Apresentação
Apresentação
Apresentação
Caracol, núm. 11, pp. 1-9, 2016
Universidade de São Paulo
Exercícios de desconfiança no meio do caminho
Os corazós dos homes
que ao lonxe espreitan,
feitos están
tamén
de pedra.
I eu, morrendo
nesta longa noite
de pedra.
Fonte: Celso Emilio Ferreiro
Este número da Revista Caracol se abre com um artigo que desvela os estragos cometidos contra a língua e o povo galego durante os anos da Guerra Civil e o posterior franquismo.
Não por acaso este dossiê, sobre os 80 anos da Guerra Civil Espanhola, inicia-se com uma discussão dessa natureza. Cabe lembrar que a chamada do número 11 da revista propunha uma discussão sobre a Guerra Civil não apenas no âmbito dos debates consolidados, mas também a partir da necessidade de articular novos discursos sobre os oitenta anos do golpe de estado de 1936, além da necessidade de trazer à superfície não só a História, mas histórias nem sempre contadas do desastre.
Assim, a “longa noite de pedra” se instaura em distintas instâncias neste número: após o texto de Matías Rodríguez da Torre e Xosé Manuel Baamonde Silva, o dossiê se centra no que podemos denominar o “núcleo Rafael Chirbes”, autor falecido em 2015 e que representa uma voz que reivindica, insistentemente, a ideia de que a contemporaneidade espanhola guarda vínculos indiscutíveis com o conflito de 1936. Neste núcleo, que se pretende como uma pequena homenagem ao grande escritor valenciano, Fernando Valls discorre sobre o último romance de Chirbes, Paris-Austerlitz, apontando para os movimentos da narrativa chirbeana em torno a questões como a homossexualidade, a Aids e o desejo, sempre sob um perseverante exercício de desconfiança em relação às noções de cultura, educação e sociedade. Já Daniela Cecilia Serber aborda em seu texto os limites do “boom de la memoria” e a posição contundente de Chirbes em meio a esse debate.
Encerrando o conjunto, temos a resenha de Fernando Larraz, que esquadrinha Paris-Austerlitz como quem flana pelas ruas de uma Paris sórdida na companhia do narrador. Nesta Paris real e ficcional, a metáfora do corpo assume distintas perspectivas: corpo textual, imagético e social, dissecado pelo olhar pessimista desse “despiadado observador de la realidad” circundante.
Unido ao “núcleo Chirbes” encontra-se o artigo de Magnólia Nascimento Brasil, que pensa a consagrada obra Los girasoles ciegos, de Alberto Méndez a partir de seu intenso diálogo com a tradição poética espanhola. Nesse diálogo, destaca-se o resgate do poema “Sibila” (1921), de Federico García Lorca, composição nem sempre publicada nas antologias ou “obras completas” do escritor andaluz. Magnólia, ao recuperá-lo em sua leitura da “Segunda derrota o manuscrito encontrado en el olvido”, de Méndez, estabelece uma instigante sequência em seu texto: um manuscrito perdido, com um poema “perdido” e, depois, ambos recuperados pela reflexão e pela necessidade de não deixar cair no esquecimento as atrocidades da guerra e do pós-guerra civil espanhola.
Também na esfera da recuperação das memórias de um tempo tortuoso, encontra-se o artigo de Elisa Amorim, que reconstruirá trechos das Memórias do cárcere, do escritor brasileiro Graciliano Ramos, em tempos de encerramento e esperança em relação à vitória dos republicanos na Espanha e o aniquilamento do fascismo lá e cá, nos anos 1930.
Munidos de esperança, pelo menos ao longo dos primeiros versos de “Capital de la gloria”, damos com Rafael Alberti e a leitura de Mayra Moreyra Carvalho, que explora a potência da forma romance como uma densa via para assinalar possíveis mudanças de tom e rumo na poesia albertiana, a partir de sua posição no coração da Guerra Civil Espanhola e das relações entre sujeito e história.
Memória, história e a busca por novas formas de discurso para pensar a Guerra Civil, o Pós-Guerra Civil e a transição democrática se instauram no debate que Ivan Martin propõe em seu artigo: uma discussão acerca da natureza e dos procedimentos narrativos contidos no romance gráfico e de como esse gênero híbrido converteu-se em uma contundente representação artística do conflito vivido, refletido e recordado.
Na linha de preocupações teóricas a respeito dos conceitos de “novela de duelo” e “novela de la memoria histórica” e sobre a posição das vanguardas latino-americanas na representação da Guerra Civil estão, respectivamente, os artigos de Anthony Sterling Nuckols e de Julia Miranda. No primeiro, partindo de uma análise filológica e cultural, confronta-se a manipulação da memória individual e coletiva em torno da Guerra Civil e propõe-se a categoria “novela de duelo” como uma forma legítima para o combate do esquecimento e como um modo de repensar conexões entre o passado do conflito e suas consequências. Já no texto de Julia Miranda, exploram-se as imagens do bombardeio e do escombro como elementos-chave na configuração de uma estética vanguardista capaz de denunciar a impotência do escritor frente ao horror do desastre.
Fechando o conjunto de artigos do dossiê sobre os 80 anos da Guerra Civil Espanhola, está a combinação de arte, memória e história individual e coletiva no texto de María Eugenia Prece. A autora lê a vida e a obra do pintor argentino Gustavo Cochet por meio de duas conjunções: os difíceis anos da Guerra Civil e sua plasmação na série de gravuras Los Caprichos. As imagens, um misto de ficção e verdade, cuja inspiração advém dos desastres goyescos e das cenas de guerra de Jacques Callot, dão fé do combate, da esperança e do horror durante a contenta, na qual o pintor lutou. Ao lado desse percurso proposto de maneira precisa por María Eugenia, se imiscui a memória afetiva de Silvia Cochet, neta do artista e diretora do museu que leva seu nome na cidade de Rosario, Argentina. Ela nos reconstitui a gênese da série, seu longo caminho até outro lado do oceano Atlântico, culminando com seu abrigo no museu Gustavo Cochet.
Somam-se a esse conjunto de artigos, duas entrevistas e uma resenha que conformam uma esfera significativa do dossiê proposto: por um lado, temos a entrevista realizada por Ivan Martin com o autor do aclamado romance gráfico El arte de volar, Antonio Altarriba, que, através das memórias do pai, põe em movimento uma intensa reflexão e uma contextualização peculiar da Guerra Civil e do pós-guerra. Ao longo da entrevista, pelas lentes do romance gráfico, entre o verbo e a arte, se pondera sobre o resgate da memória histórica da contenda e suas consequências.
Com múltiplas conexões à entrevista realizada por Ivan Martin, encontra-se a resenha de Luz C. Souto sobre o último romance de Alfons Cervera, Otro mundo. Nela, Luz não apenas menciona Altarriba, mas também indica uma coincidência fundamental entre a obra de Cervera e El arte de volar: em ambas as obras coexistem a recuperação da memória paterna como uma tentativa de compreensão do conflito e dos infinitos silêncios de seus respectivos pais. Na encruzilhada entre o ético e o estético, esses silêncios articulam-se a tantos outros, soterrados pela derrota e pelas imposições da Espanha franquista, durante os supostamente “anos triunfais”.
Ainda no âmbito das vinculações, temos a última entrevista do dossiê, realizada por Javier Lluch-Prats com o escritor Alfons Cervera, em cuja obra, a ação de escrever delineia-se como uma insolente indagação sobre a ficção e o real, sobre o testemunho e a “memória democrática”. Nestas instâncias, a multiplicidade de vozes impera como uma escolha necessária para dar conta de todas estas questões sem cair em maniqueísmos e sem deixar de lado seu caráter incisivo.
Por fim, na seção Vária, a revista apresenta três artigos mais e uma resenha. Cabe ressaltar que dois desses artigos também refletem sobre obras que ecoam a Guerra Civil Espanhola, através das figuras de Pío Baroja e Salvador Espriu. E o terceiro texto explora uma réplica poética de Erica Jong a um poema de Nicanor Parra. Quanto à última resenha, elaborada por Antonio Esteves, esta traça um atento percurso pela obra Sombras del tiempo, de Fernando Valls e pelo importante papel do conto ao longo da historiografia literária espanhola.
Como se vê, ao organizarmos este número da Caracol, preocupamo-nos em oferecer ao leitor uma edição que pudesse ser lida como uma série de exercícios de desconfiança em relação a discursos consolidados, como “pedras no caminho” —diria Carlos Drummond de Andrade— diante das quais tropeçamos e somos chamados a deter-nos e encararmos nossa postura frente a momentos de inflexão. Portanto, não por acaso, as reflexões disseminadas nesta revista sobre os 80 anos da Guerra Civil Espanhola, ou sobre a “longa noite de pedra” que se abate sobre todos a partir da instauração do conflito, propõem preciosos “tropeços”.
Margareth Santos.