Dossiê
Recepção: 23 Julho 2017
Aprovação: 17 Agosto 2017
Resumo: este texto se debruça sobre a obra Diagnósticos (2016), dos argentinos Diego Agrimbau e Lucas Varela. A obra reúne um conjunto de seis contos independentes sobre variados distúrbios psicológicos, tais como a claustrofobia ou a sinestesia. No decorrer do artigo, busca-se analisar como os elementos fundamentais na composição dos quadrinhos são utilizados intencionalmente para simular os efeitos de cada uma das enfermidades que protagonizam os contos. Aspectos como a composição do quadro, as relações entre a palavra e a imagem, o uso dos balões ou a noção de movimento são analisados de maneira que se compreendem não apenas os elementos constituintes das narrativas gráficas, mas também os recursos utilizados para potencializar cada trama e reforçar a representação dos distúrbios psicológicos que nelas figuram. Para isso, as análises dialogam com olhares de outros estudiosos dos quadrinhos e da relação textoimagem, tais como Will Eisner (1999; 2008), precursor dos estudos sobre as narrativas gráficas, Laura Vazquez (2012), Jacques Rancière (2012) e Sophie Van der Linden (2011).
Palavras clave: quadrinhos, estética, distúrbios psicológicos, narrativa.
Abstract: this paper dwells on the work Diagnósticos (2016), by the Argentines Diego Agrimbau and Lucas Varela. The work gathers a collection of six independent short stories about diverse psychological disorders, such as claustrophobia or synaesthesia. Along the article, we seek to analyze how the fundamental elements in the composition of the comics are intentionally used to simulate the effects of each disease featured in the story. Aspects such as the composition of a panel, the relation between the word and the image, the use of the speech balloons or the notion of movement are analyzed in order to understand not only the constituent elements of the graphic narratives, but also the resources used to optimize each plot and reinforce the representation of psychological disorders pictured on them. To this end, the analyses dialogue with the views of other researchers in Comics and the relation text-image, such as Will Eisner (1999; 2008), precursor of the studies in graphic narratives, Laura Vazquez (2012), Jacques Rancière (2012) and Sophie Van der Linden (2011).
Keywords: comics, aesthetics, psychological disorders, narrative.
0. Sala de espera
Diagnósticos, idealizada pelos argentinos Diego Agrimbau e Lucas Varela, é uma compilação de contos independentes que possuem um eixo em comum: as protagonistas de cada uma das seis histórias padecem de enfermidades mentais que, apesar de sua complexidade, encontram na estética dos quadrinhos sua materialização e consequente tomada de consciência sobre sua dimensão.
Agnosia, claustrofobia, sinestesia, afasia, akinetopsia e prosopagnosia são os distúrbios abordados na obra, cujas dimensões podem ser aferidas pelo público a partir das ferramentas estéticas inerentes à linguagem gráfica. Embora se trate de um conjunto de narrativas breves, de seis a nove páginas, há uma relação interdependente entre os contos no que se refere aos recursos estéticos: há, na linguagem dos autores, ferramentas narrativas que se reiteram, como forma de produzir efeitos de sentido específicos e, consequentemente, ampliam a capacidade do público de perceber a complexidade de cada distúrbio.
Não por acaso os quadrinhos têm ganhado, já há certo tempo, cada vez mais espaço no âmbito acadêmico, dada a multiplicidade de olhares e pontos de vista sob os quais esta linguagem pode ser analisada. No campo das Letras, a contribuição das narrativas gráficas, termo cunhado pelo quadrinista e estudioso americano Will Eisner (2008), tem sido dada graças à imensidão de ferramentas narrativas que o gênero vem oferecendo, permitindo ampliar o leque no que diz respeito aos estudos da narrativa.
Por ora são analisados, com o objetivo de compreender as especificidades de cada doença e o potencial narrativo de cada um dos contos, aspectos fundamentais na composição dos quadrinhos, como a linguagem pictórica, as relações entre o código visual e verbal, a perspectiva, o enquadramento, os balões, o timing ou mesmo a materialidade do livro impresso. Trata-se de um convite para, munidos das ferramentas narrativas inerentes à linguagem gráfica, aproximar o leitor da complexidade de cada distúrbio apresentado.
1. A linguagem pictórica
Em uma narrativa gráfica, a imagem é o elemento primordial para a execução da trama. No entanto, os quadrinhos foram, por muito tempo, marginalizados graças à concepção de que a linguagem pictórica seria inferior à linguagem verbal, posto que a narrativa em imagens “traduziria” as palavras e eliminaria o componente imaginativo necessário ao ato de leitura. Para Sophie Van der Linden (2011), a imagem como suporte à palavra é apenas uma das possíveis relações entre texto e imagem, permitindo-lhes estabelecer outros tipos de interação, tais como a relação colaborativa; quando palavra e imagem isoladamente não alcançam o mesmo efeito de sentido de quando estão combinadas; ou ainda uma relação disjuntiva, quando a imagem subverte o que outrora foi dito pela linguagem verbal.
Para o filósofo francês Jacques Rancière (2012), as imagens estão carregadas de sentido, e nem sempre o código verbal trará o dizível, enquanto o visual o visível. Em outros termos, não há equivalência absoluta entre os códigos verbal e visual, e cada um terá sua própria capacidade narrativa, bem como suas particularidades e limitações. Esta dicotomia comumente abordada entre o código visual e o verbal se anula completamente na última sequência de contos da obra, Prosopagnosia, disfunção na qual o paciente é incapaz de reconhecer a identidade por trás de um rosto (Agrimbau; Varela, 2016, p. 64):
Na trama, os habitantes do planeta perdem a capacidade de reconhecer a identidade de seus semelhantes, devendo adaptar-se a esta adversidade. A indefinição dos rostos de cada personagem é simbolizada por expressões que remetem aos emoticons, utilizados massivamente na internet para representar o estado de ânimo dos interlocutores. Sabe-se, no entanto, que essas figuras simbolizam mais uma transmissão de uma ideia de sentimento do que a sensação propriamente dita: aquele que envia uma risada não necessariamente está rindo por trás da tela do computador, mas deseja expressar este sentimento ao seu interlocutor. Desta forma, o conto mimetiza esta incerteza quanto ao que está na face de cada um ao suprimir as reais expressões dos personagens pelos emoticons, que, embora se tratem de um elemento pictórico, é extremamente reducionista no que remete às suas expressões, mantendo o caráter de indefinição das imagens:
Ao invés de representarem as expressões de cada rosto, as imagens estão carregadas de um caráter lacunar; enquanto isso, os personagens vivenciam as mais incômodas situações por não saberem o que se passa nas expressões de seus conhecidos. Não por acaso, há no quadro anterior o contraste entre as feições humanas, pouco precisas nas fotos, com a única face que aparece bem definida na trama: a figura do personagem Mickey. A imagem nem sempre nos traduz um sentido preciso, uma vez que pode ser tão indefinida quanto a complexidade da enfermidade mental representada, enquanto as feições de um personagem fictício tornam-se mais legíveis.
Outro aspecto que demanda atenção no que diz respeito à representação do código visual figura nas duas páginas finais do conto, quando a prosopagnosia desaparece e os personagens voltam a se identificar. Porém, aos olhos dos leitores, eles ressurgem sob uma aparência grotesca. E entramos em uma nova categorização que pode ser problemática, já que definir o que é o grotesco é um campo minado, um tema que requer cuidado para não cair no uso esvaziado do termo. Basta pensar em grandes críticos que o realizaram – e suas definições divergentes do grotesco, como Mikhail Bakhtin e Wolfgang Kayser – e logo se tem a dimensão dessa tarefa. A oposição entre Bakhtin e Kayser se encontra mais na gênese/justificativa do conceito que na observação de sua matéria estético-estilística.
Os autores chegam a conclusões semelhantes no que se refere a algumas características do grotesco: o questionamento crítico sobre a condição humana e a realidade social. Também acordam sobre alguns de seus traços constitutivos: a deformação, a ambiguidade, a diferença. A principal tese de Kayser é que o grotesco se relaciona, principalmente, com os disformes, as formas transformadas, ambíguas, mutantes. Sob a perspectiva de grotesco podemos classificar as personagens no final do conto Prosopagnosia. Tais categorias estão mais relacionadas com o aspecto do bizarro, inumano, incomum.
Outra via de leitura do grotesco – com semelhanças e diferenças às críticas anteriores – é a de Geoffrey Galt Harpham em sua obra On the Grotesque: strategies of contradiction in art and literature (2006[1982]). Para ele, o grotesco é aquilo que questiona as suposições habituais segundo as quais uma obra de arte deveria ser clara, compacta, organizada, definida e, em última instância, coerente. Também podemos identificar a (in) coerência na configuração visual das personagens dada sua deformação nos rostos, após o apagamento de suas feições através das caras representadas por emoticons.
O grotesco ocupa uma posição liminar entre a arte e algo fora dela, ou além da própria arte, reconhecendo suas incongruências e paradoxos. Possivelmente, a tentativa mais ambiciosa após Kayser e Bakhtin para enfrentar o grotesco como um fenômeno estético é a exploração da arte visual e literária de Harpham. O subtítulo de seu estudo contém a estratégica frase de contradição, que descreve, adequadamente, sua abordagem para o grotesco dentro de uma série de contextos – na verdade, usa a contradição como ferramenta para sua crítica. Neste aspecto, Diagnósticos é a própria exploração da arte visual e das novas narrativas literárias para descrever, de forma crítica e artística, as enfermidades contemporâneas.
Harpham (2006) considera que o grotesco surge com a percepção de que algo está de forma ilegítima em outra coisa; que coisas que deveriam estar separadas estão juntas. Os objetos grotescos estão à margem da consciência entre o conhecido e o desconhecido, o percebido e o imperceptível, questionando a adequação de nossas formas de entender o mundo. O autor trata o grotesco como um vazio compartilhado pelo objeto e o sujeito. Compartilhamos, como leitores, a caracterização das personagens com nosso conhecimento prévio da normalidade de um sujeito versus a enfermidade caracterizada pela incapacidade de reconhecer a identidade em um rosto. No sujeito, é um momento no qual a consciência está suspensa, incapaz de discernir não somente uma forma unificada no objeto, mas também as implicações mais amplas que esta suspensão terá para as leis do mundo em questão.
A resposta a este movimento mental é o desejo de interpretar. Como no sublime, o espectador do grotesco avança em direção a uma posição na qual pode entender as funções antinaturais em termos de seus princípios de ordem. Se o objeto grotesco é visto não de uma forma literal, mas simbólica, então, o disforme se revela como sublime. Mas, se resiste e permanece inassimilável, nos interstícios da consciência, converte-se em uma “fonte de ansiedade hermenêutica” (HARPHAM, 2006). Este estado mental inspira o sentido do tabu, de objetos e seres marginais que desafiam a classificação porque desfazem os limites naturais em seu próprio ser.
2. O código verbal
Há, em alguns estudos sobre as narrativas gráficas, um forte impulso em destacar a supremacia da imagem em relação à palavra. No entanto, a maior parte dos romances gráficos depende da interação entre imagem e palavra, tornando impossível prescindir do código verbal. Há também uma forte influência do código visual sobre o verbal, fazendo com que o texto assuma formas não convencionais, a exemplo das onomatopeias e outros efeitos de sentido sobre a tipografia, como textos em negrito ou hiperdimensionados que visam provocar diferentes experiências.
Neste sentido, o romance gráfico evoluiu de tal modo que em diversos casos as imagens possuem expressividade própria, a ponto de não dependerem das palavras para serem narradas. Para Sophie Van der Linden, o sentido desta forma de linguagem não reside em uma das linguagens, visual ou verbal, mas na mútua interação entre ambas (Van der Linden, 2011, p. 86).
Já no primeiro conto, Agnosia, distúrbio responsável pela incapacidade de reconhecer os objetos por suas qualidades, mesmo que as funções sensoriais estejam intactas (Agrimbau; Varela, 2016, p. 6), o código verbal exerce sua importância, intensificando os efeitos produzidos pelo código visual: nas duas últimas páginas, as palavras não se oferecem como resolução do código visual; a linguagem escrita é afetada pelos sintomas da doença e transmitem a incapacidade sensorial da personagem, simulando uma linguagem incompreensível também aos olhos do leitor e mimetizando alguns efeitos da enfermidade:
Na sequência apresentada, o texto escrito é reflexo do distúrbio sofrido pela personagem Eva, utilizando características específicas da linguagem verbal e visual: nos quadros onde se observam textos, estes figuram inicialmente como quadros de narração, pertencentes a um possível narrador homodiegético: a figura do médico que dialoga com a paciente. Porém, na passagem dos quadros nota-se a mudança do texto para balões de fala, simulando a possível incompreensão da personagem sobre quem de fato se dirige à mesma, já que a mesma voz provém de diferentes fontes.
O recurso aos balões de fala é empregado de maneira distorcida e rígida, como forma de simular a perturbação vivenciada por Eva: não só os objetos pertencentes à sua memória se encontram distorcidos no seu campo de visão, como observado nos quadros, mas também a percepção daquilo que escuta.
Posteriormente, no final do conto, o doutor destaca o sucesso do tratamento, não havendo efeitos colaterais. Porém, a palavra distorce aquilo que está contido na imagem, uma vez que a ilustração nos mostra cada elemento visual em seu devido lugar, mas o código verbal figura ainda mais confuso que no início da trama, evidenciando onde residem os efeitos colaterais do tratamento. Ao tornar o código verbal contraditório ao visual, remete-se ao conceito de relação disjuntiva entre texto e imagem, no qual a ilustração invalida o que é dito pela narração ou o revés (Van der Linden, 2011, p. 121). No caso de Diagnósticos, esta divergência reside apenas na organização do texto escrito que passa a exercer o papel visual no momento que o leitor identifica as letras em desordem:
No terceiro conto, Sinestesia, distúrbio no qual há interferência entre diferentes sentidos em um mesmo ato perceptivo (Agrimbau; Varela, 2016, p. 30), o código verbal é também reconfigurado e assume o papel de código visual, visto que a perita forense Lola Valenti possui a capacidade de enxergar sons. Por se tratar de uma linguagem gráfica, mas estática, os “sons” da narrativa gráfica são inevitavelmente visuais, como os balões de fala ou narração e as onomatopeias.
A disfunção de Lola é potencializada devido à sua capacidade de “enxergar” os sons dos eventos até três horas depois de emitidos. O conto demanda pensar também a noção de perspectiva nos quadrinhos, ideia a ser tratada adiante, posto que o leitor visualiza o mesmo que Lola, mesmo quando os demais personagens são incapazes de fazê-lo:
Ao compararmos as narrativas gráficas com outras mídias não estáticas, certamente a questão das onomatopeias e dos balões pode ser um ponto desfavorável para os quadrinhos. Se o cinema, por exemplo, conta com sons em segundo plano, sem sobrepô-los à imagem, os quadrinhos necessitam superar esta adversidade, dado que seu “som” inevitavelmente irá interferir no espaço dedicado à imagem. Assim sendo, o trabalho do artista é fundamental para ocupar este espaço na devida proporção, sem que a palavra distorça o código visual, e sim atenue o que este último comunica.
No conto, a onomatopeia em questão figura como pista sutil do som que está prestes a desaparecer aos olhos da protagonista. O código verbal, ao mimetizar a sinestesia, assume o papel de código visual e o quadrinho estabelece uma relação empática entre a personagem e o leitor, quando esta materialidade do som existe apenas entre eles. O interlocutor de Lola não apenas não compreende a situação como evoca um tipo de linguagem metalinguística para narrar a sua incapacidade de ver os sons, ao afirmar que precisa de legendas, embora a onomatopeia funcione exatamente como uma, mas supostamente inexiste na perspectiva dos personagens de quadrinhos.
Afasia, quarto conto da sequência, relata o transtorno da linguagem advindo de uma lesão cerebral que perturba a utilização das regras necessárias para a produção e compreensão de uma mensagem verbal (Agrimbau; Varela, 2016, p. 42). Na narrativa, o código verbal prescinde dos balões para se expressar e é absorvido pela imagem, produzindo um elemento narrativo peculiar: toda a linguagem verbal do conto, apesar da limitação da personagem em entender o mundo à sua volta, está disposta em um plano paralelo, ausente do lugar de fala dos personagens. As fachadas, letreiros e cartazes das ruas, quando excessivas, poderiam contaminar o espaço físico ao redor, mas desta vez retém a atenção do leitor; por menores que sejam, cada detalhe será crucial para a adaptação à enfermidade por parte da personagem, uma vez que lhe resta apenas o mundo visível, posto que o transtorno prende-a num universo particular:
Ao perder a capacidade de compreender as mensagens orais que a cercam, a personagem Miranda passa a enxergar o mundo sob uma perspectiva única, numa interação especial com os objetos ao seu redor e com o código escrito ao qual possui acesso. Imersa numa atmosfera particular, uma espécie de autismo consciente, a protagonista busca assimilar estratégias cognitivas para superar a adversidade causada pela sua condição clínica.
A disfunção é mimetizada ao se suprimirem os balões de fala, narração e as onomatopeias, incorporando todo o texto escrito, porém oral na perspectiva da personagem, às imagens dispostas nos quadros: cartazes, embalagens, objetos ou rótulos, tudo passa a funcionar como linguagem visual e verbal, e o leitor imerge no particular universo de Miranda:
Desta forma, texto e imagem permitem se articular para produzir os mais diversos efeitos. No caso de Afasia, o código verbal exerce uma importância equilibrada comparada ao código visual, porém, as relações convencionais do texto escrito são rompidas como forma de expressar as maneiras que os sujeitos que sofrem tal distúrbio encontram para se relacionar com a linguagem. Neste processo, o trabalho do artista encontra formas de representar a subjetividade desta condição clínica por meio da relação texto-imagem.
3. A perspectiva
Conforme mencionado anteriormente, a perspectiva é um dos elementos centrais na elaboração do romance gráfico e pode ser utilizada para mimetizar algumas das enfermidades da obra. No conto Agnosia, o público visualiza a cena na mesma perspectiva da personagem, fazendo-o experimentar a doença, a incapacidade de reconhecer as formas dos objetos:
Diferente dos quadrinhos mais convencionais, onde o quadro assume a função de palco e o leitor é um expectador externo ao local de ação dos personagens, em Agnosia a perspectiva é um dos recursos estéticos reivindicados para simular os distúrbios provocados pela referida enfermidade. O leitor é levado à perspectiva da personagem e visualiza o seu íntimo, adentra sua capacidade cognitiva e observa o mundo à sua maneira. Em consonância a esta estratégia discursiva, ao vermos o universo sob sua perspectiva, a personagem não apenas é desenhada no quadro, mas o habita (Vazquez, 2012, p. 66).
No último conto, Prosopagnosia, a problema se torna coletivo: todos os seres humanos perdem a capacidade de identificar seus entes pelo rosto, buscando encontrá-los por meio de outras características, como o formato do corpo, gestos, vozes ou qualquer outro elemento não visual. No entanto, diferente do conto anterior, a perspectiva é favorável aos personagens, não ao leitor: desta vez este é quem perde a capacidade de distinguir os personagens, enquanto os protagonistas possuem condições de identificar seus entes queridos:
Para Will Eisner, a perspectiva tem como função primordial manipular a orientação do leitor para um determinado propósito (Eisner, 1999, p. 89). No primeiro dos casos, a perspectiva é construída de maneira a adentrar o leitor na visão da personagem, aproximando-o da complexidade do seu distúrbio. Já no último dos contos, sua compreensão é colocada em último plano e são os personagens que possuem melhores condições de se identificarem, como o personagem do quadro anterior, que utiliza como único recurso o sobrepeso do seu amigo para reconhecê-lo.
A perspectiva é, em suma, a organização dos elementos narrativos visando produzir diferentes impactos, como orientar a compreensão do leitor, no primeiro dos casos, ou manter o caráter lacunar da enfermidade, como no segundo.
4. O enquadramento
O enquadramento está diretamente ligado à perspectiva: remete não apenas ao palco das ações executadas, mas à captura do instante preciso que se deseja retratar. A sequência de quadros é disposta de maneira que o leitor possa aferir as lacunas existentes entre um quadro e outro, dado que os quadrinhos são estáticos e impossibilitam retratar todos os eventos ocorridos na sequência narrada. O recurso também está diretamente ligado à passagem do tempo: a proporção e quantidade dos quadros podem definir o ritmo da leitura, de acordo com o objetivo pretendido.
No segundo conto, Claustrofobia, os quadros são inicialmente retangulares e rigidamente fechados, encerrando a personagem. Não há abertura em momento algum e os quatro primeiros quadros remetem a espaços fechados, opacos, mesmo quando a personagem está na rua, graças à mudança do tempo para um estado nublado:
No conto, forma e conteúdo se inter-relacionam por meio do enquadramento: funcionando não apenas como palco ou moldura, mas como fio condutor da trama, o recurso intensifica o distúrbio sofrido pela protagonista Soledad. A rigidez do quadro e seu estreitamento frente a formas excessivamente geométricas reforçam a sua claustrofobia. Os espaços dispostos parecem sempre insuficientes para retratar o ambiente, e há de certa maneira uma imperfeição projetada nesta sequência ao nos mostrar, apesar da amplitude de cada quadro, como eles podem estar em conflito direto com a personagem.
A partir do quinto e sexto quadros, quando a personagem se encontra num espaço aberto, permite-se refletir sobre a sua condição e se adquire uma tomada de consciência do problema. Na sequência, mesmo trancafiada entre as quatro linhas de cada quadro, o formato deles torna-se mais irregular, enquanto a personagem enfrenta sua condição: a claustrofobia existe não apenas como distúrbio psicológico, mas reside na materialidade do quadrinho, aspecto abordado adiante, e passa a ser confrontada.
Ao adquirir consciência da sua enfermidade, Soledad se desprende dos quadros que a aprisionam e assume uma nova perspectiva diante de suas memórias, que, utilizando-se também deste recurso da linguagem gráfica, figuram de maneira compartimentalizada como parte do processo de compreensão de seu distúrbio:
Como forma de potencializar os eventos do passado que contribuíram para o desenvolvimento da claustrofobia, é possível notar constantemente a presença de elementos fechados, rigidamente quadrados ou retangulares e que remetem ao aprisionamento: as camas do colégio interno, a janela, as quinas da parede, as carteiras e livros escolares ou a sala fechada na qual a personagem beija a amiga, conduzindo um ato proibido no ambiente. Tudo remete ao pânico advindo da repressão, que posteriormente produzirá os efeitos da claustrofobia. Por outro lado, ao confrontar os fantasmas de seu passado, Soledad passa a exercer uma função ativa frente à forma e assume a perspectiva extradiegética, assumindo o controle dos eventos narrados, como um elemento externo ao plano gráfico. O momento é representado com a desconstrução da sequência linear dos quadros, mas que não escapam totalmente da noção de claustrofobia, uma vez que os mesmos se agrupam para formar uma nova forma geométrica aprisionadora: o cubo. A tomada de consciência não necessariamente resolve o conflito, pelo contrário, pode torná-lo ainda mais duro de enfrentar, mas a personagem assim o faz.
No conto Sinestesia, o suspense da situação vivenciada pela perita Lola é intensificado pelo molde que os quadros oferecem à trama: quase todos são rigidamente quadrados, regulares, bem como as formas geométricas dos objetos dispostos nas cenas. A regularidade do formato das onomatopeias também corrobora para essa rigidez da cena:
Na montagem da narrativa gráfica, não é a trama que terá seus rumos definidos pelo enquadramento, mas este deverá estar ao seu serviço. Nos dois contos destacados, a forma do quadro dialoga diretamente com o conteúdo, interferindo na maneira como o enquadramento se constrói e se sucede na trama. Nos quadrinhos, nenhum elemento está disposto por acaso, e todas as formas possíveis podem trabalhar a serviço da narrativa.
5. Os balões
Quando presentes no romance gráfico, é nos balões que reside parte do discurso, direto ou indireto, complementado pela imagem, como as falas dos personagens ou a narração. Essenciais nas narrativas gráficas, os balões representam também uma limitação em relação às outras mídias. Ao passo que neles se sustentam os “sons” dos quadrinhos, ocupam um espaço outrora dedicado à imagem, conforme mencionado anteriormente. Desta forma, a presença de “som” na narrativa gráfica inevitavelmente requer ausência de imagem: há de se considerar, então, o espaço e tamanho que os balões ocupam, para que expressem o que se deseja sem interferir no código pictórico.
No conto Afasia, o problema é sumariamente eliminado pelos autores, ao fazerem com que o texto verbal e os sons caibam nas imagens que compõem a trama, sem suplantá-las. A combinação presente entre texto e imagem, mais que o conceito de colaboração trazido por Van der Linden (2011), evoca uma grande convergência entre as duas linguagens, posto que a combinação das mesmas não prejudica a imagem e continua comunicando, dispondo o texto dentro dos objetos presentes na trama. A eliminação dos balões de fala, com a paralela permanência do texto escrito através das imagens, simula também o silêncio do universo particular que habita a personagem:
Ao figurarem harmonicamente em espaços outrora dedicados à imagem, como as paredes da universidade, as mensagens verbais não respeitam questões de entonação e pontuação, simulando o transtorno linguístico vivenciado pela personagem. Além disso, nenhum elemento está disposto na trama ao acaso, somente para trazer a linguagem verbal: ela se apresenta em objetos plenamente funcionais na narrativa. Assim, o leitor assume a perspectiva de Miranda, que, desprovida da capacidade de entender mensagens orais, precisa recorrer à leitura do mundo ao seu redor como forma de superar a adversidade de seu distúrbio.
No final da trama, a personagem começa a perder a capacidade de entender o código verbal, decorrente da piora de sua condição de saúde. No primeiro quadro em que tal sintoma aparece, as mensagens estão desordenadas, desalinhadas, representadas por pichações na parede da faculdade. Na última página do conto, ao desesperar-se por apenas escutar as vozes que vêm da sua mente, sua perturbação é mimetizada pelo desfecho lacunar da trama, ao vermos uma Miranda em estado de choque, reproduzindo apenas frases de sua mente, sem indicar ao leitor(a) o desfecho do seu conflito:
Percebe-se que as limitações existentes nos quadrinhos, como a supressão de imagens para a inserção dos balões de fala, podem ser superadas em função da trama pretendida. A disposição da linguagem verbal pode encontrar outras formas de existência além dos convencionais balões de fala e narração. Assim, destaca-se a equilibrada importância entre imagem e palavra na narrativa gráfica, sem que haja uma hierarquia entre ambas as linguagens ou papeis pré-estabelecidos e imutáveis.
Timing, a noção de movimento
Diretamente ligado ao uso estratégico do enquadramento, o timing remete à passagem do tempo em uma narrativa gráfica. Aos olhos do público, a leitura de um romance gráfico normalmente se realiza numa maior velocidade que no romance convencional. Já para o autor, cada imagem requer um esforço para ser produzida inversamente proporcional ao tempo e esforço despendidos para sua leitura: desde a concepção de sua ideia, passando pela produção de um esboço, versões diversas do desenho, colorização e arte-finalização. Desta forma, o timing representa uma tentativa de controlar a passagem deste tempo, “capturando” as cenas mais importantes de uma sequência e atribuindo ao leitor a tarefa de ordená-las, colocando-as no ritmo e na frequência adequados.
O uso diferenciado do timing pode também trabalhar em favor de uma maior coesão da trama: o excesso de quadros e seu tamanho reduzido podem retardar a conclusão do enredo, propositalmente, assim como a economia de quadros e expansão de sua dimensão podem acelerar a passagem do tempo e/ou focalizar em uma determinada cena. Eisner afirma a respeito desta técnica que
A habilidade de expressar tempo é decisiva para o sucesso de uma narrativa visual. É essa dimensão da compreensão humana que nos torna capazes de reconhecer e de compartilhar emocionalmente a surpresa, o humor, o terror e todo o âmbito da experiência humana. [...] Uma história em quadrinhos torna-se “real” quando o tempo e o timing tornam-se componentes ativos da criação. Na música ou em outras formas de comunicação auditiva, onde se consegue ritmo ou “cadência”, isso é feito com extensões reais de tempo.
Nas artes gráficas, a experiência é expressa por meio do uso de ilusões e símbolos e do seu ordenamento
(EISNER, 1999, p. 26).A passagem do tempo na narrativa gráfica não ocorre de maneira explícita como no cinema ou na música, já que estas não são mídias estáticas; possuem imagens em constante movimento e sons como plano de fundo, executados e transcorridos independentemente do leitor acompanhá-los ou não. Nestes termos, a narrativa gráfica possui limitações em comparação a essas mídias, uma vez que a imagem deve carregar em si os sons e a noção de movimento em um único plano. Cabe ao autor de quadrinhos assumir o controle sobre a disposição das imagens, de maneira que elas consigam expressar adequadamente a passagem do tempo no ritmo desejado – retardar a passagem dos quadros para prolongar determinada ação ou agilizá-la quando se deseja um rápido acontecimento.
No quinto conto, Akinetopsia, referente ao déficit de percepção do movimento visual dos objetos (Agrimbau; Varela, 2016, p. 52), os autores concentram vários instantes em apenas um, simulando a percepção de movimento de cada situação que a protagonista Ryoko não consegue apreender, após sofrer uma pancada na cabeça depois de uma tentativa malsucedida de se suicidar. Os movimentos que a personagem não consegue enxergar se destacam na cor rosa, tomando como empréstimo um dos conceitos da noção de timing:
Ao contrário do uso recorrente que visa a economia de imagens em função do movimento da narrativa, o timing é ressignificado como forma de dar vida ao distúrbio sofrido pela protagonista do conto. Ao invés de condensar os principais instantes de cada movimento, os autores praticamente se aproximam de desenhá-los em sua completude, gesto simulado pelo traçado cor-de-rosa que surge após o acidente de Ryoko.
Apenas o leitor, porém, apreende esta perspectiva: apesar da limitação trazida à personagem pela percepção da doença, a técnica utilizada produz um efeito psicodélico que, aos olhos do público, potencializa os movimentos executados na trama, mimetizando a noção de movimento que outrora seria uma limitação numa mídia estática.
Na penúltima página do conto, uma nova pancada reverte seu quadro clínico, e este momento é representado novamente por um empréstimo deste recurso, ao mesclar a técnica narrativa outrora utilizada e captar os movimentos que a personagem percebe por meio de quadros precisos:
Após o novo acidente, o distúrbio de Ryoko é revertido: antes impossibilitada de enxergar o movimento dos objetos, agora a protagonista visualiza somente os movimentos, mas não o foco do objeto em si. Para conciliar a reversão do quadro clínico da personagem, os autores utilizam duas técnicas diferentes em relação ao timing, que normalmente se anulariam, mas na trama se complementam: inseridos nos quadros de cor rosa, os movimentos principais do sapo são “capturados” por meio da noção do timing aliado ao enquadramento. Por outro lado, a figura do sapo desenhada no espaço entre cada quadro, que normalmente não seria retratada graças à capacidade do leitor de inferir o movimento, é utilizada para destacar a incapacidade da protagonista em perceber a trajetória realizada. Duas técnicas narrativas divergentes são utilizadas simultaneamente na trama para mimetizar o distúrbio de Ryoko.
O timing é crucial para a coesão de uma trama em quadrinhos. Devido à impossibilidade de demonstrar precisamente todos os momentos e detalhes de uma sequência narrativa, este recurso visa condensar cada instante mais significativo de um evento e colocá-los em execução. Caberá ao público conduzir o movimento da cena e eliminar a característica estática do desenho impresso no papel, ao executar mentalmente as ações representadas. Ou no caso de Diagnósticos, analisar como esta técnica, utilizada em seu sentido mais literal, pode contribuir com a trama.
7. A materialidade da obra
Eventualmente os elementos externos ao quadrinho vêm à tona: para Will Eisner, o mercado influencia diretamente na produção de narrativas gráficas e, por conseguinte, questões mercadológicas, como o formato impresso da obra, podem exercer uma influência criativa sobre a mesma (Eisner, 2008, p. 163).
No desfecho do conto Claustrofobia, após a repentina tomada de consciência de sua condição mental por parte da protagonista, os quadros que armazenam suas experiências, interdependentes, se organizam numa nova tentativa de enclausurar a personagem. Ao serem reunidos e observados dentro do espaço da página, os mesmos perdem o formato linear e sequencial e assumem uma materialidade que se assemelha ao formato de um cubo, que tenta aprisionar a protagonista agora, aparentemente, livre:
Não apenas por meio de uma linguagem metalinguística, mas também por meio do recurso à materialidade do livro, a personagem reconhece finalmente a solução para o seu distúrbio: se antes identificávamos o traçados dos quadros e o seu formato como elementos aprisionadores da personagem, desta vez a mesma reconhece que o livro em si, em seu formato similar ao dos quadros, é também instrumento de aprisionamento. Ao mencionar que não foi suficiente se livrar dos quadros, sendo necessário sair da página, a materialidade do livro é abordada como ferramenta narrativa, intensificando as amarras da personagem. Não apenas os elementos contidos nos quadros estão a serviço da narrativa gráfica, mas também a sua organização material podem oferecer recursos para a trama.
Considerações finais
Devido ao seu caráter aberto, plástico, graças à incorporação das mais variadas ferramentas narrativas, os quadrinhos adquiriram certo dinamismo para se adaptarem às exigências de cada trama em particular. Em Diagnósticos, percebe-se que os elementos constituintes do gênero, tais como o código visual, o enquadramento, os balões e o timing, conseguem se reinventar de forma a ampliar o seu potencial narrativo.
Mesmo levando em conta a complexidade de cada uma das condições clínicas apresentadas na obra, especialmente pela dimensão subjetiva de uma disfunção psicológica, os quadrinhos conseguem, se não desvendar por completo estas enfermidades, aproximar o leitor comum acerca das particularidades de tais distúrbios.
Ao se reinventarem e proporcionarem esta experiência ao público, aproximando-o da compreensão de processos extremamente subjetivos e imateriais, os quadrinhos ampliam o seu potencial discursivo e nos mostram a sua capacidade de autorreflexão e adaptação, dando-nos indícios de que, sem abandonar os princípios que norteiam a sua construção, estarão continuamente reinventando-se e expandindo as suas fronteiras narrativas.
Referencias Bibliográficas
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