Dossiê
Recepção: 01 Junho 2019
Aprovação: 09 Agosto 2019
Resumo: Neste trabalho nos propomos a analisar as representações que compartilham professores de espanhol atuantes no Ensino Fundamental II e Médio acerca da leitura como prática social, de modo geral, e da leitura como habilidade específica a ser explorada nas aulas de língua estrangeira. Com esse intuito, elaboramos um questionário composto por 30 questões discursivas e de múltipla escolha, respondido por 24 professores, posteriormente selecionamos 5 entre eles e realizamos entrevistas individuais, com base em um roteiro semiestruturado, composto por 14 perguntas discursivas. A partir disso, empreendemos uma análise de base qualitativa, fundamentada teoricamente pela Análise do Discurso de linha francesa, em princípios da História Cultural do livro e da leitura, bem como dos Letramentos. Sendo assim, pudemos analisar as representações desses professores sobre a leitura e o leitor, o que abre caminhos e possibilidades para pensarmos acerca da formação leitora crítica em língua estrangeira.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso, leitura, ensino de língua espanhola.
Abstract: In this work we propose to analyze the representations Spanish teachers working in Primary and Secondary Education share about reading as a social practice, in general, and the reading as a specific ability to be explored in foreign language classes. Based on that, we elaborated a questionnaire composed by 30 discursive and multiple choice questions, answered by 24 teachers, and after we selected 5 among them and performed individual interviews, based on a semistructured script, composed by 14 discursive questions. We analyzed this material qualitatively, theoretically supported by French Discourse Analysis, principles of Cultural History of the book and reading, as well as of literacy. Thus, we could analyze the representations of those teachers about the reader and the reading, which opens up ways and possibilities to think about the formation of the critical reader in a foreign language.
KEYWORDS: Discourse, reading, teaching of Spanish language.
Representações do livro e da leitura como meio de manutenção do poder em sociedade
No presente artigo, inicialmente, apresentamos algumas considerações acerca do livro, da leitura e do leitor, a partir da História Cultural, de modo a definir o recorte de nosso corpus nesse contexto, a saber, o professor de língua espanhola. Na sequência, ainda nesse primeiro tópico, delineamos e justificamos nossas escolhas teóricas e metodológicas de análise, bem como a interdisciplinaridade que as constituem. Posteriormente, apresentamos e analisamos alguns dados advindos de uma pesquisa mais ampla que realizamos, de como os professores participantes da pesquisa veem a si e a seus alunos como leitores em língua espanhola, tendo como parâmetro as declarações e representações que fazem sobre um bom leitor. Já no terceiro tópico, nossa preocupação se direciona a entender e a analisar o descompasso entre o que os professores de espanhol declaram sobre a leitura de modo geral e de sua prática com a leitura em sala de aula, levando às considerações finais de nosso texto.
Desse modo, tendo em conta o fato de que o conceito de representação já foi abordado e desenvolvido de diferentes modos e por diversas áreas, nos parece fundamental definir como o tomamos e o entendemos aqui, a partir dos estudos desenvolvidos por Chartier (2002b), em que pode ser entendido como a capacidade de tornar um ausente presente, exibindo a sua presença enquanto imagem, ao mesmo tempo em que constitui o sujeito que a olha, como sujeito que olha. No conceito de representação estão imbricados valores simbólicos, que envolvem questões de identidade e de poder, estreitamente relacionadas às formas de hierarquização e organização social de determinados grupos, bem como o modo como se representam e são representados, fatores constitutivos das identidades tanto individuais como coletivas em sociedade. Nesse aspecto a representação se dá tanto em uma perspectiva diacrônica, tendo em conta a sua construção histórica, como também sincrônica, em um dado tempo, espaço e contexto determinado, sobre a própria representação e aquilo que ela representa.
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio.
(Chartier, 1990, 17)Como se vê, as representações não são unilaterais, bem como os discursos que as constituem, elas envolvem disputas e calibragem de poder no campo discursivo, que se materializam nas práticas cotidianas e oficialmente instauradas, dependendo da adesão ou não a essas representações, de acordo com os valores de determinada cultura e sociedade, o que influencia no alcance e poder persuasivo das mesmas. Quanto mais ela se insere no campo do discurso verdadeiro e atende à vontade de verdade de determinada cultura (Foucault, 2014), maior será o seu poder e persuasão nessa sociedade.
Parece-nos importante observar, que se por um lado a representação torna um ausente presente, o que leva a uma possível distinção entre a representação e a coisa representada, justamente pela ausência do que está sendo representado, por outro, a representação é a exibição de uma presença. Isso nos permite afirmar que, em alguns casos, o objeto representado não tenha existência para além de sua representação, isto é, a representação adquire tal aspecto em que é capaz de mascarar o seu próprio referente ou, incluso, dar-lhe existência, como a teatralização da vida social do Antigo Regime, como considera Chartier (2002b) ou, a partir de recursos e elementos simbólicos diferentes ao desse momento na França, a teatralização da própria vida na contemporaneidade via internet e redes sociais.
Sendo assim, realizar um levantamento sobre as representações dos leitores do passado de modo a descrever “Quem eram? O que liam? Por que liam o que liam?” não é tarefa fácil, seja pelos poucos registros deixados sobre suas práticas, seja pelo necessário deslocamento no espaço e no tempo, que exige um cuidado ainda maior por parte dos pesquisadores, pela própria necessidade de que sejam considerados aspectos como formas de representação, circulação, apropriação e editoração dos objetos de leitura de uma época e de um contexto outro, o que nos ajuda a contextualizar e a melhor entender as práticas e as representações do livro e da leitura na contemporaneidade e, concomitantemente, o nosso próprio corpus de análise.
Não foram poucos os pesquisadores e as áreas que se enveredaram por esse caminho, entre os quais podemos mencionar aqueles de que nos valemos mais diretamente nas presentes reflexões, a saber, Chartier, (1999, 2002a, 2004) e Ginzburg (2006), na Europa, e Abreu (2001a, 2001b e 2001c), no Brasil. Segundo as pesquisas desenvolvidas por esses estudiosos sobre as práticas de leitura de leitores do passado, tanto no contexto europeu como especificamente no contexto brasileiro, da Idade Antiga à contemporaneidade, a leitura tem se prestado a diversas finalidades, desde atividade de ócio de grupos específicos até meio de manutenção do poder. Sobre esta última, muitas das lutas sociais, que tiveram por finalidade demarcar as diferenças entre ricos e pobres, doutos e leigos, sustentaram-se e valeram-se do valor simbólico de alguns objetos, como os livros, as roupas que usavam e as grandes bibliotecas particulares, como representação de conhecimento, riqueza e poder. Tais valores e representações, não raras vezes, eram transferidos para os detentores desses objetos e ainda o são na contemporaneidade, como analisa Curcino (2016, 6) ao abordar o tema no cenário da política brasileira.
Por seu valor sociocultural historicamente estabelecido, a leitura é concebida como prática distintiva dos indivíduos, que transferiria para aquele que se afirma leitor ou de quem se afirma ser leitor o prestígio histórico, os valores simbólicos que lhe foram agregados. Assim, como prova inconteste de competência intelectual, e afastada das práticas de menor prestígio ligadas ao caráter braçal, a posse de livros, a pose com livros, a leitura de certos livros agregariam ao perfil do sujeito que se mostra leitor essa competência intelectual.
Seguindo nessa linha de raciocínio, segundo Chartier (1999, 84) ao tratar das fotografias oficiais de François Mitterrand por Gisèle Freund, em 1981, sobre a perpetuação de uma tradição do livro nessas fotografias “O livro indicava autoridade, uma autoridade que decorria, até na esfera política, do saber que ele carregava”.
Assim, considerando a amplitude e a complexidade do tema em seu caráter histórico, político, social e cultural, tomamos como recorte do presente trabalho a figura do professor de língua espanhola, em que buscamos identificar as representações que fazem de si como leitores e de seus alunos, a partir do que consideram ser um bom leitor, bem como o que declaram acerca do trabalho que realizam com a leitura nas aulas de língua estrangeira. De modo específico, buscamos identificar em que medida as representações que fazem sobre um “bom leitor” e a leitura influenciam e se manifestam ou não no que declaram sobre suas práticas de trabalho e de fomento dos textos e da leitura em sala de aula de língua espanhola. A partir disso, nos atentamos para as relações simbólicas e de poder que sustentam e definem essas representações em sociedade, quase sempre de maneira assimétrica, em que alguns poucos acabam por impor seus padrões e vontades à maioria, que não raras vezes os reforçam e corroboram para que se legitimem como verdades.
Com esse intuito, desenvolvemos um questionário composto por 30 questões discursivas e de múltipla escolha com 24 professores brasileiros, que têm como língua materna o português, mas que são atuantes no ensino da língua espanhola, no Ensino Fundamental II e Médio, em muitos casos via CEL (Centro de Estudos de Línguas) de diferentes lugares do país, mas principalmente do interior de São Paulo. Além de, posteriormente, termos selecionado 5 entre esses professores para realizarmos entrevistas individuais, com base em um roteiro semiestruturado, composto por 14 perguntas discursivas1.
Como meio de Análise de nossos dados, partimos de uma concepção teórica e metodológica interdisciplinar, de base qualitativa, que começa a ser pensada por volta dos anos 90, a partir de uma ruptura epistemológica sobre o ensino de línguas do que se tinha até então, ainda um tanto positivista, com especial atenção para a prática de leitura. Nesse momento, vemos emergir e difundir-se os estudos de viés sócio-histórico, entre os quais os estudos sobre Letramento, no campo da educação e dos estudos da linguagem, em diálogo com as teorias da Análise do Discurso e também em consonância com avanços da História Cultural da leitura, que passam a dedicar-se à construção da história social do leitor por meio dos seus discursos e representações, situando-o no tempo e no espaço, como produtor, mas também fruto de processos históricos e culturais do seu meio.
Considerando os estudos no âmbito da Linguística Aplicada (LA) acerca da leitura, Kleiman (2004, 15) conjuga os três campos que oferecem as teorias base de nossa pesquisa, a saber, (Análise do Discurso (AD), Letramento e História Cultural (HC)) e o faz da seguinte maneira:
Diversas abordagens sócio-históricas na pesquisa sobre a leitura começaram a ser desenvolvidas no início da década de 90. [...] Dentre as duas talvez mais importantes temos uma de inspiração francesa, a da História Cultural da Leitura, e uma de inspiração anglo-saxônica, a concepção sócio-histórica da escrita dos estudos de letramento, fortemente influenciada por antropólogos ingleses, como Street (1984) [...] Essa última abordagem, subsidiada pela Análise Crítica do Discurso, a Pragmática, as Teorias da Enunciação e a Sociolinguística Internacional, passou a dominar o campo na Linguística Aplicada. O objeto de pesquisa nessa disciplina é a leitura como prática social, específica de uma comunidade, os modos de ler inseparáveis dos contextos de ação dos leitores, as múltiplas e heterogêneas funções da leitura ligadas aos contextos de ação desses sujeitos. [...] O pesquisador procura entender o funcionamento da escrita nas práticas locais das diversas instituições e visa, ainda, problematizar o uso da escrita, desnaturalizando sua relação com o poder.
Um conjunto grande de pesquisas e de metodologias de ensino de línguas, desde esse período, se ocupa da produção e da interpretação de textos e compartilha princípios com a Análise do Discurso lato sensu, por ser esta uma teoria da interpretação2 que permite discutir quais são as injunções e coerções que incidem sobre todo e qualquer dizer e também sobre o crer e o fazer, de modo que o que dizemos e o modo como agimos, necessariamente, estão filiados a um conjunto de saberes e poderes que nos antecedem e que circulam simbólica e sócio-historicamente de modo a nortear/autorizar/ desautorizar o que enunciamos e as práticas que advém do que enunciamos, tal como a leitura/interpretação.
Nessa perspectiva, é preciso considerar que o funcionamento discursivo regula a produção e circulação dos discursos compartilhados sóciohistórica e culturalmente que, por sua vez, ‘autorizam’ e legitimam certas práticas em relação a outras, certos objetos culturais em relação a outros e os sujeitos que as exercem e os possuem e que são legitimados para tal. Esse funcionamento discursivo define, assim, o modo como nos vemos, como agimos, como nos expressamos sobre o mundo e sobre nós mesmos, ou seja, como nos representamos e como representamos os outros e suas práticas. Nesse sentido, a AD nos é bastante cara neste trabalho, pois é a partir dela que analisamos as declarações dos professores de espanhol, ou seja, a forma como representam a si e a seus alunos como leitores ou não leitores.
Sobre o Letramento, Kleiman (2005, 19) o define como sendo “[...] os usos da escrita em sociedade com o impacto da língua escrita na vida moderna”, ou como
[...] umas das vertentes de pesquisa que melhor concretiza a união do interesse teórico, a busca de descrições e explicações sobre um fenômeno, com o interesse social, ou aplicado, a formulação de perguntas cuja resposta possa promover a transformação de uma realidade tão preocupante, como a crescente marginalização de grupos sociais que não conhecem a escrita
(Kleiman, 1995, 15).Esse discurso do ensino como meio de promover a transformação de uma realidade desigual, que marginaliza boa parte de seus indivíduos, tem sido, cada vez mais, incorporado no âmbito acadêmico por diversas áreas e correntes teóricas, o que veremos repercurtir em nossos dados, naquilo que dizem os professores entrevistados. Por esse viés podemos analisar o que declaram sobre a leitura, acerca da importância da leitura e da própria importância delescomo docentes e agentes de transformações sociais na realidade de seus alunos, uma vez que veem o texto e a prática da leitura como um meio para isso. Ao mesmo tempo em que, por outro lado, realizam declarações sobre suas práticas que acabam indo em uma direção contrária àquilo que defendem como um ideal de ensino, e é justamente pelo Letramento que encontramos um centro de análise entre esses discursos, aparentemente, contraditórios.
Já no que tange à História Cultural do livro e da leitura, ela nos ajuda, principalmente a partir do conceito de representação, a situar a prática da leitura no tempo e no espaço, assim como compreender suas mudanças e regularidades que a caracterizam, e a forma histórica de valoração dessa prática e de sua variação no tempo, no espaço e nos usos, conforme as comunidades leitoras, seus interesses e suas habilidades.
Assim sendo, a interdisciplinaridade entre esses campos se estabelece por seu interesse comum pelas práticas de leitura e escrita3, por suas preocupações históricas e sociais na análise dessas práticas, reconhecendo, cada um a sua maneira, o funcionamento dos discursos na sua relação com as práticas, as injunções da história sobre o que declarar ou não, de que formas fazê-lo, com base em que memórias discursivas históricas e sociais exercê-las, reproduzi-las e difundi-las.
Frente a isso, já de início, em nossas análises, pudemos constatar que a representação mais recorrente entre os professores participantes da pesquisa, ao enunciarem sobre si, é a de que são bons leitores em língua espanhola, funcionando como meio de legitimação de si como professor e de seus conhecimentos em língua espanhola.
Representações de um “BOM LEITOR”, segundo declarações de professores de língua espanhola
Historicamente, como nos apresenta Britto (1998), e talvez de maneira mais recorrente nos últimos tempos, podemos observar em diferentes mídias, como rádio, tv, jornais, revistas e, recentemente, também nas redes sociais, a presença de discursos que culpabilizam o professor pelo fracasso do ensino brasileiro e, consequentemente, na formação de leitores, o que acaba colocando em cheque a capacidade docente, bem como a sua formação acadêmica. Isso quando não chegam a acusações graves com vistas a deslegitimar saberes científicos, de diferentes áreas da atuação do professor, desenvolvidos e validados ao longo de décadas, ultrapassando a questão da formação docente a uma hostilização pela categoria.
Nessa lógica, um dos princípios para desqualificar os docentes tem sido a recorrência do discurso de que não leem, de que não são leitores, uma vez que a própria formação que possuem é vista, muitas vezes, como insuficiente e precária, entre outras razões, pela falta de leitura.
É notório que esse discurso de culpabilização e ataque aos professores se manifesta de forma bastante parcial e precipitada, pois mascara uma série de problemáticas de cunho político, social, histórico e cultural, que envolvem a nossa educação. A título de exemplo podemos mencionar a distribuição e acesso desigual à (in)formação em nossa sociedade, seja a nível intelectual ou material, agravada pelo descaso e a falta de políticas publicadas efetivas ao longo de décadas, capazes de viabilizarem um acesso justo, democrático e igualitário de oportunidades na educação, na saúde e no mercado de trabalho, comprometendo, muitas vezes, condições básicas e essenciais para uma vida digna e honesta. Isso ao gosto de uma minoria detentora de poder simbólico, econômico e social, que há muito preza por produzir e perpetuar mecanismos que legitimem sua distinção, entre os quais se encontram o livro e a leitura.
É interessante notar que as declarações dos professores participantes de nossa pesquisa sobre si e sobre os seus alunos como leitores e da leitura de modo geral, estão diretamente relacionadas à constituição identitária que fazem de si como docentes e como coletivo. Por exemplo, ao declararemse como bons leitores, em alguma medida, esses enunciados legitimam e contribuem para inserir esses professores como parte de uma cultura de prestígio simbólico que o livro proporciona, como consumidores dessa cultura e, ao mesmo tempo, produtores de conhecimento que o ato da leitura crítica possibilita, afastando-os ou contrapondo-se aos discursos que visam culpabilizá-los, como categoria, pelo fracasso do ensino brasileiro.
Desse modo, o fato de se declararem como leitores retoma toda uma concepção que circula sobre ser leitor em nossa sociedade a partir de uma memória e uma representação simbólica, institucionalizada e discursivamente legitimada acerca dessa figura, mas pouco condizente com as reais práticas leitoras empreendidas cotidianamente pela população. Muito disso advém dos padrões europeus do século XVIII e XIX, ou seja, o leitor como um sujeito culto, detentor de poder econômico e social, que realiza leituras de fôlego e com frequência. Isso se confirma ao olharmos para os dados de nossa pesquisa apresentados no Gráfico 1, das declarações dos professores sobre si como leitores e no Gráfico 2, dos professores sobre seus alunos. Não há diferenças significativas na recorrência das respostas, seja em um ou em outro caso, as referências do que se entende por “ser leitor” permanecem, inclusive em língua estrangeira, como é o caso do espanhol em nossa pesquisa. Os gráficos podem ser entendidos da seguinte maneira: na medida em que o sujeito participa das práticas mais sinalizadas/declaradas pelos professores, segundo suas representações sobre a leitura, melhor leitor ele seria e quanto mais se afasta delas, pior leitor ou um não-leitor ele se torna.


A resposta mais recorrente “Ler com frequência”, assinalada por quase todos os participantes da pesquisa, remete à leitura como um hábito do sujeito, mas não questiona o que lê, como lê e as razões de ler o que lê, o que retoma as análises críticas de Abreu (2001a) e Britto (1998), sobre as representações da leitura como meio de entretenimento, curiosidade intelectual do sujeito, hábito gratuito que levaria a constantes reflexões e a um determinado comportamento. Curcino (2016, 1-2), a partir de Pierre Bayard (2007), trata de três consensos gerais sobre a leitura que vigoram nas sociedades letradas do Ocidente, dos quais dois deles seriam
O primeiro refere-se à necessidade de ler (é preciso ser leitor numa sociedade em que a escrita adquiriu papel distintivo de indivíduos); o segundo, à necessidade de ler com frequência (ler sempre, muitos livros e em sua totalidade, de modo a se integrar a uma sociedade da informação e da ostentação da condição de ser bem (in)formado).
Esses dois consensos são reafirmados e retomados nas representações que fazem os professores de espanhol sobre o que os tornariam bons leitores nessa língua estrangeira, uma vez que declaram ler textos em espanhol diariamente ou semanalmente, configurando-se como um hábito e inserindo-os como parte desse grupo de leitores frequentes. Já no caso dos alunos, a mesma representação serviria para designá-los como não-leitores pois, segundo os professores de espanhol participantes de nossa pesquisa, a maior dificuldade em formar alunos leitores críticos em espanhol, durante o ensino fundamental e médio, estaria na falta de vontade dos alunos que não leem, seja em espanhol ou em português, são desmotivados em relação à leitura, não chegando a fazer dela um hábito.
Assim, se nos parece precipitado o discurso que culpabiliza o professor pelo fracasso da educação brasileira ao desconsiderar questões mais alarmantes desse cenário, como a desvalorização econômica e simbólica, frequente, desses profissionais, as longas e duplas jornadas de trabalho a que são, muitas vezes, submetidos para complementarem a renda, a falta de tempo que isso gera, as salas de aula super lotas, a falta de infraestruturas, etc. – também o é esse discursos dos professores de que os alunos não são leitores, seja em português ou em espanhol, porque não querem.
Tal afirmação não leva em conta aspectos básicos e particulares de nossa cultural, a começar por uma democratização educacional tardia e descomprometida com as necessidades das camadas mais pobres, iniciada no final da primeira metade do século XX, e que ainda hoje aguarda ser efetivada. O mesmo se deu com a consolidação do comércio livreiro no Brasil, cujo desenvolvimento, se comparado a outros países, como a Europa, ainda é muito recente, sem contar o alto preço dos livros, em um país economicamente desigual. Toda essa situação é agravada ao considerarmos a escassez e a ausência de bibliotecas públicas e de qualidade em boa parte dos municípios brasileiros, isso quando as que existem não estão desativadas por falta de cuidados e recursos, tudo isso por citar apenas algumas problemáticas e nem entrar na questão da quase inexistência de bibliotecas públicas especializadas em obras em e de línguas estrangeiras, o que seria ainda mais catastrófico.
Em segundo lugar, é intrigante, mas possível de ser compreendido, a afirmação de que os alunos não leem e não gostam de ler, quando na verdade vivemos em uma sociedade letrada, em que somos expostos constantemente a textos escritos, seja nos espaços públicos, no trabalho, pelas NTICs e também pela escola, em que os alunos leem todo o tempo. No entanto, não são reconhecidos como leitores em função da definição mais prototípica que temos do que é ser leitor, de quem é leitor e do que de fato vale contabilizar como leitura. Tudo isso coloca em relevo a força e a institucionalização de certos discursos, em hierarquizar certas práticas capazes de manter determinadas situações desiguais em nossa sociedade, como aquelas promovidas pelos discursos de elitização do livro e da leitura, que definem quem é e pode ser leitor em nossa sociedade, inclusive entre aqueles que se declaram contrários a essas relações de poder, como é o caso dos professores participantes de nossa pesquisa.
A respeito da importância de “ser crítico daquilo que lê” e de “entender tudo o que se lê”, são duas respostas que também ganham papel de destaque no que os professores reiteram sobre as práticas de leitura. A ideia de “ser crítico daquilo que lê” entende o texto como algo inacabado, em que é papel do leitor posicionar-se em relação ao lido, inserir-se como sujeito ativo na produção dos sentidos. Para Cassany (2011, 105), ao tratar sobre Letramento, a leitura crítica se configura como“ [...] comprensión del punto de vista del autor (ideología, representaciones mentales) y de su relación con el del propio lector (discrepancias y coincidencias, posible reacción del lector, etc.; leer tras las líneas)”. Nesse viés, a leitura crítica permite entender o texto como produto cultural, desde sua produção à sua recepção, a partir de um olhar sócio-interacionista, como formação ideológica, social e cultural do sujeito, concebendo o texto como construção discursiva, de retomada e seleção de posicionamentos, tanto do autor como do leitor.
Em relação à 3º resposta mais citada pelos professores, segundo a qual é bom leitor quem entende tudo o que lê, ainda que em relação aos alunos parece não haver uma representação tão forte dessa exigência, como no caso dos professores de si mesmos, podemos depreender, em um primeiro momento, que essa concepção de compreensão total do texto fundamenta-se em uma perspectiva positivista de língua, bastante recorrente em parte do século XIX e XX. Tal concepção tende a fomentar uma leitura instrumental, com objetivos de decodificação, descontextualizando todo o processo de produção cultural e de acesso ao escrito, bem como a materialidade em que se inscreve e que lhe dá suporte, sem contar a própria inserção do leitor no texto ao significá-lo e interpretá-lo, a partir de suas possibilidades, condições e vivências. Essa perspectiva de um entendimento pleno do texto concebe o ato de ler como verbo transitivo, o que os especialistas da leitura têm questionado há algumas décadas.
Frente a esse levantamento dos dados gerados via questionário, de modo a obter maior fiabilidade e precisão nas respostas dos professores, buscamos, durante as entrevistas, retomar essa questão sobre o que significa ser um bom leitor em língua estrangeira (espanhol) e acrescentamos também em língua materna (português), de modo que pudéssemos cotejar as respostas com a intenção de observar se haveria divergências ou não no que se entender como ser um bom leitor em língua materna e estrangeira. Sendo assim, foi notório que as opções mais assinaladas no questionário (ler com frequência, ser crítico daquilo que lê e entender tudo o que lê) foram reiteradas pelos cinco professores participantes da entrevista. Porém, com a particularidade de que declararam não identificar nenhuma diferença no que caracteriza um “bom leitor” em língua materna e um “bom leitor” em língua estrangeira, salvo o conhecimento linguístico e estrutural da língua espanhola, que também é exigido na leitura em língua portuguesa, mas que assume outra dimensão na língua estrangeira. Além disso, ponderaram criticamente acerca dessas representações e práticas de leitura, como vemos na fala do P114(grifos nossos)
“Para mim um bom leitor é aquele que consegue atribuir o sentido, construir o sentido a partir do que ele está lendo. Entendendo que dentro daquele texto e dentro das suas próprias experiências existem algumas marcas ideológicas, históricas e sociais”.
Nessa concepção do P11 “entender todo o texto”, se distancia de uma concepção estruturalista de língua, filiando-se a uma abordagem crítica da leitura, em que se preocupa com as marcas ideológicas, históricas e sociais do texto, em diálogo com a sócio-história do leitor na produção dos sentidos. Aqui observamos a força dos discursos acadêmicos sobre a concepção de ensino e aprendizagem de língua na atualidade, e em especial de conceitos de áreas de conhecimento e de teorias contemporâneas que se apresentam hoje mais frequentes na formação universitária. Observa-se nesse enunciado a presença de termos próprios do campo mais genérico das teorias do discurso e o modo como foram apropriadas para o ensino de língua materna e estrangeira.
Nessa mesma direção do P11, destacamos a declaração do P12 (grifos nossos)
Um bom leitor de modo geral [...] conseguir me mover, entender, todos os tipos de gêneros discursivos. Então, é claro que também vai depender muito da disponibilidade que eu tenho de contato com esse gênero. Por exemplo, eu me considero uma boa leitora de gêneros discursivos como o jornalístico, o literário, mas eu tenho uma certa dificuldade com os gêneros discursivos jurídicos, porque não são aqueles com os quais eu tenho mais contato. Em língua espanhola, eu também acredito que seja mais ou menos isso, de ter o contato e de conseguir entender os gêneros que há na sociedade.
Segundo o P12, ainda que em um primeiro momento considere como bom leitor não apenas aquele capaz de entender todo o texto, mas textos de diversos gêneros, em seguida pondera sobre esse entendimento, considerando-o, a partir do texto e da leitura que dele se depreende, em seu funcionamento social, identificando a subjetividade do leitor nesse processo de entendimento do escrito, sua disponibilidade e suas vivências ou não em situações e ambientes em que esses gêneros circulam. Fica ainda evidente a força que as teorias contemporâneas ensinadas na academia e reiteradas nos cursos de formação continuada de professores têm sobre o que se espera do P12 como professor, pela menção reiterada ao termo “gêneros do discurso”. A recorrência a esse termo técnico e a ênfase dada a ele demonstra o poder que certos enunciados assumem no âmbito do discurso acadêmico e por isso sua reiteração, como palavra chave que demonstra o domínio de um certo saber de prestígio no momento.
O P12 para contextualizar e justificar a sua explicação ainda lança mão de suas próprias experiências com a leitura, inclusive, na sua língua materna, em que a incompletude do entendimento do texto seria uma constante, em que se relaciona tanto com a sócio-história do leitor, como com a contínua ressignificação do que se lê pelo próprio ato da leitura.
O posicionamento dos professores, durante as entrevistas e nas questões discursivas do questionário, mostra uma formação teórica crítica em relação à leitura, ao papel que possuem na formação do aluno como leitor e sujeito social. Eles compõem um perfil de professores bem qualificados, formados, em sua maioria, em universidades públicas, um número significativo de especialistas, mestres e mestrandos, vários deles possuem experiências de intercâmbio em países hispânicos, em alguns casos em mais de uma universidade, de modo que a culpabilização do professor pelo fracasso escolar, em função de sua má formação, não cabe em nosso corpus.
Contudo, observamos contradições e certos impasses entre os conhecimentos teóricos que apresentam e as representações críticas que sustentam ao falar sobre a leitura, em contraposição às declarações que fazem acerca de suas práxis com a leitura tanto no cotidiano como em sala de aula, que contradizem, em certo ponto, os princípios teóricos declarados, inclusive acerca do que afirmam sobre a importância da leitura como fonte de conhecimento, desenvolvimento cultural e formação do sujeito. Isso se deve em partes, pela própria assimetria dos discursos em nossa sociedade e o modo como são incorporados pelos professores em diferentes situações de enunciação, com vistas a atender a perguntas bastante específicas sobre o tema da leitura. Assim sendo, é sobre esses descompassos que nos debruçaremos a seguir, com vistas a identificá-los, de modo que os dados e as análises geradas abram possibilidade para que se possa repensar o trabalho com a leitura e o seu ensino em sala de aula e fora dela, tanto em língua estrangeira como em língua materna.
O que se diz e o que se faz: descompassos entre a teoria e a prática em leitura do professor de língua espanhola
Um postulado básico na Análise do Discurso (AD) é o de que não somos a origem de nossos dizeres, ou seja, aquilo que dizemos, acreditamos e nos filiamos têm origens diversas, que muitas vezes antecedem à nossa própria existência como indivíduos. Por outro lado, tampouco somos sujeitos completamente assujeitados, uma vez que a AD ao longo de sua história, reconfigurou o lugar do sujeito dentro das teorias linguísticas, reconhecendo a sua capacidade de intervir na linguagem, em sua materialidade linguística e histórica, ou seja, na produção dos sentidos.
Dessa forma, ao longo do tempo, os discursos vão se constituindo pelo imbricamento do já dado, daquilo que é pré-construído, a partir de uma historicidade e de uma memória coletiva, como do novo, próprio do evento discursivo, do que se atualiza na singularidade do ato da enunciação. Por essa esteira de pensamento, a AD não trata o sujeito como um ser isolado, mas que traz em si uma historicidade, produto de tantas outras vozes e dizeres que o antecedem e que lhe são contemporâneos, em uma constante luta de poder entre o que se diz e pode ser dito, em contrapartida ao que é e deve ser silenciado. Por isso, ainda que tenhamos quantificado alguns dados no presente trabalho, as nossas análises possuem caráter qualitativo, uma vez que as teorias das quais nos valemos (AD, HC e Letramento) não estão preocupadas, neste caso, com a objetividade dos números, mas sim em entender o sujeito em sua historicidade, contextualizado em um tempo e espaço.
Nesse sentido, é interessante observar como as relações de poder assimétricas em sociedade se manifestam nas declarações dos professores, naquilo que reiteram e atualizam sobre a leitura em cada caso, a partir de uma institucionalização, bem como do valor de verdade, muitas vezes, inconteste, que alguns dizeres assumem em certos contextos. Isso nos ajuda a entender as contradições entre o que os professores participantes da pesquisa declaram sobre a leitura e o trabalho que efetivamente podem e conseguem exercer com o texto em sala de aula de língua espanhola. Segundo Britto (2007, 29)
[...] parece haver um certo consenso quanto à insuficiência atual da educação escolar, em especial no que tange à educação pública. Mas o consenso não está na busca de uma educação que distribua a riqueza intelectual e material, mas sim no fato de que a escola pública não tem sido capaz de garantir uma formação suficiente sequer no nível pragmático, necessário para a otimização da exploração e para a apropriação privada da riqueza.
Esse excerto nos ajuda a esclarecer um pouco o descompasso que ocorre nas declarações dos professores de espanhol. O discurso da leitura que defendem, considerando o questionário e a entrevista de modo geral, é o da leitura como meio de alcançar uma maior distribuição de riqueza intelectual e material, de conhecer outras culturas e de questionar o próprio sistema social que produz concentração de riqueza, segregação e miséria, a partir do desenvolvimento da alteridade e do conhecimento de discursos outros. Isso tudo ainda têm a ver com o lugar social de dizer do professor, o que é esperado que se diga ao serem interpelados sobre o tema da leitura, para que se construa uma imagem positiva e exemplar em relação ao seu interlocutor é preciso, muitas vezes, estar em consonância com os discursos acadêmicos sobre o tema, mostrando-se ativo e atualizado.
Contudo, quando vamos analisar as práticas de leituras declaradas por eles, que são realizam em sala de aula e/ou fora dela, de maneira individual ou coletiva com os alunos, as motivações dessas leituras em língua estrangeira e os procedimentos didáticos empregados no seu fomento, muitas vezes, levam a um trabalho que é suficiente para garantir a formação pragmática do sujeito e não o seu desenvolvimento intelectual.
Esse cenário contribui na otimização da exploração social e humana do indivíduo, direcionada à produção privada da riqueza, reforçando na práxis o que discursivamente condenam os professores de espanhol. Contudo, longe de os culpabilizarmos pela manutenção desse sistema, nossa intenção é olhar para o fato de ainda que eles reconheçam a importância de mudarem suas práticas de forma a torná-las mais coerentes com aquilo que declaram acreditar, existe uma série de coerções históricas, ideológicas e discursivas que limitam e cerceiam a autonomia do professor, que vai desde o livro didático até as demandas de ensino da escola, responsáveis por definirem boa parte de suas práticas. O que não deixa de ser um reflexo da própria organização humana em sociedade e do espaço que o conhecimento ocupa no funcionamento de suas engrenagens, na manutenção das hierarquias, como meio de definir posições e lugares entre os que mandam e os que obedecem, em que os professores, como sujeitos sociais, não estão isentos de acabarem contribuindo com isso, ainda que de forma inconsciente.
Essa disjunção entre as declarações do que acreditam e do que afirmam realizar no trabalho com a leitura, é observada quando “falar bem o espanhol” e “ler rápido” não são representações frequentes na concepção que se faz do que é ser um “bom leitor”, porém, são práticas fomentadas de modo muito recorrente em sala de aula no trabalho com a leitura em língua espanhola, segundo suas declarações. Em média 75% (18) dos professores participantes declararam trabalhar a leitura direcionada ao desenvolvimento da compreensão ou da produção oral, sendo a leitura em voz alta a mais recorrente no trabalho dos professores, para que possam analisar a pronúncia, o ritmo, a entonação, entre outras competências vinculadas à oralidade da língua. Isso também tem a ver com uma visão social imediatista do ensino de línguas nas últimas décadas, voltado a uma lógica de mercado, com a finalidade de atingir uma comunicação rápida e instantânea em pouco tempo.
Esse trabalho com os textos é sem dúvida útil para os fins mais propriamente linguísticos, mas não apropriadamente para o desenvolvimento de uma prática de leitura tal como aquela que norteia o imaginário de prestígio e que apresenta em sua realização efetiva a capacidade emancipatória em sentido amplo (cultural, humanístico, crítico). Isso se deve justamente por desconsiderar aspectos específicos da prática leitora, como a produção de sentidos, o lugar social do leitor, o contexto histórico-cultural de produção do texto e seus meios de circulação, já que o foco se centra na preocupação com a pronúncia, com o ritmo adequado, com a parte mais concreta e sensível da língua, e menos com seu uso social.
Nesse caso, ainda que as habilidades comunicativas (escrita, leitura, oralidade e audição) estejam intrinsecamente relacionadas, é, no entanto, preciso que o professor tenha claro quais são os limites e o foco de cada uma delas, de forma a não subutilizar o texto na falsa aparência de estar trabalhando-o efetivamente com os alunos. É justamente pela subutilização do texto ou pelo desvio de foco na competência que está sendo privilegiada que existem estudos mais radicais como os de Busto (2013, 29), que recomendam aos professores ser preciso lembrar que “la lectura es un buen ejercicio de expresión lectora, pero no de expresión oral”.
No que tange a “ler rápido”, ainda que, praticamente, não seja considerada uma habilidade necessária a um bom leitor, os professores, segundo suas declarações, costumam levar para a sala de aula textos curtos como contos e crônicas, textos jornalísticos, gibis/histórias em quadrinhos, bem como o próprio livro didático que nos últimos tempos tem mostrado uma tendência a incorporar esses gêneros discursivos, que motivam e demandam uma leitura rápida e dinâmica, menos intensiva e extensiva. Isso, primeiramente, parece dar-se em função do próprio espaço da língua na grade curricular do ensino, com carga horária reduzida, uma aula semanal de 50 minutos geralmente. Além disso, a leitura rápida, realizada em voz alta em língua estrangeira, costuma gerar a sensação de fluência, de domínio e de conhecimento da língua, tanto para quem lê quanto para quem ouve, isso quando o aluno não tropeça na pontuação e na pronuncia, porém, efetivamente, não parece avaliar e nem trabalhar a competência leitora em seu caráter social, na produção dos sentidos.
De forma a ilustrar brevemente o que tratamos aqui, atividades em que esse tipo de leitura costuma ser frequente são os trava-línguas, muitas vezes utilizados no começo das aulas, com alunos iniciantes, como um input/rompe hielo, em que o próprio texto em si, muitas vezes, não produz nem mesmo um sentido que não o da própria sonoridade da língua e dos sons que se deseja trabalhar. Talvez, possa ser uma boa atividade para descontrair a sala, trabalhar a articulação sonora entre determinadas sílabas, mas não parece fomentar uma leitura emancipadora, ainda que se leia o trava-língua, pois trata-se de uma leitura sem foco ou preocupação real com o desenvolvimento da competência leitora.
Considerações finais
Frente ao exposto, podemos concluir que circula socialmente e, consequentemente, entre os professores de espanhol, um imaginário sobre as práticas de leitura, acerca de um “bom leitor”, que não corresponde àquelas fomentadas nas aulas de língua espanhola. O que não está exclusivamente ligado às competências e à formação dos professores, mas à distribuição desigual do conhecimento em nossa sociedade, à estruturação do ensino com base em políticas públicas descomprometidas com a equidade social e uma formação intelectual do sujeito, que lhe permita criticar as práticas sociais e ideológicas de produção da miséria e da exploração humana. Tudo isso se relaciona também a uma mudança nos paradigmas do ensino formal no Brasil, que se dá a partir da segunda metade do século XX, com um maior acesso à educação formal pelas camadas mais pobres e populares, em que o foco no ensino vai de um extremo ao outro, da preocupação com a formação humanística do sujeito, no caso a aprendizagem de línguas voltada para a literatura, em contraponto a um ensino zeloso por atender a uma demanda de mercado, imposta, principalmente, a partir dos anos 80, pelas relações comerciais priorizadas na lógica de Mercado.
Essa mudança é resultado do processo de construção de um mundo “globalizado”, mas não globalizante e inclusivo, em que o conhecimento de outras línguas se torna produção de capital, priorizando a comunicação instantânea e imediata, em que se valorizam as habilidades comunicativas, da língua como código de comunicação, fazendo, assim, do seu ensino mais uma engrenagem humana na produção de capital e na exploração de uns pelos outros.
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Autor notes
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