DOSSIÊ (INTERFERÊNCIAS)
A lei da escrita em A virgem dos sicários, de Fernando Vallejo
Law of writing in Our lady of the assassins, by Fernando Vallejo
A lei da escrita em A virgem dos sicários, de Fernando Vallejo
Revista Caracol, núm. 17, pp. 418-445, 2019
Universidade de São Paulo

Recepção: 30 Setembro 2018
Aprovação: 30 Outubro 2018
Resumo: Este artigo analisa, no romance A virgem dos sicários, de Fernando Vallejo, o movimento errante do seu narrador com o sicário Alexis enquanto movimento de expressão democrática exercida pela escrita literária. A democracia que se apresenta na narrativa em questão se distancia de uma reflexão sobre a situação social e política da Colômbia real, pois a democracia exercida pelo narrador de Vallejo, uma vez transposta para a escrita da obra literária que se desenvolve en abyme, explora outros recursos que somente o espaço ficcional pode oferecer, criando, consequentemente, uma democracia própria, singular, uma democracia ficcional. O artigo tem como base metodológica central os textos ensaísticos do escritor Maurice Blanchot, que compreende o espaço ficcional como um espaço de leis e regras próprias, e não apenas como um reflexo do mundo real.
Palavras-chave: Fernando Vallejo, Maurice Blanchot, Ambiguidade, Literatura, Democracia.
Abstract: This article, referring to the novel Our lady of the assassins, by Fernando Vallejo, analyzes the wandering movement of its narrator with the assassin Alexis as a movement of democratic expression conducted by literary writing. The democracy present in the narrative is far from a reflection on the social and political situation of real Colombia, as the democracy depicted by the narrator of Vallejo, once transposed into a literature writing that is developed en abyme, explores other resources only available in the fictional space, consequently creating a suitable democracy, a unique and fictional democracy. This article has as its main methodology the essays by writer Maurice Blanchot, who understands fictional space as a space with its own laws and rules, not simply a reflection of the real world.
Keywords: Fernando Vallejo, Maurice Blanchot, Ambiguity, Literature, Democracy.
A narrativa de A virgem dos sicários, de Fernando Vallejo, se inicia pelo relato de um passado remoto que o seu narrador enuncia em tom de oralidade: “Havia nas redondezas de Medellín um vilarejo quieto e agradável que se chamava Sabaneta” (Vallejo, 2006, 7). Dirigindo-se a um ouvinte estrangeiro ou supostamente jovem para ter conhecimento dessa época perdida, o narrador reforça a distância espaço/temporal do vilarejo, assim como sugere a sua desaparição, pelo uso do pretérito imperfeito do verbo haver. Ele, então, dá continuidade à sua narração discorrendo concisamente sobre a sua infância nesse tempo/espaço de outrora, na fazenda dos avós, Santa Anita, localizada a meio caminho de outro vilarejo, Envigado, e de Sabaneta, o ponto final da estrada, a linha que a criança que ele era acreditava ser a demarcação do fim do mundo. Todavia, apesar de Sabaneta ainda existir, esse tempo pueril, assim como os balões que se perdiam no céu de sua infância feliz, ficou para trás, juntamente com a Colômbia que o narrador abandonara e que se transformou, no período de sua ausência, em uma terra de crime e corrupção, em um espaço de degradação humana: “Éramos, e de longe, o país mais criminoso da Terra, e Medellín, a capital do ódio” (Vallejo, 2006, 10).
Desse modo, o narrador direciona a sua narrativa para uma oposição entre o passado e o presente, opondo um tempo de felicidade nostálgica a um tempo de desesperança, assim como intenta opor (e ainda sobrepor) os tempos da rememoração e da sua realidade atual no tempo/espaço da sua escrita literária. Pois o seu relato se desenvolve a partir do espelhamento de uma obra que se faz dentro da obra, na qual a narrativa que é elaborada na escrita de seu livro relata a sua história de amor, e de matança, com o sicário Alexis pelas ruas da cidade corrompida que ele reencontrou após anos de ausência. Medellín é, então, uma cidade cercada pelas comunas, um amontoado de bairros que comportam outro amontoado de pequenas casas, umas sobre as outras, nas encostas dos morros, de onde descem os sicários, meninos e rapazes que matam por encomenda: “Quando nasci, as comunas não existiam. Nem mesmo em minha juventude, quando parti. Encontrei-as na minha volta, em plena matança, florescendo, pesando sobre a cidade como sua desgraça” (Vallejo, 2006, 27).
A oposição entre o seu presente corrente e o seu passado perdido se desenvolve no decorrer da obra em simultaneidade com a história da Colômbia, pois faz emergir a transformação social, política e cultural degradante pela qual o seu país natal passou durante o período de sua ausência. Assim, distanciada do tempo de paz da sua rememoração, a democracia da sua Colômbia atual é a da liberdade para praticar o crime impunemente. E a democracia retratada na obra que o narrador desenvolve dentro da obra A virgem dos sicários, a partir do seu relato, é aquela que segue os passos do seu amante Alexis, um assassino profissional, sem pai e sem lei, que vive à margem das normas que estabelecem as regras que usualmente devem ser seguidas pela sociedade e que centraliza o relato do narrador: “Mas concentremo-nos em Alexis, que é a razão desta história” (Vallejo, 2006, 33).
Em Que é a literatura?, Jean-Paul Sartre faz uma diferenciação entre o que considera como as funções da poesia e da prosa, delegando a esta última a função de “engajamento político”. O filósofo elabora, então, algumas convicções sobre a literatura que condiziam com o seu momento histórico, e dentre elas a que afirma a literatura como inseparável da democracia: “A arte da prosa é solidária com o único regime onde a prosa conserva um sentido: a democracia. Quando uma é ameaçada, a outra também é” (Sartre, 2006, 53). Sartre propunha um engajamento literário que se identificava com as potencialidades do ato de escrever, principalmente com as potencialidades de ação histórica da sua época, como enfatiza Leyla Perrone-Moisés, no texto “Sartre, Barthes e Blanchot: a literatura em declínio?”:
É preciso lembrar o contexto histórico em que Sartre escrevia: o pós-guerra, quando a experiência da Ocupação, da Resistência, do horror nazista estava ainda muito viva na lembrança dos intelectuais, e palavras como “engajamento”, “liberdade” e “democracia” eram altamente valorizadas (Perrone-Moisés, 2007, 17).
Em seu texto, Perrone-Moisés discorre sobre a influência determinante que o texto de Sartre teve sobre os principais teóricos franceses da literatura na segunda metade do século XX. Entre eles, se encontra Maurice Blanchot, que se opõe frontalmente a Sartre quanto à questão do “engajamento”, pois a seu ver a tendência da obra literária é a de voltar-se para a sua própria essência, como enfatiza em “O futuro e a questão da arte”, de O espaço literário: “Aquele que reconhece como sua tarefa essencial a ação eficaz no seio da história, não pode preferir a ação artística. A arte age mal e age pouco” (Blanchot, 2011, 231). Para Blanchot, o espaço literário, apesar de manter semelhanças com o mundo real, é um mundo de regras próprias, que não intenta estipular uma verdade, um poder ou um saber na sua fala: “Entretanto, a obra – a obra de arte, a obra literária – não é acabada nem inacabada: ela é. O que ela nos diz é exclusivamente isso: que é – e nada mais. Fora disso, não é nada. Quem quer fazê-la exprimir algo mais, nada encontra, descobre que ela nada exprime” (Blanchot, 2011, 12).
Assim sendo, a democracia exercida pelo narrador de A virgem dos sicários consiste na liberdade da linguagem literária em se exprimir sem qualquer comprometimento com um engajamento que lhe seja exterior, exercício que se opõe frontalmente ao pensamento de Sartre e se aproxima da teoria de Blanchot sobre o direcionamento da literatura. A convicção da democracia como elemento propício para o exercício do fazer literário proposta por Sartre encontra no cinismo da enunciação do narrador de Vallejo um modo peculiar desse exercício de democracia, aquele que, se permitindo a tudo, se permite inclusive a ir contra o usual direito de democracia do povo:
Direitinhos humanos, para cima de mim? Julgamento sumário, e direto para o pelotão de fuzilamento, e do pelotão de fuzilamento, direto para o necrotério. O Estado está aí para reprimir e mandar bala. O resto são demagogias, democracias. Acabou-se a liberdade de falar, de pensar, de agir, de ir de um lado para outro superlotando os ônibus, porra! (Vallejo, 2006, 92).
Portanto, distante de qualquer engajamento intencional na sua fala, a escrita do narrador na obra de Vallejo não apresenta condescendência com nada e nem com ninguém, seja do governo ou do povo. A democracia que ele exerce pela linguagem literária nivela toda a dimensão da sua Medellín como corrupta e abjeta, pois quem oprime se iguala a quem é oprimido, uma vez que este também oprimirá o seu próximo pela violência. Desse modo, o narrador expõe as mazelas da sua terra natal, mas não se coloca como seu porta-voz, se voltando antes para a sua trajetória de amor e morte com Alexis, para a sua escrita: “Eu não pergunto. Sei o que vejo e esqueço. O que não posso esquecer são os olhos, o verde dos seus olhos, detrás do qual eu tentava adivinhar sua alma” (Vallejo, 2006, 16).
Se a democracia, por definição, seria um regime em que todo homem, sem distinções ou privilégios, teria o direito à voz, à liberdade de associação e de expressão, na Medellín do narrador esse direito é duplamente deturpado, uma vez que ele não só é permitido apenas para quem está no poder, como reverte a sua essência, transformando em crime o direito de se manifestar contra o crime, calando e reduzindo à inexistência aquele que não participa do esquema de crime e corrupção vigente: “‘A lei deve castigar o crime’. Mas qual lei, qual crime? Crime é o meu, por ter nascido e não estar instalado no governo, roubando, em vez de estar falando. Quem não está no governo não existe, e quem não existe não fala. Portanto, é calar a boca!” (Vallejo, 2006, 20). Porém, se o seu direito de voz lhe seria proibido enquanto cidadão por um governo opressor, nas linhas da sua escrita, amparado pela proteção do seu “anjo da guarda”, a história de Medellín faz voz através do relato em que se misturam o direito adquirido pela força da violência e aquele permitido pela ficção da escrita literária: “Aqui, sim, se sente Deus, e a alma de Medellín, que, enquanto eu viver, não morrerá, que vai fluindo por esta minha frase junto com os cento e tantos governadores que Antioquia teve, aos trancos e barrancos” (Vallejo, 2006, 39).
Dessa forma, a lei que impulsiona a sua narrativa é a lei imposta pelos sicários, a da liberdade de matar, sem prerrogativas ou justificativas, tendo como propulsão de cada morte que marca a trilha dos dois amantes pelas ruas de ódio e violência de Medellín a liberdade do narrador de tudo poder dizer na escrita de sua obra. “Tudo dizer” está no cerne da relação que Jacques Derrida estabelece entre a literatura e a democracia, em Essa estranha instituição chamada literatura. Para Derrida, poder reunir todas as figuras umas nas outras e, assim, transpor os interditos seria libertar todos os campos nos quais a lei pode se impor como lei. A literatura, então, se faria uma instituição que tende a extrapolar a instituição e marcaria o seu espaço não somente como o de uma ficção instituída, mas também como o de uma instituição fictícia, que permitiria, em princípio, dizer tudo:
A instituição da literatura no Ocidente, em sua forma relativamente moderna, está ligada à autorização para dizer tudo e, sem dúvida também, ao advento de uma ideia moderna de democracia. Não que ela dependa de uma democracia instalada, mas parece-me inseparável do que conclama a uma democracia por vir, no sentido mais aberto (e, indubitavelmente, ele mesmo por vir) de democracia (Derrida, 2014, 51).
A reunião de todas as figuras, umas nas outras, que liberta os campos da literatura e a autoriza a dizer tudo, segundo o pensamento de Derrida, está em igualdade com a amplitude de possibilidades que a ambiguidade fornece ao texto literário, de acordo com Blanchot, para quem a literatura é a linguagem que se faz ambiguidade: “Na literatura, a ambiguidade é como entregue aos seus excessos pelas facilidades que ela encontra, e esgotada pela extensão dos abusos que pode cometer” (Blanchot, 1997, 327-328).
Desse modo, neste artigo, a democracia será lida pelo viés da elaboração literária, pelo direito do sicário de fazer valer a sua própria lei através da escrita do narrador, o velho homem que volta à sua cidade natal “para morrer”, mas que, no encontro com o jovem que o destino lhe negara na juventude, morre apenas como ser do mundo, através da metamorfose que o faz emergir como elaborador da narrativa que arrasta a sua história de vida, e da sua terra natal, para as linhas da escrita que ele então elabora como autor:
A trama da minha vida é a de um livro absurdo em que o que deveria vir primeiro vem depois. É que esse livro, eu não o escrevi, já estava escrito: simplesmente fui cumprindo-o página por página, sem decidir. Sonho em escrever pelo menos a última, com um tiro, com minha própria mão, mas sonhos são sonhos e às vezes nem isso (Vallejo, 2006, 16-17)
Assim, a passagem do narrador de “personagem” passivo de uma história que se cumpria à sua revelia, e já previamente estabelecida, para a do autor que elabora a reviravolta da trama dessa vida é o exercício de democracia que ilustra de forma alegórica o extremo do pensamento sartreano, no qual a ação engajada exigida para defender a democracia – “e não basta defendê-la com a pena. Chega um dia em que a pena é obrigada a deter-se, e então é preciso que o escritor pegue em armas” (Sartre, 2006, 53) – é feita através da elaboração da trama na qual o autor empunha o revólver com a própria mão, pela mão que escreve cada tiro que a mão do sicário dispara no decorrer da narrativa de A virgem dos sicários:
“Seja o que for. O que eu queria mesmo era matar esse babaca”. “Eu o mato para você”, disse Alexis com aquela sua complacência sempre atenta a meus menores caprichos. “Deixa que da próxima vez eu puxo o ferro”. […] Ah, e transcrevi mal as amadas palavras do meu menino. Ele não disse: “Eu o mato para você”, disse: “Eu apago ele para você”. […] Mas, antes de continuar com o relato e antes que meu menino puxe o ferro, ouçam o que ele me contou e que quero lhes contar. (Vallejo, 2006, 24)
O ato da escrita torna-se um ato democrático, pois essa experiência se faz pelo trânsito entre o relato da rememoração da experiência originária do narrador e a reinvenção dessa experiência convertida em letra. O narrador, assim, reinventa a ação do real, a passada e a presente, via linguagem. Alexis difere do narrador por este ter um passado e ele não; porém, unificados, coincidem no mísero presente sem futuro que se sucede em horas e dias, vazios de intenção e cheios de mortos: “Deixei de ser um, e somos dois: um só inseparável em duas pessoas distintas” (Vallejo, 2006, 50). Dessa forma, é seguindo os passos do sicário, sua elaboração escrita, que o narrador retorna a Sabaneta, ao seu passado. E, através desse retorno, se direciona para a reescrita de um futuro, agora tornado passado, que o seu então passado lhe revelara:
Sabe?, Alexis: eu tinha na época oito anos e estava parado no alpendre dessa casinha, diante da janela de grades, vendo o presépio, e me vi como velho e vi minha vida inteira. E foi tamanho o meu terror, que sacudi a cabeça e me afastei. Não consegui suportar o golpe, assim, de cara, a queda no abismo. (Vallejo, 2006, 14)
O que o presépio mostrava ao narrador era a sua predestinação, o seu devir através de um sistema que não lhe possibilitaria escolha. As casinhas à beira da estrada do presépio lhe apresentavam as próprias casinhas à beira da estrada de Sabaneta, como se a realidade de dentro (a do presépio) contivesse a realidade de fora (a do mundo real). Assim, em um tempo anacrônico, pois é o tempo próprio da escrita literária, o narrador refaz esse caminho para o passado, porém seguindo os passos do sicário, o personagem que elabora, refazendo mais uma vez o trajeto pela estrada que outrora percorrera tantas vezes na infância, sobrepondo na sua enunciação os caminhos que se desdobram através de duplicidades que se desenvolvem paralelamente, a do seu momento presente com o do seu passado e a da sua narrativa sobre Alexis com a sua rememoração da infância:
Continuemos para Sabaneta no táxi que pegamos, pela mesma estradinha há cem anos esburacada, de buraco em buraco: é que a Colômbia muda mas continua igual, são novas caras de um velho desastre. Será que esses porcos do governo não são capazes de asfaltar uma estrada tão essencial, que passa bem no meio da minha vida? (Vallejo, 2006, 12).
O corte que a estrada de Sabaneta faz na vida do narrador percorre também toda a estrutura narrativa de A virgem dos sicários, pois é através dessa estrada que se faz o trânsito que leva do real para a rememoração, e desta para a reinvenção, na sua transposição pelo relato que se faz obra dentro da obra. Da mesma forma, acompanhando essa trajetória que segue por um caminho bifurcado, a narração que inicialmente intenta uma rememoração da história de vida do narrador logo se torna imprecisa, mais próxima do ficcional, pois os fatos são apresentados de modo vago e incerto, misturados com elementos presentes na sua narrativa sobre o sicário Alexis: “Já não sei, faz tanto tempo, já não lembro… Lembro que íamos de buraco em buraco, tum!, tum!, tum!, por aquela estradinha arrebentada” (Vallejo, 2006, 8). A base da estrutura narrativa da obra parte, então, da ambiguidade derivada da incerteza das lembranças infantis de um passado remoto e que é ainda reforçada pelos lapsos de memória do idoso de décadas depois:
A bomba já não estava lá, mas o bar, sim, com os mesmos telhados de vigas e as mesmas paredes de taipas caiadas. Os móveis eram de agora, mas pouco importa, sua alma continuava encerrada ali, e a comparei com a minha lembrança, e era a mesma, Bombay era o mesmo como eu sempre fui: menino, jovem, homem, velho, o mesmo rancor cansado que esquece todas as ofensas: por preguiça de lembrar. (Vallejo, 2006, 12-13)
O limiar entre rememoração e reinvenção se torna, então, muito tênue. Mesmo porque, a todo momento, o narrador enfatiza uma indiferença pela verossimilhança dos fatos narrados; assim como privilegia o esquecimento em detrimento da lembrança verídica, justificando a imprecisão dos fatos do seu relato pela falha de memória característica da velhice: “Aí já não sei, com essa memória cansada começo a embaralhar os mortos.” (Vallejo, 2006, 44). Enaltecendo ainda o presidente que governou a Colômbia por quatro anos com mal de Alzheimer, em detrimento do personagem de memória prodigiosa do conto “Funes, o memorioso” do escritor Jorge Luis Borges: “Para Funes, o memorioso, nosso ex-presidente Barco!” (Vallejo, 2006, 44); estabelecendo, portanto, o esquecimento como característica da História e a lembrança extremamente precisa como elemento fantasioso da ficção.
Assim, o narrador de Vallejo inicia a sua narrativa pelo fio (balão) perdido da infância, que abarca ainda uma nação íntegra, porém esse retorno somente se faz na rota dos passos do sicário que ele encontra no seu retorno a uma cidade destroçada pela iniquidade, figura que ele destaca como o elemento central da sua narração e, portanto, da sua elaboração escrita. Desse modo, os sicários, como continuidade viva das comunas, são os personagens que definem a atual situação “democrática” da Medellín reencontrada, que é descrita pelo narrador como uma cidade sem lei, na qual a democracia se configura como a liberdade do estado de impunidade: o direito de matar arbitrariamente. O conceito usual de democracia, na qual a liberdade que a conduz é a do exercício político, apenas ressurge envolta na nostalgia do passado, ainda que perpassada pela violência, no tempo de uma felicidade mágica que o narrador, entretanto, somente alcança na sua retomada pela escrita:
Ali, nas noites alvoroçadas de vaga-lumes e mariposas, à luz de uma Coleman, acalorados pela aguardente e pela paixão política, os conservadores e os liberais se matavam a machete, por ideias. Quais ideias, eu nunca soube; mas que maravilha! E a nostalgia do passado, do vivido, do sonhado ia desfranzindo meu cenho. (Vallejo, 2006, 89).
Lembrança, vivência e sonho se amalgamam, então, em oposição ao seu momento presente, marcado pela trivialidade do crime e pela brevidade da vida, uma vez que na Medellín do momento em que o narrador elabora a sua escrita não há mais lugar para discussões de ideias contrárias de partidos opostos, nem para a morte idealizada que deriva do fulgor da paixão política. Assim, em um mundo onde o assassinato é consequência da banalidade, matar ou morrer por um ideal se configura como uma prática de elevação moral:
Porque aqui, neste país de leis e constituições, democrático, tem essa história de que ninguém é culpado até que o condenem, e não o condenam se não o julgam, e não o julgam se não o pegam, e, se o pegam, o soltam… A lei da Colômbia é a impunidade, e nosso primeiro delinquente impune é o presidente, que nestas alturas deve estar farreando graças ao país e ao seu posto. (Vallejo, 2006, 19)
A ausência da especificidade do direito retira a possibilidade de justiça, assim como altera a noção usual de democracia, que é então reformulada. Portanto, tendo como exemplo primeiro e maior de impunidade o chefe do Estado, o regime político democrático na Colômbia do narrador passa a ser aquele exercido pelos sicários, assassinos profissionais adolescentes que desembocam nas ruas de Medellín oriundos das comunas, exercendo a lei que é ditada pelo revólver na matança contínua e aleatória que deixa um rastro de corpos pelo caminho. Rota que o sicário cumpre mas que é traçada pelo narrador-autor, a partir da transposição da sua realidade de mundo para as linhas da sua escrita literária:
Falo das comunas com a legitimidade de quem as conhece, mas não, só as vi de longe, suas luzinhas pulsando na montanha e na noite trêmula. Eu as vi, sonhei, meditei sobre elas dos terraços do meu apartamento, deixando que sua alma assassina e luxuriosa se apoderasse de mim. Milhares de pontinhos de luz acesos, que são casas, que são almas, e eu o eco, o eco entre as sombras. (Vallejo, 2006, 28-29)
Dessa forma, a transposição da realidade na ficção se faz na narrativa de A virgem dos sicários a partir do encontro do narrador com o jovem e belo sicário Alexis, a figura que ele cria e pela qual a alma assassina e luxuriosa das comunas se apodera de si, para então fazer ecoar nas linhas da sua escrita a trajetória de sangue e morte que impõe o ritmo da narrativa, tanto por aquele que a elabora como pelo seu próprio desdobramento no narrador-personagem, o apaixonado que segue os passos de matança de sua elaboração: “Aquele anjinho tinha a capacidade de desencadear em mim todos os meus demônios interiores, que são como minhas personalidades: mais de mil.” (Vallejo, 2006, 24-25). A trilha de mortes que o sicário Alexis traça, e que é elaborada pela escrita do narrador, deriva de outra trilha de mortes, aquela em que o narrador morre paulatinamente como ser do mundo para se metamorfosear no autor que elabora a escrita que relata essa metamorfose, pois A virgem dos sicários, a obra que é dada a ler ao leitor, deriva, ela própria, dessa transfiguração.
Essas transformações, que envolvem o autor e sua escrita durante o seu processo criativo, são ilustradas por Maurice Blanchot, no texto “A experiência de Proust”, de O livro por vir, a partir de sua definição das quatro metamorfoses pelas quais o escritor Marcel Proust passa para então adentrar no tempo puro, o tempo da escrita literária, que se dá, no decorrer da obra Em busca do tempo perdido, pelo movimento que mescla o relato de suas experiências pessoais à elaboração escrita da sua obra. Apesar de fomentado pelas observações e experiências do seu mundo cotidiano, esse relato somente dá o salto que o insere, juntamente com aquele que o elabora, no tempo peculiar da escrita literária depois de transpostas as duas primeiras metamorfoses desse movimento, aquelas que fazem desaparecer as figuras do homem do mundo e do escritor de romances. A partir de então, a terceira e a quarta metamorfoses acontecerão pela enunciação do relato do narrador proustiano de suas experiências até o ponto em que essas experiências o levam àquele ponto onde a escrita se iniciaria, quando então a obra se finaliza.
O relato do narrador de Proust é, então, a narrativa do movimento que o levaria a essa narrativa e, portanto, à própria narrativa, na qual, narrando a si, ele se metamorfoseia no personagem de seu livro e no autor dessa narrativa por ser também o seu elaborador, entrando, assim, na terceira e na quarta metamorfose, indissociáveis uma da outra, conforme mencionadas por Blanchot:
Ele só poderia exprimi-la, torná-la real, concreta e verdadeira, projetando-a no próprio tempo em que ela é realizada e do qual a obra depende: o tempo da narrativa na qual, embora ele diga “Eu”, não é mais o Proust real nem o Proust escritor que tem o poder de falar, mas sua metamorfose na sombra que é o narrador tornado “personagem” do livro, o qual, na narrativa, escreve uma narrativa que é a própria obra e produz, por sua vez, as outras metamorfoses dele mesmo que são os diversos “Eus” cujas experiências ele conta. (Blanchot, 2005, 20-21).
Na obra de Vallejo, o narrador retorna para Medellín para “morrer”, quando então, recebe como oferenda uma noite de sexo com o sicário Alexis. O encontro se faz pela oferta do vago amigo José Antonio Vásquez, uma figura que é apresentada pelo narrador a partir da ambivalência de sua composição: “José Antonio é o personagem mais generoso que conheci. E digo personagem, não pessoa ou ser humano, porque é isso que ele é, um personagem como que saído de um romance e não encontrado na realidade” (Vallejo, 2006, 11). O encontro amoroso acontece no apartamento do amigo, no quarto denominado “o quarto das borboletas”, espaço no qual José Antonio oferecia os rapazes aos amigos sem, no entanto, ele próprio nunca tocá-los. Nesse espaço, as dezenas, centenas, de relógios velhos, todos parados em horas diferentes, zombam da eternidade e negam a linearidade do tempo, se caracterizando como um espaço fora do tempo do mundo e em proximidade com a dimensão da morte: “Enfim, pelo apartamento de José Antonio, por entre seus relógios parados como datas nas lápides dos cemitérios, passava uma infinidade de rapazes vivos” (Vallejo, 2006, 11).
No quarto das borboletas não existiam borboletas, porém, desse encontro, o narrador sai metamorfoseado, pois nesse espaço atemporal o rasgo na ausência de tempo lhe permite adentrar no tempo que é fora do tempo, aquele que Blanchot caracteriza como o tempo peculiar da escrita literária, pois que essa brecha o introduz no tempo próprio da narrativa, que subverte a ordem cronológica do tempo real:
Pois é, imagine o senhor, não era um disparate que o destino viesse me encontrar concluindo o que me negara na juventude? Alexis devia ter aparecido na minha vida quando eu tinha vinte anos, não agora: em meu ontem remoto. Mas estava programado que nos encontraríamos ali, naquele apartamento, entre relógios quietos, naquela noite, tantos e tantos anos depois. Depois do que deveria ter sido, quero dizer (Vallejo, 2006, 16).
Imerso na dimensão desse tempo imaginário, o narrador-autor vive a experiência do tempo imaginário, ao fazer de si um ser imaginário, o narrador-personagem errante que segue o caminho de morte que o revólver do sicário executa e que põe em sobreposição o presente e o passado do narrador e da sua Medellín natal, experiência que é feita pela escrita e que o tira fora de si, arrastando-o no movimento que torna ele próprio, assim como a mão que descreve essa experiência pela ficção, como que também imaginário, conforme afirma ainda Blanchot:
A metamorfose do tempo transforma primeiramente o presente em que ela parece ocorrer, atraindo-o para a profundeza indefinida onde o “presente” recomeça o “passado”, mas onde o passado se abre ao futuro que ele repete, para que aquilo que vem volte sempre, e novamente, de novo (Blanchot, 2005, 23).
Compondo um tempo próprio, e se compondo a partir desse tempo próprio, a escrita literária também impulsiona um movimento que lhe é igualmente próprio, assim como é impulsionada por este movimento, aquele que Blanchot especifica como o movimento interminável e incessante da errância. Em A virgem dos sicários, esse movimento de errância se faz pelas andanças à deriva do narrador e de Alexis pelas ruas de Medellín, mas que, todavia, uma vez inserida na dimensão própria da escrita literária, por vezes se desvia para Sabaneta, sobrepondo o passado e o presente, assim como os mundos do real e do imaginário do narrador: “Quando regressei à Colômbia, voltei a Sabaneta com Alexis, acompanhando-o em peregrinação” (Vallejo, 2006, 8). O retorno, assim, se faz pelas linhas de sua escrita literária e segue, portanto, a metamorfose do tempo referida por Blanchot, na qual a sua trajetória se fará sobreposta entre o tempo vivido do passado, através da tentativa de rememoração, e a sua reinvenção, na transposição desse movimento na escrita.
Através desse caminho ambíguo, que abrange duas dimensões espaço-temporais em uma terceira, constituída por uma forma de espaço-tempo peculiar, as ações e alguns personagens se desenvolvem de forma desdobrada, indefinidos entre a dimensão do passado “real” do narrador e a da sua elaboração como ficção. É assim que, após a morte de Alexis, o narrador confessa ter subido uma única vez às comunas, em busca de conhecer a mãe do amado, uma mulher humilde e banal que não lhe apresenta nenhum traço em comum com o sicário, antes o remete à lembrança de uma empregada da sua família, portanto, a um tempo anterior (ou mesmo exterior) àquele percorrido por ele durante a sua errância com Alexis:
Evidentemente aquela mulher distante, que pela idade podia ter sido minha mãe, não era a que estava diante de mim, que podia ser minha filha. Além disso, quanto tempo não faria que essa empregada da minha casa tinha morrido! Será que as pessoas, os destinos se repetiam sobre o abismo do tempo? (Vallejo, 2006, 80).
O questionamento do narrador acerca da repetição que perpassaria o abismo do tempo, como se a insólita recorrência derivasse de um peculiar desdobramento temporal, se estende a outra forma de fratura temporal, aquela que distancia o tempo próprio da narrativa literária do tempo linear do mundo corrente. Dessa forma, uma mesma ação acontece na narrativa simultaneamente, misturando elementos do passado com os do presente e transformando o sujeito/personagem que sofre a ação, uma vez que a ação surge primeiro como uma lembrança do narrador, para em seguida lhe ser relatada por outro personagem como um acontecimento recente na narrativa. Assim, o Inhato, o detetive que perseguia veados no passado do narrador, e que fora morto há 30 anos no espaço onde no futuro seria construída a avenida Oriental, é assassinado nessa avenida na manhã em que o narrador rememora a sua primeira morte: “Igualzinho. Era ele mesmo. Mas, se tinham se passado trinta anos, como ele podia continuar igual? Aqui lhes deixo o probleminha, para que pensem nele” (Vallejo, 2006, 100).
Todavia, o insólito da questão que o narrador-autor intenta passar adiante ao seu leitor permanece fremente na sua mente confusa, uma vez que, apesar da idêntica compleição física que o morto no caixão tem com aquele de seu passado, o personagem recente é homossexual, oposição que desfaz o traço marcante do comportamento do seu anterior, o caçador de “veados”. A partir dessa diferença de identidade, apesar da mesma composição física, a questão que intriga o narrador se afasta da possibilidade da repetição de um mesmo acontecimento para a possibilidade da sua continuidade por duas dimensões, a do seu passado/realidade para o seu presente/ficção: “Mas, se não era o Inhato da minha juventude, por que era idêntico? E por que o mataram da mesma maneira, e no mesmo lugar e na mesma hora?” (Vallejo, 2006, 101).
Logo, em A virgem dos sicários, a morte se estabelece como o elemento propulsor da narrativa, pois as ações “morrem” no seu caráter de realidade para se metamorfosearem em ações ficcionais, nas quais cada assassinato narrado se liga ao próximo, formando uma cadeia sucessiva que compõe a trama da obra, da mesma forma que cada palavra se liga a outra na composição da escrita literária: “E continuemos com os mortos, que foi para isso que viemos” (Vallejo, 2006, 58). Assim como a morte impulsiona a errância do narrador e do sicário Alexis pelas ruas sangrentas de Medellín, ela se fez necessária para iniciar essa trajetória, através das mortes da metamorfose que fez o narrador renascer como o autor que elabora uma obra permeada pela matança.
Desse modo, quando a morte chega na narrativa para o “democrático” anjo exterminador, ela também se desdobra no seu elaborador, a partir da nomeação que lhe fora imposta pelo seu personagem elaborado, pois, momentos antes de ser fatalmente atingido, Alexis chama o narrador, pela primeira (e também última) vez, pelo seu nome, lhe designando, assim, a condição de um morto vivo que lhe é infligida pela nomeação: “Nos dias que se seguiram, meu nome dito por Alexis em seu último instante começou a me pesar como uma lápide” (Vallejo, 2006, 76). Assim, a nomeação que o autor não impõe ao seu personagem elaborado: “Alexis, hã-hã, é assim que ele se chama. O nome é bonito, mas não fui eu que pus, e sim a mãe dele” (Vallejo, 2006, 8), quando lhe é devolvida por sua (e na sua) elaboração escrita tem um efeito de aniquilamento, pois, como enfatiza Blanchot (1997, 312), a questão da nomeação na literatura está diretamente ligada à presença da morte, uma vez que, ao nomear algo, eu aniquilo esse algo, tiro a sua realidade de carne e osso, porque a palavra me dá o que ela significa, mas não sem antes o suprimir. Assim, a palavra me dá o ser que, no entanto, me chegará privado de ser: “Era a revelação inesperada do seu amor quando já não tinha objeto? Se fosse assim, com esse nome que apenas reconheço, a tal ponto que não ouso me olhar no espelho, Alexis estaria me puxando para seu abismo” (Vallejo, 2006, 76).
Em “A literatura e o direito à morte”, de A parte do fogo, Blanchot reflete sobre a presença da morte na linguagem no ato da nomeação, já que através dela a pessoa (ou a coisa) nomeada passa a ser separada dela mesma, tendo a sua existência e a sua presença subtraídas e mergulhadas em um nada de existência e de presença, trazido pela linguagem. Segundo o escritor, isso só se dá porque o ser nomeado é passível de morte, está ligado a ela e ameaçado por ela a cada momento de sua vida. Dessa forma, a morte fala na fala de quem fala. Entre falante e ouvinte há a presença da morte, ela é a distância que os separa, mas que os impede de estar separados, haja vista que está nela a condição de todo entendimento. Se somente a morte me permite agarrar o que quero alcançar nas palavras, ela é a única possibilidade de seus sentidos, afirma Blanchot, já que o poder de falar em mim está ligado também à minha ausência de ser:
Eu me nomeio, é como se eu pronunciasse meu canto fúnebre: eu me separo de mim mesmo, não sou mais a minha presença nem minha realidade, mas uma presença objetiva, impessoal, a do meu nome, que me ultrapassa e cuja imobilidade petrificada faz para mim exatamente o efeito de uma lápide, pesando sobre o vazio (Blanchot, 1997, 312).
Assim, se no mundo corrente a linguagem mata pela possibilidade da morte, na linguagem literária a perspectiva muda, a literatura é a própria impossibilidade da morte, é a busca pelo momento precedente à morte dada pela palavra, pelo que estava ali antes da nomeação. E se a morte confere sentido à existência é porque possibilita o fim, aspecto natural da condição humana. Dar à literatura a impossibilidade da morte, é dar-lhe o caráter do inumano, é desvincular a realidade do texto literário da realidade do mundo corrente. Estabelecer um fim é estabelecer um objetivo, é intentar um poder. E para Blanchot, a escrita literária é o oposto disso, é algo fora do poder, do objetivo certo, sendo a literatura o campo das possibilidades infinitas:
Quando recusa nomear, quando do nome faz uma coisa obscura, insignificante, testemunha de uma obscuridade primordial, o que, aqui, desapareceu – o sentido do nome – está realmente destruído, mas em seu lugar surgiu a significação geral, o sentido da insignificância incrustado na palavra como expressão da obscuridade da existência, de modo que, se o sentido preciso dos termos se apagou, agora se afirma a própria possibilidade de significar, o poder vazio de dar um sentido, estranha luz impessoal (Blanchot, 1997, 316-317).
A recusa da nomeação do narrador de A virgem dos sicários tem na sua origem um outro tipo de movimento de exercício democrático, o da abjuração. Pois a errância do narrador por Medellín, assim como se faz à margem da lei do Estado, também se quer fazer à margem da lei da Igreja e de Deus – e também do Diabo, uma vez que o narrador os reconhece como faces complementares de uma mesma figura. Assim sendo, as peregrinações pelas diversas igrejas de Medellín, que se alternam com os episódios de matança, não visam nenhuma intenção de redenção cristã, antes se fazem como outra forma de subverter a lei, através da abjuração, exercício de direito antirreligioso, e democrático, que está diretamente relacionado à questão da nomeação:
Desse modo, ao transfigurar a si como personagem da sua elaboração escrita, o narrador de Vallejo morre para o mundo dos homens, abjurando a sua condição cristã dada pelo batismo e rasurando a identidade que lhe foi imposta pelo nome civil que lhe fora designado. Arrastado pela escrita que elabora, o velho homem que retorna a Medellín para morrer, morre como ser do mundo e é impelido ao movimento incessante e interminável da errância da escrita literária. Chamado à vida pela nomeação que Alexis lhe confere antes da morte, e sem o anjo exterminador que marcava o ritmo de sua errância, o narrador sobe até as comunas em busca de rastros da existência anterior de Alexis, quando então se iniciam os desdobramentos de ações e personagens que não lhe permitem uma precisão das dimensões espaço-temporais das suas rememorações do passado e da sua realidade de mundo, assim como da transposição destas para as linhas da sua escrita: “Não inventei esta realidade, é ela que está me inventando” (Vallejo, 2006, 71).
Dessa imprecisão surge Wílmar, o personagem com quem o narrador reinicia a trilha de matança por Medellín, o sicário que assassina Alexis e se torna o novo amante e anjo da guarda do narrador, o exterminador que lhe possibilitará manter o exercício de democracia literária, dando, assim, continuidade à errância de sangue e morte que impulsiona a narrativa, através da ambiguidade que se faz pelo desdobramento de um personagem em outro, em tudo semelhantes, apenas diferenciados pela designação insuficiente da nomeação: “Disse a Alexis, desculpe, a Wílmar, que entrássemos.” (Vallejo, 2006, 85). A partir de então, a história de amor e matança com Alexis é refeita com Wílmar, levando o narrador a seguir o novo sicário em mais um retorno pela estrada que corta a sua vida, em uma nova peregrinação a Sabaneta, ao santuário da única figura de reverência na obra, a da Virgem Maria Auxiliadora, a virgem dos sicários, em uma busca pelo sentido que movimenta a sua errância e a sua escrita na fala que guarda o inaudito, e que está na essência da linguagem dos sicários: “Que pedirão? De que se confessarão? Quanto eu não daria para saber disso e de suas palavras exatas! Saindo como uma luz opaca da escuridão subterrânea, essas palavras me revalariam sua verdade mais profunda, sua intimidade mais oculta” (Vallejo, 2006, 49).
Porém, como elaboração escrita, que tem como base a ambiguidade, o sicário é indecifrável, uma vez que a sua errância impulsiona um movimento que não pode contentar-se com a estabilidade, levando a escrita do narrador a errar de forma contínua e sem direção, uma vez que não intenta um destino, e nem um fim, pois não pode intentar uma conclusão. Desse modo, seguindo a sequência de morte que é anterior, e será posterior, ao momento de sua escrita, o narrador recebe a notícia do assassinato de Wílmar momentos antes de deixar Medellín, quando então a narrativa de A virgem dos sicários se encerra. Entretanto, a cidade sem lei proverá outros sicários que darão continuidade à matança indiscriminada. E outros homens do mundo morrerão para renascer como os autores que escreverão os tiros que a mão do sicário executará, mantendo, pela continuidade da elaboração da escrita literária, o exercício de democracia que se faz obra.
Referências Bibliográficas
Blanchot, Maurice. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
Blanchot, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
Blanchot, Maurice. O livro por vir. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2005.
Derrida, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques Derrida. Tradução de Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
Perrone-Moisés, Leyla. “Sartre, Barthes e Blanchot: a literatura em declínio?”. In: Queiroz, André. (org.). Barthes/Blanchot: um encontro possível? Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, 15-28.
Sartre, Jean-Paul. Que é a literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Editora Ática, 2006.
Vallejo, Fernando. A virgem dos sicários. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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