais profundas, que ia muito além da busca de táticas e alternativas políticas de resistência. Passou-se crescentemente a buscar na África, em uma perspectiva para além do pan-africanismo anterior, e, portanto, não mais na Europa, uma herança ou apoio à reconstrução da nacionalidade violentada. O surgimento de uma consciência negra entre muitos intelectuais – uma aproximação com as origens majoritariamente africanas da nação – combinou-se com uma compreensão mais aguçada dos antagonismos de classe presentes. Uma torrente de novas ideias, palavras e imagens motivou muitos outros haitianos a se mobilizarem pela liberdade, como busca de novas expressões para a rearticulação da identidade nacional sob novas bases. A língua créole[4], a religião vodu, os costumes e tradições populares, a pele escura, em suas diferentes tonalidades, passavam a assumir novos significados (Abbotth , 1988, p. 42).
A discriminação e a intolerância dos ocupantes estadunidenses – que reprimiam indistintamente mulatos e negros que haviam sido objeto de cisões internas na sociedade haitiana – provocaram a constituição de uma nova geração de escritores, historiadores e artistas que se tornaram cada vez mais ativos politicamente e unidos na sua reação contra o racismo dos brancos das forças de ocupação. Nesse período, desenvolveu-se a organização União Patriótica, liderada pelos intelectuais Georges Sylvain, Sténio Vincent e Jean Price-Mars, e que em 1921 já contava com cerca de 16 mil membros. Ela reivindicava o fim da lei marcial e a revogação da convenção de 1915, que “legalizara” a ocupação, e lutava por uma Assembleia Constituinte, com a retirada em curto prazo da força militar de ocupação dos EUA. Outro grupo, a União Nacionalista, estava particularmente preocupado com as concessões de terras para companhias dos EUA e a expropriação das terras dos camponeses. Um de seus dirigentes, Percival Thoby, defendia, em suas palavras, a proteção aos pequenos camponeses contra “os tentáculos do dólar imperialista” (Nicholls, 1996, p. 149).
Muitos membros da elite haitiana, chamada de “mulata”, que haviam dado boas-vindas aos estadunidenses agora estavam na oposição, como o escritor Charles Moravia, que fora preso quatro vezes. Acostumados a se imaginar como uma aristocracia de pele clara, muitos tinham hábitos educados e sofisticados, mas os estadunidenses os viam da mesma forma que os negros, com todo o peso de discriminação social e econômica que isso implicava na sociedade haitiana. Eles criticaram a política educacional dos invasores por privilegiar questões técnicas sobre os estudos clássicos tradicionais, o que revelava certo ressentimento da elite haitiana contra o materialismo e pragmatismo dos estadunidenses. Era uma oposição eminentemente tradicionalista.
Os dois principais esteios intelectuais de oposição desse período desenvolveram-se na literatura e nos debates antropológicos, sendo parte de uma reação cultural mais profunda que se cristalizava contra a ocupação dos EUA. Se a ocupação tivera como um dos seus resultados o restabelecimento da hegemonia da chamada “elite mulata” nos negócios do país, estimulou, por outro lado, impulsos profundos na procura de uma unidade nacional. Muitos intelectuais ainda acreditavam que uma cultura créole ou mestiça poderia se desenvolver a partir das raízes africanas e francesas do século XIX. Até então, o principal conflito entre intelectuais haitianos dera-se nos embates entre as referências aos modelos intelectuais europeus provindos da cultura francesa ou da anglo-saxônica. E, apesar dos embates em torno da cor da pele entre os próprios haitianos no século XIX, a identidade nacional haitiana estava invariavelmente relacionada com uma identificação positiva com os negros. O movimento pan-africanista, embora tivesse os haitianos como seus primeiros protagonistas, como já mencionamos, havia limitado seu alcance na conciliação, e agora se buscavam linhas de demarcação e ruptura.
O momento inicial da nação que fora fundada nas lutas pelas liberdades, derrotando o melhor exército da Europa de então, constituíra-se em uma referência central para o nacionalismo do Haiti. Na década de 1920, entretanto, a presença diária dos marines, a derrota dos Cacos e a brutal hostilidade contra os negros haviam fragilizado essa visão heroica da nação. O movimento que principiava a surgir contribuía para dar vigor a um novo discurso, o da negritude, alimentando-se da lenda negra do passado heroico. No entanto, a postura fundada sobre o mito originário da nação e sua racialização fora circunscrita inicialmente por contribuições de intelectuais referenciados na França, em particular. Essas elites preferiam as culturas latinas e viam o etnocentrismo dos anglo-saxões e sua política com desconfiança. A literatura e a cultura da França eram vistas ainda como modelos formais temáticos. Desse ponto de vista, não se trataria de uma relação com uma suposta “raça” superior, mas com uma “cultura” superior. A ocupação militar, todavia, forçou a uma redefinição profunda do que eram os valores de referência cultural como pontos de vista do nacionalismo haitiano de então. Tornara-se necessária uma reformulação ou reelaboração ideológica que vários intelectuais passaram a empreender e que inicialmente se expressou como “movimento indigenista”.
Ao líder do exército rural do século XIX que controlou a parte do sul do país, Jean-Jacques Acaau, é creditado um famoso ditado haitiano: “Negro rico é mulato, e mulato pobre é negro”. Essa frase sintetiza um pouco as dificuldades para se compreender as diferentes e complexas linhas de diferenciação social, cultural e econômica que se desenvolveram no Haiti após a sua independência e na construção de sua nacionalidade.
As divisões de cor não são simplesmente reflexos das divisões socioeconômicas. De fato, a linha de cor e a fronteira entre ricos e pobres têm se movido, desde a independência, e cada uma dessas linhas tem sua própria direção. As divisões impostas desde o Código Negro francês de 1685 criaram três castas no Haiti colonial que tiveram longa repercussão na história posterior. A primeira casta era composta pelos blancs, os proprietários brancos com plenos direitos políticos; em seguida vinha a casta dos affranchis, composta em sua maioria por mestiços livres que teriam direitos políticos, mas na prática eram discriminados. A casta dos affranchis era bem flexível a ponto de permitir a presença de negros libertos como de mestiços que poderiam passar por brancos. Ao longo do século XVIII, aumentaram as regulamentações discriminatórias sobre essa casta intermediária. Por fim, a casta dos escravos era composta pela vasta maioria dos negros escravizados e uma pequena parcela de mulatos. As divisões de classe, que se baseavam em critérios econômicos, tendiam a reforçar essas divisões, mas não eram exatamente correspondentes. Por exemplo, a classe dos pequenos proprietários de terras era composta pelos “petits blancs”, por mulatos e alguns negros livres. Os administradores coloniais eram todos brancos, no entanto, entre os grandes proprietários e comerciantes havia mulatos (Trouillot, 1990, p. 35-50; Nicholls, 1996, p. 20-21). Essa fluidez e imprecisão entre divisões de classe social, de cor e de status social se acentuou ao longo da história contemporânea do país, sem, no entanto, impedir que o tema fosse explorado demagogicamente por políticos ligados às classes dominantes para reforçar clivagens e rivalidades entre as classes populares.
A categoria cor de pele no Haiti refere-se muito mais a aspectos dos fenótipos do que à cor da pele sozinha. A cor do cabelo, sua aparência, os traços faciais, a textura da pele permitem categorizações. Avaliações estéticas podem variar de acordo com a classe socioeconômica e os fenótipos. Dois indivíduos que teriam a mesma “cor” podem ser classificados em categorias diferentes por causa de outros critérios somáticos. Em outras palavras, o mesmo indivíduo pode não ser considerado negro porque é muito claro, ou não ser considerado mulato porque é muito escuro. A linha de cor que separa clairs (incluindo subgrupos como mulatrês, grifes, grimaldis e mulâtres bruns) de noirs (incluindo os mais ou menos de pele escura em seus vários tipos de cabelo) é bem importante. A cor nunca opera sozinha, mas é acompanhada de percepções e diferenças físicas. Mais importante, ela reflete relações que abrangem a origem social, o nível de formação educacional, os costumes, as relações de parentesco e casamento, entre outras características (Trouillot, 1990, p. 110-113). Termos como mulâtre e noir não significam simplesmente mulato ou negro, no sentido que é ou foi utilizado historicamente no Brasil, por exemplo. O tipo de discriminação que ocorre no Haiti não é exclusivamente baseado em características físicas e envolve, além dessas, as somáticas e os atributos socioculturais.
Essas características da formação sócio-histórica do Haiti não podem ser facilmente colocadas como componentes de uma política discriminatória institucionalizada, como ocorreu no sul dos EUA ou na África do Sul. No Haiti nunca houve motins diretamente por questões raciais ou de cor. A questão da cor, por outro lado, não opera em um vácuo social, mas frente a diferentes estratégias de competição e luta social: clubes, escolas, grupos políticos integrados predominantemente por pessoas de pele clara sempre existiram legalmente, o que permitia construir um pequeno muro contra os negros e criava ressentimentos entre os negros das cidades, particularmente os de classe média.
Ironicamente, as teorias de poder da negritude tiveram sua origem direta na ideologia política defendida por muitos haitianos de pele mais clara entre 1780 e 1830. Alguns, como Vicent Ogé, defendiam entusiasticamente no século XIX o argumento de que os “mulatos” e seus descendentes teriam um papel natural de liderança no Haiti, em virtude das suas origens, porque os negros vinham da África e os brancos, da Europa. A teoria da negritude, como se verá à frente, poderia ser interpretada então mais uma versão desse argumento da legitimidade “natural”, porém com um sinal trocado. E a mobilização pela negritude ganharia uma capacidade mobilizatória potente no Haiti justamente pelo viés racialista de combater a “aristocracia da pele”[5]. Enquanto a negritude fazia referências explícitas à cor da pele, o antigo discurso “mulatista” evitava a questão a todo custo, negando sistematicamente a discriminação de cor e evitando referências de cor em seu discurso político. Para os defensores do “mulatismo”, era necessário capitalizar a ilusão da competência – a teoria do Partido Liberal do “poder aos mais capazes”. Essa camada social obtinha vantagens econômicas e culturais desde antes da independência. No entanto, a competição entre “negros” e “mulatos” pelo controle do aparato burocrático do Estado nunca poderia aparecer como uma luta explícita. Dessa maneira, como destacou Trouillot, a ideologia do Partido Liberal em defesa dos “mais capazes” contra o “maior número”, ou outras expressões desse tipo, funcionava como um código político por meio do qual se reconhecia a “questão da cor” sem ser explicitamente formulada e detalhada. De fato, as facções políticas majoritariamente negras nunca abriram mão de seus aliados mulatos; e as facções majoritariamente mulatas sempre incluíam intelectuais e militares negros entre os seus (Trouillot, 1990, p. 126-127). Sob o manto ideológico explícito ou não da luta de cores epidérmicas esteve sempre implícita uma luta de classes pelo controle político e econômico dos aparatos do Estado e das variantes daí decorrentes.
O intelectual Jean Price-Mars publicou em 1928 o livro Ainsi parla l’oncle, que lançou o “movimento indigenista” e propôs uma reavaliação da cultura nacional, buscando reconhecer e valorizar a ascendência africana do país. Sua obra estuda os fundamentos históricos e culturais das massas populares haitianas. Ele afirma que os haitianos, nascidos em condições históricas determinadas, possuíam dupla herança, francesa e africana. Seu objetivo era desenvolver o nacionalismo cultural e se contrapor à ocupação estadunidense:
Mas, por uma lógica implacável, enquanto tentávamos acreditar nos franceses “coloridos”, estávamos aprendendo a ser haitianos, isto é, homens nascidos em condições históricas específicas, tendo reunido em suas almas, como todos os outros grupos humanos, um complexo psicológico que dá à comunidade haitiana sua fisionomia específica. A partir de então, tudo o que é autenticamente indígena – linguagem, costumes, sentimentos, crenças – torna-se suspeito, manchado de mau gosto aos olhos das elites, apaixonada pela nostalgia do país perdido. Mais ainda, a palavra negro, antes um termo genérico, adquire um significado pejorativo. Quanto ao “africano”, sempre foi, é o apóstrofo mais humilhante que pode ser endereçado a um haitiano. No sentido mais estrito, o homem mais ilustre deste país preferiria ter alguma semelhança com um esquimó, um Samoiedo ou uma Tunguze do que para lembrá-lo de sua ascendência guineense ou sudanesa (Price-Mars, 1929, p. 10).
A cultura popular do país, sua religião, seus costumes, a música, os modos de vida não seriam franceses, mas resultado de uma combinação original na qual a África seria a origem mais significativa. A influência da sua obra ultrapassou a sociologia. Um movimento também conhecido como Génération de la Honte, que atingiu seu auge em 1934, reconhecia-o como um dos fundadores do movimento da negritude.
Outros escritores o seguiram e passaram a criticar a tendência da burguesia haitiana de imitar sistematicamente o Ocidente e ignorar a cultura camponesa local. Eles destacaram a necessidade de se estudar o campesinato, fazer o inventário das suas práticas e retomar as tradições africanas da cultura haitiana. O movimento indigenista criava, assim, novas respostas: nenhuma cultura era superior, e o mais ocidentalizado dos haitianos não seria necessariamente o melhor haitiano ou o mais útil para o seu país. Era uma resposta à ideologia “dos mais capazes” que fora defendida pela elite de pele clara haitiana para encobrir sua visão discriminatória contra a maioria negra e analfabeta do país. Essas respostas, embora não imediatamente políticas, tiveram profundo impacto na fundamentação da resistência nacional haitiana (Trouillot, 1990, p. 132). O indigenismo, como tal, ainda que não possuísse um detalhado programa político comum, envolveu intelectuais de diferentes concepções políticas, alguns dos quais socialistas, em torno da resistência nacional.
Esse nacionalismo cultural deve ser separado e distinguido, no entanto, do movimento da negritude como tal. O indigenismo haitiano focava seus objetivos de reflexão na arena nacional. Teoricamente, o movimento da negritude tinha objetivos projetados no espaço mundial e incorporava uma avaliação da desigualdade de povos, religiões e culturas originais da África. Essas distinções são importantes na medida em que influenciariam continuamente os alinhamentos políticos posteriores dentro do Haiti. O impulso em geral dos africanistas da negritude era aguçado pela oposição aos aspectos mais brutais do colonialismo europeu, mas adquiriu uma conotação mais profunda e direta com a ocupação do Haiti.
Alguns fatores contribuíram para o surgimento da negritude como movimento. Ela envolvia em certa medida a aceitação das ideologias de raça, de autores europeus, segundo as quais haveria raças humanas significativamente diferentes. O surgimento do movimento da negritude entre os escritores negros das décadas de 1920 e 1930 certamente estava ligado aos eventos e tendências políticas e à necessidade de resistência às pretensões hegemonistas europeias e estadunidenses, no Haiti em particular. Mas isso não estava vinculado à adoção de teorias raciais especificamente negras. Vários movimentos, como o surrealismo e o existencialismo, certamente contribuíram. É importante acrescentar a crescente influência dos congressos mundiais pelo pan-africanismo que ocorreram nesse período e tiveram grande impacto[6]. David Nicholls destaca que a negritude poderia ser vista como uma ruptura no pensamento dos intelectuais negros que abordavam a questão (Nicholls, 1996, p. 163-164).
Originariamente, os vínculos internacionais do movimento da negritude possuíam uma identidade política anti-imperialista; por isso, é importante distingui-lo de sua expressão haitiana, que teve posteriormente um viés conservador e mesmo oposto ao pan-africanismo de então. O conceito de negritude ganhara os círculos europeus na década de 1930 particularmente pela ação do intelectual Léopold Sédar Senghor, que elaborou uma teoria em torno do conceito:
Quando lançamos o movimento da negritude a partir de Paris, tirávamos nossa inspiração particularmente – e paradoxalmente – dos “americanos negros” no sentido geral da palavra: o movimento do renascimento do Harlem, mas também do movimento “indigenista” no Haiti [...] (Gilroy, 2012, p. 393).
A negritude como movimento deu consciência a muitos negros das Américas sobre o valor de sua cultura, da capacidade dos povos de exercerem sua soberania para combater o colonialismo como expressão do imperialismo. A ocupação acirrou esses ânimos e criou laços fortes entre os haitianos e o movimento dos negros nos EUA[7]. Vários dos intelectuais do movimento provinham da pequena burguesia, e as suas preocupações, a princípio, não estavam direcionadas prioritariamente para as questões econômicas e políticas. De início uma reação literária provinda do indigenismo, o movimento da negritude haitiano tornava-se crescentemente um movimento político radicalizado, expressando a reação mais densa à ocupação e ao colonialismo que se aprofundara desde a década de 1920 e à ideologia da suposta superioridade branca aplicada pelos invasores estadunidenses, que fazia com que muitos internalizassem e aceitassem a situação de opressão. Como afirmou o pensador e poeta haitiano René Depreste, muitos representavam “um homem alienado em sua própria pele...”.
Aimé Césaire, poeta surrealista da Martinica, a quem foi atribuído o primeiro uso do termo negritude – afirmaria que foi “no Haiti de Toussaint Louverture que a negritude se pôs de pé pela primeira vez”, mas foi cauteloso e não teorizou diretamente sobre o conceito de negritude. Para Césaire, o debate sobre a negritude ia além de uma questão racial; tratava-se de uma questão cultural e histórica e não biológica, como depois se interpretou:
Então, se Senghor e eu falamos sobre a Negritude, é porque estávamos num século de eurocentrismo exacerbado [...]. Em outras palavras, estávamos em um século dominado pela teoria da assimilação. Não devemos esquecer isso. Então, a Negritude foi para nós uma reação contra tudo isso. Primeiro de tudo, a afirmação de nós mesmos. O retorno à nossa própria identidade [...] (Delas, 1991, 141-142).
Essa perspectiva se expressou no seu envolvimento profundo com a história e a cultura haitiana. Seu livro Toussaint Louverture – la révolution française et le problème colonial reflete sua abordagem histórica a respeito da questão racial e da negritude ao relacioná-la diretamente à questão colonial e nacional haitiana: “ O Haiti foi o primeiro país dos tempos modernos a ter exposto a realidade e colocado uma questão à reflexão da humanidade, e esta em toda a sua complexidade, social, econômica, racial, o grande problema que o século XX está deixando de resolver: o problema colonial” (Césaire, 1981, p. 24). E sua mais conhecida peça teatral, “La tragédie du Roi Christophe”, relata um momento importante e pouco lembrado da história haitiana; trata-se de uma crônica do reinado de Christophe entre 1806 e 1820, que para Césaire seria em certa medida uma reflexão para as gerações contemporâneas que no Terceiro Mundo, em especial os negros, estariam se enfrentando com problemas da luta anticolonial e nacional. A ênfase nessa abordagem foi ainda expressa em seu célebre Discurso sobre o colonialismo:
Uma civilização que engana seus próprios princípios é uma civilização moribunda. O fato é que a civilização chamada “europeia”, a civilização “ocidental”, tal como foi moldada por dois séculos de regime burguês, é incapaz de resolver os dois principais problemas que sua existência originou: o problema do proletariado e o problema colonial (Césaire, 2010, p. 15).
Essa abordagem política classista da Negritude desenvolvida por Césaire Aimé nunca foi unânime e nem majoritária no Haiti. O fervor revolucionário nacionalista e internacionalista que contaminava a maior parte da militância política e cultural da Negritude surgida nesse período oscilou em grande medida para uma política oportunista e reacionária, demonstrada posteriormente nos textos e ações do futuro presidente haitiano François Duvalier ou mesmo de Léopold Sédar Senghor como presidente do Senegal. Na década de 1940, surgiram divergências e controvérsias sobre o uso do termo Negritude, e novas leituras foram realizadas sobre o “ser negro” e seu papel e capacidade mobilizatória em relação às transformações sociais progressistas. Franz Fanon, também intelectual negro da Martinica, identificou um contraponto à Negritude e aprofundou suas reflexões sobre as diferentes formas de alienação e assimilação que perpassavam e dificultavam a sua expressão contestatória. Seu amplo estudo Peles negras, máscaras brancas analisa os chamados “complexos de dependência dos povos colonizados”. Assim: “Os negros querem provar para os brancos, a todo custo, a riqueza do seu pensamento, o igual valor do seu intelecto” (Fanon, 1986, p. 12). Por essa via poderia ter se desenvolvido um caminho assimilacionista ou colaboracionista mais sutil da negritude. Outra questão que gerou ambiguidades nos movimentos da negritude era aquela relativa às divisões de classe e distinções raciais na perspectiva de uma revolução socialista. Estas possuem um largo debate, em que a experiência haitiana ocupa um lugar ainda pouco conhecido. No Haiti surge com intensidade a partir da oposição dos jovens socialistas haitianos a uma abordagem exclusivamente racial das lutas políticas, como veremos à frente. O “paradoxo de Frantz Fanon” é neste debate relativamente bem conhecido, e com as devidas adaptações é plenamente aplicável à realidade do Haiti: “Nas colônias, a subestrutura econômica é também superestrutura. A causa é consequência; vocês são ricos porque vocês são brancos, vocês são brancos porque vocês são ricos” (Kuper, 1973, p. 50).
Outros autores mais recentes, como Achille Mbembe, criticaram as abordagens míticas do movimento da negritude em relação à África e seu descolamento de uma abordagem crítica e associada ao capitalismo e ao colonialismo como relação intrínseca à condição negra na história contemporânea (Mbembe, 2018). De fato, se o movimento da negritude havia avançado para uma perspectiva de defesa dos povos negros para além da África, também não ousara, como antes o pan-africanismo da época, criticar o capitalismo e realçar a luta de classes como epicentro da discriminação contra os negros. Esses limites abriram espaço para uma abordagem biologizante, autoritária e racista de defesa dos negros, para um nacionalismo racista negro.
Talvez o mais ativo e influente movimento de protesto nacionalista no período – e que expressava o alinhamento conservador e assimilacionista de uma ala da negritude haitiana – tenha surgido em torno do grupo Griots, que também é conhecido como negritude ou noirismo segundo alguns autores que procuraram diferenciá-lo por sua especificidade autoritária haitiana. Em 1932, fundou-se o Griots, que mais tarde atrairia dois importantes poetas, Carl Brouard e Clément Magloire, depois conhecido como Magloire Saint Aude. O nome do grupo estava ligado a uma tradicional instituição africana: o griot é o poeta, o mágico da tribo, que perpetua os costumes ancestrais, as crenças e mitos.
Os principais animadores do grupo eram conhecidos como os três Ds: François Duvalier, Lorimer Denis e Louis Diaquoi, esse morto precocemente. Duvalier era então um estudante de Medicina apaixonado pela etnologia, nascido em Porto Príncipe em abril de 1907, filho de Duval Duvalier, professor, jornalista e juiz de paz. O jovem Duvalier foi beneficiado pelo programa de médicos e estudantes oferecido pela ocupação dos EUA, que subsidiava estudos na Escola de Medicina local. Eram financiados pela Fundação Rockefeller, assim como a biblioteca, e nos primeiros anos do curso se ofereciam aos estudantes instrumentos e livros didáticos, além de revistas francesas e estadunidenses de Medicina (Scaramal, 2006, p. 46). Depois de formado, Duvalier trabalhou até 1943 em vários hospitais e clínicas, como assistente da missão médica do Exército dos EUA. O intelectual haitiano Jean Price-Mars, que iniciara o indigenismo, era a referência central do grupo. No entanto, o movimento Griots desenvolveu uma abordagem própria da questão nacional e negra. Antes de os estadunidenses retirarem suas tropas, e duas décadas antes de começar o seu próprio governo, em 1957, Duvalier já começava a articular as linhas gerais de uma ideologia política que justificaria no futuro seu regime.
O grupo Griots contribuiu com artigos para vários jornais diários, como Le Petit Imperial e L’Action Nationale. Seus integrantes continuamente enfatizavam o passado africano do país e exaltavam as grandes civilizações africanas. François Duvalier e Lorimer Denis insistiram que a biologia e o grupo racial determinariam a psicologia, que por sua vez determinaria a personalidade coletiva. Uma síntese destas posições está na obra que ambos assinam em 1958: Problemes des classes a travers l’histoire d’Haiti. Como Joseph Gobineau, defendiam que as raças seriam significativamente diferentes umas das outras e que isso se devia a fatores biológicos. Reconheciam que o povo do Haiti era racialmente misto entre europeus e africanos, mas diziam que os haitianos eram pessoas com mentalidade africana. Os Griots deram grande ênfase ao passado africano do Haiti, afirmando que os haitianos eram basicamente africanos em sua composição genética, o que supostamente regularia sua cultura e sua estrutura social.
Um aspecto central defendido pelo grupo Griots em relação à busca de uma hegemonia dos negros, recorrente nos textos de Duvalier, dizia respeito à religião vodu, que seria uma expressão da consciência racial, representação de uma cristalização das origens e da psicologia do povo haitiano que perpetuaria o passado africano. Duvalier era um defensor do voduísmo: “o vodu é um culto familiar baseado em elementos francamente morais” e enfatiza o que seriam suas diferenças em relação às práticas de magia imorais e utilitárias com que seria confundido (Duvalier e Denis, 1958, p. 104-106). Nessa perspectiva, o grupo propunha reformas concretas, que abrangiam o respeito à religião vodu, incentivos à cultura e à música africana, sua arte e literatura, uma reestruturação do sistema educacional e uma redução do papel da Igreja Católica, vista como a principal arma empregada pela elite mestiça francófila para manter sua hegemonia e a predominância da cultura ocidental.
Socialmente, muitos membros do movimento provinham de famílias pequeno-burguesas. Eram de início, em sua maioria, médicos, advogados e professores determinados a mudar o controle da elite haitiana pelos mulatos. Os Griots, do qual o jovem médico Duvalier se tornou o principal animador, faziam de fato uma leitura própria das pseudoteorias fascistas e raciais que avançavam na Europa dos anos 1930, uma leitura de viés autoritário e racista adaptada à realidade histórica haitiana. Os responsáveis pelo atraso e pelo desrespeito às origens negras e africanas do povo haitiano seriam os “mulatos”. E, nesse sentido, eles se afastaram e distinguiram tanto do movimento indigenista haitiano, que defendia a originalidade híbrida da cultura popular haitiana, quanto da negritude caribenha de Césaire e Fanon, que defendia a unidade na luta anti-imperialista de todos os povos. A questão da cor da pele era, de acordo com esses autores, o tema central da História do Haiti. Estudando o passado do país, eles desenvolveram uma leitura própria e racista, na qual os líderes negros seriam os defensores das massas, portadores de suas aspirações, verdadeiros guardiões da independência nacional, enquanto os líderes “mulatos” e políticos teriam traído o seu povo à custa dos interesses nacionais. Os pais do Haiti foram divididos por Duvalier e seus seguidores entre “mulatos” e “negros”. Nessa reconstrução ideológica, os “mulatos” foram responsabilizados por todo o atraso, pelas derrotas e dificuldades da nação haitiana. Eles viram em Toussaint Louverture um traidor, e uma luta de raças de negros como Dessalines com Henri Christophe contra os mulatos Pétion e Boyer:
Todas as atitudes das gerações históricas que a personalidade dos líderes colocou em evidência foram caracterizadas por este princípio: a regeneração das grandes massas que foram como Dessalines os artesãos principais da independência [...]. Eles devem tomar como seus os esforços pela integração das classes camponesas e proletárias na vida nacional visando realizar a unidade moral e étnica haitiana (Duvalier e Denis, 1958, p. 68).
Insistiram que a solução dos problemas deveria ser buscada dentro do próprio país, uma forma de encobrir o papel que tiveram as potências estrangeiras na destruição e saque sistemáticos do povo haitiano.
A teoria política dos Griots era essencialmente antiliberal. As velhas ideias da democracia liberal deveriam ser substituídas pelo respeito à autoridade e à disciplina: “O Espírito igualitário destrói o princípio de toda hierarquia e o respeito às tradições” (Duvalier e Denis, 1958, p. 92). Duvalier afirmava que “os PRIMEIROS NEGROS buscavam uma ação coletiva” que foi recusada, mas constituía uma tradição histórica a ser reconquistada: os negros deveriam partilhar o poder. Os primeiros governos mulatos recusaram a colaboração com a “classe majoritária” e se impuseram (Duvalier e Denis, 1958, p. 99). Defendia o poder que poderia ser assumido por um governo saído da maioria negra haitiana historicamente oprimida pelas traições dos mulatos. Governos contemporâneos vistos como nacionalistas e centralizadores eram destacados como referência: “Beneficiados pela evolução moderna das ciências sociais, os líderes conscientes devem dar às massas uma organização mais científica como a Prússia após Iena, a Turquia moderna com Kémal Ataturk, o México com Madero e Lázaro Cárdenas” (Duvalier e Denis, 1958, p. 68). Nesse sentido de construção do poder da maioria negra, deveria ser respeitado um princípio de equilíbrio entre as elites das chamadas duas classes tradicionais (negros e mulatos): “Uma vez realizado este equilíbrio entre as duas elites, aqui em função de sua VOCAÇÃO e de seu PAPEL DE LIDERANÇA”, serão ambas preparadas por um tratamento especial dado pela educação e uma mudança na mentalidade histórica (Duvalier e Denis, 1958, p. 100). Duvalier esboçava uma engenharia social racialista apresentada em tintas suaves, mas que só se expressaria em toda a sua dimensão autoritária após sua eleição ao governo do Haiti.
Duas tendências principais contrárias às teses dos Griots se desenvolveram de maneira paralela: uma ala liberal nacionalista e os primeiros agrupamentos de jovens socialistas haitianos. Algumas reações contrárias ao movimento dos Griots podem ser vistas, em parte, nos textos de François Dalencour e Dantès Bellegarde e também nos pronunciamentos do presidente Sténio Vincent, eleito em 1930. Os dois primeiros eram defensores do liberalismo político, e o último defendeu, na prática, uma posição mais autoritária do nacionalismo. Esses intelectuais tinham sido profundamente afetados pela ocupação dos EUA. Para Dalencour, a resistência militar de Charlemagne Péralt, líder dos guerrilheiros Cacos, havia salvado a honra nacional. Ele atacou o controle da terra por companhias estrangeiras e acreditava que uma agricultura autossuficiente seria a condição para uma efetiva independência nacional, insistindo que os pequenos proprietários camponeses eram um aspecto vital da própria autossuficiência econômica do país. A grande plantação era também vista como um obstáculo à liberdade e à democracia. Dalencour avaliava de forma negativa a presença, entre a população, das superstições africanas, vistas como algo que destruía o senso crítico das massas e que seria em parte responsável pelas fragilidades do sistema político haitiano. Nesse sentido, defendeu uma luta feroz contra a religião vodu, com a imposição de penalidades draconianas aos seus praticantes. Esses autores atacaram o racismo do movimento negritude da revista Griots, qualificando-o como não científico e fragilizador da unidade nacional (Nicholls, 1996, p. 177-178). Eles se opunham ao nazismo na Alemanha e viam a França como o país para o qual os haitianos deveriam olhar como a sua casa espiritual; como o país da Declaração dos Direitos do Homem, da abolição da escravatura, o país sem preconceitos de cor. O grupo defendia princípios liberais e democráticos na perspectiva da burguesia.
Outra reação partiu dos militantes socialistas, em sua maioria jovens estudantes na década de 1920 e 1930. Esse movimento surgiu de uma ala radical de nacionalistas. Dois jornais, La Trouée e Revue Indigène, agrupavam esses jovens escritores do movimento nacionalista em torno da exigência principal de retirada das tropas dos EUA. O membro mais influente do grupo era o escritor Jacques Roumain, que publicou em 4 de abril de 1928, com Georges Petit, um “Manifesto à Juventude” no qual afirmavam que “não existem negros, nem mulatos, nem ricos, nem pobres, nem citadinos nem camponeses, mas somente os haitianos oprimidos pelos estadunidenses e seus apoiadores” (Lucien, 2013, p. 216). Eles declararam ainda que as raízes da pobreza e do sofrimento das massas foram aumentadas pelo imperialismo dos EUA. Deram importância central aos problemas relacionados ao desenvolvimento econômico do Haiti, analisando a história do país em termos de conflitos de classes, baseados na luta contra os grandes proprietários. Por isso, o combate contra o imperialismo seria apenas uma parte de um combate mais vasto contra o capitalismo, fosse local ou estrangeiro. Os dois autores do “Manifesto à Juventude” e outros apoiadores foram presos em dezembro de 1928 (Lucien, 2013, p. 216-217). Na década seguinte, deram continuidade à militância de esquerda no Haiti.
A construção da identidade nacional haitiana nasceu de uma revolução vitoriosa de ex-escravos negros. No final do século XIX, a soberania e independência haitiana foram questionadas pelos movimentos e pressões econômicas, políticas e culturais do capitalismo. De um lado, buscavam-se meios de recolonizar o país e esmagar seus limitados intentos de desenvolvimento econômico nacional, o que provocou a ruína do debate nacional-econômico e das políticas que se iniciavam. Mas também houve uma ofensiva para desqualificar, brutalizar e submeter todos os povos negros da África e justificar o novo colonialismo imperialista que repercutiu fortemente no Haiti. A intelectualidade e setores da classe dominante haitiana buscaram reagir em defesa dos negros e de sua nação, impulsionando inicialmente com outros líderes o movimento pan-africanista, porém num quadro de colaboração capital-trabalho e assimilação à civilização europeia que não questionava o colonialismo e o capitalismo imperialista. Após a invasão dos EUA em 1915, os frágeis pilares da nação haitiana independente entraram em colapso, o que fez surgir uma reação inicialmente política e armada e depois de retomada e reconstrução nacional com os chamados movimentos Indigenista e da Negritude. Estes movimentos aprofundaram uma ruptura com os antigos referenciais culturais europeus e brancos e buscavam conexões mais diretas com a África negra, rompendo as matrizes culturais francesas e anglo-saxãs antes mais sólidas com o nacionalismo haitiano. Tanto os movimentos anteriores ligados ao pan-africanismo como o indigenismo e a negritude podem ser interpretados como expressão local de um desenvolvimento desigual e combinado, presente na história haitiana, das tendências mais gerais da história contemporânea. Sob a pressão econômica, cultural e política dos EUA, os haitianos fizeram saltar suas reflexões, seu pensamento e suas ações para além de suas limitações materiais e culturais aparentes, projetando-se no plano internacional como referência de resistência para centenas de milhões de negros, em um movimento similar ao que fora o pan-africanismo no final do século XIX. Ao mesmo tempo movimento desigual e dialético da história, a negritude e o pan-africanismo, em seus limites e contradições, fragilizaram-se como perspectivas progressistas e democráticas amplas, abrindo caminhos à racialização autoritária e conservadora do discurso da negritude. Nessa via, os dois movimentos político-culturais – indigenismo e negritude – de resistência nacionalista nascidos nas décadas de 1920 esbarraram nos mesmos limites anteriores do panafricanismo ao buscarem, em nome da união nacional, e não sem vozes discordantes, contornar as contradições de classes no país e aquelas com o próprio imperialismo. Foi esse limite que abriu caminho para o discurso conservador e racista do movimento negro dirigido por François Duvalier, que explorava um discurso cultural e biológico e se eximia de expor as contradições econômicas que de fato justificavam e instrumentalizavam a opressão sobre a população negra e sobre o conjunto da nação haitiana.