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A ética da nulificação: práticas e representações do a-sujeitamento na literatura e no cinema

The ethics of nullification: practices and representations of a-subjection in literature and cinema

Frederico Osanan Amorim Lima
Universidade Federal do Piauí – UFPI, Brasil

A ética da nulificação: práticas e representações do a-sujeitamento na literatura e no cinema

História Unisinos, vol. 25, núm. 1, pp. 150-159, 2021

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

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Recepción: 15 Abril 2019

Aprobación: 09 Enero 2020

Resumo: Este artigo é o resultado de uma investigação sobre como a literatura e o cinema representaram as práticas de nulificação ao longo da modernidade. Ele procura dar uma compreensão sobre como as expressões artísticas, notadamente a literatura e o cinema, questionaram/questionam a condição de sujeição do homem moderno, revelando pontos de diferença e semelhança nos mecanismos de captura do corpo pelo poder. Trata-se de uma “genealogia da nulificação”. Um estudo que buscou, entre outras coisas, compreender como o comportamento, ao longo da modernidade, foi teorizado, ficcionalizado, apresentado e denunciado sob a óptica da nulificação, do dócil, da sujeição. Partindo, de um ponto de vista empírico, da obra de Étienne de La Boétie, passando por livros de Franz Kafka e chegando até um romance de Assis Brasil, no âmbito literário, e entre os filmes Aniki-bóbó (1942), Alphaville (1965) e o curta argentino El empleo (2008), no cinema, o propósito foi estudar, numa relação entre História, Literatura e Cinema, as práticas e representações do poder, e como elas se expressaram de formas variadas ao longo do tempo. Para compreender esta variedade de estilos, portanto, o artigo trabalha com uma noção ampla de literatura e cinema, como forma de dar vazão às experiências artísticas mais variadas de escrita e de filmagem. Teoricamente, a noção de nulificação é abordada à luz dos desdobramentos da obra do filósofo e historiador francês Michel Foucault.

Palavras-chave: História, Literatura, Cinema.

Abstract: This article is the result of an investigation into how literature and cinema represented the practices of nullification throughout modernity. It seeks to give an understanding of how artistic expressions, notably literature and cinema, questioned/question the condition of subjection of modern man, revealing points of difference and similarity in the power. It is a “genealogy of nullification.” A study that sought, among other things, to understand how behavior, throughout modernity, was theorized, fictionalized, presented and denounced under the optics of nullification, docile, subjection. From an empirical point of view, based on the work of Étienne de La Boétie, books by Franz Kafka and a novel by Assis Brasil, in the literary sphere, and between the films Aniki-bóbó (1942), Alphaville (1965) and the Argentine short film El employment (2008), in cinema, the purpose was to study, in a relation between History, Literature and Cinema, the practices and representations of power, and how they expressed themselves in varied ways over time. To understand this variety of styles, therefore, the article works with a broad notion of literature and cinema, as a way of giving vent to the most varied artistic experiences of writing and filming. Theoretically, the notion of nullification is approached in the light of the unfolding of the work of the French philosopher and historian Michel Foucault.

Keywords: History, Literature, Cinema.

Considerações iniciais

Esses autores e filmes, enfim, vão compondo uma representação estética do a-sujeitamento. A nulificação vai tornando-se visível em textos e filmes, apresentando-se de formas diferentes no tempo e mostrando sua presença marcante na história da modernidade. Uma nulificação que passa por uma cada vez maior racionalização no uso da linguagem, na construção dos sentidos sobre o mundo, do controle sobre o que deve circular enquanto discurso e em que meios eles devem ter valor e validade. Nessa genealogia da nulificação, a literatura e o cinema operam, assim, como meios a partir dos quais é possível pensar sobre as minúcias do poder, suas estratégias e astúcias. Mas, também, seguindo a trilha aberta pelo historiador francês Michel de Certeau, essas expressões literárias e fílmicas, ao denunciarem os locais de aprisionamento dos sujeitos, permitem pensar sobre as formas de se inventar, driblar, criar táticas e se rebelar contra a existência cotidiana dessas práticas disciplinares (Certeau, 1994). Esse parece ser um dos caminhos possíveis para se contranulificar.

Este não é um artigo feito com as regras habituais que geralmente cobramos de nossos alunos de humanidades. Ele não faz uso de um recorte temporal exato, não propõe o trabalho com um ou alguns sujeitos específicos e pode ser considerado amplo demais ao colocar em discussão áreas de conhecimentos tão abrangentes como História, Literatura e Cinema. Talvez porque o propósito não seja, necessariamente, realçar as especificidades de nenhuma destas disciplinas numa já clássica cobrança por verticalização de conhecimento; talvez porque o próprio tempo de duração de um conceito – o de “nulificação” que coloco aqui como central – não esteja articulado a uma única experiência de sociedade ou condição histórica; mas, talvez, e o que acredito ser mais forte, por ser tratar de um estudo que busca uma espécie de “constelação de singularidades”, expressa, portanto, num conjunto variado de expressões artísticas, mas com determinadas peculiaridades que as conectam.

Embora não trabalhe, propriamente, com a noção de longue durée, uma das formas de reconhecer certo sentido no que proponho é exatamente explicando/reconhecendo que existem certas teias de sensibilidades constitutivas dos sujeitos que atravessam as épocas (Braudel, 1995). Estas teias se fazem revelar em atividades artísticas e, também, em cartas, diários, jornais, na televisão e nas imagens, fotográficas ou fílmicas, das pessoas. Não é fácil explicar isso sem cair numa postura um pouco essencialista e/ou determinista; posturas, entretanto, que recuso e às quais me oponho visceralmente. Acredito, no entanto, que é possível reconhecer uma certa atmosfera sensitiva que atravessa cinco séculos de História, tornando possível identificar, nas expressões literária e fílmica, singularidades em meio a coisas aparentemente tão distantes. Essas singularidades são agrupadas em torno do conceito de “nulificação”. Mas é também em torno desta noção que é possível perceber certos deslocamentos, certas maneiras, astúcias, certas práticas de se conceber a sujeição. Assim, é um trabalho que parte da premissa de que a História é um processo mediado por continuidades, avanços, mas também por rupturas, cortes, descontinuidades, fraturas e recuos (Jenkins, 2007; Albuquerque Jr., 2004).

Esta História começa com o advento do que geralmente chamamos de modernidade. Expressão capciosa e escorregadia. Se utilizada no seu sentido conceitual mais fechado, representaria outro problema para a compreensão do que proponho. Daí a opção por dialogar com autores que reconheçam a modernidade como o período inaugurado pelo advento da ciência e da razão como pressupostos explicativos da condição humana e marcado pela emergência da própria racionalização dos comportamentos e controles sociais. Embora eu reconheça, conceitual e empiricamente, o advento de uma nova condição histórica a partir dos anos 1960/1970, já largamente definida como “pós-moderna”, para fins estritamente deste estudo, estou propondo um estudo das “práticas” e “representações” (Chartier, 1990) do a-sujeitamento na modernidade, compreendendo um espaço de tempo que pode ultrapassar os limites temporais que delineiam a separação entre a modernidade e a pós-modernidade (Koselleck, 2006; Harvey, 2007; Coelho, 2011; Guinsburg e Barbosa, 2005).

O último ponto de esclarecimento inicial diz respeito ao que proponho conceitualmente. Num longo percurso de análise da forma como os poderes interferem na constituição dos sujeitos, de Marx a Foucault, os conceitos variam entre “alienação” e “sociedade disciplinar”, entre poderes que agem da esfera econômica e macropolítica sobre o indivíduo e/ou dos micropoderes que, silenciosamente, operam sobre uma coletividade (Marx, 2013; Foucault, 2013). Nada novo, portanto, ao reconhecer que existe um grande número de estudos sobre as condições de a-sujeitamento que tanto tomam a esfera macro quanto a micro sobre o homem, que tanto defendem que as estruturas formam/anulam o sujeito quanto os micropoderes desfazem/fazem a condição de sujeitos no mundo. Quando lanço mão de um estudo sobre a “ética da nulificação”, parto, evidentemente, de noções já consagradas de filósofos, sociólogos e historiadores, a exemplo, especialmente, do historiador francês Michel Foucault. Sua extensa obra sobre os mecanismos de disciplinamento que operam nos sujeitos permite reconhecer formas bem variadas de como, ao longo do tempo, as pessoas eram/são disciplinadas, eram/são feitas obedecer, eram/são integradas a um sistema de vigilância e punição que objetivava/objetiva a constituição de um comportamento supostamente “normal”. Tento avançar a partir disto. Tento avançar partindo da possibilidade de construção de uma “genealogia da nulificação”, onde seja possível identificar, reconhecer, problematizar as obras, os livros, os filmes, as representações artísticas denunciadoras da condição de sujeição do homem moderno.

Mas o que é nulificação?

Em trabalho publicado recentemente, coloquei de forma ainda incipiente as maneiras como o comportamento nulificado se expressa na esfera literária e fílmica. Quando analisei o filme Aniki-bóbó, do cineasta português Manoel de Oliveira, tinha em mente a possibilidade de reconhecer no comportamento juvenil, expresso na atuação das crianças do filme, as marcas da docilidade e disciplinamento provenientes de uma educação pautada em preceitos de boa conduta e comportamento agregador. Acabei por concluir que a nulificação, neste filme como em muitas outras obras cinematográficas e literárias, se expressava

na repetição do bom compor­tamento, na continuidade da norma, nas pequenas obediências do dia a dia e na tensão criada à espera das consequências do que se fez ou falou. De um comportamento que é sentenciado pelo peso de uma lei que está para além dos tribunais e suas sentenças. De uma lei que prescinde o crime. Uma lei que sentencia uma vida a constantes obrigações. Uma lei que pune diariamente, que sutura o comportamento ao padrão e que faz dos olhares de reprova­ção de muitos verdadeiros tribunais em defesa de uma moral, de uma ética (Lima e Tavares, 2016, p. 287).

Em decorrência dessas questões iniciais, passei a pensar que as representações de uma sensibilidade dócil, nulificada, manifestada na produção escrita ou imagética de alguém e sobre algo, podem ser reveladoras das marcas e signagens disciplinares que prendem o homem a uma determinada cadeia de pensamentos e ações. Mais do que denunciar, criticar, desacreditar num modelo de sociedade, o que essa literatura e filmografia podem ensinar é como se libertar das amarras de uma sensibilidade histórica que normatiza os comportamentos, julgando o que deve e não deve ser aceito socialmente e, por extensão, retirando o peso da experiência como um dado significativo na constituição dos sujeitos.

No comportamento nulificado não cabe a experiência, eis o primeiro ponto. O nulificado é o sujeito desprovido de uma narrativa que o antecede, de uma História, de uma marca identitária, relacional, histórica e afetiva, de um projeto de vida ou de uma memória que explique a sua constituição. Não há prolongamentos em sua vida, como também não há processos nem tradição. O nulificado é a operação discursiva que corta o passado e eterniza a existência do sujeito/personagem num dado presente. Na literatura tanto quanto no cinema, o nulificado aparece num corte brusco dentro de uma narrativa. Como massa, ele aparece não como resultado de algo, mas como o algo de um resultado: formou-se o Estado, nasceu uma massa que se dobra aos devaneios do tirano, em Étienne de la Boétie (La Boétie, 2016).

A História do nulificado se desenrola em pequenos desvios punidos com o peso da consciência ou com a força do hábito apagando as singularidades da existência; a repetição leva à crença da normalidade no comportamento dócil, eis o segundo ponto. “Segue sempre por bom caminho” é a frase estampada na bolsa que Carlitos carrega todos os dias quando vai para a escola, no filme Aniki-bóbó (Aniki-bóbó, 1942). Discursivamente, além de impositiva, a frase sugestiona um trajeto acertado, um caminho, um traçado já previamente definido como arauto para o bom comportamento. A-sujeitar-se é, também, uma expressão no universo literário e fílmico do poder e da força da coação moral sobre os corpos infantis.

Por fim, as representações do nulificado se inserem num cenário de silenciamento da indignação, de apatia, de ausência argumentativa, de falta de estímulo ou de gestos combativos. O nulificado se encerra em si mesmo, se torna acuado, passivo, oprimido por forças externas à sua vontade ou preceitos morais, por incapacidade de se comunicar com o mundo ou, simplesmente, por preguiça. Daí por que tomar a nulificação como um dado ético, prático, tomado pelo movimento, pela ação, pela manifestação de comportamentos, valores e práticas que, embora se manifestem de formas variadas ao longo do tempo, se coadunam em torno dos elementos apontados acima.

Entre uma massa amorfa, inerte e um sujeito passivo e obediente: fluxos nulificantes

O universo servil construído por La Boétie é homogêneo e natural. Nele o poder atinge a todos uniformemente e o faz sem questionamentos. Sob o fulcro do hábito e para dar apoio e alicerce às tiranias, uma servidão coletiva se anuncia como manifestação da própria legitimidade estatal. Uma servidão que coexiste com o desejo de controle absoluto sem o confronto e a contradição. Uma servidão, por fim, que reside na vontade de servir para se satisfazer.

Étienne de la Boétie, um francês do século 16, escreveu um daqueles textos que causa espanto pelo próprio título que carrega. Discurso sobre a servidão voluntária (2016) – publicado pela primeira vez em 1576, embora já circulasse como panfleto antes –, assombra porque torna a obediência um ato espontâneo, livre, desvinculado de um poder direto e opressor. Causa assombro, também, porque, num momento em que nasce a própria concepção de poder numa esfera institucional, alguém questiona não os limites de sua existência, mas a apatia da massa em aceitar a sua eficácia. Sem saber, La Boétie, contemporâneo da consolidação dos Estados modernos, escrevia um discurso denunciando a servidão leniente e voluntária que se imiscuía na sociedade, ao mesmo tempo que colocava em evidência, pioneiramente, as múltiplas facetas da nulificação moderna.

Tratava-se, temporalmente, do mesmo século 16 que viu ressurgir a fisiognomia. A “ciência das paixões” ou a “ciência do rosto” é aquela que colocava como possível a decifração do universo interior do homem pelos seus traços e expressões faciais. Esta prática, defendida e amplamente difundida no corpo social europeu, correspondia a uma nova forma de “controle social do homem interior”, que se dava com a “instauração do Estado absolutista e constituição progressiva de uma sociedade civil concebida segundo o modelo de corte” (Courtine e Haroche, 2016, p. 42-45). Nesta prática, o homem se individualizava, se tornava diferente do todo e de cada um ao seu redor. Pelos traços do seu rosto, pelo formato dos seus olhos, boca e nariz, era possível definir seu caráter, seu temperamento, suas habilidades. A fisiognomia funcionava, ainda, como instrumento de singularização dos homens, da mesma forma em que possibilitava a criação de verdadeiros estigmas sociais.

La Boétie, ao contrário dos fisiognomistas, não procurou decifrar o controle social partindo do indivíduo, do que individualizou o homem. Ao contrário, ele construiu um universo de controle absoluto, total, onde não é possível identificar rostos nem características individualizadoras; onde não é possível reconhecer a existência de vontades particulares, de desejos ou experiências pessoais; onde é possível, portanto, desconsiderar a própria noção de indivíduo. No Discurso sobre a servidão voluntária, a obediência não é dedicada a uma pessoa em particular, mas ao grupo, à coletividade. Trata-se do “povo”, da “nação”, dos “camponeses”, dos “lavradores”, de “toda a gente” (La Boétie, 2016).

Chistoso é considerar o que eles ganham com tamanho tormento, o que podem esperar dos trabalhos que passam e da mísera vida que levam. Porque o povo gosta de acusar dos males que sofre não o tirano mas os que o acolheram: os povos, as nações, toda a gente à porfia, incluindo os camponeses e os lavradores, todos sabem os nomes deles e os respectivos vícios; sobre ele lançam mil ultrajes, mil vilanias, mil maldições (La Boétie, 2016, p. 59).

A obra de La Boétie aponta para uma prática da obediência que deriva do costume, de um exercício reiterado de sujeição onde subjaz um passado de liberdade. A “naturalidade” em obedecer, a costumeira aceitação das condições sociais e da incapacidade de rebelar-se parte, portanto, da própria força do hábito: “provam-no os cavalos que ao princípio mordem o freio e acabam depois por brincar com ele; e os mesmos que se rebelavam contra a sela acabam por aceitar a albarda e usam, muito ufanos e vaidosos, os arreios que os apertam” (La Boétie, 2016, p. 38).

Étienne fala de um poder “dado”, concedido, de uma faculdade de domínio que só deveria existir enquanto houvesse harmonia entre as massas e seus governantes. Ele fala de um governo tirânico que maltrata, que oprime não porque é maioria ou pelo uso excessivo da força, mas pela própria leniência da sociedade governada. Isso é o que assombra:

Digno de espanto, se bem que vulgaríssimo, e mais doloroso do que impressionante, é ver milhões de homens a servir, miseravelmente curvados ao peso do jugo, esmagados não por força maior, mas aparentemente dominados e encantados apenas pelo nome de um só homem cujo poder não deveria assustá-los, visto que é um só, e cujas qualidades não deveriam prezar, porque os trata desumana e cruelmente (La Boétie, 2016, p. 18).

O Discurso sobre a servidão voluntária incomoda menos pelo que foi e mais pelo que é. Sua importância segue o movimento do requinte das tecnologias do poder. Quanto mais se investe nas minúcias do controle, mais o Discurso aborrece. Quanto mais o poder se esconde em vantagens, em camaradagens, na cumplicidade e nas levezas gestuais de um dedo apontado ou de um olhar de reprovação, tanto mais a obra de La Boétie se faz necessária.

Étienne pensou o texto como uma reflexão sobre o seu tempo; por isso, tratou do poder como um dado macrológico, vinculado a um elemento institucionalizado que acabava de surgir; eu sugiro pensar o tempo como moldura rizomática para sua obra: a cada novo fazer político, o Discurso, como um rizoma, se transforma, ganha potência, se adapta, cria e permite novos sentidos (Deleuze e Guattari, 1995).

Lido a contrapelo, ele sugere um comportamento obediente que se desloca de uma esfera grupal e coletiva para uma dimensão micro e individual. Ele lança, aponta, projeta um olhar para o futuro onde vislumbra uma sociedade de obedientes que têm sua liberdade tomada de assalto sem perceber. É nesse sentido que, num salto de quase 400 anos, é possível aproximar Étienne de la Boétie do escritor tcheco Franz Kafka.

Kafka, escritor mundialmente conhecido pela narrativa do homem que acordou no corpo de uma barata, em A metamorfose, deu ares individuais a uma narrativa de nulificação que se processava em coletividade na obra de Étienne. Kafka individualiza a pena, a sujeição, a marca do poder recaindo sobre um corpo, um indivíduo. O escritor tcheco inventa o “indivíduo” num romance de nulificação. Ele dá um nome, uma narrativa, constrói um destino e move o personagem dentro de uma ação. Ele dá sentido e vida a este sujeito nulificado.

Franz Kafka, contemporâneo daquilo que Michel Foucault chamou de sociedade disciplinar, repercutiu, literariamente, o atravessamento do poder no corpo social (Foucault, 1979; 2013). De um poder sem centro, sem lugar definido, mas formado, sobretudo, por uma rede de saberes. No corpo de Josef K, em O processo, obra de 1925, ou na exasperante narrativa do homem que passa fome para animar multidões, em O artista da fome, o que circula é a ideia de que o “poder penetrou no corpo, encontra-se exposto no próprio corpo” (Foucault, 1979, p. 146).

No corpo e no processo de Josef K. a sujeição ganha sentido literário (Kafka, 2005). K., um funcionário bem conceituado de um banco, num dia comum acordou e sentiu falta do seu desjejum. A cozinheira, que pontualmente trazia seu café da manhã, “não se apresentou no quarto de K.”. Quem bateu à sua porta foi um homem de “tipo esbelto, porém de aspecto sólido, que vestia um traje negro e justo” (Kafka, 2005, p. 37). Josef hesita em recebê-lo. Questiona a presença do homem em seu quarto, faz perguntas, mas é sempre ignorado. O máximo que consegue é saber que estava detido! Que respondia, a partir daquele momento, a um processo. O que se segue, entre licenças para falar e situações surreais de cumprimento da lei, é a constante e cada vez maior aceitação de anulação por parte de Josef K. Ao final, numa “cena” de profunda consternação com sua debilidade diante de quem o oprimia, K. se entrega, mas faz isso com um gesto de extrema lucidez sobre as forças que corromperam seu julgamento. Tudo foi uma farsa! Tudo que recaía sobre ele era tão leviano que cabe ao próprio acusado o encargo de saber o que era necessário fazer.

“A única coisa que agora posso fazer”, disse a si mesmo, e a medida de seus passos em acordo com a dos passos dos outros dois confirmava seu pensamento, “é manter até o fim sereno e claro meu entendimento. Sempre quis conduzir-me no mundo com vinte mãos e além disso pretendi alcançar objetivos não muito razoáveis. Isso estava mal, e agora terei de mostrar que nada me ensinou um ano de processo? Deverei ir-me como um homem de curto entendimento? Terei de deixar-me dizer que no começo do processo eu queria já terminá-lo e que agora, em seu final, quero tornar a começá-lo de novo? Não quero que se diga isso de mim. Festejo o fato de que me tenham dado por acompanhantes na presente etapa a estes senhores meio mudos, faltos de inteligência e que se tenha deixado a mim mesmo o encargo de dizer o que é necessário fazer” (Kafka, 2005, p. 251).

A última frase de K. no livro, encurvado para seu algoz, depois de abatido no peito como um animal, depois de alimentar uma última esperança de que haveria, de fato, justiça, foi um envergonhado sussurro de lamento: “como um cachorro!”. Morreu como um cão. Ajoelhado, conduzido e morto por dois patéticos senhores aplicadores da lei. Abatido numa pedreira e de frente para uma casa onde um homem sisudo se inclinou para fora de sua janela estendendo os braços e nutrindo algum tipo de expectativa em K. “Como um cachorro!”. A expressão de Kakfa sinalizando o fim acuado de seu personagem principal acaba conectando o escritor tcheco com o romancista brasileiro Assis Brasil, autor de Os que bebem como os cães (Brasil, 2013).

A narrativa de Francisco de Assis Almeida Brasil, em Os que bebem como os cães, publicada pela primeira vez em 1975, gravita em torno da construção metafórica de dois espaços, intermediados por uma sensibilidade e emendados por uma pergunta renitente. Dois espaços que trazem à tona sensações ambivalentes, que produzem imagens contraditórias, que sugestionam sobre tempos diversos. Uma sensibilidade que lembra agonia, exasperação, alerta. Por fim, uma pergunta aparentemente banal. Os espaços são a cela e o pátio. Espaços que são signos/metáforas de uma história da violência que está para além das prisões, das leis, das normas e dos poderes institucionalizados. A sensibilidade é a de um prisioneiro alardeado por um imenso desconforto. De um prisioneiro que tinha as mãos acorrentadas para trás sempre que estava na cela, com os ratos remexendo sua comida e uma escuridão absoluta. A pergunta, sempre entalada no hiato existente entre a refeição e o banho era: é inútil gritar?

A história de Jeremias, personagem principal do livro de Assis Brasil, começa, como a de Josef K., com uma ruptura. Trata-se de narrativas da nulificação construídas escamoteando o passado dos personagens, sumindo com ele e com toda a experiência de vida. No início, um acontecimento, uma prática que se altera, “que sai da rotina, que se diferencia da ordem, que emerge, que irrompe diferencialmente num horizonte de continuidade e repetição” (Albuquerque Jr., 2004, p. 18).

Jeremias acorda numa cela escura, com os braços algemados para trás das costas. Apalpa o chão com o corpo, sente o “uso” da terra, seu cheiro de mofo e urina. O incômodo das mãos nas costas perfaz todo o cenário de violência e desumanidade. Uma violência que continua com o esparadrapo na boca, com o berro dos guardas, com uma “voz que não tinha cor, mas penetrava na carne e feria”, com o silêncio ocasional e com o grito dos outros presos no pátio (Brasil, 2013, p. 46).

A história de Assis Brasil é a da desumanidade enquanto instrumento de nulificação. Se em La Boétie é o Estado que oprime as massas e elas se nulificam ao não reconhecer seu poder; se em Kafka são os processos de socialização com seus microfascismos que disciplinam os corpos, em Assis Brasil é a retirada do que se considera humano, o desprezo e a pouca compaixão pelo próximo que são os elementos capazes de a-sujeitar o indivíduo. É necessário desumanizar, retirar o lastro de alegria, potência, de dignidade, de decência. Jeremias “lembrou-se de que precisava comer ou urinar ou falar ou gritar”, embora o incômodo da sua posição tornasse qualquer necessidade fisiológica uma dor menor (Brasil, 2013, p. 7). A desumanidade que opera no descontrole temporal, no descompasso da medição do tempo, no compasso do tempo medido em função de sua própria penúria:

Assim concluiu: era noite, e como o frio apertava na espinha agora, concluiu: era madrugada, e como o cheiro do ar entrava em suas narinas, filtrado através do que quer que fosse, concluiu: a manhã estava próxima, e como o estômago reclamava o vazio estertor, concluiu: faz mais de vinte e quatro horas que não me alimento (Brasil, 2013, p. 8).

Uma crueldade que começa no tipo de enunciação que o espaço constrói sobre o corpo de Jeremias. Aqui, a maquínica do poder opera no nível sensorial dos espaços, tornando-os máquinas enunciativas (Guattari, 1992); elas que embalam o nosso self, que produzem os nossos afetos abstratos, que animam as enunciações espaciais e fazem colidi-las com as corporais em termos de agenciamentos. Assim, Assis Brasil representa o universo nulificado de Jeremias reconhecendo que a sua percepção sobre as coisas tem a ver com a sensação de descompasso do tempo e a construção subjetiva do espaço dentro dele. Trata-se de como o seu corpo percebe o espaço: “A opressão do cubículo estava em seu corpo, em seus poros” (Brasil, 2013, p. 7).

Jeremias, personagem signo desta distopia metafórica canina, é alguém que descobre seu entorpecimento. Descobre que as prisões estão para além das celas. Descobre que as “algemas eram a cadeia menor do confinamento – elas ditavam a imobilidade, a consciência de que não podia mexer o corpo” (Brasil, 2013, p. 68). Descobre que o próprio isolamento na prisão, em si, que os muros e grades que o rodeiam, podem ser mais confortáveis e libertadores que a permanência em silêncio ao lado de outros prisioneiros no pátio.

O suicídio de Jeremias, no final do livro, se esquiva do discurso amorfo de que a morte intencional é produto de uma esperança de vida melhor à frente. Num espaço onde as palavras ganham novos significados; num lugar onde os sentidos – olhar, sentir, apalpar – dão novo escopo e valores para a linguagem, muito se perde em humanidade pela própria castração da fala e da subversão das palavras – “sim, havia esta luta: de um lado as palavras cunhadas pelos homens: esperança, liberdade, amor, Deus. Do outro, a recusa em aceitar pacificamente a sua harmonia, o seu equilíbrio” (Brasil, 2013, p. 49). Num jogo mordaz de aprender/lembrar palavras, Jeremias se frustra, se angustia, se esfacela em medos, em incompreensões, em apatia. Por fim, lembra o que significa a palavra Deus. Mas, se nesse cenário que exaspera barbaridade Deus é uma das primeiras palavras a fazer sentido para Jeremias, ela é também uma das primeiras a se esvaziar de significados.

Aniki-bóbó, Alphaville, El empleo: repositórios de nulificação, medos e vivências controladas

Três filmes diagnosticam as subjetividades contemporâneas quando se trata de nulificação. Dois filmes e uma animação, precisamente. É claro que outros tantos são candidatos a vetores, exemplos, portadores de marcas da sujeição ou anunciadores de um mundo mediado por estratégias de poder que condicionam nossa existência, que nos transformam em algo diferente do que seríamos sem os arautos e meandros do poder. Mas escolhi três filmes que dialogam com sociedades diferentes, com enredos bem distintos, e que são produtos de racionalidades diversas e resultados de angústias e problemas de épocas com muitas singularidades. Porém, mesmo assim são produtos de uma sensibilidade semelhante, de uma sensibilidade rasteira, que trai nossos sentidos; de uma sensibilidade que nos faz submetidos, por um maior e/ou mais delicado trabalho, a pensar, agir e falar mediados por uma vontade ou interesse alheio. O que esses filmes denunciam – como tantos outros são também capazes de fazer – é que estamos inseridos numa grande teia dominante de pensamentos, valores e imposições sutis e delicadas.

O primeiro deles é um filme português apresentado, pela primeira vez, em 1942. Dirigido e produzido por aquele que é, para grande parte da historiografia do cinema mundial, a principal referência no cinema português, Aniki-bóbó, de Manoel de Oliveira, passou despercebido quando foi lançado, ficou no marasmo durante mais de duas décadas para depois ressurgir, no início dos anos 1960, como arauto do “novo cinema português” (Lima, 2016).

Inicialmente foi tratado como um filme sem propósitos revolucionários. Depois ganhou status de pioneiro e antecessor do neorrealismo. Entre as duas condições, seu diretor, Manoel de Oliveira, viveu no ostracismo, parou de filmar, mas reapareceu, junto com o filme, para se tornar a maior referência no cinema português e um dos cineastas mais ativos no mundo até sua morte, em 2015 (Lima, 2016).

Entre seus mais de 50 filmes dirigidos e produzidos, incluindo curtas, médios e longas, Aniki-bóbó merece um destaque. Não porque foi o mais assistido ou reverenciado pelas críticas, mas porque dá ares cinematográficos a uma condição de sujeição do homem na primeira metade do século 20. E faz isso construindo uma narrativa com crianças, mostrando que o poder se interessa pela formação, pela educação de gestos e comportamentos quando eles ainda estão em processo de constituição

A narrativa de Aniki-bóbó é relativamente simples. Crianças brincam, brigam e dois meninos se desentendem por conta de uma garota. No centro da trama, a defesa da boa conduta como gesto que deve guiar as ações das crianças menos afortunadas. Escamoteando a trama, o olhar enviesado sobre a moral que solidifica, em frases, a conduta e comportamento ideal para a sociedade portuguesa dos anos 1940. Em torno de Carlitos, Teresinha e Eduardito, se desenrola uma narrativa de punições, obrigações, produção de medos e definições simbólicas do próprio lugar social de cada um. Carlitos, por exemplo, personagem pouco afortunado, precisa demonstrar o amor que sente por Teresinha oferecendo-lhe uma boneca. Eduardito, forte e afortunado, garante sua condição de supremacia oferecendo atrevimento e proteção. Entre os três uma questão principal: como a moral produz corpos que (des)agregam?

Carlitos, garoto franzino, sem posses, imerso em uma tradição familiar que repete em gestos e expressões a ideia de que os valores e princípios são declarações de dignidade, bem mais que o dinheiro, se apai­xona por Teresinha. Eduardito, criança mais forte e trajando vestimentas que denunciam um lugar de classe mais favorecido, também sente atração por Teresinha. O embate, sustentado em uma narrativa tradicional de conquis­tas amorosas, com direito a disputas, ofensas e brigas, terá como móbil uma boneca. Teresinha, única criança com papel de mulher no filme, se encanta por uma boneca posicionada no centro da vitrine de uma loja. Carlitos reco­nhece no brinquedo a possibilidade de ter a atenção de Teresinha e afastar a ameaça de Eduardito (Lima e Tavares, 2016, p. 290).

Aniki-bóbó envolve uma miríade muito sensível de temas que arrastam para o centro da narrativa a constituição de uma teia de sensibilidades acuadas. Sensibilidades que afloram na sociedade portuguesa e, especialmente, na portuense da década de 1940. Mas, mais do que realçar as condições de existir de uma parcela da sociedade europeia na primeira metade do século 20, o que o filme gera de possibilidade é pensar sobre os micropoderes que agem sobre crianças produzindo sujeitos dóceis e maculados pela moral. O imperativo dessa nova condição de sujeito nulificado que aparece no filme segue um preceito moral. Ele está presente, por exemplo, na bolsa que Carlitos carrega quando sai de casa. Nela, inscrito em letras grossas, está a frase: “segue sempre por bom caminho”. Esse preceito continua nos castigos, nos olhares dos adultos, nas punições do professor e na repetição da frase, pelos alunos, como castigo: “não torno a faltar à escola”.

Imagem 1 – Carlitos carregando a bolsa com a inscrição “segue sempre por bom caminho”. Fotograma de Aniki-bóbó, 1942 Picture 1 - Carlitos carrying the bag with the inscription “always follows on  a good path”. Frame of Aniki-bóbó, 1942.
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Imagem 1 – Carlitos carregando a bolsa com a inscrição “segue sempre por bom caminho”. Fotograma de Aniki-bóbó, 1942 Picture 1 - Carlitos carrying the bag with the inscription “always follows on a good path”. Frame of Aniki-bóbó, 1942.

Em Aniki-bóbó, da ingenuidade infantil se constrói uma história de aprendizado e enquadramento social. Carlitos, no afã de conseguir a atenção de Teresinha, rouba a boneca. Entrega-a para a garota e momentaneamente desperta o interesse dela. Numa cena posterior, acidentalmente Eduardito cai de uma ribanceira na continuidade de uma briga com Carlitos. Os olhares de acusação recaem sobre Carlitos. Como a cumprir com a prescrição, crianças são castigadas pelo acidente, Carlitos cai em desgraça, e só a lição e moral dos adultos, representada na figura do dono da loja que teve a boneca roubada, para se restabelecer a norma e o enquadramento das crianças na ordem prevalecente. As crianças prefiguram homens em formação que precisam se encaixar, adaptar, moldar aos preceitos da sociedade adulta. E, mais que isso, as crianças pressagiam um universo onde a moral adulta deve intervir. A justificativa, móbil que dá sentido ao enredo do filme, é de que, sem a intervenção adulta, as crianças se tornariam adultos ladrões, corruptos, manipuladores e de conduta duvidosa.

Pouco mais de duas décadas separam Aniki-bóbó do filme francês Alphaville, de Jean-Luc Godard (Alphaville, 1965). Em Alphaville, filme de 1965, o controle recaía sobre o domínio da linguagem e da atmosfera urbana. Alphaville, expressão que significa o próprio espaço habitado por seres controlados, é a grande metáfora godardiana para o controle que se processa por uma tecnologia renovada, mecanizada, uma tecnologia que usa, além dos computadores, o governo das palavras, do que pode ou não ser dito e do que pode ou não significar cada palavra proferida. Novamente Foucault se faz contemporâneo da percepção de uma condição histórica. Dessa vez não para definir o conceito que explica uma sociedade, mas para dizer, com a publicação de As palavras e as coisas – obra contemporânea a Alphaville –, que os objetos ganham sentido através do uso e poder da linguagem (Foucault, 1999). Isso é muito significativo para entender um filme onde a simples palavra “amor” é motivo de condenação à morte. Não se tratava de definir o sentimento, mas de entender que, por trás da própria tentativa de sentir, existe uma potência criadora que precisa ser lapidada, anulada e, se possível, destruída. Palavras somem e outras não assumem o seu lugar.

Enquanto uma contra-história sensitiva da linguagem dos anos 1960, Alphaville expõe, ao contrário do que se viveu na maior parte do Ocidente no mesmo período, o dilaceramento da linguagem numa tentativa de reduzir os significados dos objetos e sentimentos existentes no mundo. Palavras são arrancadas dos dicionários, assim como dos seus sentidos são subtraídos comportamentos, tudo passando a ser dado por uma ciência de informações plenamente racionais. Em Alphaville, a destruição, seja no âmbito da linguagem ou das práticas de vida, é a regra.

No filme de Godard, a cidade era um imenso empório monolítico em preto e branco. Circulando por entre ruas sem cor e cheiro, homens e mulheres de expressões embrutecidas, silenciados pela máquina e contaminados pelo totalitarismo do Estado. Num cenário onde se misturam o sombrio e o sublime, uma voz rouca sutura os estrangeiros ao sistema, costura seus desvios ao padrão, disciplina sua fala tosando a linguagem e instaura uma nova forma de viver que suprime toda manifestação de ação sentimental.

Godard, como nos discursos literários que o antecederam, não deixa claro a partir de que catástrofe Alphaville nasceu. Mas ela nasce com o suporte do medo, do algoritmo ausente, da acuidade e da possibilidade de gerar uma vida sem sofrimentos, portanto, melhor do que se supunha ser a vida de antes. Ela nasce apoiada no discurso de paz, de não violência. Como um elemento subjacente à política, referendado num discurso de manutenção da paz, um poder mais explícito, coercitivo, direto. Seja fruto de um confronto entre as nações portadoras de arsenais nucleares – o que expressaria claramente um dos indicadores da Guerra Fria – ou fruto de vontades ou interesses políticos de dominação, Godard indica um caminho para entender o problema do controle do corpo pelas novas formas de governo; do controle do corpo pelas novas tecnologias e suas matrizes mais engenhosas; e lança, por fim, uma pergunta: nós temos ainda algum poder sobre o corpo ou os mecanismos de poder nos disciplinam por completo?

Alphaville é, também, a contra-história sensitiva do corpo dos anos 1960. Enquanto nesta década os corpos e comportamentos afloravam em gestos escandalosos e deselegantes, com o mínimo de pudor e o máximo de exotismo (Castelo Branco, 2005), Jean-Luc Godard constrói para o cinema uma narrativa com corpos acuados, desprovidos de sentimentos, fechados e castrados de sensibilidades. Numa cidade onde os homens expressam uma antimetáfora da vida, em vez de complexa e multifacetada, ela é reduzida a um punhado de ações, a comportamentos já preconcebidos e valores determinados e controlados por aquela que viria a se tornar no cinema e em grande parte da literatura recente a grande vilã da nossa era: a tecnologia e o seu desmembramento mais fascinante, o computador.

O último e expressivo filme dessa condição moderna de a-sujeitamento é, na verdade, um curta que poderia ser alçado à condição de arauto de uma sensibilidade pós-moderna de nulificação. El empleo, curta do argentino Santiago Grasso, lançado em 2008, pode ser lido como um filme de verve marxista, mas, também, encontra acolhida numa vertente mais niilista da nossa condição de trabalhadores. Na história de um “homem” comum, como qualquer operário ou profissional, encontra-se a medida das transformações das tecnologias de poder no corpo dos indivíduos.

No universo metafórico/real de El empleo, os objetos e suas ações são desenvolvidos e executados pelo corpo de um homem. Um chão para pisar, um carro para andar, uma cadeira e um tapete; todas as ações desenvolvidas no uso desses objetos sendo executadas por homens. A dominação e controle se expressam na própria incorporação do objeto pelo seu significado; no homem traduzido no objeto e incorporando seu significado; no homem que muda de significado para ser objeto com algum significado definido pelo poder de quem define o seu sentido.

O enredo do curta é simples: trata-se de descrever a monótona – e aparentemente repetitiva – vida de um “trabalhador”, do momento em que ele acorda até sua chegada ao trabalho. No desenrolar da trama, pessoas se cruzam sem se olharem; pessoas se olham sem se enxergarem. Num cenário desprovido de som e com poucas cores, humanos, demasiados humanos, estão alienados, transvestidos de gente e transformados em objetos. Humanos, demasiados humanos, servem para pendurar, segurar lustres, roupas, servem de cadeira, mesa e para se pisar.

No filme, não se trata de reconhecer a existência ambígua entre homem e máquina como certa literatura já apontou como elemento constitutivo do cenário pós-moderno (Tadeu, 2009); nem de colocar o homem numa sujeição de trabalho análoga à escravidão, algo que marcaria com certa magnificência o universo laboral na contemporaneidade. Mas El empleo vai além. Ele não só desumaniza o homem como retira-lhe a alma, o espírito que garantia sua condição de superioridade em relação aos seres inanimados. O “homem” deixa de ser o motor da coisa para com ela confundir-se. Ele se torna engrenagem, peça, fluido, corrente, energia, perdendo completamente sua expressão afetiva, cognitiva, sentimental. A figura humana se desfaz. O que se recompõe é um mundo pseudo-humano inanimado. Estamos diante de um homem inorgânico.

Esse conjunto de três filmes desafiam nossa percepção de liberdade e realçam os limites de nossa própria existência em sociedade. Ao mesmo tempo que denunciam as sutilezas que comprometem nossa liberdade, promovem um alento de resistências e abolicionismos. São filmes que tratam da moral, da tecnologia, da linguagem e do trabalho como instrumentos de captura individual e coletiva; que revelam as nuances por trás dos discursos em defesa da honestidade, da paz social, da dignidade e do uso dos saberes e suas tecnologias políticas. Filmes, portanto, que, embora não necessariamente explicitem as amarguras de uma vida articulada às cadeias dominantes de pensamento, apontam para os mecanismos que tornam possível a construção de uma sociedade apática e desprovida de ação.

Considerações finais

Na trilha de La Boétie, Kafka e Assis Brasil, procurei fazer da nulificação um tema de estudo. Nos filmes busquei as múltiplas imagens que os homens elaboraram sobre sua condição de a-sujeitamento, produzindo espectros ou revelando suas marcas de sujeição no corpo, na linguagem ou nos seus comportamentos. Partindo de uma perspectiva de anulação do sujeito imerso numa coletividade, as tecnologias do poder e as representações da nulificação expressas em textos e filmes denunciaram, ao longo do tempo, uma cada vez maior psicologização do sujeito, uma maior individualização das culpas que produzem corpos dóceis e um a-sujeitamento com marcas individualizadas, personificadas.

Do interior de um dispositivo de disciplina que aparece para dominar as massas, surge uma tecnologia capaz de domesticar o indivíduo, exigindo cada vez mais silêncio, mais presteza e docilidade. A nulificação, que era produto de uma contemplação ao rei, ao governante, ao príncipe, no século 16, se acomoda, no século 20, sob preceitos morais, sob o trabalho, a vida digna e as hierarquias sociais. De um alucinado domínio exercido pela força do soberano para um conjunto de alucinógenos que entorpecem as sensibilidades individuais tornando os indivíduos meros seres praticantes obedientes na cidade. Não há lugar onde a força de uma representação da nulificação não se tenha feito presente na literatura e no cinema. Na rua, na praça, na prisão, na escola, nas atividades laborais, no interior das casas, em todos os lugares, os livros e filmes deram manifestações de que o nulificado não é um dado isolado. Ele faz parte de uma subjetividade obediente, de uma ética que se desdobra dos dispositivos educacionais, institucionais, religiosos e políticos. Ele caminhou no sentido de individualizar cada vez mais as práticas.

Michel Foucault nos lembra que a própria noção de “autor” surge na modernidade como uma forma de individualizar a fala, o texto, o comportamento e a vigilância sobre si próprio (Foucault, 2006). O que as marcas do a-sujeitamento ao longo da História denunciam, a partir desses livros e filmes, é aquilo que o próprio Foucault já havia assinalado em vários textos: o aperfeiçoamento das tecnologias de poder torna o disciplinamento dos corpos um cuidado de si permanente.

Esses autores e filmes, enfim, vão compondo uma representação estética do a-sujeitamento. A nulificação vai tornando-se visível em textos e filmes, apresentando-se de formas diferentes no tempo e mostrando sua presença marcante na história da modernidade. Uma nulificação que passa por uma cada vez maior racionalização no uso da linguagem, na construção dos sentidos sobre o mundo, do controle sobre o que deve circular enquanto discurso e em que meios eles devem ter valor e validade. Nessa genealogia da nulificação, a literatura e o cinema operam, assim, como meios a partir dos quais é possível pensar sobre as minúcias do poder, suas estratégias e astúcias. Mas, também, seguindo a trilha aberta pelo historiador francês Michel de Certeau, essas expressões literárias e fílmicas, ao denunciarem os locais de aprisionamento dos sujeitos, permitem pensar sobre as formas de se inventar, driblar, criar táticas e se rebelar contra a existência cotidiana dessas práticas disciplinares (Certeau, 1994). Esse parece ser um dos caminhos possíveis para se contranulificar.

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Notas

1 Universidade Federal do Piauí – UFPI, Programa de Pós-Graduação em História do Brasil/PPGHB. Campus Universitário Ministro Petrônio Portela, Bairro Ininga, 64049-550 Teresina, Piauí, Brasil
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