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Literatura e História – Camilo José Cela e a narrativa espanhola do pós-guerra
Literatura e História – Camilo José Cela e a narrativa espanhola do pós-guerra
Caracol, núm. 16, pp. 218-238, 2018
Universidade de São Paulo
Recepção: 12 Março 2018
Aprovação: 06 Junho 2018
Resumo: Camilo José Cela é considerado um dos escritores renovadores da literatura espanhola do século XX. Sua obra inova e experimenta formas e conteúdos enfatizando imagens grotescas e violentas que representam bem o contexto da Guerra Civil espanhola e suas consequências para a população.Tendo um complexo posicionamento entre a aceitação e a oposição ao governo ditatorial franquista, sua escrita se caracteriza por um realismo brutal que, literariamente, adquire o termo de “tremendismo”. O conjunto de sua obra levou-o a ganhar o Premio Nobel de literatura, tendo destaque as obras La familia de Pascual Duarte e La Colmena. Assim, este estudo procura engendrar, sucintamente, uma discussão acerca desses textos de Cela tendo em conta o esfacelamento do ser humano diante do conturbado contexto social, aspectos que vários escritores se sentiram no compromisso de demonstrar através da arte.
PALAVRAS CLAVE: Guerra civil, Tremendismo, Grotesco.
Abstract: Camilo José Cela is considered to be one of the renovator writers of the Spanish literature of the twentieth century’s. His work innovates and experiences forms and contents emphasizing grotesque and violent images that represent well the context of the Spanish Civil War and its consequences for the population. Having a complex position between acceptance and opposition to Franco’s dictatorial government, his writing is characterized by a brutal realism that in literature acquires the term “tremendism”. His body of work led him to win the Nobel Prize in literature highlighting the works La familia de Pascual Duarte and La Colmena. Thus, this study seeks to engender briefly a discussion on these Cela’s texts taking into account the human being’s disintegration before the troubled social context, aspects that many writers have committed to demonstrate through art.
KEYWORDS: Civil War, tremendism, grotesque.
La literatura no es una charada: es una actitud...
La vida no es buena, el hombre tampoco lo es...
Seguimos en las mismas inútiles resignaciones... Es
grave confundir la anestesia con la esperanza…
Camilo José CelaA Guerra Civil Espanhola (1936-1939) é considerada pela historiografia como um “ensaio” para a maior catástrofe do século XX, a Segunda Grande Guerra (1939-1945). Em meio ao grave caos econômico e social dos anos 1930, vinculados, em grande medida, à crise do liberalismo em 1929, fortaleciam-se movimentos de extrema direita – comandados pelo general Franco – e grupos de esquerda, notadamente influenciados pelo socialismo e pelo anarquismo. O mal-estar na Espanha representou os sentimentos ruins que marcaram o “breve século XX”, conforme argumenta Eric Hobsbawm (1995).
Uma das principais consequências da guerra foi a ascensão do general Franco ao poder, apoiado pela Igreja Católica. Com a derrota do fascismo na Segunda Grande Guerra, o governo conservador franquista não minimizou os sofrimentos, perseguições e o mal-estar que marcaram o conflito. Em condição de certo isolamento, o governo fascista do pós-guerra foi marcado pela corrupção, exílios, censura e crises econômicas, caos social que se estendeu até 1976. Tendo sido condenado pela Organização das Nações Unidas, o governo franquista prolongou os horrores da guerra, sobretudo, para os menos afortunados. O terror de Guernica, cidade destruída pelos fascistas na guerra civil, assombrava o futuro não promissor da Espanha, sob a ditadura nacionalista do general Franco (1939-1976).
Além das reflexões históricas, tudo isso terá um intenso impacto na produção literária daquele contexto, já que a Guerra e suas consequências produziram debates nos diversos meios de comunicação e além das fronteiras espanholas. Explica Gay Armenteros que “los intelectuales extranjeros se sintieron en la obligación moral de tomar postura y escribieron miles de páginas sobre el problema” (Armenteros, 1986, p.82). Muitos escritores, comprometidos com os problemas sociais de seu entorno, empenharam-se na escrita, bem como na representação daqueles acontecimentos e suas consequências adotando as mais diversas formas artísticas. Sendo assim, os anos que sucedem a guerra traçam um panorama de inúmeras transformações, perceptíveis mormente no âmbito literário. A transição dos anos 40 aos 50 marca uma busca de caminhos com enfoques variados, na qual muitos escritores, como o ex combatente espanhol Camilo José Cela, adotam atitudes que vão desde o conformismo ao mal-estar, distinguidas pelas expressões “literatura arraigada e desarraigada”, predominando temáticas que alcançam tanto os problemas existenciais como aqueles de teor religioso.
A partir de 1955, vê-se, na literatura, uma tendência de realismo social que se manifesta na poesia, no romance e no teatro, ressaltando escritores importantes como Blas de Otero, Goytisolo, Buero Vallejo, dentre outros. As obras desse momento trazem o testemunho da realidade: o escritor sente-se comprometido com a transformação da sociedade, denunciando suas injustiças. Nesse sentido, em detrimento da preocupação estética, essa arte literária opta por uma linguagem sensível, capaz de alcançar a maioria do público. No entanto, ao tratar de temas que interessassem a uma maioria objetivando alcançá-la, essa arte se depara com o entrave já que, somente uma minoria, era leitora. Dessa forma, o realismo social deixou obras importantes como Pidola paz y la palavra, de Otero, Duelo enel Paraíso, de Goytisolo e Hoy es fiesta, de Vallejo, mas pari passu passou a ser substituído por outras tendências.
A publicação de Tiempo de silencio, em 1962, de Luis Martín Santos, anuncia uma renovação nas formas da literatura de denúncia social, desapegando-se do realismo, através das influências do novo romance hispano-americano, que adotará novos modelos de invenção e de linguagem. Com isso, passam a interessar menos os conteúdos, sobretudo os de viés social. As duas últimas décadas do século XX experimentam certo retorno às formas tradicionais, ainda que se depare com formas vanguardistas, aprecia-se novamente um interesse pelo conteúdo humano e pelas questões existenciais. Vale ressaltar também que, durante e após a guerra civil, temos uma forte referência às obras escritas fora da Espanha por escritores exilados. Muitos escritores novecentistas ou da geração de 27 continuaram sua produção na Europa ou na América, exibindo trajetórias marcadas, geralmente, pela nostalgia da pátria perdida. Escritores como Francisco Ayala, Rosa Chacel, Alejandro Casona, foram também escritores exilados, e tiveram suas obras pouco conhecidas imediatamente o pós-guerra, contudo, hoje, ocupam um lugar de destaque na história da literatura espanhola por se tratar de autores que tiveram cuidado especial com o estilo e com linguagem, além de exporem desde análises psicológicas de personagens femininas até a condição do sujeito no exílio.
Tendo em vista o breve panorama da narrativa espanhola ao longo do século XX, mormente na segunda metade, vale anotar que a história da literatura espanhola, sobretudo a partir da Guerra Civil, alimentou-se do contexto histórico procurando representá-lo e criando novas perspectivas de leitura e de reflexão sobre suas consequências.
Com este propósito, é preciso ter presente que foram bastante divergentes as formas estilísticas adotadas por cada escritor. Tendo em vista a existência de autores dificilmente classificáveis ao longo desse período, convém destacar que a escrita do imediato pós-guerra marca um papel relevante na história do papel da arte para a vida social. Escritores como Gabriel Celaya, citado por Julio Torri, asseveram que “la poesía es un instrumento para transformar el mundo” (Torri, 1999, p.187). Com esse pensamento, o autor faz da arte um elemento de transformação social, sobretudo naquele contexto em que a crise se manifesta não apenas no plano econômico, mas, também no plano ideológico.
Dentre os vários escritores que adotaram distintos posicionamentos ao longo do percurso da literatura do pós-guerra, destaca-se Camilo José Cela. Nascido em 1916, em Iria Flavia, nos domínios de Santiago de Compostela, Cela cursa seus estudos secundários em colégio jesuíta, ingressando depois na faculdade de medicina, porém, abandona o curso para assistir como ouvinte as aulas de literatura contemporânea do poeta Pedro Salinas. A este, Camilo José Cela mostra seus primeiros poemas e do mesmo recebe estímulos à criação literária. Essa relação com Salinas foi fundamental para sua decisão pelo meio acadêmico e para sua vocação pelas letras, mantendo contato a partir daí com importantes escritores da época como Alonso Zamora Vicente, María Zambrano, Miguel Hernández e outros intelectuais de Madrid. Após uma breve incursão pelo curso de direito, o autor o abandona e passa a se dedicar profissionalmente à literatura.
Em plena guerra, já escrevia livros de poesia como Pisando La dudosa luz deldía, porém, é em 1942 que o ex-combatente da guerra integrante do exército nacionalista de Franco publica sua grande obra, La familia de Pascual Duarte. Apesar do êxito alcançado, a obra teve problemas com a Igreja, que proibiu a publicação da segunda edição, realizada apenas em Buenos Aires, na Argentina. Segundo assegura Manuel Casas, “a pesar de ciertas dificultades con la censura del régimen franquista, la obra tiene un éxito tan inmediato como duradero” (Casas, 1991, p.10). Ainda que tenha sofrido restrições de publicação naquele tempo, a obra conta hoje com aproximadamente 110 edições nos mais variados países e idiomas do mundo, se transformando num clássico da literatura espanhola do pósguerra. Entre os anos 1956, Cela criou a revista Papeles de Son Armadans, que segue editada por si mesmo até 1979. Nela publicou textos inéditos de Antonio Machado e de Maria Zambrano, além de uma edição especial sobre Alonso Zamora Vicente. Vale mencionar ainda que outros números da revista incluíram desenhos e escritos de Pablo Picasso, bem como alguns desenhos de Cela e textos de Picasso, aspectos que aproximam o olhar do autor à arte maior do pintor, a tela Guernica.
A obra La familia de Pascual Duarte traz a dura realidade cotidiana para as páginas literárias. Apresentando-se como forma de memórias, a obra de ficção conta a vida de Pascual Duarte, o protagonista, encarcerado e condenado a morte depois de uma série de crimes, incluindo a morte de sua própria mãe. Para Manuel Casas,
a primera vista sorprende que una obra tan violenta y tan inscrita en lo más oscuro de España haya podido seducir a un público tan numeroso y tan diverso. Es innegable que, a pesar de los defectos propios de una obra de juventud, su terrible eficacidad ejerce cierta fascinación. El lector difícilmente queda neutro y se siente entre asqueado y conmovido por el héroe
(Casas, 1991, p.10).Ao fazer uso de uma representação que se aproxima do sentimento de terror, de insatisfação vivida pelo contexto seu contemporâneo, o autor não abandona estratégias próprias de escrita que colocam o leitor como parceiro na interpretação e no sentido legado ao texto. Sob esse matiz, Cela empreende, em seu trabalho de escritor, diversas tendências de escrita materializando-as em sua arte. Conforme assegura Darío Villanueva, a escrita de Camilo José Cela
está presente nos três momentos decisivos de nossa ficção romanesca do pós-guerra, rompendo com os estereótipos e abrindo caminhos que outros depois seguirão, mas que também foi ele quem melhor soube manter o elo com a tradição da narrativa precedente – sempre descontínua e gravemente prejudicada pela cisão resultante da guerra civil. Atualizando-a à luz das técnicas renovadoras do gênero registradas na Europa e na América desde o início do século
(Villanueva, 2002, p.28).Ainda que transitando pelas diversas tendências, Cela mantém e partilha do pensamento de Celaya em seu posicionamento acerca da arte quando explica em nota da obra La Colmena, publicada em 1951, citado como epígrafe neste texto de que “la literatura no es una charada: es una actitud” (Cela, s.d, p.08). Em outras palavras, nessa perspectiva, a arte adquire uma função utilitária, a de transformar e promover a reflexão na sociedade, sem se ater unicamente ao deleite, ao entretenimento.
Naquele contexto de intensas transformações e frustrações, a escrita de Camilo José Cela, dentre elas, La familia de Pascual Duarte e La Colmena marcam a narrativa do pós-guerra espanhol. La familia de Pascual Duarte foi, de acordo com Fernando Lázaro e Vicente Tusón (1995), o primeiro grande acontecimento romanesco do pós-guerra, convertendo-se no romance espanhol mais traduzido a outras línguas, depois de Dom Quixote, de Cervantes. O romance conta a história de um camponês, o narrador-protagonista Pascual Duarte, que escreve grande parte de suas memórias na prisão. Pascual é um assassino que espera sua execução avisando, ironicamente, que é “un modelo de conductas”, mas “un modelo para huirlo”. A advertência da própria personagem já desperta ao leitor a criticidade com que se deparará no decurso do texto ao mesmo tempo em que sugere o aspecto didático/moralizante que o interpretador poderá depreender dali.
Com um comportamento frio e distante, Pascual conta a sua infância sórdida. Os pais não tinham uma boa relação, a irmã prostituta, o irmãozinho anormal que termina afogado numa talha de azeite, não sem antes ter perdido as orelhas comidas por porcos. Cenas fortes e amargas vão revelando os casamentos desgraçados, as brigas, os crimes, seguidos de uma cena trágica em que o protagonista mata a própria mãe, a quem ele considera a causa de suas desgraças. Como acrescenta Casas, a obra apresenta as contradições da personagem que, ao mostrar-se forte, revela ser vítima do sistema ao qual está submetido.
Pascual Duarte aparece como un ser esencialmente primitivo que no logra dominar sus instintos. Sus pulsiones mortíferas se originan aparentemente en su voluntad de mostrarse ‘muy hombre’. Frente a esta exacerbación de lo que se relaciona con el machismo, la violencia se vuelve finalmente un modo de expresión para un hombreque naturalmente parece más bien indefenso, víctima de una gran miseria material y moral
(Casas, 1991, p.11).Adotando na arte narrativa uma leitura do meio semelhante à do pintor Pablo Picasso na tela Guernica, Cela vai mostrando o esfacelamento do ser humano e de sua condição social. Como as duas artes representam um momento relevante da história da Espanha, notamos, assim como na tela, muito sangue escorrido pelas páginas da ficção, que também mostra, através do horror dos acontecimentos, um ser humano desprotegido, tratado como objeto, sujeito às mais diversas agressões. Curioso destacar que Cela, de modo análogo a Picasso, também teve uma breve incursão pelas artes plásticas quando faz duas exposições de suas próprias pinturas após 1944, época em que começa a escrita da obra La colmena. A perspectiva visual que se pretende na pintura, é trazida por Cela de modo singular para as suas narrativas, sobretudo para La familia de Pascual Duarte.
Influenciado pelos acontecimentos coevos a seu tempo, Cela exibe uma visão negativa do mundo, o que prenuncia a reincidência do humor desgarrado, mas ao mesmo tempo desolado, ao lado de dura amargura de seus escritos. Em outro trecho apresentado como epígrafe no princípio deste texto, o autor espanhol evidencia essa perspectiva quando argumenta, “la vida no es buena, el hombre tampoco lo es” (Cela, 2000, p.37). Essa visão desencantada da vida é gestada pelo protagonista ao longo da narrativa, ao mesmo tempo em que se percebe uma contínua preocupação com a existência humana. Do lado da ficção, pode ser entrevisto que, no princípio da narrativa, Pascual Duarte relata uma opinião bastante significativa acerca do estado de ser do homem:
Yo, señor, no soy malo, aunque no me faltarían motivos para serlo. Los mismos cueros tenemos todos los mortales al nacer y sin embargo, cuando vamos creciendo, el destino se complace en variarnos como se fuésemos de cera y destinarnos por sendas diferentes al mismo fin: la muerte
(Cela, 2000, p.68).O protagonista inicia o seu relato demonstrando uma visão particular que logo se generaliza. Ele se coloca como sujeito comum aos outros homens, logo justifica a sua conduta frente às ações tomadas e com as quais o leitor se deparará no percurso da narrativa. Segundo ele, uma das possibilidades da concepção do caráter reside na pressão que o mundo a seu redor exerce sobre si. Aqui, ele se põe como vítima do destino, como se fosse de ‘cera’, isto é, um sujeito moldado pelo contexto e pela sua própria condição de nascimento. De fato, a personagem vive,
en un pueblo de Extremadura, una de las regiones más pobres de España, en los años 30. La vida allí es sumamente frágil y la muerte omnipresente en un mundo en el que reinan las enfermedades y epidemias, la ignorancia, la venalidad de los hombres y de las mujeres. Los individuos suelen hundirse en el fatalismo y la resignación a no ser que intenten vengarse del destino...
(Casas, 1991, p.11).Pascual Duarte detém consciência de seu estar no mundo e das condições a que está submetido. Em outro trecho, ele mesmo explica que há homens que nascem com caminhos de flores e outros nascem com caminhos malditos, condenados à morte, como é o seu caso. Sobre ele, pesa o destino da tragédia clássica, nos termos aristotélicos, segundo a qual é o destino que leva a personagem à perdição. Isso converte sua vida em um conjunto de esperanças mortas. Essa técnica adotada por Cela na obra configura um exemplo bastante expressivo do movimento literário chamado “Tremendismo”, estilo que preza por descrições cruéis, amargas e violentas como recurso para construir as imagens e sentidos das narrativas. Consoante assevera Manuel Casas:
Se ha dicho que Camilo Jose Cela había creadoun nuevo género literário: el ‘tremendismo’, elaborando um estetismo de la violencia y del horror, recurriendo a um efectivismo brutal para sumir al lector en um mundo algo horrendo a pesar de que no excluye algunos rasgos de humorismo negro
(Casas, 1991, p.11).A nomenclatura ‘tremendismo’ para designar uma técnica de representar, na arte, a violência e o grotesco atribuindo certa ironia e crítica social, trouxe algumas discussões no meio literário. Para Darío Villanueva (2002), essa tendência pode ser entendida como outra denominação dada ao romance social. Sendo assim, pode-se entender que Cela, procurando mostrar uma realidade frustrante, violenta e repugnante, estilizou-a a partir de próprio contexto social do pós-guerra.
Adentrando um pouco nas páginas da obra, no primeiro capítulo, temos o protagonista falando de sua casa miserável, de seu povo, de suas aflições, de sua complexa e obscura psicologia, retratando a sua relação com uma cadela com quem, segundo ele, se entendia muito bem. Traça uma longa descrição de seus momentos amistosos ao lado daquela e termina por contar que, diante do olhar confuso do animal, “cogíla escopeta y disparé; volví a cargar y volví a disparar. La perra tenía una sangre oscura y pegajosa que se extendía poco a poco por la tierra (Cela, 2000, p.69). O olhar da cachorra incomoda e inquieta,o que desencadeia a ação do protagonista. Vê-se a generalização da violência ao mesmo tempo em que exprime um sujeito incapaz de afetos, de receber e retribuir carinhos. Convivendo naquele ambiente hostil, o sujeito vai perdendo sua capacidade de amar e ser amado, tornando-se um elemento integrado ao sistema que reprime, culpa, vitimiza, mas também ataca e pune. Dependendo do contexto em que as ações são narradas, o protagonista mesmo se coloca ora na condição de vítima ora na de vilão. Interessante anotar que o conhecimento das situações a partir da ótica da própria personagem, faz com que a cada ação de Pascual, o leitor possa se questionar se o ato é condenável, explicável, justificável, enfim, se o protagonista está sendo fiel àquela narração.
A partir do êxito da publicação dessa obra de Cela, na década de 50, a literatura abraça os problemas sociais, no intento de construção de uma escrita construtiva, apontando para um realismo mais social que individual. Consoante anota Darío Villanueva,
uma nova geração apresenta-se em cena, a metade do século; desejosa de remodelar a situação do país, essa geração pratica inicialmente um neo-realismo... para logo em seguida inclinar-se por um tipo de literatura comprometida, politicamente militante, em conformidade com as pautas de uma poética precisa: o realismo socialista
(Villanueva, 2002,p.29).Como estamos anotando a relação entre as tensões do contexto histórico e estético no pós-guerra espanhol, mormente pela escrita de Camilo Jose Cela, convém acrescentar que o posicionamento reflexivo do autor em La familia de Pascual Duarte, sutilmente se remete aos princípios franquistas para a família. Na obra que se segue, La Colmena, publicada em 1951 em Buenos Aires e logo proibida na Espanha, o autor passará a demonstrar ainda aquele pessimismo, no entanto aqui já voltado para as relações sociais, fruto da decadência da filosofia por ele adotada. O caos familiar e social apresentado pelas tragédias da ambiência familiar, cara aos personagens da obra La familia de Pascual Duarte, justificaria às avessas a necessidade de ordenação familiar e religiosa relevante para as premissas fascistas defendidas na guerra civil e na ditadura franquista. Na cruzada franquista contra as influências socialistas, as problemáticas sociais fundamentam a crítica presente nas entrelinhas da escrita de Camilo José Cela.
Nesse momento é que vem a público La colmena. Tendo em vista a relevância da literatura de Camilo José Celapara se compreender a narrativa do pós-guerra espanhol, além de La família de Pascual Duarte, convém passear brevemente por La Colmena, obra sobre a qualo próprio autor dizia:
não é nada mais do que um pálido reflexo, uma humilde sombra da cotidiana, íntima e dolorosa realidade... Este meu romance não deseja ser mais – nem menos, decerto- do que um pedaço de vida narrado passo a passo, sem reticências, sem inusitadas tragédias, sem caridade, como a vida transcorre, exatamente como a vida transcorre
(Cela, 2002, p.84).Mantendo o propósito do compromisso da representação social, o autor reiterava a necessidade de “encarar de frente as realidades que nos afetam e dar a elas uma expressão artística” (Cela, 2002, p.85). Como o autor mesmo se empenha em convencer, a obra parte da própria realidade, “como a vida transcorre, exatamente como a vida transcorre”, traçando um complexo quadro de Madri depois da guerra.
Em La Colmena, narrativa que serviu de ponte entre o realismo de pós-guerra e as novas tendências dos anos sessenta, o enfoque da sociedade se dá sem conformismo nem outros disfarces. Os críticos como Fernando Lázaro, Darío Villanueva, Vicente Tusón e Julio Torri nomearam como “caleidoscópio” sua técnica narrativa, já que o autor se assemelha a um fotógrafo que sai à rua com sua câmera na mão para retratar tudo que vê, apresentando, assim, a vida miserável de um grupo de pessoas na Madri dos anos imediatamente posteriores à Guerra Civil Espanhola. São muitas as personagens, muitas delas só nomeadas, que se entrecruzam em três dias consecutivos completos e uma manhã de dezembro por dois ou três bairros da cidade. Sobre as personagens, “Los más son despreciables o vulgares, pero hay también seres desvalidos, apaleados por la vida. Y Cela los mira con frialdad, o con ternura, o con esas lentes deformantes que acentúan su amargura o su repulsa” (Lázaro e Tusón, 1995, p.327).
Trazendo em si esse quadro do realismo da sociedade, o próprio autor assegura que a obra “é o romance da cidade, de uma cidade concreta e determinada, Madri, em uma época certa e não imprecisa: 1942” (Cela, 2002, p.94). Aqui o autor não apresenta disfarces para a sua representação, adota uma postura crítica e empenhada em decifrar a problemática social, de uma cidade imersa no caos e na desilusão, consequências do período da guerra.
Para adentrar na vida das personagens e nas suas problemáticas, o autor retrata, com sua ótica criteriosa, cada pequeno detalhe importante para a construção daquele quadro pelo leitor. Para isso, La Colmena possui um ritmo narrativo demorado, possui várias digressões e descrições, resultando numa abundância de cenas que detêm a vida inteira de vários personagens. As temáticas abordadas são a humilhação, a pobreza, o aborrecimento, o sexo, a hipocrisia, a repetição e a ameaça, o que permite ao leitor se deparar não só com a miséria ea fome do pós-guerra, mas com a incerteza dos destinos humanos na visão de Camilo José Cela. A evidência das críticas presentes nessa obra a levou a ser censurada, pois, como explica Villanueva, “Cela teve menos a intenção de pintar um panorama da grande cidade e mais o de refletir a vida que nela se agita, mediante a acumulação seletiva de personagens” (Villanueva, 2002, p.50-51).
Dividido em 6 capítulos e um último chamado “Final”, os capítulos apresentam certa independência entre si, no entanto, eles mantêm uma coerência que matiza a história. Enquanto no capítulo 1 sobressai o tema da humilhação, da indecisão e do aborrecimento, a pobreza domina o segundo capítulo. Nos capítulos 3 e 4, o aborrecimento e o sexo tematizam a história. No capítulo 5, temos uma sequência de fatos que parece realçar a tônica do livro que é a solidariedade, quando as outras personagens da obra engendram estratégias para defender Martín Marco, já que este é abordado pelo inspetor de polícia. É sabido que Martín tem uma tatuagem no braço e uma cicatriz na virilha, o que pesa sobre ele e reitera seu contínuo receio. Exibe intenso medo quando a polícia lhe pede os documentos. Enfim, argumenta em sua defesa que colabora com a imprensa falangista, na qual seu último artigo era intitulado “Razões da permanência espiritual de Isabel a Católica”, algo que coincidia com as diretrizes da propaganda oficial, de cunho fascista. Explica Villanueva que
o significado de A colmeia se projeta uma situação histórica, política e social concreta e bem determinada: os anos mais duros do imediato pós-guerra civil, época de isolamento, de rancor, de pobreza física e espiritual. Mais do que qualquer outra obra literária, A Colmeia reflete essa época explícita e poeticamente
(Villanueva, 2002, p.63).Passado o medo, Martín Marco vai dormir na casa de Doña Jesusa, dona da casa de prostituição, sabendo que lá dormirá na companhia de Purita, uma vez que, naquela noite, há poucos clientes. O tom em que o autor descreve a sexualidade também é irônico, aspecto que se faz presente inclusive nos nomes das personagens Jesusa e Purita. Estes nos remetem, claramente, aos nomes Jesus, por suas características, e Pureza, sendo que os predicativos a que aludem os dois nomes não são predominantes naquelas personagens. O autor ainda nos apresenta uma sociedade boemia, de pessoas sem muitas expectativas, que perambulam pelas ruas. E narra como eles se ocupam nas noites.
Los hombres y las mujeres que van, a aquellas horas, hacia Madrid, son los noctámbulos puros, los que salen por salir, los que tienen ya la inercia de trasnochar: los clientes con dinero de los cabarets, de los cafés de la Gran Vía, llenos de perfumadas, de provocativas mujeres que llevan el pelo teñido y unos impresionantes abrigos de pieles, de color negro, con alguna canita blanca de cuando en cuando; o los noctivagos de bolsillo más ruin, que se meten a charlar en una tertulia, o se van de copeo por los tupis. Todo, menos quedarse en casa
(Cela, s.d., p.78).Fica perceptível a boemia e a promiscuidade de uma classe, o que deixa entrever uma sociedade sem ordem, sem ocupações e sem um plano de vida. Nos capítulos 6 e 7, é interessante perceber que, ademais das ocupações sociais e suas desesperanças, o autor intensifica o tema da solidariedade humana como se esta fosse a única saída possível. Na abertura do último capítulo, o autor implícito declara: “Las gentes se cruzan, presurosas. Nadie piensa en el de al lado, en ese hombre que a lo mejor va mirando para el suelo; con el estómago deshecho o un quiste en un pulmón o la cabeza destornillada...” (Cela, s.d., p.125).
Veja-se que o discurso narrativo leva à reflexão sobre a falta de solidariedade entre as pessoas que passam apressadas umas pelas outras nas ruas, sem se dar atenção ao problema do outro. Em outro trecho, a cidade, que se apresenta como colmeia, é mostrada também como sepulcro, como um jogo curioso que põe à vista a debilidade e o profundo desamparo de seus habitantes. Essa perspectiva demonstra como o livro se prende ao sentimento de fragilidade e de apostasia humana em tempo de crise e se enquadra no estilo do romance social predominante em meados do século XX. Trazendo em si a reflexão sobre a existência e a solidariedade humanas, Camilo José Cela escreve nos anos 60 que, “não me arrependo de ter sido clemente, pois penso que a vida, ao lado da abjeção, sempre sabe dar um espaço para a misericórdia” (Cela, 1962, p.207).
Enfim, é preciso ter presente que o impulso reflexivo do autor aponta sempre para a incerteza daqueles tempos. No entanto, reitera a esperança de que, para ir além da pobreza física e espiritual, é necessária a ação do homem. No último trecho destacado como epígrafe neste texto, Cela, em nota para a quarta edição de La colmena, postula que, além da manifestação do compromisso social assumido pela arte, é necessário que se tenha atitude, quando argumenta que “seguimos en lãs mismas inútiles resignaciones... Es grave confundir la anestesia con la esperanza...” (Cela, s.d., p.06). Vê-se aqui o posicionamento do autor de que é mister a ação humana. Se a arte leva à reflexão, esta deve conduzir à ação. O sujeito não deve ter apenas esperança, mas é preciso que sua esperança nasça de suas próprias ações.
Portando em sua arte e na vida social essa premissa, ainda na década de 50 é convidado a ocupar uma cadeira na Real Academia Española, e na época da transição para a democracia desempenha um notável papel na vida pública espanhola participando do Senado das que, por determinação real, foram as primeiras cortes democráticas. Desse modo, teve parte na revisão do texto constitucional escrito pelo Congresso. No plano literário, segue produzindo obras relevantes como os romances Mazurca para dos muertos e Cristo versus Arizona.
Por conseguinte, trazendo em si intensa inquietude criadora e a capacidade de renovação, a escrita de Camilo José Cela, principalmente La familia de Pascual Duarte e La colmena irrompem como marcos da narrativa do pós-guerra espanhol, revelando maturidade em suas relações estéticas e históricas,o que levou o autor a se tornar um dos grandes escritores do século XX e um dos mais conhecidos de seu País. Nas últimas décadas de sua vida, sucederam-se homenagens e reconhecimentos, como o Prêmio Príncipe de Asturias de las Letras, em 1987, o Prêmio Nobel, em 1989, que consagrou sua produção romanesca, o prêmio Miguel de Cervantes, em 1995 e, em 1996, no dia de seu octogésimo aniversário, recebe o título de Marqués de Iria Flavia, sua terra natal, concedido pelo rei Don Juan Carlos I.
Referencias Bibliográficas
Armenteros, Juan C. Gay. La España del siglo XX. Madrid: Edi.6, 1986.
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Cela, Camilo José. A Colmeia. Introdução e notas de Darío Villanueva. Trad. Mário Pontes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
Cela, Camilo José. La familia de Pascual Duarte. Madrid: Cátedra, 2000.
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Lázaro, Fernando e Tusón, Vicente. Literatura española 2. Salamanca: Anaya, 1995.
Torri, Julio. La literatura española. México: Fondo de Cultura Económica, 1999.
Villanueva, Darío. “Introdução”. In: Cela, Camilo José. A Colmeia. Trad. Mário Pontes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
Autor notes
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