Resenhas
Una suave, tierna línea de montañas azules. Nicolás Guillén y Haití. Emilio Jorge Rodríguez. La Habana, Cuba: Fondo Editorial Casa de las Américas, 2017, 362 p.

| Rodríguez Emílio Jorge. Una suave, tierna de montañas azules. Nicolás Guillén y Haiti. 2017. Cuba. Fondo Editorial Cassa de las Américas. 362pp. |
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Recepção: 12 Fevereiro 2019
Aprovação: 20 Fevereiro 2019
Às 18h do dia 4 de setembro de 1942, o poeta cubano Nicolás Guillén (1902-1989) desembarcou no Haiti pela primeira vez para uma viagem que duraria até o dia 30 de outubro do mesmo ano. Em ambos os momentos, de chegada e de partida, o escritor esteve acompanhado da intelectualidade haitiana do período, que se sentia ansiosa não só por conhecê-lo, mas também pelas repercussões sociais e culturais consequentes de sua estadia. Naquela altura, Guillén já havia publicado livros de grande repercussão, como Sóngoro Cosongo: poemas mulatos(1931), West Indies Ltd. (1934) e Cantos para soldados y sones para turistas (1937), e era conhecido como o poeta que havia modificado a camada fônica da poesia em língua espanhola a partir da incorporação vanguardista das marcas de oralidade da fala da população afrocubana, no que traziam de rastros de línguas e culturas africanas, por sua vez aclimatadas ao solo tropical da ilha e às influências da colonização espanhola. Ademais, era conhecido por sua militância pela incorporação dos negros à vida civil, ligada ao seu marcado histórico com o comunismo, que culminouno ingresso ao Partido Comunista em 1937.
O último livro do crítico literário Emilio Jorge Rodríguez, una suave, tierna línea de montañas azules. Nicolás Guillén y Haití (Casa de Las Américas, 2017), aventura-se na tarefa de destrinchar os vários caminhos para a compreensão da viagem no imaginário caribenho, a tal ponto que mais do que um diário de viagem escrito em terceira pessoa, o ensaio parece tratar da presença do imaginário haitiano na literatura cubana, assim como do imaginário cubano na literatura do Haiti, do século XIX até 1957, ano em que François Duvalier assume a presidência do Haiti, e pouco antes da Revolução Cubana e da entrada ao poder de Fidel Castro, eventos que influenciaram completamente os anos seguintes. Desse modo, trata-se não só de um livro sobre Guillén, já por si um mérito na medida em que traz uma visão distinta à crítica conhecida do poeta, centrada ora nos traços vanguardistas ora em suas escritas da “mulatez”, mas também de um livro sobre as relações literárias e sociais entre os países. Para isso, está dividido em quatro capítulos, “Convergencias de dos historias” e “El diálogo horizontal”, dedicados a desenhar o panorama dos diálogos entre Cuba e Haiti, “Nicolás Guillén – la visita memorable”, em que se descreve e analisa os dias de viagem do poeta cubano e, por fim, “Amistades electivas y proyectos culturales”, em que o autor se debruça com mais detalhamento sobre os projetos estabelecidos entre os intelectuais envolvidos na cooperação, bem como a repercussão próxima da viagem.
Para Rodríguez, os contatos entre Haiti e Cuba remontam aos tempos coloniais e foram intensificados e mais visibilizados a partir do século XVIII. No Haiti, trata-se do período em que irrompem as revoltas dos escravizados que alcançaram primeiramente à abolição da escravidão em 1754 e, posteriormente, à Revolução de 1804, que levou o país a se tornar o primeiro independente nas Américas. Por outro lado, é o período em que aumenta a migração em direção ao Oriente cubano, que seria intensa durante o século XIX, um século que para os haitianos foi de instabilidade política. A migração foi composta de amos, (ex) escravos, famílias inteiras e, nesse entremeio, de pessoas que buscavam propagar as ideias emancipadoras da Revolução em Cuba, país que manteve, ao cabo, um regime escravista oficialmente até 1886. O aumento dos contatos entre os dois povos parece ter levado à ampliação da presença do Haiti nos enunciados produzidos em Cuba, contudo, desde sua entrada no discurso, o imaginário haitiano era depreciado, sendo lido no período ora como “afrancesamento” das letras ora como temor, algo do qual se devia ter receio.
O “medo ao Haiti” será base discursiva de vários enunciados do período, tanto literários – como é o caso de Aponte, de Calcagno, e suas cenas de conspirações por meio do vodu, ou de Sab, da escritora abolicionista Gertrudis Gómez de Avellaneda – quanto políticos, caso dos discursos de Félix Varela a favor da abolição da escravidão. Nesse campo, a exceção foi José Martí, leitor cuidadoso do importante De l’égalité des races humaines, do antropólogo haitiano Anténor Firmin, obra que, inclusive, foi encontrada entre seus bens quando da morte do herói cubano. Isso posto, o medo às ideias libertárias do Haitiseguiu até o século XX: Rodríguez aponta como o antecedente haitiano foi referência quase obrigatória nos conflitos raciais que aconteceram no período republicano, especialmente aqueles envolvendo o Partido Independiente de Color (PIC), primeira agrupação política formada por negros em Cuba, com vistas a reivindicar pautas que favorecessem a inserção na vida civil dos afrocubanos no pós-abolição. O partido durou de 1908 a 1912 e desapareceu depois de um massacre a todos os seus membros, promovido pelo governo de José Miguel Gómez. O evento, com todo o debate ideológico envolvido, marcou a vida e o pensamento de Nicolás Guillén.
Ter em mente o histórico de Guillén não é tarefa de menor importância para compreender a relevância da estadia haitiana para a historiografia literária das Antilhas, já que não se tratou de uma viagem turística, mas da tentativa de implementação de uma relação mais profunda entre os países, tanto política como cultural, que revertesse o imaginário negativo do Haiti. Nesse sentido, sua infância corre paralela não só à fundação e repressão do PIC, como também à intervenção norte-americana na ilha, que gerou, entre outras coisas, grande discriminação aos mambises negros, como eram chamados os homens que haviam lutado pela independência de Cuba. Para além dos próprios textos de Guillén, o período republicano foi marcado por discussões sobre a população afrocubana, sua cultura e espaço dentro da nação: é o caso dos textos de Alejo Carpentier, Fernando Ortiz e Lydia Cabrera publicados em distintos veículos midiáticos, entre eles a Revista de Avance, periódico de vanguarda editado entre 1927 e 1930, e, no caso do primeiro autor, foram especialmente importantes os textos escritos para o periódico El Nacional, na Venezuela. Rodríguez menciona ainda a importância da obra (bem como a crítica) de Wifredo Lam, e, com ênfase, a relevância do periódico Átomo, editado por Pedro Deschamps Chapeaux, porta-voz da luta dos afrodescendentes contra o racismo.
Para o debate sobre o imaginário haitiano durante a República, faz-se importante trazer um contemporâneo de Guillén: Alejo Carpentier. Inclusive, vale notar que se é conhecido o apreço de Carpentier pela história e cultura da ilha de Toussaint L’Ouverture, que o levou a uma viagem para conhecê-la em 1943, Rodríguez aponta que o primeiro agente cultural que chegou ao Haiti não foi Carpentier, senão Guillén, um ano antes. De todo modo, especialmente em sua produção jornalística, Carpentier vinha publicando artigos de opinião e resenhas sobre arte e literatura no Caribe francês desde o começo do século XX, com uma série de textos publicados em jornais haitianos. O interesse o levaria à escrita de El reino de este mundo (1949), ambientado na ilha, e a mencionar a importância de incluir o romance haitiano no panorama da escrita na América Latina, em “Miremos hacia Haití” (1951).
Guillén, por sua vez, é levado ao Haiti como representante da Frente Antifascista de Cuba e da Sociedad Colombista Panamericana para debater os caminhos da luta antifascista, pela pesquisa pessoal pela cultura popular do país e, especialmente, para dialogar sobre a luta antirracista. Nessa perspectiva, deve-se ter em consideração a discussão sobre o racismo e a cultura afrocubana no período, na medida em que a viagem de Guillén simbolizou também um confronto entre distintas construções da racialidade: de um lado apareciam termos como “color cubano”, “mestizaje” e “unión nacional”, de outro falava-se em “negritud” e “África”. Entre o pensamento anterior e a experiência da viagem, estariam face a face a ideologia da cor cubana como união identitária e o modo de luta contra a segregação do negro e, por outro lado, o conflito social entre os negros de pele escura e os mulatos, “que venían a hacer el papel de los blancos”, segundo os termos do escritor. De fato, um dos méritos do livro de Rodríguez é o levantamento que faz dos textos de Guillén sobre o pensamento negro desenvolvido no Haiti, tendo como contraponto as impressões que teria durante sua estadia, assim como a defesa de que essa experiência estaria na gênese da fundação da Gaceta del Caribe, em 1944.
Deve-se mencionar, contudo, que as diferentes posições não eram estranhas aos intelectuais dos dois países. Guillén era amigo próximo de um dos principais nomes literários da primeira metade do século XX no Haiti, Jacques Roumain. Ambos se conheceram em Paris em 1937, no mesmo período em que Guillén travou contato com os poetas Félix Morisseau-Leroy e Roussan Camille. Roumain, no entanto, tornou-se mais íntimo, já que viveu exilado em Cuba entre 1940 e 1941. Os poetas compartilhavam ideias próximas sobre a luta antirracista: ambos foram influenciados pelas ideias comunistas e defendiam, em seus respectivos países, o fim da perseguição e da discriminação contra as religiões de matriz africana (questão candente no Haiti, onde Roumain foi ativo na luta contra a campanha antissupersticiosa de 1942, que visava o fim do culto vodu na ilha) e a necessidade de analisar a sociedade não só em termos de racialidade, mas também em relação com as condições econômicas das populações.
O momento em que Guillén desembarcou na ilha era de grande debate sobre a negritude e o papel dos mulatos e das ideologias da mestiçagem. O tema havia sido discutido em publicações como La Revue Indigène, editada entre 1927 e 1928 por Emile Roumer, e Les griots, revista publicada entre 1938 e 1940, defensora da Negritud e editada pelo futuro presidente François Duvalier e por Lorimer Denis, na qual o etnólogo Kléber Georges-Jacob chegou a defender a teoria da inferioridade dos “híbridos”. De modo geral, o período foi fértil em discussões sobre a questão nacional – em grande parte influenciada pela recente ocupação estadunidense no país – que passava pela discussão do racismo e das relações entre negros e mulatos, debate que, segundo Rodríguez, foi fundamental para os três cubanos que viajaram para o Haiti no período: Nicolás Guillén, Alejo Carpentier e Wifredo Lam.
O livro de Emilio Jorge Rodríguez desvela várias relações entre os países: de mútua leitura, de migrações, de circulação de imaginários, de contatos intelectuais e de debate de ideias. Não somente, analisa comparativamente as relações entre as histórias das ilhas. Seu objetivo parece ser o de trazer à luz os vínculos “transcaribenhos” – segundo conceito do autor: as relações horizontais entre as ilhas do Caribe – demonstrando sua importância como perspectiva metodológica para a historiografia literária, em contraponto às leituras eurocêntricas voltadas apenas aos intercâmbios entre as colônias e as metrópoles. Buscar relações dessa natureza tem sido objetivo da pesquisa de Emilio Jorge Rodríguez há alguns anos, e os resultados estão em livros como Haiti y la transcaribeñidad literaria (2011) e El Caribe literario. Trazados de convivencia (2011), além de diversas contribuições em enciclopédias e revistas, entre elas a prestigiosa Anales del Caribe, da qual foi editor por 20 anos. Em Una suave, tierna línea de montañas azules. Nicolás Guillén y Haití, livro que venceu o Prêmio Casa de las Américas em 2017, ademais de o crítico literário valer-se de distintas fontes de arquivo para construir sua argumentação, utiliza ainda do aparato metodológico da sociologia da cultura para desenhar um panorama que extravasa os textos em direção à análise do campo intelectual, razão pela qual o leitor estará em contato com uma estrutura de saberes farta e bem articulada que permitirá traçar e compreender com mais detalhamento uma geografia cultural das Antilhas, articulada pelo estudo comparado entre as literaturas de duas de suas ilhas, Cuba e Haiti.