Vária

Para uma reinterpretação de Cien años de soledad no contexto da globalização

In order to reinterpret Cien años de soledad in the context globalization

Gabriel Cordeiro dos Santos Lima
Universidade de São Paulo, Brasil

Para uma reinterpretação de Cien años de soledad no contexto da globalização

Revista Caracol, núm. 18, 2019

Universidade de São Paulo

Recepção: 22 Dezembro 2018

Aprovação: 01 Abril 2019

Resumo: Cien años de soledad (1967) é um dos livros mais lidos e comentados na história da literatura de língua espanhola. Já nos anos 60, o romance de Gabriel García Márquez se tornou a primeira obra de ficção latino-americana a alcançar a marca de 100 mil exemplares publicados anualmente. A partir de 1982, então, com a conquista do Prêmio Nobel de Literatura pelo autor, sua projeção global se tornou ainda maior. No campo acadêmico, um dos principais motivos para a continuidade dessa proeminência parece ser a crescente legitimidade dos estudos pós-coloniais e da chamada world literature nas principais universidades do planeta. Mas se, por um lado, é evidente que o interesse mundial pela obra segue intenso, por outro lado, a narrativa de García Márquez parece ainda mal situada em meio ao quadro literário das décadas de 1950 e 1960 ao qual pertence. Como Cien años… se localiza em relação ao panorama em questão? Como sua forma dialoga com as propostas de outros escritores relevantes nesse âmbito? Para responder essa pergunta, o presente artigo sugere que Cien años… seja uma das primeiras obras pós-modernas na história da América Latina, razão pela qual deve ser discutida à luz do tema da globalização.

Palavras-chave: Cien años de soledad, Gabriel García Márquez, Romance latino-americano, Globalização.

Abstract: Cien años de soledad (1967) is one of the most read and commented books in the history of Spanish-language literature. Already in the 1960’s, Gabriel García Márquez’s novel became the first Latin American fiction to reach the mark of 100,000 copies published annually. From 1982 onwards, with the award of the Nobel Prize for Literature by the author, its overall projection became even greater. In the academic field, one of the main reasons for the continuity of this prominence seems to be the increasing legitimacy of postcolonial studies and the so-called world literature in the main universities of the planet. But if, on the one hand, it is evident that the world’s interest in the work remains intense, on the other hand, the narrative of García Márquez seems still poorly situated in the midst of the literary framework of the 1950s and 1960s to which he belongs. How is Cien años… located in relation to the panorama in question? How does its form dialogue with the proposals of other relevant writers in this field? In order to answer these questions, this article suggests that Cien años… is one of the first postmodern works in the history of Latin America, which is why it must be discussed in the light of the theme of globalization.

Keywords: Cien años de soledad, Gabriel García Márquez, Latin-American novel, Globalization.

Everyone from Clinton to Castro listens to him. But can he help rescue Colombia from left-wing guerrillas and right-wing death squads?

Jon Lee Anderson, The power of García Márquez, 1999

No princípio, Macondo é “una aldea de veinte casas de barro y caña brava construidas a la orilla de un río de aguas diáfanas que se precipitaban por un lecho de piedras pulidas, blancas y enormes como huevos prehistóricos”(García Márquez, 2007, 9). Ao ser tocado pelo mundo exterior, no entanto, o vilarejo ganha partidos políticos e começa a guerra. Nela toma parte o Coronel Aureliano Buendía, que “promovió treinta y dos levantamientos armados […], tuvo diecisiete hijos varones de diecisiete mujeres distintas[…], Escapó a catorce atentados[…], sobrevivió a uma carga de estricnina en el café”(García Márquez, 2007, 125) etc. Entre as heroicas aventuras do militar, seus parentes vivem intrigas amorosas e um deles chega a dar “sesenta y cinco veces la vuelta al mundo”(García Márquez, 2007, 111). De fato, por toda a Macondo, eventos extraordinários acontecem: um padre levita, um homem volta da morte para conversar com seu assassino e uma jovem ascende aos céus. A certo ponto da história, porém, um episódio muito realista se desenrola: uma companhia agrícola estrangeira chega à cidade para explorar suas condições favoráveis ao plantio de banana. Os habitantes de Macondo se alvoroçam com o surto de modernização, mas se assustam quando a empresa promove um massacre de trabalhadores. Finalmente, a cidade é abandonada pelo mundo exterior. É então que, após muitas tentativas frustradas, o último descendente do Coronel Aureliano decifra um manuscrito antigo, escrito por um alquimista misterioso, que prenuncia o fim de Macondo em um vendaval apocalíptico o qual, efetivamente, varre a cidade do mapa para sempre.

A trama de Cien años de soledad (1967), de Gabriel García Márquez, é já bastante conhecida e, para o bem ou para o mal, não se pode negar que é um fenômeno na história da literatura de língua espanhola. Por um lado, até 2017, o livro foi traduzido para 35 idiomas diferentes e vendeu mais de 50 milhões de exemplares,[1] não deixando dúvidas quanto ao interesse que despertou – e ainda desperta – no público leitor. Por outro lado, no que diz respeito à crítica, o romance motivou a entrega do Prêmio Nobel de 1982 a seu autor; se tornou tema de um guia de leitura de Harold Bloom (2006); ganhou edição especial da Real Academia Española (2007); recebeu incontáveis homenagens e foi assunto de incontáveis obras críticas, artigos, teses, palestras e simpósios, figurando também em listas de leituras obrigatórias de inúmeras disciplinas universitárias – o que dá uma ideia de sua legitimidade junto ao cânone. Por tudo isso, passados cinquenta anos de sua publicação, já se pode dizer com segurança que Cien años… conquistou o raro estatuto de best-seller acolhido pela Academia.

O fato de se tratar de um dos primeiros romances do Terceiro Mundo a lograr tal feito não é menos significativo. Em verdade, tanto o sucesso acadêmico-comercial surpreende em relação à condição periférica do colombiano García Márquez quanto esta última parece estar justamente na raiz do fenômeno. Desde sua publicação, a obra provoca uma curiosidade ímpar por parte do público primeiro-mundista, sobretudo em razão da mistura de narrativa oral com supostos elementos culturais locais e episódios insólitos que viria a ser conhecida como realismo mágico. E se essa categoria foi atacada por parte da crítica a partir dos anos 1980, atualmente atrai a atenção dos estudos pós-coloniais e da chamada world literature nas principais universidades do planeta.

Discutir Cien años… hoje, portanto, significa tratar não apenas da situação da literatura latino-americana no final da década de 1960, mas também partir de uma obra-chave para a discussão de temas extremamente atuais, como as fronteiras entre literatura para leitores e literatura para críticos, os sentidos e possibilidades do multiculturalismo, a identidade latina e as desigualdades entre Sul e Norte. Significa, então, tentar responder a perguntas como: de que forma Cien años…foi capaz de conciliar o sucesso junto ao grande público e a boa recepção de pelo menos um setor relevante da intelectualidade? Quais as razões para seu êxito expressivo tanto no Primeiro quanto no Terceiro Mundo? E como a obra se relaciona com seu respectivo contexto histórico-literário, tanto em nível local quanto internacional?

Nos últimos decênios, nem a teoria literária nem os estudos culturais têm se mostrado capazes de resolver essas questões de maneira satisfatória. É verdadeiramente difícil não dar razão a Ricardo Roque-Baldovinos quando este afirma que Cien años de soledad é “perhaps the most commented upon and worst understood book in the Latin American literary canon(2001, 77). O presente artigo tem por objetivo oferecer uma contribuição ao debate, sustentando que a razão para a confusão da crítica é a compreensão de García Márquez como um autor exclusivamente modernista. Ao contrário, buscar-se-á demonstrar que Cien años… é uma das primeiras narrativas efetivamente pós-modernas na história da literatura da América Latina, razão pela qual deve ser interpretada e discutida à luz do tema da globalização. Vejamos:

Curiosamente, na América Latina dos anos 1960, tanto os socialistas (Ángel Rama e Antonio Candido) quanto os formalistas (o principal deles, Rodríguez Monegal, tendo recebido dinheiro da própria Central Intelligence Agency (CIA)) se unificavam em plena Guerra Fria quando afirmavam que Cien años de soledad pertencia ao modernismo. Em relação a isso, até mesmo em meio a uma polêmica, o filósofo pós-marxista Marshall Berman e o historiador comunista Perry Anderson concordariam. Diria este último:

É significativo que tantos dos exemplos do que Berman considera como as grandes realizações modernistas do nosso tempo sejam tirados da literatura latino-americana. Pois no Terceiro Mundo, de modo geral, existe hoje uma espécie de configuração que, como uma sombra, reproduz algo do que antes prevalecia no Primeiro Mundo. […] Foram estas condições que produziram as verdadeiras obras-primas dos anos recentes que se conformam às categorias de Berman: romances como Cien años de soledad, de Gabriel García Márquez, ou Midnight’s Children, de Salman Rushdie, na Colômbia ou na Índia (1984,12).

As correntes pós-coloniais dos anos 1980 em diante, que efetivamente mais se opuseram a Cien años… do que o exaltaram, também estão de acordo em relação a esse entendimento. John Beverley, por exemplo, indiscriminadamente classifica toda a literatura latino-americana dos anos 1960 como “Latin American equivalente of Anglo-European high modernism”(1993, 112) e Idelber Avelar se refere muito à “pulsão modernizadora” dos romances de então (2003, 22).

É certo que tudo isso vale para as narrativas de escritores contemporâneos a García Márquez, como Julio Cortázar e Carlos Fuentes, mas não para Cien años…. O modernismo dos primeiros representou, sim, um tour de force de modernização literária (“pulsão modernizadora”, para Avelar (2003, 22)), por sua vez análogo ao esforço de modernização geral da América Latina. Tal impulso encontrou solo fértil na década de 1960, em meio aos processos significativos de crescimento econômico, industrialização e urbanização do continente; sendo mesmo tentador associar sua ousada proposta de suplantar o Primeiro Mundo no manejo das técnicas modernistas à doutrina macroeconômica de substituição de importações que então vigorava em parte da periferia. O pós-modernismo de García Márquez, no entanto, insere-se muito mais em um cenário de desilusão quanto a essa mesma modernização, em meio ao estabelecimento das ditaduras militares latino-americanas e ao pressentimento da crise econômica dos anos 1970. Nesse novo quadro, a proposta do realismo mágico não será modernizara literatura provinciana, mas torná-la pós-moderna, inserindo-se no panorama literário globalizado não como um superador dos romances do Primeiro Mundo, mas como um produto identitário.

O enorme impacto dessa nova proposta estabelece uma série de contradições, típicas da reviravolta cultural que estava posta. Em primeiro lugar, a narrativa latino-americana finalmente teria conseguido vencer a literatura do centro do capitalismo – pelo menos em termos comerciais – justamente por não tentar fazê-lo. Em segundo lugar, seria justamente esse impacto que inauguraria uma era de interesse sem precedentes por romances periféricos, assim catapultando retroativamente a venda dos artefatos do modernismo local e produzindo o fenômeno que viria a ser conhecido como boom. Esse entendimento permite não apenas reinterpretar a obra de Gabriel García Márquez, mas também lançar as bases para uma nova teoria do romance latino-americano das décadas de 1950 e 1960, pensando problemas extremamente contemporâneos.

Portanto, dizer que o realismo mágico é pós-modernista não é mera opção classificatória. Trata-se antes de demonstrar, na própria forma de Cien años de soledad, uma mudança cultural de grandes proporções no cenário mundial. Pois aqui não se entenderá o conceito de pós-modernismo apenas como um movimento artístico ulterior ao modernismo, como tampouco se conceberá o global meramente como uma rede de economias e culturas mais ou menos integradas. Antes, pensar-se-á a noção de globalização como uma fase do modo de produção capitalista cuja gênese remonta ao período pós-Segunda Guerra Mundial, cuja lógica cultural hegemônica é necessariamente o pós-modernismo e cujas questões fundamentais permanecem candentes nos dias atuais. Tal entendimento, por sua vez, justifica uma primeira digressão. Vejamos:

Como se sabe, Ernest Mandel (1985) foi o primeiro a teorizar essa nova fase do capitalismo, que designou por capitalismo tardio em oposição à fase do imperialismo.[2] Grosso modo, se esta última se caracterizava pelos monopólios na grande indústria, pela exploração exclusivamente tributária de enclaves pré-capitalistas (por exemplo, no campo) e pela busca de novos mercados (que teria por consequência a guerra imperialista), a fase tardia, para Mandel, se caracterizaria pelo efetivo domínio de esferas até então não atingidas pelo sistema – daí seu caráter global. Fredric Jameson chamará essa nova fase ora de globalização (2017), ora de capitalismo multinacional e de consumo(1996,61), identificando nela “algo novo e historicamente original: a penetração e colonização do Inconsciente e da Natureza, ou seja, a destruição da agricultura pré-capitalista do Terceiro Mundo pela Revolução Verde e a ascensão das mídias e da indústria da propaganda” (1996, 61).

Do ponto de vista da cultura e do debate sobre Cien años… a definição importa na medida em que, na teoria jamesoniana que serve de base a este artigo, estabelece as fronteiras artísticas certamente fluidas entre o modernismo correspondente à fase imperialista do capital e o pós-modernismo que Jameson classificará como a “lógica cultural do capitalismo tardio” (1996). Não se trata, vale ressaltar, de uma concepção determinista das relações entre base econômica e fenômeno cultural, mas de um estabelecimento de correspondências e distinções justificado pela análise das características de tais fenômenos quando confrontadas com as características das sociedades das quais emergem. É nesse sentido que Jameson definirá o modernismo como uma hostilidade em relação ao mercado.

Entre os modernistas, ressaltará o crítico, tal ojeriza seria favorecida pela persistência, dentro da vida moderna em que estavam imersos, de elementos residuais pré-capitalistas. Assim o artesanato para o trabalho, o ancien régime para a política, a agricultura de subsistência e o pequeno comércio para a economia etc. A simples existência em algum lugar do planeta desses resíduos permitiria imaginar uma arte autônoma; isto é, regida exclusivamente pelos princípios de composição do artista; um todo encerrado em si mesmo, capaz de aspirar a uma condição não-mercadológica. Daí também a notável elaboração técnica do modernismo que visava o domínio da criação pelo escritor, proliferando estilos idiossincráticos e tornando a literatura mais complexa a ponto de restringir sua capacidade de circulação. Entre muitos exemplos, dizia o modernista Wiliam Faulkner –“maestro” de García Márquez, segundo o próprio – que só foi possível escrever The sound and the fury(1929) depois que as portas das editoras lhe haviam sido fechadas (1974, 158-159).

Já a razão social do pós-modernismo, como dito, deve ser buscada na eliminação precisamente dessas condições que possibilitavam aspirar à autonomia. Assim ocorre a universalização da abstração do tempo no trabalho, a consolidação geral da democracia burguesa na política, o agrobusiness de pesticidas e o mercado mundial na economia, e o estabelecimento decisivo de uma mega-indústria de publicação, venda e propaganda no âmbito da cultura. Nesse novo cenário, a autonomia da arte e os princípios de composição do artista passariam a importar menos, suplantados por uma hegemonia efetiva daquilo que Adorno e Horkheimer, em 1944, chamavam de indústria cultural(1985, 99). Em outras palavras, a arte – ou qualquer outra coisa – definitivamente já não poderia mais desejar não ser mercadoria. Daí que o pós-modernismo retorne insistentemente às formas do modernismo não mais para cumprir seu projeto emancipatório original, mas para torná-las tema das obras. A esse procedimento, Jameson dará o nome de pastiche: “o imitar de um estilo único, peculiar ou idiossincrático”, o “colocar de uma máscara linguística” em “uma prática neutralizada de tal imitação” (1996, 44-45). Isto é, no capitalismo tardio, a literatura pós-modernista reagirá à sua própria mercantilização incorporando a high culture modernista como pastiche e os elementos apropriados ou diretamente produzidos pela cultura de massa (o kitsch, o romance policial, a televisão) como aceitação.

Nesse contexto, o primeiro truque de Cien años de soledad consiste em apresentar uma estrutura literária ambígua, que mobiliza tanto técnicas da narrativa oral, misteriosa e mágica (palatáveis ao leitor), quanto pastiches da alta narrativa modernista (essa bem recebida em determinados círculos da crítica especializada sobretudo no Terceiro Mundo). A opção por uma modulação tal explica parte do duplo triunfo nos âmbitos comercial e acadêmico, e contrasta expressamente com as estratégias adotadas por outros romancistas latino-americanos do final dos anos 1960 – notadamente Alejo Carpentier, Julio Cortázar e Carlos Fuentes – cujas obras formam o que poderíamos chamar de um modernismo tardio(Jameson, 2005, 87) e periférico, altamente preocupado com a questão da autonomia artística, portanto e consequentemente vinculado a um circuito literário de elite. Em verdade, são justamente os procedimentos narrativos de Carpentier, Cortázar e Fuentes que são parodiados nas páginas de Cien años…, por meio do pastiche.

Não obstante, do ponto de vista composicional, o segundo truque de García Márquez consiste em mobilizar elementos propriamente complexos apenas no nível do enredo. Desde os anos 1970 parte da crítica chama a atenção para a trama elaborada de Cien años de soledad, com sua arquitetura mais ou menos simétrica de pares e antíteses semióticas (por exemplo, seus personagens cujas características e ações são compartilhadas e/ou se opõem às de outros), dados iniciais que se revelam profecias e um sentido de história dentro da história (metalepse ou mise-en-abyme).[3] Tudo isso, porém, não deve se confundir com a complexidade modernista, estabelecida no nível da técnica e da exploração da consciência, da experimentação linguística e da aleatoriedade. Antes, García Márquez mobiliza artifícios da história bem contada, do enredo bem feito, mais propriamente encontráveis na literatura pré-moderna, como As mil e uma noites ou as narrativas didáticas do infante D. Juan Manuel. Também nesse âmbito, quando sua técnica narrativa promove mudanças na perspectiva cronológica dos fatos narrados – a famosa prolepse que volta ao passado – não o faz para confundir o sentido do tempo à modernista, mas para capturar a atenção do leitor à maneira da história oral, à maneira do narrador de Nikolai Leskov estudado por Walter Benjamin (2012, 197).

Essa característica narrativa se deve precisamente à lógica cultural pós-modernista, que se apropria dos elementos residuais pré-capitalistas (como os contos de fada ou as histórias de heróis), incorporando-os à cultura comercializada junto à massa. Aí entra o terceiro truque fundamental de Cien años…: fazer parecer, no âmbito da matéria narrada, que tal se trata de um manejo de elementos da literatura milenar itself, tornado possível por condições não-modernas latino-americanas, mesmo o livro tendo sido escrito no contexto do capitalismo tardio do final dos anos 1960. Por isso, embora não consiga se desligar totalmente de uma perspectiva externa (cosmopolita), seu narrador é sempre entendido pela crítica como um dos personagens pitorescos da própria história (provinciana), seja o profeta-alquimista Melquíades ou o filólogo Aureliano Babilonia. Discutir esse macete, porém, justifica uma segunda digressão sobre o capitalismo tardio.

Para os fins da presente argumentação, o caráter multinacional da globalização é tão importante quanto seu caráter de consumo, pois nessa nova fase, na medida em que aniquila sua alteridade (o pré-capitalismo), o assim chamado mundo desenvolvido se lança à procura de “novos outros” ao mesmo tempo em que incorpora os lugares geográficos onde estes poderiam existir (o mundo subdesenvolvido) à sociedade capitalista mundializada. Não obstante, coincide com o processo a descolonização de dezenas de países na África em finais dos anos 1960. Tudo isso somado, se produz na segunda metade do século XX um fenômeno ambivalente de construção de identidades locais na periferia e demanda por identidades exóticas no centro do capitalismo mundial. É nesse cenário que García Márquez intervirá com a estética do realismo mágico, trabalhando a dimensão identitária e exóticado ser latino-americano, assim produzindo um dos primeiros blockbusters literários da economia global. Sem dúvida a atribuição dos acontecimentos insólitos (levitações, ressureições etc.) e dos recursos da narrativa pré-moderna a uma periferia supostamente encantada farão parte do programa mágico-realista, que antecipará questões fundamentais ao século XXI, como a políticaidentitária ou a lógica do lugar de fala (ou “locus de enunciação”, conforme Walter Mignolo (2007, 158)).

Entretanto, esse desrecalque localista, ao menos no caso de Cien años… não pode ser atribuído a uma presumida inocência. O romance é, na verdade, uma crônica da modernização periférica. Suas últimas páginas narram um mundo desencantado, no qual o capitalismo triunfa, aniquilando precisamente as condições sociais arcaicas do misticismo e da fabulação oral. Isto é, García Márquez demonstra plena consciência do que está em xeque em seu tempo; a saber, a conciliação entre desenvolvimento e identidade, a grande utopia dos escritores modernistas periféricos sequestrada pelas ditaduras militares locais que começavam a conduzir a modernização à direita. Em meio a esse quadro, a insistência do autor nos mitos mágicos que marcam presença literalmente até sua última frase demonstra não se tratar de um retorno nostálgico ou de um nachträglichkeit freudiano, mas de uma opção programática pós-modernista viabilizada – e requerida – pelas condições já mencionadas no âmbito da indústria cultural. Que a editora Carmen Balcells tenha corrido o mundo para preparar as condições de lançamento do livro em uma escala nunca antes vista não apenas demonstra a mercantilização da cultura que possibilitou Cien años…, como demonstra o sucesso com que este foi capaz de cumprir magistralmente o que a lógica da cultura sob o capitalismo tardio requeria em 1967.

Retomando: ao caráter multinacional e de consumo da globalização, Cien añosresponde com o realismo mágico e com a forma literária pós-modernista. Nesse sentido, mobiliza: 1) elementos da alta narrativa modernista (ou tardo-modernista) autônoma por meio do pastiche, 2) elementos da narrativa oral e pré-moderna apropriados pela indústria cultural e 3) elementos de construção da identidade latino-americana. Assim, edifica uma estrutura literária ambígua, capaz de jogar nos campos da alta cultura e do consumo de massa, da demanda pelo exótico no Primeiro Mundo e da produção identitária no Terceiro – o que, por sua vez, explica o êxito junto ao grande público e pelo menos parte da intelectualidade, bem como o enorme sucesso junto aos leitores da periferia e do centro do capitalismo, ou, no caso mais extremo, entre atores políticos tão antagônicos quanto o regime socialista cubano e o Partido Democrata Estado-Unidense. Seria preciso apenas ressaltar: tais êxitos são propiciados pelas condições favoráveis do próprio sistema multinacional e de consumo, bem como da lógica cultural pós-modernista, que simultaneamente favoreceu a produção e criou a inédita procura pela forma literária que Gabriel García Márquez soube prover como ninguém.

Nesse sentido, Jameson está totalmente correto ao classificar Cien años… como “a literary Earthquake which happened just fifty years ago and marked the cultural emergence of Latin America onto that new and largerst age we call globalization (2017, 21). A questão fundamental que se levanta, então, é: seria o realismo mágico uma forma eficaz para tratar criticamente dos problemas da periferia no mundo globalizado, dentre os quais a desagregação social e seus sintomas de desigualdade abissal, violência e autoritarismo? Sem dúvida a proposta de García Márquez para esse mundo consistia em uma atuação política de esquerda, que se aproveitava dos holofotes conquistados para apelar aos espectadores que “as espécies condenadas a cem anos de solidão tenham uma segunda oportunidade sobre a Terra” (García Márquez, 2014, 14). A famosa tentativa de levantar o embargo a Cuba a partir de conversas com Bill Clinton é emblemática a esse respeito. Mas e o estatuto da forma literária?

Tentar responder a tais perguntas pode ajudar a desfazer o nó criado por García Márquez, assim contribuindo para desvendar os segredos de um romance que permanece sendo instrumento fundamental de construção e interpretação da identidade latino-americana.

Referências bibliográficas

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Notas

[1] Os dados são do pesquisador colombiano Nicolás Pernett, curador do acervo de Gabriel García Márquez na Biblioteca Nacional da Colômbia. Ver: Cosoy (2017). Recentemente o pesquisador da Unicamp Felipe de Paula Góis Vieira apresentou a cifra de 150 milhões de exemplares que, todavia, parece pouco verossímil. Ver: Vieira (2017).
[2] Como também se sabe, na tradição marxista, o primeiro teórico relevante da fase imperialista do capital foi Lenin.
[3] O principal estudo desses traços é, sem dúvida, Cien años de soledad: una interpretación, de Josefina Ludmer(1974).
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