Acervos e Fontes

Resgatando memórias: a experiência dos(as) historiadores(as) na preservação de processos judiciais no Rio Grande do Sul

Recovering memories: the experience of historians in the preservation of lawsuits in Rio Grande do Sul

Marluza Marques Harres
Universidade do Vale do Rio dos Sinos., Brasil
Marcelo Vianna
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, Brasil
Cristiano Enrique de Brum
Coordenação do Grupo de Trabalho História e Saúde da Anpuh-RS, Brasil
Luciana da Costa de Oliveira
Universidade do Vale do Rio dos Sinos., Brasil

Resgatando memórias: a experiência dos(as) historiadores(as) na preservação de processos judiciais no Rio Grande do Sul

História Unisinos, vol. 25, núm. 1, pp. 172-185, 2021

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Concedo a Revista História Unisinos o direito de primeira publicação da versão revisada do meu artigo, licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution (que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista). Afirmo ainda que meu artigo não está sendo submetido a outra publicação e não foi publicado na íntegra em outro periódico e assumo total responsabilidade por sua originalidade, podendo incidir sobre mim eventuais encargos decorrentes de reivindicação, por parte de terceiros, em relação à autoria do mesmo. Também aceito submeter o trabalho às normas de publicação da Revista História Unisinos acima explicitadas.

Recepción: 24 Octubre 2019

Aprobación: 12 Diciembre 2019

Resumo: A atuação dos historiadores na Comissão Interdisciplinar de Preservação de Processos Judiciais Aptos a Descarte (COMINTER) tem sido conhecer e preservar o acervo de processos judiciais sob a guarda do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. Apresentamos aqui um breve relato de experiência a partir da nossa atividade de preservação junto ao acervo do Judiciário. De 2011 até o final de 2018 foram analisados processos cíveis e criminais nos quais os historiadores identificam possibilidades de pesquisa histórica a fim de justificar sua preservação entre as diferentes tipologias de processos analisados (como falências, cobrança de impostos, dívidas bancárias, guarda familiar, etc.), definindo-se critérios de descarte ou de guarda. Com o intuito de apresentar parte do acervo, selecionaram-se, para o presente relato, processos analisados pelos membros da COMINTER, apontando o potencial da documentação do Tribunal de Justiça e os possíveis interesses de pesquisa nos diferentes campos da história a partir de estudos de caso.

Palavras-chave: s: História Social, arquivos, processos judiciais, Poder Judiciário, preservação documental.

Abstract: The role of historians in the Interdisciplinary Commission for the Preservation of Disposable Lawsuits (Comissão Interdisciplinar de Preservação de Processos Judiciais Aptos a Descarte – COMINTER) has been to get to know and preserve the collection of lawsuits under the custody of the Rio Grande do Sul Judicial Branch. We present here a brief experience report based on our preservation activity in the Judicial Branch’s collection. From 2011 to the end of 2018, historians analyzed civil and criminal lawsuits in which they identified possibilities for historical research in order to justify their preservation among the different types of processes analyzed (such as bankruptcies, tax collection, bank debts, family custody, etc.), with the definition of criteria for disposal or storage. In order to present part of the collection, we selected, for this report, processes analyzed by the members of COMINTER, pointing out the potential in the Court’s documentation and the possible research interests in different fields of History based on case studies.

Keywords: Social History, archives, lawsuits, Judiciary, document preservation.

Introdução

A aproximação entre historiadores e arquivistas vinculados, respectivamente, à Associação Nacional de História – seção Rio Grande do Sul e ao Arquivo Judicial Centralizado do Rio Grande do Sul (AJCRS) inspirou a realização de um esforço conjunto, voltado ao aperfeiçoamento das atividades de preservação dos processos judiciais guardados no Arquivo do Tribunal de Justiça do RS, que tem sede em Porto Alegre. A preocupação com os avanços e retrocessos, bem como com os possíveis equívocos interpretativos abertos pelas leis e normativas a respeito da preservação dos documentos judiciais sempre foi uma preocupação compartilhada (Biavaschi e Droppa, 2011). As eliminações massivas e indiscriminadas eram um risco, sem que tivéssemos capacidade de intervenção nestes processos. A comunhão de propósitos no que se refere ao respeito e adequado tratamento técnico especializado para a documentação judicial foi responsável pelo estreitamento desta colaboração entre historiadores e arquivistas, selando um compromisso que se desenvolve desde 2011, estando ainda hoje em andamento. O desafio é imenso, como ficará evidente ao longo do texto, pois se trata de um patrimônio documental, de caráter público, cujo valor para pesquisa precisa ser considerado, tema que tem sido abordado em diversos fóruns e artigos.

Como historiadores e participantes da Comissão Interdisciplinar de Preservação de Processos Judiciais Aptos a Descarte (COMINTER), apresentamos aqui um breve relato de experiência a partir da nossa atividade de preservação junto ao acervo do Poder Judiciário em nível estadual. Inicialmente, caracterizamos o Arquivo do Tribunal de Justiça do RS, explorando sua história, dimensões e condições de guarda. Após, apresentamos o contexto de criação e funcionamento da comissão de caráter interdisciplinar, que oficializou as atividades de avaliação da documentação judicial disponível para descarte. A seguir, analisamos a atuação dos historiadores nas diferentes etapas do trabalho, desde a análise das amostras, a produção e emissão de pareceres, as reuniões da Comissão e a posterior aplicação dos critérios elaborados. Por fim, apontamos o potencial da documentação do Tribunal de Justiça e os possíveis interesses de pesquisa nos diferentes campos da história a partir de estudos de caso.

O Arquivo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: caminhos e descaminhos na constituição de um acervo

A responsabilidade pela guarda e gestão dos documentos judiciais relativos à Justiça Estadual do Rio Grande do Sul é, na atualidade, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Quanto aos processos findos datados até 1930, eles eram enviados ao Arquivo Público do Rio Grande do Sul, órgão ligado à Secretaria da Administração do Estado. Parte desta documentação mais antiga também foi enviada ao Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, órgão ligado à Secretaria da Cultura do Estado. Portanto, são essas duas instituições que guardam e administram os acervos públicos mais antigos do Poder Judiciário Estadual. Referente aos processos mais recentes, os fóruns assumiram a responsabilidade pela guarda de seus documentos. A preocupação e a proposta de uma política arquivística, abrangendo todo o sistema de prestação jurisdicional estadual, ganhou premência a partir da década de 1990, surgindo no horizonte do Judiciário gaúcho a ideia da criação de um arquivo judicial único, o que não levaria muito tempo para ganhar concretude.

Desde 2003, os processos judiciais findos migram das 164 comarcas que integram o sistema judiciário do Rio do Grande do Sul para serem arquivados em Porto Alegre. As consequências da decisão de centralizar os processos na capital do Estado logo apareceram, especialmente, em razão do fluxo crescente de demandas de acesso ao Judiciário. Um fenômeno que não foi exclusivo do Rio Grande do Sul[5], mas se faz sentir em todo o país, e está relacionado diretamente ao crescimento da população, à massificação do consumo, à precariedade dos serviços públicos, enfim, a uma sociedade que luta por se constituir a partir de direitos que assegurem sua existência. Os números divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) são impressionantes: 24,2 milhões de ações foram ajuizadas no Brasil em 2010, que se somaram aos 59,2 milhões de ações que estavam pendentes, totalizando 83,4 milhões de processos em análise em 2010 (Amaral, 2012). No Rio Grande do Sul, a entrada no AJCRS é de uma média de 65 mil caixas do interior e da capital por ano, mas é bastante variável o número de processos por caixa (de 10 a 30 processos dependendo do tamanho).

A partir da reorganização e centralização dos processos findos em Porto Alegre, assume relevância a questão da preservação. Trata-se de um problema significativo e que extrapola a esfera do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Há legislações e orientações que partem da esfera federal impulsionando a construção das políticas de preservação, que se tornou uma causa da sociedade. Temos uma confluência de fatores e forças atuando neste contexto, o que evidencia a complexidade da questão e ajuda a compreender a importância que a demanda pela patrimonialização dos acervos documentais do Judiciário tem alcançado. Desta forma, para melhor compreendermos em nosso presente a luta (inconclusa) pela preservação destes acervos é preciso:

[...] inseri-las em um contexto mais amplo no qual a memória assumiu centralidade como objeto de reflexão intelectual, balizador de políticas públicas, bandeira dos movimentos sociais, enfim, como elemento gerador de disputas e conformador de identidades coletivas – inclusive institucionais – e individuais. Se os projetos modernistas apostavam no futuro como ‘o lugar a que se quer chegar’, na contemporaneidade, o olhar parece estar voltado mais para o passado, para aquilo que fomos e que já não somos mais, evidenciando uma espécie da cultura da saudade. Diversos diagnósticos foram propostos na tentativa de explicar esse fenômeno que parece estar ligado, por um lado, à frustração com as grandes utopias futuristas e, por outro, com uma certa necessidade de ancoragem diante da aceleração do tempo e da compressão do espaço permitidas pelas novas tecnologias comunicacionais e informacionais (Schmidt e Speranza, 2012, p. 216).

Ao observarem que o Poder Judiciário produz fontes informacionais sobre a sociedade, os historiadores não endossam uma visão instrumental dos processos judiciais, mas sim uma visão mais ampla das possibilidades de pesquisas a partir de seus acervos. Reconhece-se que

[...] cresceu o protagonismo político e social exercido pelo Judiciário, fazendo com que sua atividade, naturalmente significativa, tomasse nova dimensão, ainda mais contundente. Sob esse aspecto, o trabalho desenvolvido por seus membros mostrou-se ainda mais importante como fonte de informação sobre a sociedade brasileira, somando-se a todos os elementos já identificáveis nos documentos de um processo judicial. (Veiga e Schmidt, 2012, p .9-10).

Nos últimos tempos vêm crescendo os alertas da sociedade civil a respeito do risco que corremos com os descartes indiscriminados da documentação judicial do país. Além da responsabilidade e competência legal, pois por atribuição constitucional a gestão documental é responsabilidade da administração pública. Agrava e clama pelo cumprimento responsável desta determinação a Lei 9.605 de 12 de fevereiro de 1998, que no seu artigo 62 caracteriza a destruição de arquivos como crime contra o patrimônio cultural[6]. Existe, portanto, uma problemática que extrapola o caráter meramente funcional e burocrático de organização de um arquivo, que poderia ser classificado, na linguagem arquivística mais tradicional, de “arquivo intermediário”.[7]

O tema da preservação tem sido enfrentado pelo Judiciário, mas ainda está formulado de modo frágil, deixando em aberto, por sua flexibilidade, a possibilidade de eliminação massiva dos processos findos. O Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário (Proname) foi criado pelo CNJ em 2008 oferecendo orientações, diretrizes e instrumentos, “referentes à produção, tramitação, uso, avaliação e arquivamento dos documentos produzidos e recebidos pelas instituições do Judiciário”.[8] Mas as batalhas neste terreno têm sido árduas, como demonstra a tentativa de introduzir em 2009, na discussão e votação do novo Código do Processo Civil, o artigo 1005, que estipulava, na redação original, que “Findo o prazo de cinco anos, contados da data do arquivamento, os autos poderão ser encaminhados para reciclagem, mediante prévia publicação de edital, com prazo de trinta dias, no órgão oficial e em jornal local, para ciência dos interessados”. Na ocasião, a solução encontrada foi a retirada desse artigo, “[...] ficando em aberto para outro texto de lei específico, o tema da preservação dos documentos produzidos pelo Poder Judiciário” (Biavaschi e Droppa, 2011, p. 108-109). Em função das ambiguidades e fragilidades, a questão preocupa e mobiliza os historiadores, em especial por meio de suas associações, como a ANPUH Brasil.[9]

A questão da preservação dos documentos judiciais está posta, mas a sensibilização dos agentes responsáveis pelas decisões e efetiva implementação de investimentos nesta área é bastante difícil. São diferentes esferas de decisões que precisam ser acionadas e sensibilizadas quanto ao valor de pesquisa potencial do acervo dos documentos produzidos pelo Poder Judiciário. Ao mesmo tempo, como ressaltamos inicialmente, o número de demandas judiciais cresce vertiginosamente, gerando um acúmulo documental impressionante. Os depósitos e as práticas tradicionais de controle precisam ser urgentemente substituídos por estratégias modernas de gestão documental. A administração do acesso, localização e guarda desta massa documental é cada vez mais complicada e difícil, em razão da precariedade das instalações, e consequentemente envolve riscos para as pessoas que ali trabalham.

Nesse cenário, atualmente o AJCRS conta com oito prédios[10] em Porto Alegre, incluída a sede administrativa, nos quais estão distribuídos cerca de 14 milhões de processos. A situação criada pela centralização é difícil, as deficiências são muitas, mesmo tendo sido pensado para ser um arquivo central altamente especializado, voltado ao ordenamento, guarda e proteção dos processos judiciais que tramitaram nos tribunais do Estado do Rio do Grande do Sul. Assegurar condições razoáveis de armazenamento e acessibilidade de consulta a esses processos são desafios permanentes enfrentados pela equipe de arquivistas e seu quadro de funcionários[11]. Apesar das dificuldades, a expectativa ainda é de que mudanças significativas possam ser implementadas, a partir do trabalho conjunto de avaliação da documentação e da sensibilização sobre a importância deste acervo, sendo motivador pensar em um arquivo ideal que possa abrigar também um espaço de estudos e pesquisas a ser usado por diversas áreas do conhecimento. O caminho é longo, mas algumas mudanças já começaram a ocorrer, como a ampliação do quadro de arquivistas e a incorporação de historiadores na equipe de funcionários. Nesse contexto crítico se insere a criação da COMINTER, que teve no binômio descarte/preservação sua problemática fundamental.

A constituição da COMINTER: ações de preservação e salvaguarda dos processos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Passar pelos corredores destes arquivos judiciais é uma experiência estranha. Um volume tão grande de material constitui uma verdadeira selva de papel. O número na casa dos milhões de processos por si já impressiona, com o agravante na situação do AJCRS de que esses processos não estão devidamente classificados. A classificação dos processos tem problemas, e sua revisão vem sendo lentamente realizada, atualmente por funcionários do próprio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul[12]. A expectativa do Tribunal era de acelerar esse processo de classificação e recadastramento, e para tanto havia firmado contrato com a Companhia Rio-Grandense de Artes Gráficas (CORAG) (TJRS, 2011b). Naquela ocasião, outubro de 2011, a preocupação maior do Tribunal era reduzir os custos de manutenção do arquivo, o que levou os responsáveis pela administração a raciocinar em termos de liberação de espaço e eliminação dos autos findos. Por algum tempo, a preparação dos processos objetivando o descarte ganhou prioridade. Contudo, a CORAG não conseguiu cumprir o contrato e foi impossível acelerar o processo de recadastramento fora da dinâmica de funcionamento do próprio Arquivo.[13]

Em linhas gerais, o interesse do TJRS em promover um descarte significativo do seu acervo alinhava-se às razões propostas pelo CNJ, que propunha os parâmetros mínimos para os Programas de Gestão Documental do Poder Judiciário (CNJ, 2011). A recomendação do CNJ, ao definir os procedimentos e tempos de guarda, conservação e descarte, estava pautada pela preocupação em orientar a massa documental que era armazenada em arquivos judiciais sem a devida uniformidade, refletindo-se na inadequação do espaço físico e na disparidade dos procedimentos técnicos para realizar a guarda. No entanto, essa questão gerencial não era suficientemente clara para a comunidade de pesquisadores, especialmente do campo da História, sinalizando mais uma preocupação em desocupar espaços e reduzir custos do Poder Judiciário do que instituir uma política de preservação mais ampla de seus acervos judiciais. Subjacente a essas razões, a preservação de processos proposta pelo Poder Judiciário, em geral, ficava mais atrelada a uma perspectiva historiográfica tradicional, preocupando-se com a promoção de seus centros de memórias institucionais, nos quais os processos judiciais seriam instrumentos para celebrar os grandes feitos e personagens do Judiciário, simbolizando sua importância na sociedade.

Para os historiadores, o pior dos cenários se avizinhou. A possibilidade real de descarte de cerca de 10 milhões de processos, posteriores ao ano de 1950, que estavam nos arquivos judiciais do Estado, poderia significar uma perda irreparável para a memória e a História da sociedade rio-grandense, afetando consideravelmente pesquisas acadêmicas a serem realizadas no acervo do Judiciário. Foi com essa preocupação que os historiadores, através da ANPUH Brasil e de sua seção do Rio Grande do Sul, protestaram contra a medida e pleitearam uma voz mais ativa nesse processo, tendo recebido convite para participar da Comissão Interdisciplinar de Preservação de Processos Judiciais Aptos a Descarte a ser criada. Essa comissão foi instituída em dezembro de 2011 pelo desembargador Leo Lima, presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na ocasião.[14] Formada por 13 membros, com as respectivas suplências, tal comissão foi integrada por historiadores[15], arquivistas membros do Judiciário, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ministério Público e Procuradoria-Geral do Estado. A partir de então, a COMINTER passou a funcionar como um meio para se deliberar sobre o valor histórico dos processos judiciais e lidar com a massa documental existente em seus acervos (Duarte, 2016, p. 177-196).

Essa Comissão Interdisciplinar tem caráter essencialmente deliberativo e atua em apoio e complementarmente a uma comissão interna do Tribunal de Justiça, a Comissão Permanente de Avaliação e Gestão de Documentos. As atribuições da Comissão Interdisciplinar de Preservação de Processos Judiciais Aptos a Descarte – COMINTER – estão assim definidas:

I - Receber e analisar sugestões e proposições de representantes de instituições públicas e privadas, órgãos não governamentais, centros de ensino e pesquisa e demais interessados na matéria envolvendo preservação de processos passíveis de descarte;

II – Definir critérios e procedimentos para a seleção de documentos a serem preservados;

III – Indicar critérios e procedimentos para a preservação de processos judiciais aptos a descarte (TJRS, 2011a).[16]

Pode-se dizer que a principal função da Comissão é discutir e estabelecer os critérios de preservação para cada tipo de processo, selecionado para avaliação pelas arquivistas, que estão cientes dos prazos da Tabela de Temporalidade e são organizadoras do trabalho de classificação que vem sendo realizado atualmente por equipes de funcionários do Tribunal de Justiça.

O primeiro obstáculo quando do início dos trabalhos da comissão foi superar justamente as características do trabalho interdisciplinar. Vencer o desafio da interdisciplinaridade[17] foi um processo individual e também coletivo, e a primeira dificuldade residiu na comunicação: cada área da ciência possui um vocabulário e uma linguagem específicos, que precisam ser decodificados por cada sujeito na busca da inteligibilidade, e, após, ao comunicar, é necessário se fazer claro aos estranhos àquela linguagem. Além disso, cada termo e seus usos podem carregar sentidos diferentes de acordo com a área da ciência. A história e a justiça, por exemplo, podem ter visões diferentes sobre “fato” e “verdade”, sob os quais constroem argumentos ao exercer suas ocupações. Por fim, cada campo do conhecimento traz uma visão do mundo distinta: os processos e sentenças, para as profissões jurídicas, são um fim para concretizar o que é de direito, enquanto para os historiadores são um início ou um meio para viabilizar suas pesquisas.[18]

Apesar dos transtornos interdisciplinares iniciais, do choque e frustração dos historiadores com a deficiência da preservação e com a forma possível, e não ideal, de realização do trabalho de avaliação, o diálogo com o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e o trabalho de avaliação realizado no arquivo foram avançando, revezando-se as colaborações do grupo de historiadores envolvido. Ainda que persista uma confrontação entre as perspectivas adotadas pelos historiadores e pelo Judiciário[19], a COMINTER representou uma oportunidade para os historiadores conhecerem mais sobre o trabalho e o acervo do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul e, para os funcionários do Tribunal (de diferentes carreiras), revelou novas formas de se (re)conhecer e produzir a história.

Divergências quanto à concepção de história tiveram que ser superadas, o que foi condição fundamental para que pudesse haver algum entendimento, especialmente entre os historiadores, os juízes e os desembargadores. A história há muito vem experimentando uma profunda revolução em sua concepção e em seus procedimentos de pesquisa, mas nem sempre esses avanços e as discussões que os acompanham são de domínio público e integram o senso comum, no qual ainda predominam uma visão da história bastante tradicional, com valorização de personagens e acontecimentos. Foi preciso primeiro enfrentar essa questão, pois as concepções sobre História interferem diretamente na forma como definimos as fontes e pensamos em termos de documentos históricos. Assim, a Comissão deve pensar os documentos judiciais em função de seu potencial para pesquisa histórica, tendo em vista ser fonte de informação para pesquisadores.

Assim, era preciso definir de que história nós estamos falando: sem dúvida, a que produz conhecimento. Uma história que parte de problemas e questionamentos, que pensa em termos de processos, que é capaz de pensar massas anônimas, que tem desenvolvido sofisticadas ferramentas metodológicas para trabalhar dados seriados e construir novas fontes de informações a partir da leitura dos documentos; que trabalha a construção de conceitos e concepções em termos da sua historicidade. Uma história que também busca perceber a lógica da ação dos indivíduos em meio às teias das estruturas ou das mecânicas institucionais. Uma história que assumiu a perspectiva da narrativa e discute as marcas da subjetividade nesta construção; que trabalha com múltiplas temporalidades. Que pensa e discute sobre as relações que os indivíduos e grupos mantêm com o passado e com a construção de memórias. Em suma, enfrentamos mudanças no plano epistemológico, e isso vem modificando profundamente nossa relação com as fontes, os chamados documentos históricos.

Ao focar no caráter único informacional do processo judicial, os historiadores vislumbram a capacidade destas fontes históricas de oferecer novas informações sobre temas e agentes sociais até então inacessíveis. Como apontou Keila Grinberg (2015) sobre o uso de processos criminais, mas que pode ser estendido para todos os tipos de processos judiciais[20], desde fins dos anos 1970 os pesquisadores no país vêm renovando seus arcabouços teóricos e metodológicos através de uma História Social, Cultural e Política renovada. Segundo André Rosemberg e Luís Antônio Francisco de Souza, “historiadores que lançam mão da documentação judicial” concordam, em sua maioria, que, a partir dos processos e processos-crime, “seria possível reconstituir aspectos do cotidiano de uma população normalmente marginalizada dos feixes oficiais de poder” (2009, p. 160).

Segundo Benito Schmidt,

Privilegiaram-se, desde então, por um lado, os processos socioeconômicos, políticos e culturais (e não os fatos em si), os atores sociais coletivos (e não os indivíduos) e os tempos longos e médios (e não os acontecimentos cro­nologicamente datados); e, por outro, as ações dos “debaixo”, das classes subalternas, dos populares, daqueles que, na visão tradicional, não faziam a história, mas apenas a sofriam (Schmidt, 2012, p. 4).

Ora, sob essas novas perspectivas, qualquer vestígio do passado pode conter informações de interesse do historiador; não são os documentos em si que caracterizam a fonte, mas sim as perguntas e o interesse do historiador que constroem e/ou transformam os vestígios do passado em fontes para a história. As possibilidades e o potencial criativo dos historiadores são imensos, pois agora podem se valer da informática para armazenar e processar suas fontes. Tudo isso torna muito difícil, para esses profissionais, a tarefa da seleção e do acompanhamento dos descartes. A dificuldade em aceitar o descarte dos processos judiciais é imensa.

Uma alternativa ao descarte pode ser a digitalização dos documentos, o que já cogitamos e inclusive buscamos viabilizar por meio de projeto específico. Mas essa saída encerra dificuldades que não podem ser ignorados. Os objetos digitais comportam certa fragilidade, acentuada pelo contexto de mudança tecnológica constante. A segurança dos acervos digitalizados depende da manutenção da infraestrutura e do conhecimento necessário para que seja visualizada a informação digital. Por fim, os custos para promover a digitalização de um acervo já existente são proibitivos.

Demonstrando seu comprometimento nesta questão em diversas ocasiões e em eventos diferentes, a ANPUH-RS e ANPUH Brasil chamaram para exposição e diálogo historiadores com grande experiência em administração de Arquivos, o Dr. Paulo Knauss[21], à época Diretor do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, e o Dr. Carlos Bacelar[22], então Diretor do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ambos foram categóricos no reconhecimento e defesa da necessidade do descarte, afirmando que os historiadores de hoje precisam correr o risco da seleção e da escolha em relação à guarda dos documentos, levando em conta as questões e os problemas que fazem sentido para nossa atualidade.[23] Nessa linha, o GT Acervos: História, Memória e Patrimônio[24] vem reforçando uma visão mais crítica em prol da preservação de fontes históricas e ao trabalho em acervos documentais, organizando palestras e mesas redondas, como no I Seminário Políticas Públicas e Gestão de Estado: preservação de bens e acervos culturais em instituições de memória, ocorrido no ano de 2016 no Memorial do Rio Grande do Sul.

Os historiadores e a COMINTER: processos, análises e a busca da preservação documental

Em síntese, o papel dos historiadores na COMINTER visa auxiliar na avaliação de processos judiciais destacando o ponto de vista do profissional da história sobre o valor histórico dessas fontes. Atuando em diferentes frentes, os historiadores participaram desde o início das reuniões em 2012, contribuindo para definir – até final de 2018 – 206 critérios para preservação/eliminação de processos judiciais, sempre procurando minimizar perdas e prejuízos que poderiam ser considerados irreversíveis. No desempenho desse papel, o trabalho envolve três fases: a análise de fontes, a produção de pareceres e a defesa destes pareceres em reunião da COMINTER, na sede do TJRS.

No entanto, vale observar que a análise dos processos judiciais não é aleatória, o que seria impraticável diante o tamanho do acervo do AJCRS. Ela envolve a definição de uma pequena série de assuntos (entre 06 a 12), observada a tipologia proposta pelo CNJ (Figura 1), que reúne 17 grandes áreas do Direito, como Direito Civil, Direito da Criança e do Adolescente, Direito do Trabalho e Direito Penal, cada uma delas sendo subdividida em um grande número de assuntos. Como os processos judiciais são classificados pelo TJRS conforme esses assuntos, o entendimento da COMINTER foi em analisá-los segundo essa ordem. Assim, desde o início dos trabalhos, os historiadores e os técnicos do AJCRS priorizaram os assuntos que detinham maior quantidade de processos, o que se tornou um facilitador para obter amostras para análise.

Figura 1 – Tabela assuntos do CNJ.
Figura 1
Figura 1 – Tabela assuntos do CNJ.
Fonte: http://www.cnj.jus.br/sgt/consulta_publica_assuntos.php

O trabalho de análise envolve naturalmente a ida dos historiadores integrantes da COMINTER ao Arquivo Judicial. Como são analisados cerca de seis a dez assuntos por reunião da comissão, os historiadores lidam com aproximadamente 30 a 60 processos judiciais selecionados para amostra. Por sua vez, o trabalho de análise dos historiadores visa prospectar as potencialidades dos processos para uma pesquisa histórica, o que exige pensar além das suas preferências pessoais por um tema ou perspectiva teórica, cogitando problemas e leituras originais para explorar essas fontes. Em termos gerais, leva-se em consideração desde o contexto da produção do processo judicial até o que determinada série de processos pode contribuir para o conhecimento dos agentes sociais envolvidos e suas ações descritas nas fontes.

Nos processos em que foi admitida a guarda por amostragem, não foi possível avançar para obtenção de uma amostra estatística representativa do tipo de processo em exame, pois falta sempre a informação sobre o número total de processos em guarda. Como já comentado, temos apenas frágeis estimativas, o que pode levar a aceitar uma amostra ilustrativa dos processos por ano e por Comarca[25]. Levando em conta essas limitações e considerando a avaliação de uma amostra de cerca de dez processos de cada tipologia, bem como o uso de instrumentos descritivos característicos, analisamos o potencial informativo e recomendamos um ou outro dos critérios de guarda. Ao longo do processo de análise delinearam-se três modalidades para contemplar a preservação dos processos em fase de eliminação: guarda total e permanente, guarda por amostragem simples e guarda com seleção qualitativa. Cada recomendação é acompanhada da elaboração de pareceres individuais e submetida à discussão nas reuniões presenciais da COMINTER, podendo ou não ser adotada. Posteriormente ainda precisa ser referendada pela Comissão Permanente. Além destes procedimentos de guarda, o arquivo ainda adota uma amostragem estatística por edital de descarte.

A guarda total e permanente destina-se ao conjunto documental que comporta temas relevantes para a pesquisa histórica, assim como considera sua riqueza informacional e sua escassez (nos casos em que não é possível encontrar aquelas fontes em outros locais de memória), entre outros. De modo prático, sob a perspectiva mais ampla do campo historiográfico, significa que cada caso tem sua representatividade para uma pesquisa histórica. Processos judiciais envolvendo a exploração de Mão de Obra Infantil (9969)[26] ou Maus-Tratos (9967) foram exemplos de casos em que se obteve a preservação total. Entre as justificativas, foi destacada a possibilidade de se conhecer as condições que as famílias de baixa renda, em situação de invisibilidade social, experimentavam em um dado período ou contexto; assim como, as condições de pobreza e abandono afetivo a que crianças e adolescentes estavam submetidos. A partir destes processos, também é possível conhecer a atuação do Estado e seus agentes diante essas demandas, superando seus aspectos formais. Assim, é possível verificar a atuação de conselheiros tutelares, assistentes sociais e membros do Ministério Público, percebendo os limites de suas ações e sua integração com o meio social.

É importante registrar que o arquivo do Judiciário adota a guarda permanente para todos os processos findos com data até 1950. Em relação aos demais, compreendidos temporalmente entre 1951-2017, aplica as orientações da Tabela de Temporalidade, um documento norteador das ações arquivistas que foi disponibilizado desde 2009 pelo Conselho de Magistratura e vem sendo frequentemente atualizado por este órgão. Este documento, em consonância com orientações federais, respeitando, em princípio, os prazos de guarda recomendados nacionalmente, oferece orientação sobre a guarda permanente. Além da identificação na listagem dos assuntos e classes, existe a seguinte disposição específica sobre o tema:

Art. 5º São considerados processos de guarda permanente, independentemente de sua natureza, além daqueles previstos na Tabela de Temporalidade Judicial, as ações de direito ambiental, ação originária de súmulas, ações envolvendo índios, ações de relevância social, econômica e política, a critério da Comissão Permanente de Avaliação e Gestão de Documentos, crimes contra a economia popular, crimes de responsabilidade de prefeitos e vereadores, crimes de preconceito de raça ou de cor, crimes previstos no estatuto do índio, crimes de tortura, crimes contra o meio ambiente, crimes de imprensa.

Parágrafo único. Todos os processos que contenham documentos históricos ou que, por sua natureza e conteúdo fático, interessem de qualquer forma à história e ao perfil psicossocial da época, ou pela importância dos sujeitos parciais envolvidos passarão a integrar o acervo histórico do judiciário.

Como podemos observar, a orientação aponta temas significativos e problemas relevantes como sendo de guarda permanente. Contempla também a possibilidade de que as ações de relevância social, econômica e política, a critério da Comissão Permanente de Avaliação e Gestão de Documentos, possam ter sua guarda permanente decretada. Existe ainda, no parágrafo único, o reconhecimento de um interesse histórico que possa ser atribuído a certos processos, dotando-o de valor histórico e garantindo-lhe a preservação permanente, com o efeito de ser o processo separado da massa documental e passar ao acervo histórico[27]. Como veremos, essa visão encerra limites estreitos diante das questões abordadas pela historiografia contemporânea e dos avanços teóricos e metodológicos alcançados pela pesquisa histórica.

No caso da guarda por amostragem simples, trata-se do descarte de processos judiciais, preservando-se – a partir de uma amostragem calculada eletronicamente – uma pequena parcela. Embora difícil para um historiador aceitar essa eliminação, a maioria dos integrantes da COMINTER defende sua aplicação para determinados temas, pois o volume desses processos assume tamanho significativo e constitui um problema para armazenamento, como as indenizações envolvendo o Estado. Consideradas de caráter repetitivo, as ações, na maioria dos casos, repetem fórmulas jurídicas, muitas vezes através dos mesmos escritórios advocatícios, sem grande substância informacional. Do ponto de vista dos historiadores, no entanto, a perda destes processos dificulta uma visão de uma história quantitativa, impossibilitando recuperar montantes de valores em discussão judicial (como indenizações ou isenções concedidas)[28].

A guarda com seleção qualitativa surgiu como uma solução intermediária, quando não há um consenso nas reuniões entre os historiadores (que defendem a preservação integral) e membros do Judiciário (que tendem a defender o descarte). O critério envolve dois aspectos: a discussão da relevância dos assuntos nas reuniões da COMINTER e o papel dos membros do AJCRS em analisar os processos definidos para uma amostragem qualitativa. No primeiro aspecto, os historiadores buscam defender uma maior representatividade de determinados assuntos, como Imposto Predial (5952) e Ensino Superior (10029), pois, embora possam parecer repetitivos do ponto de vista jurídico, mostraram-se de grande relevância para uma História Social. O segundo aspecto envolve o trabalho dos técnicos do Arquivo Judicial. Com base na “amostra qualitativa”, eles devem analisar processos judiciais que incidam nessa categoria e, baseados no parecer dos historiadores, definir aqueles mais significativos. Trata-se de uma análise manual, um tanto subjetiva e, devido ao volume de análise, tem concorrido para preservar os processos em questão.

Percorrendo processos e documentos históricos: possibilidades de pesquisa e fontes de estudo

Observados, então, os procedimentos de análise dos processos bem como as modalidades nas quais são inseridos, torna-se relevante apresentar, mesmo que de forma breve, alguns estudos de caso surgidos quando da análise dos processos no AJCRS. Tal ação se reveste de singular relevância, pois analisar e elaborar pareceres para a COMINTER coloca o pesquisador frente a uma rica documentação que se desdobra em muitas possibilidades. Não só sua tipologia, mas fundamentalmente os diferentes documentos juntados a esses processos viabilizam problematizações que vão muito além do fato descrito. Nesse sentido, será através de dois estudos de caso e da menção das demais potencialidades dos processos e seus documentos que serão expostos de forma bastante breve, que se evidenciarão as particularidades de tais fontes.

Dentre o vasto conjunto de processos analisados durante as atividades da COMINTER, dois temas se apresentaram como os mais pertinentes para mostrar o valor e a especificidade da documentação. Voltados à matéria penal, o conjunto elaborado apresenta processos-crime relacionados às práticas de lesão corporal seguida de morte e homicídio qualificado. Além destes, referências sobre os processos voltados à matéria trabalhista igualmente apresentam documentos e elementos que se prestam à pesquisa histórica.

O primeiro caso a ser aqui apresentado é o referente à lesão corporal seguida de morte. Segundo o Código Penal, em seu artigo 129, tal crime corresponde ao ato de “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem” tendo agravo se o ato “resulta em morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo”[29]. Foi com base nesses termos, então, que as causas da morte de uma menina de 4 anos, ocorrida em 1998 na cidade de Canela, foram apuradas e investigadas.

Em linhas gerais, e conforme está disposto na declaração inicial do processo, Maria[30] foi encaminhada do hospital municipal de Canela ao Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre, pois, após um desmaio em casa e uma piora de seu estado de saúde, graves lesões cerebrais foram constatadas. O fato de a menina também apresentar cortes e muitas escoriações pelo corpo levantou a suspeita de a mesma ter sofrido maus-tratos e abuso sexual. Quando de seu falecimento, uma investigação foi aberta, e os mais diversos tipos de documentos, entrevistas e exames periciais foram juntados ao processo. E são precisamente eles que servem de base não apenas para apontar as linhas norteadoras do acontecimento, mas, sobretudo, para ratificar a importância da preservação de tais fontes.

Dentre os vários documentos que foram anexados ao processo, importa citar apenas quatro deles. O primeiro diz respeito ao Estudo Social da Criança. Elaborado por uma assistente social, tal documento informa – e igualmente comprova – os maus-tratos sofridos pela criança bem como o comportamento negligente por parte de sua família. É por meio dele que se sabe, por exemplo, que o responsável que se encontrava com a menina no momento em que esta passou mal, acometida por uma convulsão, era a esposa de seu irmão que, entre outras coisas, afirmou que a menina havia caído de uma janela e batido a cabeça. Além disso, o pesquisador é informado da suspeita de agressão e abuso sexual em função das escoriações nos órgãos genitais da menina.

Todas essas informações acabam sendo corroboradas com os Exames de Corpo de Delito. No processo em questão, foram realizados três diferentes exames: o de lesão corporal, onde se observou e tipificou o grande número de lesões no corpo da menina; atentado ao pudor, onde foi verificada a ocorrência de estupro; e conjunção carnal, onde se confirmou o ato sexual. É interessante observar que, anexado a esses pareceres periciais, um conjunto de fotografias apresenta, em sua maior parte, as escoriações presentes no corpo da menor.

Sobre o documento fotográfico, aqui entendido e compreendido como registro visual que comprova as agressões, é pertinente comentar outros dois conjuntos ali presentes. Um deles diz respeito às imagens do local onde, teoricamente, a menina teria caído e batido com a cabeça. Tais documentos, que objetivaram mostrar ao juiz a altura da queda, ao pesquisador indicam, com maior precisão, o ambiente no qual a menina estava inserida. O outro, mais subjetivo, estabelece relação direta com as Declarações constantes do processo.

Uma das declarações constantes no processo é a de um idoso, vizinho da mãe da menina. Através do documento se sabe, por exemplo, que Maria possuía uma irmã mais nova e que sua mãe trabalhava integralmente durante o dia. No depoimento que deu, o homem informou que, pelo fato de a mãe se ausentar durante o dia, ele e a esposa ficavam com as duas filhas. Para provar que a menina mais velha havia saído de sua casa sem marcas de agressão, provando, assim, sua inocência, a irmã mais nova é fotografada e, por esse meio, se comprova a sua integridade física.

O segundo caso selecionado para ser aqui apresentado refere-se a um homicídio qualificado. De acordo com o Código Penal Brasileiro, o crime de homicídio ocorre quando um indivíduo é morto por outrem. Ele é categorizado como qualificado quando cometido

[...] mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; por motivo fútil; com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime.[31]

O caso de que trata o processo ocorreu na cidade de Dilermando de Aguiar no ano de 1973. O crime, também considerado de motivo torpe, foi movido por sentimentos de honra em prol da família. O acusado de praticar o assassinato, natural da mesma cidade, havia ido visitar seus familiares onde, ainda, levaria homenagens a um primo falecido alguns meses antes. Ao chegar à cidade, João[32] foi encontrar alguns parentes, sendo que para isso deveria cruzar um campo. Precisamente nesse local se encontrou com a vítima, que já era um desafeto seu, e começaram a dialogar. O desentendimento entre ambos surgiu porque a vítima afirmou que o acusado não era bem-vindo à cidade e que a morte de seu primo havia causado certa alegria para alguns moradores da região. Com isso, na sequência de uma discussão, a vítima ameaçou o acusado com um facão ao que este sacou sua arma e atirou nela. Ao cometer o ato, o acusado fugiu do local. No entanto, foi encontrado logo depois.

Afora a documentação técnica, como os boletins de ocorrência policial, esse processo, sem dúvidas, oferece um rico e relevante material histórico. Dos que estão juntados, três conjuntos se destacam. O primeiro são as fotografias. Apesar de algumas conterem imagens fortes, como o corpo da vítima, em outras é possível observar as pessoas que presenciaram o crime e, igualmente, os que foram atraídos pela curiosidade e postaram-se próximo à cena do crime. O destaque das fotos pode ser dado a um gaúcho que está na cena. Além disso, instrumentos de trabalho bastante específicos da lida do campo podem ser observados.

Da mesma forma que as fotografias, tanto os documentos da perícia quanto os que são relativos à análise criminalística constituem-se de grande importância para a pesquisa histórica. Nesse caso, através do laudo e das fotografias da arma do crime, que trazem informações acerca dos projéteis disparados bem como as ranhuras no cano do revólver, proposições acerca de armamentos e seu funcionamento ou, ainda, procedimentos periciais tornam-se possíveis. A esse respeito, fotos e perícia da arma utilizada na briga também estão disponíveis.

Por fim, o último conjunto de documentos são alguns recortes de jornal. Estes, que foram feitos pelo advogado de defesa, são relacionados às péssimas condições dos presídios estaduais ainda na década de 1970. Trazendo tais informações, suas alegações estavam pautadas na manutenção do réu em liberdade, uma vez que sua prisão endossaria mais a crítica situação dos presídios do Rio Grande do Sul, em especial os da cidade de Santa Maria e de Porto Alegre.

Trabalhar com tais processos é imergir em um campo de múltiplas possibilidades. Seu conjunto, composto por um vasto e diferenciado corpus documental, possui grande relevância para o trabalho e pesquisa em diversos segmentos das ciências humanas e sociais. Trabalhar com esse material constitui-se fundamental não só para uma história do crime, mas, igualmente, para suas particularidades. A partir dessa documentação, por exemplo, pode-se fazer inúmeros desdobramentos acerca de uma história da infância ou, até mesmo, da estruturação de famílias na contemporaneidade. Da mesma forma, problematizar o crime a partir de seu entorno, isto é, dos diversos elementos que confluem na elaboração do processo, contribui de forma especial aos estudos que têm entre seus objetivos o questionamento de fontes que ainda se acham por entre o tempo e a poeira dos arquivos.

Dos processos até agora examinados pela COMINTER, convém destacar alguns por suas potencialidades. Ações envolvendo a temática Imposto Predial (5952), por exemplo, são permeadas pelo debate sobre terras e sua função social no Brasil. É inegável que há uma relação dialética entre desigualdade socioeconômica e ocupação territorial no país, que se reflete no mundo urbano através da ocupação desordenada, formação de cinturões de pobreza e especulação imobiliária, enquanto, no meio rural, ainda permanece a concentração fundiária. Essas questões estão presentes nas discussões judiciais sobre valores (se são baseados na valorização do bem imóvel ou na capacidade de contribuição do proprietário), além de trazerem importantes informações sobre as trajetórias dos agentes sociais envolvidos no debate, assim como a história da ocupação de uma propriedade.

Já os processos de Adicional de Insalubridade (10291) se mostram interessantes e trazem aspectos relevantes sobre o mundo do trabalho, aportam dados nem sempre acessíveis em outras fontes, pois oferecem informações sobre o ambiente e as condições de trabalho. Essas informações aparecem com um grau elevado de detalhamento neste tipo de processo. Trata-se de demandas por regularização ou pagamento integral dos percentuais de insalubridade; esse benefício deve ser pago ao trabalhador quando exposto a condições de trabalho que possam ser prejudiciais à sua saúde, o que é regulamentado pela CLT. A comprovação de contato eventual ou permanente com agentes nocivos, durante o exercício do trabalho, exige a apresentação de um parecer técnico que ateste a respeito das condições do ambiente de trabalho. Essa perícia é regulamentada pela norma 3214/78 do Ministério do Trabalho e apresentada detalhadamente dentro dos processos, o que significa informações detalhadas e precisas sobre as condições de trabalho e a rotina dos trabalhadores naquele ambiente. Todos estes processos se encontram preservados.

Outro tipo de processo que pode também trazer algumas informações sobre as condições e o ambiente de trabalho são as ações referentes a Seguro Acidente de Trabalho (6038). Nestas aparecem casos de trabalhadores que, em função de acidentes, ficaram com sua capacidade de trabalho comprometida, por tempo parcial ou permanentemente. A ênfase recai sobre o trabalhador e o comprometimento de saúde causado em função do acidente no trabalho. O desenrolar do processo envolve exigência de perícias e exames, bem como o compromisso da empresa na recuperação do trabalhador. Estes processos estão submetidos apenas ao plano amostral de preservação.

As trajetórias dos sindicatos aparecem contempladas em alguns dos processos sobre Contribuição Sindical (6047), tornando esse material extremamente relevante em termos de pesquisa, pois apresentam informações sistematizadas que são difíceis de serem obtidas por outras fontes. Neste caso, a preservação dos processos envolve a seleção direta de amostragem qualificada.

A busca por um futuro assegurado também aparece nos processos, como é o caso das ações relativas a Pecúlio (6106) que cobram direitos de resgate de contribuições para fundos beneficentes ou montepios, algumas realizadas por muitos anos. Entre os demandantes apareceram funcionários públicos municipais. Na mesma linha envolvendo a disposição e a busca por maior segurança enquanto trabalhador, encontramos os processos sobre Previdência Privada (4805). Algumas são ações coletivas, outras individuais contra fundações de previdência privada complementar, as quais deveriam garantir a complementação salarial na aposentadoria do funcionário. As solicitações normalmente contemplam pagamento do complemento, ou anulação de contrato, ou revisão de valores recebidos. Aparecem citados como réus nos processos agremiações de empregados ou institutos de funcionários, que tinham se organizado buscando pensões e aposentadorias em uma situação teoricamente vantajosa para os associados ou cotistas. Ampliar a segurança na velhice ou na aposentadoria era o que estava na origem deste tipo de investimento. Possibilidade que não estava disponível para todos os tipos de trabalhadores. Apesar da instigante questão de fundo, a ênfase nestes processos, que podiam levar muitos anos tramitando, parece estar centrada na revisão de valores e percentuais de reajuste. Estes processos estão submetidos ao plano amostral de preservação.

Outro tema relevante presente nas demandas judiciais refere-se aos processos sobre Reajuste de Remuneração, Soldo, Pensões (10342) trazendo reivindicações do funcionalismo público, em especial professores e policiais, sobre direitos e reajustes desrespeitados pelo governo em termos salariais ou no âmbito das pensões. É interessante, nestes casos, observar as posições e mudanças nos argumentos da própria justiça, bem como as formulações e ponderações no âmbito da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 101, de 04.05.2000), na medida em que colocam em questão o descumprimento por parte do Estado de índices propostos por ele mesmo. Estes processos estão submetidos ao plano amostral de preservação.

A administração do próprio salário ganha contornos novos com as facilidades advindas dos meios de controle eletrônico. A revolução em curso, impactando especialmente os meios de comunicação, afeta a todos e escapa ao controle social. As rápidas mudanças e avanços tecnológicos significam muitas vezes lidar com situações novas, como o manejo bancário compartilhado do sistema de pagamento. Os processos sobre Descontos Indevidos (10296) apresentam ações diversas para sustar ou modificar descontos efetuados nas folhas de pagamento de trabalhadores. São solicitações de cancelamentos ou revisões de descontos não obrigatórios que ocorrem diretamente na fonte de pagamento. Os casos examinados pela equipe de historiadores envolvem descontos provenientes de empréstimos, dívidas, planos de previdência, contribuições, desconto de associações de classe ou de cooperativas, entre outros. A ênfase da discussão nas ações judiciais normalmente recai na questão dos valores monetários. Estes processos estão submetidos ao plano amostral de preservação.

O acervo do AJCRS conta ainda com um conjunto bastante expressivo de demandas judiciais na esfera do trabalho, cujas ações estão agrupadas sob a designação de Processos Trabalhistas, sem identificação de código na Tabela de Temporalidade e sem uma estimativa numérica fidedigna. Trata-se de um agrupamento reunindo vários tipos de processos trabalhistas, muitos de Comarcas do interior do estado que foram recolhidos ao arquivo de Porto Alegre. O conjunto é heterogêneo e temporalmente variado, contendo processos de reclamatórias tipicamente trabalhistas, alguns bem antigos, das décadas de 1950 e 1960, com amplo detalhamento das relações de trabalho. Além destas preciosidades da Justiça do Trabalho, encontram-se reunidos neste conjunto os processos sobre Acidente de Trabalho. Estas ações são igualmente de inestimável valor para historiar as condições de trabalho, bem como as dificuldades e lutas dos trabalhadores pela segurança no trabalho, um embate permanente, pois mesmo com regras e leis protetivas, o problema sempre foi de graves proporções, cujos avanços e recuos a própria documentação do Judiciário atesta. De modo geral, o conjunto, mesmo heterogêneo, é muito expressivo em termos avaliativos, tendo ficado evidente o reconhecimento da sua importância no campo da pesquisa sobre as condições e relações de trabalho. Nas reuniões da COMINTER foi solicitada a preservação total destes processos, e sugerida a individualização e organização deste material que se encontra sob a guarda deste arquivo. Também foi recomendado contato com o Memorial da Justiça do Trabalho, órgão que tem a guarda e responsabilidade pelos processos da Justiça do Trabalho[33].

Certos processos ainda não foram analisados e nem discutidos na COMINTER, mas encontram-se tipificados na Tabela de Temporalidade para Processos Judiciais. Convém deixar o registro para que, em tempo conveniente, os interessados possam acessar mais informações. Trata-se dos processos de Crimes contra a Organização do Trabalho (3445), envolvendo ainda algumas tipificações específicas como Atentado contra a liberdade de associação (3448), Atentado contra a liberdade de contrato de trabalho e boicotagem violenta (3447), Atentado contra a liberdade de contrato de trabalho (3446), Exercício de atividade com infração de decisão administrativa (3453), Frustração de direitos assegurados por lei trabalhista (3452), Invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola, Sabotagem (3451), Paralisação de trabalho de interesse coletivo (3450), Paralisação de trabalho, seguida de violência ou perturbação da ordem (3449).

Considerações finais

Ressaltamos ainda que não há posições conclusivas sobre o tema da amostragem documental dentro do campo de descarte; este é campo aberto para discussões, pois envolve diretamente as concepções de história. Estas concepções podem se converter em posições pró ou contrárias ao descarte documental em diferentes contextos. Assim, as posições são individuais e subjetivas, fruto do percurso acadêmico de cada historiador.

Outro elemento importante é que, no presente, são cada vez mais elaboradas as formas e sofisticadas as novas maneiras de pensar a história. As tecnologias digitais estão transformando a maneira dos historiadores conduzirem suas pesquisas e divulgarem suas descobertas, o que vem tornando complexas as formas de trabalhar as fontes. Esse contexto de inovações e profunda transformação da pesquisa, por conta da mudança na forma de acesso da informação e das possibilidades que os cruzamentos e a seriação abriram, leva efetivamente à construção de novas informações pelo manejo conjunto das fontes. Tudo isso torna muito difícil o trabalho avaliativo desenvolvido pelos historiadores na COMINTER, cujos esforços são narrados neste texto. Mas o mérito é que ele serve de contextualização sobre o potencial de pesquisa destas fontes, as quais podem interessar a um historiador social do trabalho, mesmo existindo um Memorial da Justiça do Trabalho no Rio Grande do Sul.

Enfim, há uma historiografia consolidada que defende incorporação nas pesquisas históricas[34] a partir de inovadores olhares sobre esses registros e que permitem construir processos e narrativas sobre indivíduos, instituições e contextos. Da mesma forma, existe uma imperiosa necessidade de firmar entendimento desta preservação por aqueles que geram e detêm essas fontes. O esforço dos historiadores da COMINTER é aproximar essas duas dimensões, percebendo o arquivo como um espaço primordial: conforme Arlette Farge (2009), o mais ‘brutalmente’ conservado, isto é, simplesmente guardado, está preparado para um uso eventual, desde que habilmente questionado pelos pesquisadores.

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Notas

1 Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Programa de Pós-Graduação em História. Avenida Unisinos, n° 950, Área das Ciências Humanas - Campus Unisinos São Leopoldo. Bairro Cristo Rei. 93.022-750 São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil.
2 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul – Campus Osório. Direção de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação. Rua Santos Dumont, 2127. Bairro Albatroz. 9552-000 Osório, Rio Grande do Sul, Brasil.
3 Coordenação do Grupo de Trabalho História e Saúde da Anpuh-RS. Membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS). Pesquisador independente.
4 Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Programa de Pós-Graduação em História. Avenida Unisinos, n° 950, Área das Ciências Humanas - Campus Unisinos São Leopoldo. Bairro Cristo Rei. 93.022-750 São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil.
5 No caso do Rio Grande do Sul, José Eugênio Tedesco, Presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, defendeu publicamente a instalação do modelo, destacando os benefícios de sua aplicação (Tedesco, 2005, p. 299-313).
6 A Constituição de 1988, no parágrafo 2º do artigo 216, dispõe sobre a responsabilidade do agente público quanto à gestão documental. A Lei n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, prevê sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao patrimônio cultural. Seção IV Dos Crimes contra o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar: I - bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial; II - arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial: Pena - reclusão, de um a três anos, e multa. Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena é de seis meses a um ano de detenção, sem prejuízo da multa.
7 Conforme Heloísa Bellotto (2006), o tratamento dos arquivos pela Arquivologia tem estabelecido a divisão em três idades documentais: correntes, intermediários e permanentes. Um arquivo intermediário envolve a guarda de documentos que, embora deixem de ser utilizados frequentemente, ainda possuem validade legal (fiscal, administrativo, jurídico) que exige sua preservação temporária. Tabelas de temporalidades construídas por especialistas definem o período de guarda e quais documentos serão preservados (permanentes) ou descartados, após cumprido o prazo de validade.
8 O programa tem por finalidade implementar política de gestão documental que atenda às peculiaridades do Poder Judiciário Brasileiro. As normas e recomendações do Programa e seus instrumentos constam da Recomendação n° 37, de 15 de agosto de 2011 (CNJ, 2011, p.3-6).
9 Durante a gestão de Benito Bisso Schmidt na presidência da ANPUH Brasil (2011-2013), o assunto foi tratado pela associação na esfera do Supremo Tribunal Federal. Ainda assim, notamos que, apesar dos avanços legislativos, existem pressões por soluções rápidas, com total desrespeito das recomendações existentes no próprio Judiciário para a realização de descarte, como o caso do Tribunal de Justiça de São Paulo que em 2014 ainda pressionava e argumentava para descartar 83 milhões de processos sem qualquer classificação e registro (Ferreira, 2014, p. A14).
10 De acordo com o historiógrafo do Núcleo de Arquivo Permanente do TJRS, Emanuel Kern, afora a sede administrativa do Departamento de Arquivos, que hoje funciona no Foro do 4º Distrito, o acervo está distribuído em outros sete prédios: Farrapos (sendo desocupado em função da permuta com os prédios do IRGA), Pernambuco (somente uma parte do prédio), Assis Brasil, Aeroporto I, Aeroporto II, DAG (Departamento de Artes Gráficas do TJ, que foi extinto) e parte do DMP (Departamento de Material e Patrimônio).
11 O ACJ – RS está atualmente sob a coordenação e direção da arquivista Luciane Baratto Adolfo
12 Para processar 14 milhões de documentos, se fosse possível realizar mil classificações por dia, seriam necessários aproximadamente 50 anos para finalizar o processo.
13 O que não significa que não tenham sido implementados vários Editais de Descarte a partir desse momento.
14 Constituída através do Ato n.º 021/2011-P em 01/11/2011. Disponível em: https://www.anpuh-rs.org.br/download/download?ID_DOWNLOAD=781. Acesso em: 19.06.2018.
15 Os historiadores são representados por titulares e suplentes escolhidos entre instituições universitárias e a associação de classe (ANPUH-RS).
16 As atas das reuniões da COMINTER encontram-se disponíveis no site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em Publicações Administrativas. Disponível em: http://www.tjrs.jus.br/site/publicacoes/administrativa/ Acesso em: 22/11/2017. Os pareceres dos historiadores da COMINTER, por sua vez, encontram-se disponíveis no site da ANPUH/RS. Disponível em: https://www.anpuh-rs.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=921 Acesso em: 19/06/2018.
17 Estes e outros problemas e desafios do trabalho interdisciplinar são explorados por Olívio Alberto Teixeira (2004, p. 57-69).
18 Uma reflexão sobre como essas perspectivas influenciam o trabalho do historiador pode ser conferida no texto “Controlando a evidência: o juiz e o historiador”, de Carlo Ginzburg (2013). Embora juízes e historiadores busquem as evidências nas fontes (os processos) para subsidiar suas decisões, os últimos “nunca se aproximam diretamente da realidade” (Ginzburg, 2013, p.348), não cabendo a eles reconstruir julgamentos em busca de culpados ou inocentes. O que se exige do historiador é elaborar um arcabouço teórico-metodológico para dar sentido interpretativo às evidências a serem localizadas nas fontes (no caso, no processo judicial), permitindo compreender, por exemplo, como se estabelecem os relacionamentos entre sujeitos e seus contextos.
19 As duas últimas justificativas do Ato trazem essa tensão: “Considerando que, embora todo documento tenha valor histórico, as circunstâncias e nossas condições conduzem à necessidade de descarte de alguns” e “Considerando a necessidade de preservação dos documentos relacionados à História do Poder Judiciário e da Sociedade”. Ato n.º 021/2011 (TJRS, 2011a), posteriormente alterado pelos atos 028/2011-PE e n° 041/2014.
20 Os inventários post-mortem são exemplos de fontes já consagradas pela historiografia, guiando uma importante série de pesquisas sobre escravidão, famílias, terras, elites (Furtado, 2015, p. 93-118).
21 XI Encontro Estadual de História – História, Memória e Patrimônio, de 23 a 27 de julho de 2012. A Mesa-Redonda: Preservar ou destruir? Políticas públicas de gestão de acervos, sob coordenação da Dra. Vera Lucia Maciel Barroso, contou com a participação do Dr. Paulo Knauss (UFF) e a Dra. Zita Possamai (UFRGS).
22 Participação no evento O perfil profissional dos historiadores atuantes em arquivos promovido pela Associação Nacional de História e Arquivo Público do Estado de São Paulo, em 6 e 7 de dezembro de 2012.
23 O principal paradoxo reside no fato de que os historiadores irão indicar critérios segundo entendimentos contemporâneos e o que os historiadores do futuro irão consultar a posteriori. Ora, neste interregno a nossa própria noção de história ou de preservação poderia se modificar, o que invalidaria o trabalho anterior. Por outro lado, na incapacidade de salvaguardar a totalidade documental, os historiadores se lançam sobre esse injusto julgamento.
24 Um dos grupos de trabalho mais antigos da ANPUH-RS, criado no ano de 1997. O GT Acervos caracteriza-se pela preocupação com a preservação de acervos de interesse histórico e sua disponibilização para pesquisadores e sociedade em geral. Desde o ano de 2007 o GT Acervos realiza o evento “Dos Ofícios de Clio”, sendo que a 7.ª edição foi realizada na Unisinos em 2019, oportunizando um espaço de debate entre a comunidade acadêmica.
25 Apesar dos problemas de classificação e identificação de processos no acervo, cabe ressaltar que em sua maioria eles são passíveis de localização, ou seja, o arquivo responde as demandas do próprio judiciário, atendendo as solicitações de juízes, promotores e advogados quando necessitam rever os processos. O fato de não estarem devidamente classificados significa que as arquivistas têm extrema dificuldade em informar o número de processos de cada tipo, considerando as tipificações da Tabela de Temporalidade, o que é indispensável para pensar e proceder, em conformidade com as normas arquivísticas, os descartes. Os servidores do arquivo encontram o processo quando solicitado pelo número ou pelas partes, mas é impossível retirar do sistema com segurança, por exemplo, quantos inventários ou testamentos existem.
26 Código CNJ. Para cada tema, um código entre parênteses será informado.
27 Cabe destacar que essas recomendações podem ser revistas por proposta da Comissão Permanente de Avaliação e Gestão de Documentos dos Tribunais. Ou seja, existe a possibilidade de mudança em relação aos prazos de guarda, e essa tem sido uma das brechas que os historiadores com assento na COMINTER tentam usar para preservar integralmente algumas das tipologias processuais.
28 É fundamental lembrar que, mesmo após o descarte, o TJRS preserva, em um cadastro sumário, as informações sobre o tipo do processo, seu código, nome das partes e o acórdão.
29 Brasil. Decreto n. 2848/40, de 7 de janeiro de 1940. Código Penal Brasileiro.
30 Uso de nome fictício
31 Brasil. Decreto n. 2848/40, de 7 de janeiro de 1940. Código Penal Brasileiro
32 Nome fictício do acusado.
33 A reunião do dia 6 de outubro de 2014 contou com a presença da professora Dra. Evangelia Aravanis falando sobre a importância dos processos trabalhistas e da condição especial de sua preservação em arquivo especializado.
34 Uma síntese dessas possibilidades está em “A História nos porões dos arquivos judiciários”, de Keila Grinberg (2009). É difícil resumir a quantidade de trabalhos historiográficos – com diferentes enfoques teóricos e distintas temáticas – que se valem de processos judiciais como fontes para suas pesquisas. Citamos aqui três trabalhos, com perdão de outras omissões: “Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores do Rio de Janeiro da Belle Époque”, de Sidney Chalhoub (1986), que a partir de processos criminais, buscou recompor as visões de mundo dos grupos sociais menos favorecidos do período; “Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830)”, de João Luís Fragoso (1998), que se valeu de inventários para estabelecer os padrões de riqueza dos comerciantes; “Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano”, de Paulo R. Staudt Moreira (2003), que combinou processos criminais e inventários para explorar as vivências dos negros escravizados e libertos em Porto Alegre entre 1858 e 1888.
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