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Entre o espectro aterrorizante do comunismo e as desigualdades sociais: teoria e prática dos Centros Sociais da Companhia de Jesus na América Latina (1950-1966)

Between the terrifying spectrum of communism and the social inequalities: theory and practice of the Social Centers of the Society of Jesus in Latin America (1950-1966)

Iraneidson Santos Costa
Universidade Federal da Bahia (UFBA, Brasil

Entre o espectro aterrorizante do comunismo e as desigualdades sociais: teoria e prática dos Centros Sociais da Companhia de Jesus na América Latina (1950-1966)

História Unisinos, vol. 25, núm. 1, pp. 94-107, 2021

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Concedo a Revista História Unisinos o direito de primeira publicação da versão revisada do meu artigo, licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution (que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista). Afirmo ainda que meu artigo não está sendo submetido a outra publicação e não foi publicado na íntegra em outro periódico e assumo total responsabilidade por sua originalidade, podendo incidir sobre mim eventuais encargos decorrentes de reivindicação, por parte de terceiros, em relação à autoria do mesmo. Também aceito submeter o trabalho às normas de publicação da Revista História Unisinos acima explicitadas.

Recepción: 17 Agosto 2019

Aprobación: 01 Octubre 2019

Resumo: O artigo aborda a atuação dos Centros de Investigação e Ação Social (CIAS) da Companhia de Jesus na América Latina em sua primeira geração, entre 1950 e 1966. Partindo da hipótese de que as formulações teóricas e práticas concretas dos CIAS desempenharam um papel importante na transição entre o Catolicismo Social da primeira metade do século XX e o Cristianismo de Libertação sistematizado a partir da década de 1970, demonstra, a partir da análise de fontes documentais de diversos arquivos da Companhia de Jesus na Europa e na América Latina e da discussão com a produção intelectual da época e com a literatura especializada, de que maneira as concepções e ações dos centros sociais jesuítas, a princípio marcadas por um forte conteúdo anticomunista, passaram a assumir uma postura de denúncia e combate às crescentes desigualdades sociais.

Palavras-chave: Companhia de Jesus, América Latina, CIAS, anticomunismo, justiça social.

Abstract: The article discusses the activities of the Centers of Social Investigation and Action (CIAS) of the Society of Jesus in Latin America in their first generation, between 1950 and 1966. Assuming that the formulations and concrete practices of the CIAS played an important role in the transition between Social Catholicism of the first half of the 20th century and the Liberation Christianity that was systematized from the 1970s onwards, it demonstrates, based on the analysis of documentary sources from various archives of the Society of Jesus in Europe and Latin America and the discussion with the intellectual production of the time and with specialized literature, how the conceptions and actions of the Jesuit social centers, at first marked by a strong anti-communist stance, ended up taking a posture of denunciation and of fight against the growing social inequalities.

Keywords: Society of Jesus, Latin America, CIAS, anti-Communism, social justice.

Em setembro de 1960, um grupo de jesuítas se reuniu em Roma com o Geral da Companhia de Jesus, padre Jean-Baptiste Janssens, para discutir os rumos do apostolado social na América Latina a partir da atuação dos Centros de Investigação e Ação Social (CIAS) que vinham sendo fundados pela Ordem naquele continente desde o início da década precedente. Em trabalhos anteriores, discutimos de maneira ampla a origem e articulação dos referidos Centros Sociais (cf. Costa, 2016), bem como enunciamos a hipótese de que suas formulações teóricas e práticas concretas desempenharam um papel importante na transição entre o Catolicismo Social da primeira metade do século XX e o Cristianismo de Libertação sistematizado desde a década de 1970 (cf. Costa, 2017).

Neste artigo, aprofundaremos tal hipótese concernente ao apostolado social da Companhia de Jesus a partir da chamada primeira geração dos CIAS. Interessa-nos, portanto, investigar de que maneira suas concepções e ações, a princípio afins ao Catolicismo Social – movimento surgido em meados do século XIX com um forte conteúdo reativo ao liberalismo e ao individualismo capitalistas, mas igualmente infenso a qualquer influência do pensamento marxista e, menos ainda, a qualquer vínculo orgânico com movimentos políticos de esquerda (cf. Ávila, 1991, p. 70-71) – terminaram por desaguar no Cristianismo da Libertação – amplo movimento sociorreligioso desenvolvido “na Igreja latino-americana em um momento histórico determinado” como resultado de “uma combinação ou convergência de mudanças internas e externas à Igreja que ocorreram na década de 1950” (cf. Löwy, 2000, p. 66; 69). Destas determinações e convergências trata este artigo.

1. Primeira geração

Entendemos por primeira geração dos CIAS da Companhia de Jesus na América Latina aquela que vai da fundação do primeiro Centro Social, em Havana, em 1950, até a constituição do Conselho Latino-Americano dos CIAS (CLACIAS), em 1966, que demarca o início de uma etapa de consolidação e articulação do apostolado social jesuítico no continente. Assim, podemos dizer que naquele histórico encontro ocorrido em setembro de 1960 na capital italiana estavam presentes alguns dos principais protagonistas da primeira geração dos CIAS (cf. Figura 1, a seguir).

Reunião dos diretores dos Centros de Investigação e Ação Social (CIAS) da América Latina em Roma (1960)
Figura 1
Reunião dos diretores dos Centros de Investigação e Ação Social (CIAS) da América Latina em Roma (1960)

Em pé, da esquerda para a direita: Pedro Velloso, Roger Vekemans, Manuel Aguirre, Luis González-Posada, Carlos de la Torre e Vicente Andrade. Sentados, da esquerda para a direita: Tomás Travi, Manuel Foyaca e Alberto Moreno.

Fonte: REUNIÃO dos directores dos Centros de estudo e acção social na América Latina. 1961. Jesuítas: Anuário da Companhia de Jesus, 1960, edição portuguesa, p. 120.

Apresentemos seus participantes, a começar pelos Assistentes Regionais do Padre Geral, cuja atribuição é aconselhá-lo nos assuntos das diversas regiões (chamadas de Assistências) da Companhia de Jesus. O jesuíta argentino Tomás Ignacio Travi Costa (1894-1961) era doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) de Roma e atuou inicialmente no setor educacional, a princípio como professor no Seminário Villa Devoto (1928-1930), depois como o primeiro reitor do Colégio Máximo de San Miguel (1931-1936), ambos em Buenos Aires. Entre 1936 e 1946, foi Provincial da Argentina, aliás, o primeiro argentino a exercer tal cargo. Neste ínterim, as dificuldades trazidas pela Segunda Guerra Mundial para o governo central da Ordem levaram à nomeação de Visitadores nas regiões mais distantes de Roma, de maneira que ele foi constituído pelo Geral Wlodimir Ledochowski como Visitador para toda a América Latina (com exceção do México e do Brasil)[2] e, em 1946, quando da Congregação Geral XXIX que escolheu o belga Janssens como novo Geral da Ordem, Tomás Travi se tornou Assistente da América Latina. Uma vez dividida esta Assistência em Setentrional e Meridional, foi nomeado Assistente desta última em 1959. De perfil tímido, “se deixava influenciar indevidamente, daí por que recebeu críticas em sua própria Província” (Storni, 2001, p. 3832).

O jesuíta colombiano Alberto Moreno Arango (1899-1985) havia trilhado um percurso similar ao de Tomás Travi. Após sua ordenação, em 1929, foi Sócio do Provincial da Colômbia (1932-1935) e professor (1932-1935) e vice-reitor (1935) do Colégio Mayor de San Bartolomé, em Bogotá, além de reitor da Pontificia Universidad Javeriana (PUJ) por alguns meses em 1935. Nesta época, dedicou-se ao apostolado junto à juventude, fundando uma revista intitulada FAS (Fe, Acción, Sociología). Nomeado Provincial da Colômbia em 1935, exerceu o cargo até 1941, quando retomou a atuação na área educacional como reitor do Colégio Máximo de Chapinero (1941-1942) e do Colégio Santa Rosa de Viterbo (1942-1945; 1950-1952; 1956-1957), ambos em Bogotá, e do Noviciado de La Ceja, em Antioquia (1957-1958). Antes de ser escolhido o primeiro Assistente Regional da América Latina Setentrional em 1959, Alberto Moreno havia desempenhado por duas vezes atribuições no governo da Ordem: novamente Provincial da Colômbia, entre 1946 e 1949, e Visitador e Provincial da Argentina, entre 1952 e 1954 (cf. Acevedo, 2001, p. 2744).

Além dos dois Assistentes Regionais, mais um representante direto do Geral participou daquele encontro. Trata-se do jesuíta cubano Manuel Foyaca de la Concha (1905-1994), que havia sido designado Visitador Social para a América Latina por Janssens em 23 de novembro de 1955. O título oficial do cargo era “Visitador de América Latina de re sociali” e visava intensificar na América Latina o “apostolado social especializado”, sobretudo os CIAS, praticamente inexistentes no continente até então. Filho de pai cubano e mãe asturiana, Manuel Foyaca tinha migrado ainda criança para a Espanha, onde fez seus estudos iniciais, ingressou na Companhia de Jesus e se formou em Filosofia e Sociologia pela Universidade de Valladolid. Neste ínterim, vivenciou o advento da Segunda República Espanhola, com a dissolução da Companhia de Jesus na Espanha em janeiro de 1932 e o consequente exílio de toda uma geração de jesuítas. No seu caso, o destino foi Entre-os-Rios (Portugal), onde concluiu a Teologia.

Seu retorno à ilha caribenha ocorreu apenas em 1940 para ensinar História da América e Sociologia no renomado (e elitista) Colégio de Belén, localizado em Havana. Ao longo daquela década, ele iria se firmar como um dos mais ativos e respeitados intelectuais católicos do país, ocupando cargos de destaque, como assessor nacional da Ação Católica Cubana (ACC), editor da revista Justicia Social Cristiana e fundador do movimento Democracia Social Cristã. Sua ação, porém, não ficou circunscrita ao espaço insular, assumindo uma projeção continental, tendo participado, em 1946, da constituição da Confederação Interamericana de Ação Social Cristã e da organização do Segundo Congresso Interamericano de Ação Social em Havana, em parceria com a National Catholic Welfare Conference (NCWC) dos Estados Unidos. Dois dos seus livros (Un nuevo orden económico-social, de 1941, e Democracia Social Cristiana, de 1948) inspiraram toda uma geração de dirigentes partidários de inspiração social cristã ou democrata cristã. Como resultado desse labor, Manuel Foyaca fundou em 1950 o Centro Social de Havana – precursor dos CIAS latino-americanos –, que ele dirigiu nos anos seguintes e que o credenciou para exercer a função de Visitador Social para a América Latina (cf. Molina, 2005).

No encontro de setembro de 1960, seis países se fizeram presentes através dos diretores dos seus respectivos CIAS: México, Chile, Colômbia, Antilhas, Brasil e Venezuela. É bem verdade que, destes, apenas os três primeiros tinham existência formal; os demais estavam em processo de estruturação e seriam inaugurados ao longo daquela década. Representante do CIAS mexicano, o jesuíta Carlos de la Torre Uribarren (1914-1972) seguiu um itinerário pessoal bastante acidentado em virtude da situação delicada da Igreja do seu país nas primeiras décadas do século XX. Sua formação no Seminário Diocesano de Sonora coincidiu com os últimos anos do movimento dos católicos perseguidos pela Revolução Mexicana, a chamada Segunda Cristiada (1934-1938)[3]. Incentivado pela família, em 1935 Carlos de la Torre se fez cristero junto com seus dois irmãos, pegou em armas contra o governo, ascendeu ao grau de segundo capitão e, no último domingo de outubro, dia da Festa de Cristo Rei, foi preso e quase fuzilado: “Formaram o pelotão para executá-lo, mas, inesperadamente, foi posto em liberdade” (Acévez, 2001, p. 3815, tradução nossa).

Depois disso, ele se exilou nos Estados Unidos, ingressando no Noviciado da Companhia de Jesus em El Paso, no Texas. Após um longo período de estudo na Espanha e na Colômbia, retornou ao México em 1955 já direcionado para o apostolado social, tendo sido encarregado de fundar, no ano seguinte, o CIAS em Torreón, no estado nortenho de Coahuila. Convencido da urgência da promoção social dos trabalhadores e do cooperativismo como o instrumento mais adequado para tal desiderato, fomentou o associativismo entre os trabalhadores e os estudantes, bem como a disseminação de escolas técnicas e de Caixas de Poupança e Crédito (cf. Alva, 2000, p. 30-34). Em 1957, fundou a Casa Iñigo, uma casa de exercícios espirituais que visava à elevação intelectual, cultural e moral de seus membros e à convivência fraterna de trabalhadores e patrões.

Em 1955, o jesuíta belga Roger Vekemans van Cauwelaert (1921-2007) havia concluído seu doutorado em Sociologia pela Universidade de Nimega (Holanda), após o que fez estágio em Action Populaire, de Paris, um dos mais importantes centros sociais da Companhia de Jesus, e ensinou Sociologia na conceituada PUG. No final de 1956, transferiu-se para o Chile, onde ajudou a fundar, em abril de 1957, o Centro Bellarmino (denominação do CIAS chileno), em 1958, a Escola de Sociologia da Universidade Católica do Chile, e, em 1959, o Centro de Investigações Socioculturais (CISOC). Incorporou-se também à equipe editorial da revista Mensaje, que havia sido criada pelo jesuíta Alberto Hurtado no início da década de 1950.

Roger Vekemans se tornou assessor da Ação Sindical Chilena (ASICH), da Confederação Latino-Americana de Sindicatos Cristãos (CLASC) e da União Social de Empresários Cristãos (USEC) e, em 1960, por ocasião do encontro dos centros sociais em Roma, acumulava os cargos de direção do CIAS e da Escola de Sociologia, além de prestar consultoria ao Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da União Panamericana (UPA), sediada em Washington. Ao retornar de Roma, em outubro de 1960, ele fundou uma outra instituição, o Centro para o Desenvolvimento Econômico e Social da América Latina (DESAL) (cf. Beigel, 2011; Vekemans, 1982).

Após ter se formado em Filosofia pela PUG de Roma e feito cursos de verão na Sorbonne de Paris, o jesuíta colombiano Vicente Andrade Valderrama (1907-1986) havia retornado a Bogotá para lecionar Moral Profissional e Doutrina Social da Igreja (DSI) na PUJ de Bogotá. Um pouco mais tarde, em 1944, os bispos colombianos confiaram à Companhia de Jesus a Coordenação Nacional da Ação Social Católica (CNASC), e Vicente Andrade se tornou seu primeiro coordenador. A partir daí, junto com um grupo de padres jesuítas como Francisco Javier Mejía, Guillermo Villegas, Adán Londoño e Célico Caicedo, devotou as décadas seguintes a impulsionar um conjunto diversificado de organizações sociais, a exemplo da Federação Agrária Nacional (Fanal), em 1945, da União dos Trabalhadores Colombianos (UTC), em 1946, e da União Cooperativa Nacional (Uconal), uma federação nacional de cooperativas, em 1959. Participou, ainda, da fundação da Juventude Operária Católica (JOC) e da concepção do Serviço Nacional de Aprendizagem (SENA) na Colômbia.

Sua atividade intelectual não foi menos vigorosa: dirigiu por cinco anos a prestigiosa (e bastante conservadora) Revista Javeriana e se tornou editor do semanário Justicia Social, o qual chegou a alcançar a expressiva tiragem de 40 mil exemplares. Fruto dos longos anos de docência em várias Faculdades de Teologia, seu livro Doctrina Social Católica teve ampla difusão na época e influenciou toda uma geração de sacerdotes e militantes católicos leigos (cf. Arango e Tobón, 1991). Em 1957, incentivado pela visita do padre Manuel Foyaca ao país, Vicente Andrade fundou o CIAS colombiano e, naquele mesmo ano da realização do encontro de Roma, ajudou a constituir o Instituto de Estudos Sociais (IDES) na PUJ.

Por seu turno, o jesuíta asturiano Luis González-Posada Rodríguez (1913-1991) fez toda a formação em solo espanhol e, após uma brevíssima passagem por Marianao, em Havana, foi enviado a Santo Domingo em 1946 para ser reitor e professor do Seminário Conciliar Diocesano São Tomás de Aquino, responsável pela formação dos futuros sacerdotes, e cuja direção a Companhia de Jesus acabava de assumir. Nos anos seguintes, sua carreira na República Dominicana experimentou uma ascensão vertiginosa. Dois anos depois ele já era Superior da Região Dominicana da Vice-Província das Antilhas (cargo que ocupou até 1953) e professor de Filosofia da única universidade estatal da ilha, a reputada Universidade de Santo Domingo (USD).

Aos poucos, o padre Luis González-Posada foi se aproximando cada vez mais do governo do ditador Rafael Leónidas Trujillo Molina (1930-1961), a ponto de se converter “numa espécie de versão século XX dos assessores ou confessores reais” (Sáez, 2008, p. 53, tradução nossa). Nomeado vice-reitor da USD em 1953, sua influência junto à cúpula do poder trouxe consequências perceptíveis nos rumos da Vice-Província, com o decisivo apoio (político e financeiro) governamental à realização de importantes obras jesuíticas, como o Instituto Politécnico Loyola em San Cristóbal (1952), uma escola apostólica (1954), as amplas Casas de Exercícios Manresa-Loyola (1954) e Manresa-Altagracia (1956) e uma emissora de rádio em Santo Cerro, na província de La Vega (1956). No campo pastoral, em julho de 1957 ele criou e dirigiu a Agrupação Católica Universitária (ACU), concebida de modo semelhante à sua homônima cubana da década de 1930, e para a qual havia solicitado do presidente Héctor Trujillo (1952-1960), irmão mais novo do ditador, a doação de uma sede mais ampla.

Como se não bastasse, o padre Luis González-Posada foi um dos mais decididos promotores, redatores e agentes da Concordata firmada entre o governo da República Dominicana e a Santa Sé em junho de 1954, tendo sido o responsável por conduzir algumas das articulações no próprio Vaticano com a anuência de Trujillo. A intimidade com o ditador levou-o ao extremo de sugerir às autoridades romanas da Companhia de Jesus a concessão da Carta de Irmandade ao generalíssimo[4]. Todavia, intrigas palacianas, ao que tudo indica envolvendo o filho primogênito do ditador-presidente (do qual era muito próximo), combinadas com a falta de tato (ele teria se ufanado num jantar com diplomatas que, através da Casa Manresa, conhecia segredos explosivos de militares de alta patente...), fizeram-no cair em desgraça no início de 1958: destituído da vice-reitoria da USD em fevereiro, terminou abandonando o país no mês seguinte. No bojo desta crise, a ACU foi dissolvida por decisão governamental (cf. Sáez, 1988; 2008). O CIAS das Antilhas seria implantado oficialmente em Santo Domingo apenas em 1966, mas desde 1962 uma equipe social atuava no país, sobretudo através da realização de cursos de DSI para estudantes, operários e camponeses, quase como uma transposição do CIAS cubano, cujas atividades haviam cessado por conta da revolução ocorrida na ilha vizinha. Desse modo, em setembro de 1960, Luis González-Posada se encontrava em Roma na condição de representante (ainda que autoexilado) do apostolado social dominicano.

A história de vida do jesuíta brasileiro Pedro Belisário Velloso Rebello (1902-1993) seguiu um roteiro inicial distinto dos demais padres aqui elencados, uma vez que sua vocação foi tardia, tendo ingressado no Noviciado da Companhia de Jesus de Nova Friburgo com 31 anos e já graduado em Engenharia Civil pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Após a formação em Teologia na Europa, retornou ao Brasil em 1943, incorporando-se ao corpo docente das Faculdades Católicas, núcleo do que viria a ser poucos anos depois a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). No âmbito universitário, Pedro Velloso exerceu tanto atividades acadêmicas, lecionando Sociologia e Direito Civil, quanto administrativas, uma vez que foi secretário da Faculdade e fundador e primeiro diretor da Escola de Engenharia. Na área pastoral, atuou principalmente na Congregação Mariana Universitária e Operária e, a partir de 1951, na assistência religiosa e promoção social junto aos favelados cariocas. Entre 1952 e 1955, assumiu pela primeira vez a reitoria da PUC-Rio (cargo que voltaria a exercer na década de 1970), culminando o seu reitorado com a inauguração do novo prédio da instituição, em julho de 1955, no contexto do XXXVIº Congresso Eucarístico Internacional, um importante evento do catolicismo mundial que contou com a presença do legado pontifício, o cardeal Giovanni Battista Montini, futuro papa Paulo VI.

A partir de 1956, Pedro Velloso dedicou-se predominantemente ao apostolado social, substituindo o jesuíta Leopoldo Brentano como assistente nacional da Confederação Brasileira dos Trabalhadores Cristãos (CBTC). Em sua gestão, reorientou a atuação do movimento circulista no sentido da formação de líderes operários católicos, fundando, no interior da estrutura administrativa da PUC-Rio, a Escola de Líderes Operários (ELO). Neste mesmo período, foi incumbido pelo Padre Geral de constituir o Centro João XXIII, denominação do primeiro CIAS brasileiro, que somente seria criado formalmente em 1966 e do qual ele seria o primeiro diretor (cf. Maia e Braga, 2002).

Por fim, o jesuíta vasco Manuel Aguirre Elorriaga (1904-1969) iniciou sua relação com a Venezuela ao realizar o magistério no Colégio San Ignacio de Loyola, de Caracas, entre 1926 e 1929. Seu retorno à Espanha para cursar Teologia coincidiu com a Segunda República, de modo que, a exemplo de Manuel Foyaca, foi obrigado a concluir sua formação no exílio, mais especificamente na Bélgica, na Áustria e na Itália, onde se doutorou em História Eclesiástica pela PUG em 1937. De regresso à Venezuela, combinou a docência no Seminário Interdiocesano de Caracas (1937-1954) com uma intensa atuação intelectual e social. No ano seguinte à sua chegada, fundou a revista SIC (anagrama de Seminário Interdiocesano de Caracas, onde estava sediada, e expressão latina que significa “assim é”), inspirada nas tradicionais revistas sociais da Companhia de Jesus europeia, como La Civiltà Cattolica (de 1850), Études (de 1856) e Revue de l’Action Populaire (de 1903), e que alcançou ampla circulação não apenas na Venezuela como em toda a América Latina. Ao longo das três décadas seguintes, Manuel Aguirre publicou centenas de artigos, comentários e resenhas e, de maneira pioneira, criou uma seção dedicada à proposição esquemática da DSI e à realização de diagnósticos acerca dos principais problemas socioeconômicos venezuelanos (cf. Virtuoso Arrieta, 2004, p. 42, tradução nossa).

Ainda em 1938 iniciou círculos de estudo sobre a DSI entre estudantes e profissionais com a finalidade de proporcionar uma orientação doutrinal rigorosa e prepará-los tanto para a docência universitária quanto para a ação política. Consagrou-se igualmente com afinco ao apostolado social, fundando o Círculo Operário de Caracas (1945) e os Cursilhos de Capacitação Social de Ocumaré (1952), prestando assessoria a sindicatos camponeses e operários e ministrando cursos de formação social a estudantes secundaristas e universitários e trabalhadores de diversas categorias. Foi durante muitos anos diretor do Secretariado Nacional de Ação Social Católica do episcopado venezuelano e, em 1960, quando do encontro de Roma, havia iniciado em Los Flores de Catia, um bairro popular de Caracas, os chamados Cursilhos Fragua, que visavam capacitar os futuros líderes estudantis e sindicais através de debates, mesas-redondas, exercícios de oratória e sociodramas. Naquele momento, o CIAS venezuelano não existia ainda formalmente, mas seria criado pelo próprio Manuel Aguirre em 1968 com a denominação de Centro Gumilla (cf. González Oropesa, 2001, p. 24).

2. Roma, 1960

Remontemos à origem daquela reunião de setembro de 1960. Como vimos, Manuel Foyaca havia sido designado Visitador Social para a América Latina em novembro de 1955, iniciando a partir de então um ciclo frenético de viagens por todas as Províncias e Vice-Províncias da Companhia de Jesus no continente: 1955: Cuba – República Dominicana – Porto Rico; 1956: Colômbia – Venezuela – Brasil – Argentina – Chile – Peru – Bolívia; 1957: Cuba; 1958: Colômbia – Venezuela – México – República Dominicana; 1959: Venezuela – Colômbia – América Central – México; 1960: Venezuela – Colômbia – Equador – Peru – Chile – Argentina – Uruguai[5]. Meses antes da reunião de Roma, mais precisamente em julho de 1960, ele enviou uma carta ao Padre Geral num tom confessadamente sobressaltado:

Mui amado em Cristo, Padre Geral:

Alarmado pela perigosíssima situação que tenho encontrado em todos os países neste meu périplo pela América do Sul, onde os comunistas estão concentrando seus esforços sobre as Universidades, intelectuais e operários por conta da circunstância de Cuba, ocorre-me sugerir a V.P. a conveniência de levar comigo a Roma os padres Andrade, Vekemans e Velloso para estudar com V.P. e os Padres Assistentes da América as medidas que urgentemente devemos tomar para tratar de evitar a catástrofe que está por cair sobre nós. Caso pareça bem a V.P. tal sugestão, a reunião poderia ocorrer, talvez, em meados de setembro[6].

Como sabemos, Manuel Foyaca “levou” não apenas os diretores dos CIAS da Colômbia, do Chile e do Brasil como agregou os do México, da Venezuela e das Antilhas. A pauta da reunião foi bastante extensa: discutiu-se a situação da América Latina de uma maneira geral, o apostolado nos meios universitários, a relação com os Partidos Democrata Cristãos, a adoção de reformas específicas (a exemplo da agrária) e as melhores estratégias a serem adotadas para consolidar os centros socais já existentes e ampliar a rede de ação social no continente. Como não poderia deixar de ser, reservou-se um bom tempo para avaliar os impactos da Revolução Cubana nas organizações sociais católicas e a necessidade de combater a penetração comunista no movimento sindical e nas Universidades, de modo a impedir o cataclismo que, segundo o Visitador, se avizinhava (“que se nos viene encima”). Vejamos, portanto, como se deu este debate em suas minúcias.

Ao refletir acerca do apostolado universitário, Manuel Foyaca solicitou que cada jesuíta descrevesse a situação do ensino social nas Universidades de seus países e a influência do marxismo nas associações estudantis, bem como as possíveis vinculações com a Revolução Cubana[7]. Carlos de la Torre informou que a Conferência dos Estudantes Mexicanos (CEM) formava dirigentes para ocupar postos diretivos, mas que estes possuíam “pouca formação social e êxito contra os comunistas”. Segundo Manuel Aguirre, a Universidade Católica Andrés Bello (UCAB) facilitava o ensino social por parte dos jesuítas, mas era imperativo investir na formação social e política, inclusive de empresários e políticos. Analisando a realidade cubana, Luis González-Posada julgava que a ACU vinha conseguindo influenciar a Universidade de La Habana com um “anticomunismo positivo”. No caso chileno, de acordo com Roger Vekemans, a Democracia Cristã avançou em todas as Universidades, mas estava “um pouco desorientada” e dera “um passo atrás”.

Feito o bosquejo da “infiltração marxista”, conforme a terminologia usada por Foyaca, passou-se à questão das diretrizes a serem imprimidas à formação e à política universitárias. O diagnóstico mais acurado foi o do padre Vekemans. Para ele, as Universidades Católicas latino-americanas não mereciam esse nome, na medida em que os cursos de Cultura Católica “eram ridículos” e os melhores cristãos se encontravam nas Universidades Nacionais (públicas, portanto). Ele chegou mesmo a advertir para o risco dos núcleos católicos das Universidades privadas se constituírem em “fortalezas nacionalistas e reacionárias”. E se perguntava: “Valia a pena a Companhia de Jesus investir nestas Universidades, cujos custos pesavam tanto do ponto de vista financeiro?”. No Chile, segundo ele, os democrata-cristãos dominavam as direções do movimento estudantil, mas estavam “contaminados pelo aspecto político”, o que terminava dificultando “uma formação intelectual, social e espiritual” mais ampla.

Neste ponto, Foyaca reforçou a necessidade de direcionar sacerdotes qualificados para a ação universitária em cada país, ao que o Assistente da América Latina Setentrional, Alberto Moreno, ponderou que o Padre Geral concordava com isso, mais do que com a aceitação do encargo, por parte da Companhia de Jesus, da direção das Universidades, mas que geralmente era este o desejo dos Núncios e Bispos. E aproveitou para ressaltar a importância da concessão de bolsas para a formação de universitários (jesuítas e leigos), mencionando o caso da Universidade Russa da Amizade dos Povos, de Moscou, que acolhia naquela conjuntura nada menos do que 500 mexicanos. Mais uma vez, Roger Vekemans polemizou: “Os universitários que vão aos países comunistas voltam comunistas, enquanto os católicos se paganizam no exterior [...]”. A conclusão deste tópico foi o reconhecimento da necessidade de uma orientação mais técnica no que dizia respeito à formação social-econômica universitária nas Américas.

Sobre o delicado tema partidário, Manuel Foyaca abriu a discussão declarando que o mundo político era de grande influência para a Igreja Católica, mas que, por vontade do Padre Geral, “está fora de nossa ação direta [...] mas, por serviço da Igreja, podemos promover e orientar”. Manuel Aguirre pediu a palavra para defender que aquela era a hora dos Partidos Democrata-Cristãos e que a missão da Companhia de Jesus era “formar homens para uma política cristã”. Recorrendo à sua experiência com o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (COPEI), o partido democrata cristão fundado na Venezuela em 1946, ele explicou que a realização dos cursilhos com universitários tinha tido a pretensão de fornecer orientação em diversas questões (social, parlamentar, jornalística etc.) e formar líderes que atuassem na política, e que “o COPEI se formou sem consultar-nos e mantemos relações amigáveis”. Com efeito, boa parte dos dirigentes do COPEI participou dos círculos de estudo da DSI do padre Manuel Aguirre, incluindo dois futuros presidentes da República: Rafael Caldera Rodríguez (1969-1974) e Luis Antônio Herrera Campins (1979-1984).

A prudência, novamente, coube ao padre Vekemans, que preferia que se falasse de “partidos constituídos por cristãos e de inspiração cristã”, sem defini-los especificamente como democrata-cristãos, em razão, evidentemente, da realidade dos católicos chilenos, já que procurava “trabalhar com todos”. Entende-se a preocupação de Vekemans. Desde a sua criação, três anos antes, o CIAS Bellarmino vinha oferecendo cursos de formação para os dirigentes sindicais e da Ação Católica, mas seu público foi progressivamente se ampliando, incluindo cada vez mais militantes do Partido Democrata Cristão (PDC), fundado sintomaticamente em julho de 1957, três meses depois da criação do centro social santiaguino. Assim, o CIAS chileno “funcionou como um espaço de dinamização da militância social católica e teve uma influência visível no movimento democrata-cristão” (Beigel, 2011, p. 84, tradução nossa). E o padre Vekemans foi paulatinamente estreitando os vínculos com os mais destacados dirigentes democrata-cristãos chilenos e se transformando num dos principais ideólogos do jovem partido.

Coube ao Visitador Social tentar mediar a conversa, esclarecendo que se referia aos PDCs por querer fixar-se nas organizações políticas preocupadas com os problemas sociais, já que o interesse da Companhia de Jesus era “o aspecto social do político” e que talvez fosse conveniente colaborar na organização destes partidos nos países onde não existissem. O padre Manuel Aguirre aproveitou o ensejo e provocou:

Não estaria no porvir próximo da América Latina o surgimento dos Partidos Democrata-Cristãos? Não seria a missão do apostolado social da Companhia de Jesus promover a formação de seus dirigentes? Os partidos católicos reacionários na questão social dificultam nossa atuação[8].

Roger Vekemans não se deu por vencido:

Como sacerdote, rechaço este prognóstico com relação ao futuro de uma estrutura política. Se fosse leigo, dedicar-me-ia à promoção dos PDCs na América Latina, mas, para não hipotecar a influência social com a coletividade na realidade atual, não quero pensar nesse problema nem participar dessa esperança[9]

Uma vez mais, o anticomunismo[10] irrompeu na contenda, desta feita com relação às repercussões da Revolução Cubana nas hostes democrata cristãs. Na Venezuela, o COPEI se inclinou a princípio para Fidel Castro, mormente os militantes mais jovens, mas “agora todos estão de volta”, disse o padre Manuel Aguirre. No Chile, a situação era mais complexa, afirmou Vekemans, com uma ala do PDC (aquela encabeçada por Eduardo Frei) “mais sã e mais serena” e outra (a de Radomiro Tomic e Rafael Agustín Gumúcio) “bastante fidelista”, o que acabava por influenciar os demais PDCs sul-americanos, especialmente o argentino, o uruguaio e o peruano. Manuel Foyaca admitiu estar muito apreensivo com a desorientação chilena e o afloramento de certos traços da concepção democrata cristã, a exemplo de um esquerdismo anticapitalista, de um posicionamento mais anticapitalista que anticomunista, da rejeição da presença dos padres na política e de uma concepção ingênua de democracia como valor supremo.

Nesta altura da reunião, o Visitador cubano argumentou que era do interesse da Igreja a existência de políticos católicos e a construção de uma ordem temporal regida por princípios cristãos, de maneira que “devemos influenciar nos elementos que podem atuar na política”. Ao que o padre Vicente Andrade lamentou: “Mas os tivemos em nossas mãos quando crianças e não os formamos. Como fazê-lo agora que estão velhos?”. Alberto Moreno concordou: “Tivemos [em nossas mãos] quando crianças e os abandonamos na Universidade. Não nos preocupamos com sua formação política porque isso não fazia falta naquela época”.

O tema do comunismo continuou a galvanizar os debates e, ao final, os participantes concluíram que se fazia premente a “formação de líderes universitários com vocação de serviço para o desenvolvimento e com capacidade para enfrentar a estratégia dos partidos comunistas de ocupar o espaço universitário” (apud Virtuoso Arrieta, 2004, p. 50, tradução nossa). Anos depois, Roger Vekemans rememoraria a reunião de Roma de maneira bastante crítica:

Foyaca era um homem, no meu entender, um pouco simplote [...]. Ao que parece, [ele] esperava impor a formação dos CIAS sem fazer demasiadas concessões às condições de viabilidade locais, e seu anticomunismo furioso terminou distorcendo suas prioridades [...]. Todos foram compreensivos com o padre visitador, mas ninguém caiu na armadilha de uma atitude negativa (apud Beigel, 2011, p. 42; 209, tradução nossa)

Bem distinto foi o parecer emitido no calor da hora por Carlos de la Torre Uribarren: “As reuniões em Roma foram muito interessantes”[11]. Divergências à parte, foi no diapasão deste binômio anticomunismo/desenvolvimento social que os CIAS da América Latina passaram a caminhar a partir de então.

3. Barbárie Asiática de Moscou versus Doutrina Social de Roma

Manuel Aguirre nos conta uma história crucial para entender o enraizamento do anticomunismo no Catolicismo Social da Europa e alhures. Em janeiro de 1936, monsenhor Joseph Cardijn, já àquela época uma celebridade no mundo católico por ter criado a JOC na década anterior, deu uma palestra para mais de uma centena de estudantes do Colégio Pío Latino-Americano de Roma, o maior centro de formação de sacerdotes latino-americanos (e que é administrado pelos jesuítas). Presente na oportunidade, o padre vasco-venezuelano anotou algumas de suas recomendações para a constituição de núcleos jocistas:

Há um duplo desafio na formação do primeiro núcleo. Primeiro, um a um. Depois, em grupo: que se imprima neles a ideia de que são muitos. Sentimento de comunidade. E, ao mesmo tempo, já devem estar conquistando: – Quem é seu melhor amigo? Onde ele vive? Você o encontra no campo de futebol? Fale de tudo isso. Mostre-lhe, conquiste-o. Se é comunista, melhor... No céu há uma especial alegria quando um grande pecador se converte. Será pior que Saulo? Quantos Paulos andam por aí nessas almas, às vezes cheias de ideal e quase misticismo, de Socialismo e Comunismo. Devemos ganhá-los. Depois se tornarão mais santos que nós (apud Aguirre, 1938b, p. 69-70, tradução nossa).

Dois anos depois, finalmente radicado na Venezuela, o padre Aguirre já havia incorporado esse estilo combativo ao seu apostolado. Não à toa, alguns dos seus contemporâneos gostavam de comparar sua personalidade com a de Inácio de Loyola no aspecto militar. Mas não só: a convicção anticomunista estava igualmente entranhada em sua visão de mundo. É o que podemos verificar no editorial de apresentação da revista SIC escrito por ele em janeiro de 1938:

Boa, nobre e grande, nós a queremos [a Nova Venezuela], fiel à sua raiz ibérica e leal – sobretudo ao pensamento dos Heróis que conquistaram sua Independência –, e livre, por conseguinte, de influências estrangeiras e servidões internacionalistas, que são, em suma, as que querem impor os renegados da pátria, os que vivem das pensões da Terceira Internacional, os que, com palavras sonoras e promessas falazes, tentam hipnotizar o povo ingênuo e generoso. E é certo. A Nova Venezuela, a cujo deslumbramento doloroso assistimos, há de ser deles ou nossa. Talhada segundo o molde da barbárie asiática de Moscou ou da doutrina social católica: colônia russa ou nação independente (Aguirre, 1938a, p. 5, tradução nossa).

Convém recordar que os Cursilhos Fragua promovidos por ele na periferia caraquenha eram uma reação explícita ao perigo de expansão do marxismo e do comunismo nos colégios e universidades venezuelanas. Esse mesmo espírito de confrontação entre a Barbárie Asiática de Moscou e a Doutrina Social de Roma animou o padre Pedro Velloso na sua condução do circulismo operário diante da ameaça do incremento da militância trabalhista e da influência comunista no mundo do trabalho brasileiro em meados da década de 1950 (cf. Maia e Braga, 2002, p. 35).

Contudo, talvez nenhuma conduta expresse mais cabalmente a cruzada anticomunista no continente do que a do jesuíta Vicente Andrade. Efetivamente, na Colômbia, a atividade primordial do CIAS consistia na formação de dirigentes da UTC, da Fanal e da Uconal, as quais, como bem pontuou Jeffrey Klaiber (2007, p. 314, tradução nossa), “se caracterizavam por uma mentalidade pré-vaticana”. Não era segredo que a fundação da UTC, da qual o padre Andrade foi durante muitos anos Assessor Moral e que tinha o apoio irrestrito da Ação Católica Colombiana, visava se contrapor à influência da Confederação de Trabalhadores Colombianos (CTC), criada em 1936 pelo governo liberal, mas hegemonizada nos anos 1940 pelo Partido Comunista. A propósito, numa análise do panorama social latino-americano publicada na mesma revista SIC em 1953, ele destacava a importância do catolicismo no combate ao comunismo na América Latina, afirmando que, se o mesmo “não havia feito progressos mais rápidos, isso se deve à fé católica da maioria de seus habitantes e à ação declarada da Igreja” (Andrade, 1953, p. 306, tradução nossa).

Não deve causar estranheza, portanto, que o anticomunismo tenha pontilhado diversos momentos da Visita Social do padre Manuel Foyaca, que se estendeu de 1955 a 1962. A própria convocatória da reunião de setembro de 1960, já sabemos, havia resultado do temor do Visitador diante da propagação comunista. Antes disso, em sua primeira viagem ao México, em 1958, ele alertava a comunidade jesuítica local:

Dada a projeção marxista que a Revolução teve no México, mais ou menos acentuada de acordo com os políticos de turno, a ação social católica deverá estender-se a múltiplos setores que, talvez, em outros países, se considerariam alheios [...]: educação popular básica, educação secundária e politécnica, ensino universitário, ação operária e patronal, ação rural e indigenista, apostolado nos hospitais...[12]

Tais inquietações tinham eco na Cúria Geral da Companhia de Jesus, a julgar pelo comentário que o padre Foyaca diz ter ouvido do padre Janssens em agosto de 1959: “Os Provinciais não conseguem compreender que o comunismo é um perigo maior que o protestantismo”[13]. E nada sugere que isso tenha mudado de modo substancial depois do colóquio de Roma, pelo menos não por parte dos jesuítas daquela primeira geração dos CIAS. Numa carta enviada ao Assistente da América Latina Setentrional em novembro de 1961, Carlos de la Torre revelou suas impressões acerca das perspectivas do apostolado social:

Não estou pessimista. O volume de ação cristã que pulula por todas as partes é verdadeiramente assombroso. Não tenho dúvida de que existe atualmente um despertar para as ideias retas e para Deus, precisamente quando nos ameaça o espectro aterrorizante do comunismo e das crescentes desigualdades econômicas no mundo. Deus Nosso Senhor acabará por triunfar, mas, quem sabe por quanto nos tocará passar...![14]

Como sempre, as atitudes mais extremas continuaram vindo da Colômbia. O proverbial anticomunismo de Vicente Andrade fez com que ele chegasse ao ponto de responsabilizar o comunismo pela disseminação da violência no país a partir do final da década de 1940, mascarando, com isso, a inegável responsabilidade das disputas entre as frações liberais e conservadoras das elites nacionais no cerne daquele sangrento conflito (cf. Andrade, 1963). A radicalização política de certos setores do clero colombiano iria atiçá-lo ainda mais. Assim, em junho de 1965, quando o sacerdote e sociólogo Camilo Torres anunciou pela imprensa sua decisão de solicitar ao cardeal arcebispo de Bogotá, Luís Concha Córdoba, a redução ao estado laical para ingressar na luta revolucionária, incorporando-se às fileiras do Exército de Libertação Nacional (ELN), o padre Andrade publicou um artigo na Revista Javeriana no qual partiu para o confronto aberto.

Deixando claro que se pronunciava publicamente em cumprimento do “dever de orientação doutrinal que compete ao Assessor Moral”, Vicente Andrade rechaçou o argumento (por ele qualificado de malicioso) de que Camilo Torres havia sido admoestado e desautorizado pela hierarquia colombiana por conta do seu apoio às reivindicações populares, esclarecendo que tal se deu em virtude do comportamento do referido prelado de “desacordo com seus deveres de sacerdote”, de “deslealdade para com a Igreja” e de não haver sequer aceito a doutrina social católica, na medida em que, sob o pretexto de lutar contra as injustiças sociais, aliara-se a propostas que violavam o direito de propriedade, defendiam um Estado autoritário e aceitavam o uso de métodos violentos. E complementou: “Está bastante fresca a experiência da Revolução Cubana” (Andrade, 1965, p. 152).

Uma vez ocorrido o desenlace trágico, com a morte do sacerdote-guerrilheiro em sua primeira batalha nas montanhas colombianas em fevereiro de 1966, o padre Andrade voltou à carga num artigo agressivo (e que gerou muitas reações contrárias, inclusive por parte da hierarquia episcopal colombiana), apontando o próprio Camilo Torres como “o único responsável [pelo seu fracasso], por sua idiossincrasia sonhadora, sua inclinação para a adulação e a popularidade, pela debilidade de sua formação filosófica e teológica” (Andrade, 1966, p. 179, tradução nossa).

De qualquer modo, essa postura intransigente vinha de quando em vez acompanhada de uma percepção das “crescentes desigualdades econômicas no mundo”, como havia exposto Carlos de la Torre em sua correspondência com o padre Alberto Moreno. Aliás, já naquela conferência proferida em 1936 no Colégio Pio Latino-Americano, monsenhor Cardijn fizera questão de salientar que a grande aspiração da JOC era “agrupar todos os jovens católicos do mundo [...], redimir o operário, tirá-lo da escravidão” (Aguirre, 1938b, p. 69, tradução nossa).

Por sua vez, ao longo de sua atuação em Cuba nas décadas de 1940 e 1950, Manuel Foyaca manteve contato permanente com expoentes tanto do Catolicismo Social europeu quanto das correntes politicamente mais progressistas da Ação Católica Especializada[15]. Além do reiteradamente citado Joseph Cardijn, foram frequentadores assíduos de reuniões e eventos na ilha caribenha durante aquele período figuras relevantes da Ação Católica mundial como o padre Joaquin Azpiazu, diretor do centro social Fomento Social, de Madri, o padre John La Farge, fundador do centro social Catholic Interracial Council, de Nova York e especialista em questões raciais, e o padre Albert Le Roy, delegado da Santa Sé junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT) entre 1936 e 1955[16].

Uma vez investido do cargo de Visitador, Manuel Foyaca patrocinou a realização, quase sempre na Europa e nos Estados Unidos, de diversos seminários de estudo para os jesuítas latino-americanos recrutados para trabalhar nos CIAS, os chamados “Congressos Foyaquistas”, os quais primavam por uma formação especializada nos vários campos das Ciências Sociais, especialmente Sociologia Urbana, Sociologia Rural, Sociologia da Religião e Economia[17]. Alguns dos jesuítas notoriamente anticomunistas mostravam-se, inclusive, abertos às transformações sociais. O padre Manuel Aguirre, por exemplo, reconhecia que “sempre foram mais eficazes os movimentos de baixo para cima, que são eco de uma realidade tensa, que os movimentos de cima para baixo, em que é necessário formar artificialmente o próprio ambiente de difusão” (Aguirre, 1938a, p. 6, tradução nossa). E até mesmo o padre Vicente Andrade admitia a responsabilidade da Igreja no processo de transformação das estruturas sociais, ainda que sob certas condições:

Dizer que toda a atitude da Igreja no campo social se reduz a uma atitude paternalista, sem preocupação por transformar as estruturas sociais, é lamentável ignorância. [...] É muito fácil lançar ao vento pomposos programas de reforma, [...], mas realizar uma transformação construtiva e profunda do que há de viciado em nossas estruturas, chame-se ou não de revolução, é algo que não se faz tão somente por meio de uma oratória emotiva (Andrade, 1965, p. 149, tradução nossa).

No Chile, o grupo do Centro Bellarmino, cujos principais animadores eram os jesuítas Roger Vekemans e Renato Poblete, tinha como missão “consolidar intelectualmente as tendências renovadoras da Diocese [de Santiago] e formar uma equipe de especialistas para formular diagnósticos e elaborar projetos sociais” (Beigel, 2011, p. 79, tradução nossa). Sua atuação se dava basicamente através de assessorias, cursos, palestras e publicações. Nas chamadas “Segundas-Feiras Bellarmino” (oficialmente, “Conferencias de los Lunes del Centro Bellarmino”), realizadas religiosamente a cada segunda-feira, às 19:30h, na sede do Centro, estudiosos discutiam os temas mais candentes do momento. Em junho de 1966, por exemplo, a programação constou das seguintes conferências: dia 6, “Crise da educação católica?”, pelo jesuíta Patrício Cariola; dia 13, “A vocação humana segundo Teilhard de Chardin e Henri Bergson”, pela professora Beatrice Avalos, da Universidade Católica de Chile; dia 20, “Para onde vai a sociedade rural?”, pelo jesuíta Gonzalo Arroyo, do Centro Bellarmino; dia 27, “A morte, passagem para a Vida”, pelo jesuíta Juan Ochangavía, também do Centro Bellarmino. Sua publicação mensal, a revista Mensaje, impressa ininterruptamente desde 1951, divulgava análises críticas não apenas da realidade chilena como de todo o continente. Neste sentido, duas de suas edições ficaram célebres: “Revolución en América Latina” (de dezembro de 1962) e “Reformas revolucionarias en América Latina” (de outubro de 1963).

A partir de 1960, Roger Vekemans desenvolveu, no âmbito do DESAL, a Teoria da Marginalidade e da Promoção Popular, que buscava remodelar a estrutura social com a finalidade de estabelecer uma mudança social radical. Para ele, “denominam-se marginais os grupos sociais que se encontram fora da escala social e que se veem afetados pela miséria em sua acepção mais ampla” (Vekemans e Venegas, 1966, p. 219, tradução nossa). Ou seja, a marginalidade seria a falta de participação e pertencimento à sociedade, enquanto a Promoção Popular visaria propiciar a integração interna do mundo marginal através de organizações de base (conselhos comunitários, conselhos de vizinhos, centros de mães, centros de pais, conselhos juvenis, clubes esportivos, cooperativas etc.), incorporar os marginais à comunidade nacional e gerar uma nova integração da sociedade global. Destarte, os setores marginais e historicamente excluídos seriam os protagonistas da almejada “Revolução na Liberdade”.

Já vimos anteriormente como Vekemans foi se convertendo num dos mais influentes intelectuais do PDC chileno. O slogan “Revolução na Liberdade” e a teoria por ele formulada contribuíram de maneira decisiva para o bom desempenho daquele partido nas eleições presidenciais de 1958, quando ficou em terceiro lugar, e, certamente, para a vitória consagradora de Eduardo Frei Montalva em 1964. O Projeto de Promoção Popular terminou virando lei no governo Frei (1964-1970), e Roger Vekemans, que era filho de um marxista, se tornou um dos principais ideólogos da prática política da Democracia Cristã na América Latina, na medida em que suas ideias representavam uma alternativa efetiva ao crescimento da esquerda marxista no continente.

Esse parece ser um dos episódios nos quais certas formulações teóricas e práticas concretas dos CIAS latino-americanos cumpriram um papel importante na transição entre o Catolicismo Social e o Cristianismo de Libertação, por mais insólito que isso possa parecer atualmente. Como sinalizamos na introdução desse texto, não é nossa pretensão de momento dar conta desse processo em toda a sua amplitude – o que ultrapassa as limitações de um artigo –, antes aprofundá-lo a partir do apostolado social da Companhia de Jesus tal como expresso nos três primeiros lustros dos CIAS latino-americanos. Ainda que circunscrita a uma experiência histórica bastante precisa, cremos que tal análise seja capaz de revelar algumas de suas nuances fundamentais. De fato, como bem pontuou Andrea Botto ao analisar a experiência chilena, a corrente corporativista católica, oriunda fundamentalmente dos setores conservadores da sociedade, mas portadora de um discurso abertamente crítico à ordem liberal, é hoje catalogada como “tradicionalista” e “integrista”, mas, “em sua época, foi considerada um movimento perigosamente progressista” (Botto, 2009, p. 243). Não custa relembrar que o PDC descendeu de uma agremiação chamada Falange Nacional – a referência ao fascismo espanhol é perturbadora –, a qual, por sua vez, foi uma dissidência do Partido Conservador (PC).

Nós nos filiamos, portanto, à interpretação de que a democracia cristã tem suas origens mais remotas não na vertente liberal do catolicismo mas em suas alas mais conservadoras, aquelas que, no final do século XIX e início do XX, estavam mais identificadas com os postulados do integrismo, da intransigência e da contrarrevolução, para fazer frente aos avanços do modernismo. Assim, podemos entender o catolicismo intransigente, o catolicismo social e a democracia cristã compartindo, num primeiro momento, de uma visão de mundo comum, caracterizada pela rejeição do individualismo, pela adesão ao corporativismo e pela busca de uma terceira via entre o liberalismo e o socialismo (cf. Arias, 2009, p. 190-191).

4. Considerações finais

A segunda geração dos CIAS é consideravelmente distinta da anterior, o que pode ser explicado tanto por fatores internos quanto externos à Companhia de Jesus. No plano interno, é preciso levar em consideração, antes de mais nada, o aspecto geracional, uma vez que os Centros Sociais foram pouco a pouco sendo assumidos por um grupo de jesuítas jovens, com perfil distinto dos pioneiros, não só pelo fato de suas trajetórias terem sido atravessadas pelas significativas transformações do Concílio Vaticano II (1962-1965), como também, e principalmente, por possuírem uma formação especializada na área social, bastante diversa daquela dos jesuítas-fundadores, em sua grande maioria quase que exclusivamente filosófica e/ou teológica. Sem falar na questão etária, uma vez que alguns destes jesuítas eram mais velhos, e pelo menos dois deles (Tomás Travi e Manuel Aguirre) faleceriam na própria década de 1960. Além disso, o momento de consolidação dos CIAS coincidiu (não casualmente, vale frisar) com o generalato do padre Pedro Arrupe (1965-1983), responsável por instaurar uma era de profunda renovação na Ordem (cf. Costa, 2018).

Do ponto de vista dos fatores externos, no âmbito eclesial, há que ressaltar, em termos mundiais, os impactos trazidos no mundo católico pelo já mencionado Concílio Vaticano II, e, no contexto latino-americano, pela radicalização política de amplos segmentos clericais e leigos, cujo paradigma é, sem dúvida alguma, a figura do padre-guerrilheiro Camilo Torres e a consequente difusão do camilismo, entendido aqui como aquele conjunto de movimentos sociais nos quais havia vínculos orgânicos entre grupos cristãos e de luta armada. Na esfera eminentemente política, a vitória da Revolução Cubana, em janeiro de 1959, inaugurou uma fase revolucionária no continente latino-americano, cujo ápice ocorreria 20 anos depois, com o advento de outra Revolução exitosa, a Nicaraguense. A esse respeito, lembremos que tanto Manuel Foyaca quanto Roger Vekemans optaram pelo exílio (na Espanha e na Colômbia, respectivamente) por discordarem da orientação dos regimes socialistas implantados nos países onde viviam. Desta forma, os CIAS desta segunda geração foram obrigados a ressignificar alguns de seus princípios, a exemplo do anticomunismo, tão caro à geração anterior, como vimos, na medida em que os grupos sociais com os quais interagiam se tornavam cada vez mais permeáveis e afins às concepções e práticas progressistas. Por fim, a inauguração de um novo ciclo ditatorial, especialmente na América do Sul, com o golpe militar no Brasil em 1964, deslocou cada vez mais os centros sociais da Companhia de Jesus para posições à esquerda do espectro político-ideológico.

Em suma, a fundação e consolidação dos CIAS inacianos como que demarcaram o esgotamento do Catolicismo Social na América Latina. É o que podemos constatar a partir de uma outra reunião, realizada em Lima, em julho de 1966, para avaliar os rumos dos CIAS na América Latina. Dentre os 49 participantes deste “Congresso Latino-Americano dos CIAS” constavam cinco jesuítas bastante conhecidos de nós: Manuel Foyaca, Carlos de la Torre, Roger Vekemans, Vicente Andrade e Pedro Velloso[18]. Assim como no encontro ocorrido em Roma 16 anos antes, também neste se destinou um tempo considerável para a interpretação dos “problemas da América Latina”, assim compreendidos: a) Produção de bens econômicos; b) Integração econômica da América Latina; c) Política fiscal e distribuição da renda nacional; d) Explosão demográfica; e) Reforma agrária; f) Intelectuais e estudantes; g) Partidos Políticos Democrata-Cristãos; h) Cooperativismo; i) Formação profissional operária; j) “Revolução Social” na América Latina; l) Indigenismo; m) Problemas educacionais[19].

Uma das principais conclusões do Congresso foi, sem dúvida, a criação do CLACIAS, o Conselho Latino-Americano dos CIAS, que nascia com a finalidade precípua de potencializar o intercâmbio de informações e a articulação das ações dos diversos centros sociais, além de funcionar como órgão consultivo do Padre Geral para questões sociais. De maneira a dotar o novo órgão de uma organização mais racional e efetiva, dividiu-se a América Latina em quatro regiões: América Meridional I (que incluía Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai), América Meridional II (Brasil), América Setentrional I (Colômbia, Equador e Venezuela) e América Setentrional II (Antilhas, América Central e México). Nesta mesma reunião foram eleitos os coordenadores regionais (o chileno Hernán Larraín Acuña, o brasileiro Nelson de Araújo Queiroz, o colombiano Jaime Martínez e o cubano Francisco Manuel Dorta-Duque, respectivamente), bem como, dentre eles, Hernán Larraín para o cargo de Secretário-Executivo[20].

Os congressistas fizeram questão de precisar a fundamentação teológica dos CIAS, afirmando que, uma vez que “a incorporação da humanidade em Cristo pelo amor mútuo deve realizar-se através do fazer humano total, ou seja, mediante as estruturas temporais”, então, “o sacerdote deve orientar sua reflexão e sua ação para a transformação destas estruturas temporais [...]”[21]. E designaram um grupo de jesuítas para elaborar um texto que fosse uma “tomada de posição oficial da Companhia de Jesus a respeito do conflito social na América Latina”[22]. Vejamos algumas de suas afirmações mais contundentes:

Não cremos necessário demonstrar com fatos e cifras o quanto são inadequadas e injustas as estruturas sociais vigentes em nosso continente. [...] Se a Companhia de Jesus se abstém de tomar uma posição definida e explícita, essa abstenção poderá ser facilmente interpretada como um apoio implícito, ainda que eficaz, aos sistemas vigentes. [...] Sem paixão, porém, também sem medo, com serenidade e objetividade, devemos denunciar as injustiças que pesam sobre nossos países e propor modelos de solução inspirados na doutrina social da Igreja. [...] Diante disso, a Companhia de Jesus: a) Declara-se decididamente a favor de uma reforma rápida, radical e global das estruturas atualmente vigentes na América Latina; b) Decide favorecer por todos os meios as organizações de operários, camponeses e moradores de bairros populares e favelas – quer dizer, a todos os setores marginais de nosso continente – que buscam, dentro da justiça e da liberdade, sua promoção econômico-social e humana; c) Se, em algum de seus ministérios ou obras, sua liberdade apostólica na linha social se encontrar comprometida, seja pela natureza dos mesmos ou pela forma de seu financiamento, divulgará publicamente sua vontade de abandoná-los[23].

Meses depois, o Padre Geral Pedro Arrupe ratificou as principais conclusões do Encontro de Lima e aprovou os Estatutos dos CIAS, definindo-os de maneira lapidar: “O objetivo fundamental dos CIAS é a transformação da mentalidade e das estruturas sociais num sentido de justiça social, de preferência no setor da promoção popular”[24].

Ora, a composição do CLACIAS não incorporava nenhum dos jesuítas da primeira geração. Por sua vez, a formação de seus membros era especializada na área social. E sua orientação teológico-política apontava para novos horizontes. Enfim, uma etapa do apostolado social da Companhia de Jesus estava encerrada. Os CIAS estavam plenamente maduros para o Cristianismo da Libertação.

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SÁEZ, J.L. 1988. Os jesuítas en la República Dominicana: Volume I: Los primeros veinticinco años (1936-1961). Santo Domingo, Archivo Histórico de las Antillas, 444 p.

SÁEZ, J.L. 2008. La sumisión bien pagada: la iglesia dominicana bajo la Era de Trujillo (1930-1961). Tomo I. Santo Domingo, Archivo General de la Nación, 345 p.

STORNI, H. 2001. Tomás Ignacio Travi Costa (verbete). In: C. O’NEILL; J. DOMINGUEZ (org.), Diccionario Histórico de la Compañía de Jesús. Tomo IV. Roma, Institutum Historicum Societatis Iesu; Madrid, Universidad Pontificia Comillas, p. 3832.

VEKEMANS, R. 1982. D.C. – C.I.A. – CELAM: autopsia del mito Vekemans. Caracas, Universidad Catolica del Táchira, 442 p.

VEKEMANS, R.; VENEGAS, R. 1966. Marginalidad y promoción popular. Mensaje, 149:218-222.

VIRTUOSO ARRIETA, F.J. 2004. Justicia social en Venezuela: la preocupación social de la Compañía de Jesús, 1968-1992. Caracas, Fundación Centro Gumilla; Universidad Católica Andrés Bello, 472 p.

Notas

1 Departamento de História. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH). Universidade Federal da Bahia (UFBA). Rua Professor Aristides Novis, 197. Bairro Federação 40.210-630 Salvador, Bahia, Brasil.
2 De acordo com as Constituições da Companhia de Jesus, o Visitador atua em nome do Padre Geral pelo tempo e com a autoridade que este julgar oportunos, o que significa dizer que está investido de um poder superior ao dos Provinciais e Vice-Provinciais.
3 A Cristiada foi um conflito armado ocorrido no México em dois períodos (de 1926 a 1929 e, depois, de 1934 a 1938) entre o governo central e milícias de leigos, religiosos e padres católicos que resistiam à aplicação de leis anticlericais. Inserida no contexto da Revolução Mexicana, a também chamada Guerra Cristera envolveu diversos grupos católicos, a exemplo da Associação Católica da Juventude Mexicana (ACJM).
4 Cf. Carta de Luis González-Posada al Assistente Tomás Travi, Ciudad Trujillo, 10 de agosto de 1955. Apud Sáez, 2008, p. 53, tradução nossa. A Carta de Irmandade é um documento expedido pelo Padre Geral aos benfeitores e amigos da Companhia de Jesus em reconhecimento por sua colaboração na missão apostólica, concedendo-lhes, assim, participar nas orações, boas obras e sufrágios com um vínculo especial de fraternidade. A propósito, em 1943, o general Francisco Franco recebeu uma Carta de Irmandade em agradecimento pela devolução dos edifícios quitados à Companhia de Jesus durante a Segunda República.
5 Para o roteiro da Visita Social, consultar El Visitador responde a la petición oficial de su Curriculum Vitae, Pasta Documentación Personal, Archivo de España de la Compañía de Jesús (AESI), Alcalá de Henares, Espanha.
6 Carta de Manuel Foyaca a Juan Bautista Janssens, Rio de Janeiro, 22 de julho de 1960 (tradução nossa), Pasta Visita Social, AESI, Alcalá de Henares, Espanha.
7 Doravante, para o relato dos debates ocorridos na referida reunião nos basearemos nos apontamentos elaborados pelo próprio Manuel Foyaca. Cf. [Reunión de los Directores de los Centros Sociales], Roma, setembro de 1960 (tradução nossa), Pasta Visita Social, AESI, Alcalá de Henares, Espanha.
8 [Reunión de los Directores de los Centros Sociales], Roma, setembro de 1960 (tradução nossa), Pasta Visita Social, AESI, Alcalá de Henares, Espanha.
9 [Reunión de los Directores de los Centros Sociales], Roma, setembro de 1960 (tradução nossa), Pasta Visita Social, AESI, Alcalá de Henares, Espanha.
10 Compreendemos o anticomunismo em duas dimensões distintas, ainda que complementares: do ponto de vista das representações, trata-se de uma corrente de pensamento cujas fontes se encontram no Catolicismo, no Nacionalismo e no Liberalismo; no plano das ações, consiste num movimento político que se expressa na militância de grupos e indivíduos dedicados à luta contra o comunismo. Neste artigo, referimo-nos principalmente ao anticomunismo católico, cuja sistematização teve início em meados do século XIX com a encíclica Qui Pluribus, promulgada pelo papa Pio IX em novembro de 1846, tendo atingido sua formulação mais plena em março de 1937, com a publicação, pelo papa Pio XI, de uma encíclica especificamente “contra o Comunismo Ateu”, a Divinis Redemptoris. Para uma visão mais abrangente, consultar Motta, 2002.
11 Carta de Carlos de la Torre Uribarren a Xavier Enríquez. Torreón, 22 de dezembro de 1960 (tradução nossa), Pasta Correspondência de Carlos de la Torre Uribarren, Caixa CIAS, Archivo Histórico de la Compañia de Jesus en México (AHSJM), Cidade do México, México.
12 Carta de Manuel Foyaca a los Padres y Hermanos de las Províncias de México, La Habana, 1° de novembro de 1958 (tradução nossa), Pasta México, AESI, Alcalá de Henares, Espanha.
13 ¿Conversaciones con el Padre General? Roma, 21 de agosto de 1959 (tradução nossa), Pasta Antillas, AESI, Alcalá de Henares, Espanha.
14 Carta de Carlos de la Torre Uribarren al Padre Assistente Alberto Moreno, Torreón, 22 de novembro de 1961 (tradução nossa), Pasta Correspondência de Carlos de la Torre Uribarren, Caixa CIAS, AHSJM, Cidade do México, México.
15 Em sua primeira etapa, a Ação Católica Geral destinava-se a congregar os adultos de ambos os sexos em departamentos específicos (chamados de ramos), a saber: Homens de Ação Católica, Senhoras da Ação Católica, Juventude Masculina Católica e Juventude Feminina Católica. Em sua fase seguinte, a chamada Ação Católica Especializada passou a priorizar a atuação em meios sociais específicos (agrário, operário, estudantil, universitário), o que, de certo modo, reconhecia a divisão da sociedade em classes (cf. Manoel, 1999, p. 213). Assim, apesar de ter variado em função dos distintos contextos nacionais, no que diz respeito ao período a que se refere o presente artigo, a Ação Católica latino-americana era predominantemente de cunho especializado.
16 Por sinal, Manuel Foyaca afirmou que foi um “informe alarmante” do delegado pontifício acerca da situação do operariado na América Latina que teria convencido o padre Janssens a nomear um Visitador Social para o continente. Cf. Visita del Apostolado Social en América Latina, Pasta Visita Social, AESI, Alcalá de Henares, Espanha.
17 Carta de Carlos de la Torre Uribarren a Xavier Enríquez. Torreón, 22 de dezembro de 1960 (tradução nossa), Pasta Correspondência de Carlos de la Torre Uribarren, Caixa CIAS, AHSJM, Cidade do México, México.
18 Para a lista de participantes e o relatório da reunião, consultar Congreso Latinoamericano de los CIAS, Lima, 25 a 30 de julho de 1966, Pasta Reunión CIAS (Lima, 1966), Archivo Histórico de la Compañía de Jesús en la República Dominicana (AHSJRD), Santo Domingo, República Dominicana.
19 Temario oficial para la Reunión de los CIAS, Roma, 15 de julho de 1966, Pasta Visita Social, AESI, Alcalá de Henares, Espanha
20 Cf. Conclusiones del Congreso de los CIAS de América Latina, Lima, 29 de julho de 1966, Pasta CIAS-CLACIAS, AESI, Alcalá de Henares, Espanha. A formação acadêmica destes jesuítas diz muito acerca do perfil da nova geração: Hernán Larraín era formado em Psicologia pela Universidade de Munique, Nelson Queiroz em Ciências Sociais pela PUC-Rio, Jaime Martínez em Economia pela Universidade de Nova York e Francisco Dorta-Duque em Ciências Sociais pela PUG, com especialização em Economia Agrícola pela Purdue University, de Indiana (Estados Unidos).
21 Conclusiones del Congreso de los CIAS de América Latina, Lima, 29 de julho de 1966, Pasta CIAS-CLACIAS, AESI, Alcalá de Henares, Espanha.
22 A saber, Hernán Larraín, Nelson Queiroz, Jaime Martínez e o argentino Alberto José Sily, este último igualmente graduado em Ciências Sociais pela PUG.
23 Una toma de posición oficial de la Compañía respecto del conflicto social en Latinoamérica, Lima, 29 de julho de 1966, Pasta CIAS-CLACIAS, AESI, Alcalá de Henares, Espanha.
24 Estatutos de los Centros de Investigación y Acción Social (CIAS) de América Latina, Roma, 12 de dezembro de 1966, p. 1 (tradução nossa), Arquivo da Casa da Memória Popular (Campo), Salvador, Brasil.
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