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Diálogos de recriação entre literatura e cinema: as Eréndiras do verbo e da imagem em movimento
Luis Eduardo Santos Pereira
Luis Eduardo Santos Pereira
Diálogos de recriação entre literatura e cinema: as Eréndiras do verbo e da imagem em movimento
Caracol, núm. 19, pp. 860-883, 2020
Universidade de São Paulo
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Resumo: O objeto central assumido neste estudo são os diálogos entre sistemas de signos da relação cinema-literatura. Esta relação principal será observada tomando por base representações ligadas ao imaginário cultural latino-americano. A partir de múltiplos fatores e modelos de estudo que incluem o cinema, procura-se analisar o movimento do processo criativo entre as obras La increíble y triste historia de la cândida Eréndira y de su abuela desalmada (1972), de García Márquez, e o filme Eréndira (1983), de Ruy Guerra. Para além de cuidar de uma relação de análise em que o filme está somente baseado no conto, busca-se pensar como os contextos culturais dos artistas e os potenciais representativos dos sistemas de signos em jogo ressignificam leituras que se materializam criando uma interpenetração dos discursos artísticos. Portanto, o presente trabalho se empenha em apresentar leituras cruzadas que possibilitam compreender o tratamento de questões culturais representadas no conto pelo ponto de vista dos recursos cinematográficos e o mesmo ao revés.

PALAVRAS CLAVE: Gabriel García MárquezGabriel García Márquez,Ruy GuerraRuy Guerra,cinemacinema,literaturaliteratura,intermidialidadeintermidialidade.

Abstract: The main object of study assumed in this paper are the media and semiotic dialogues of the relationship literature-cinema having cultural contexts as background. From multiple factors and study models which include cinema, the aim is to analyze the movement of the creative process between the works La increíble y triste historia de la candida Eréndira y su abuela desalmada (1972) by García Márquez and the film Eréndira (1983) by Ruy Guerra. In addition to looking after a relationship of analysis in which the film is only based on the story, it is sought to think how the cultural contexts of the artists and the potential representatives of the media resignify readings that are materialized by creating an interpenetration of the artistic discourses. Therefore, this paper strives to present cross-readings that make it possible to understand treatments of cultural issues in the story from the point of view of cinematographic resources and the same in reverse.

KEYWORDS: Gabriel García Márquez, Ruy Guerra, cinema, literature, intermidiality.

Carátula del artículo

Vária

Diálogos de recriação entre literatura e cinema: as Eréndiras do verbo e da imagem em movimento

Luis Eduardo Santos Pereira
Universidade Estadual Paulista em Araraquara, Brasil
Caracol, núm. 19, pp. 860-883, 2020
Universidade de São Paulo

Recepção: 27 Julho 2019

Aprovação: 07 Setembro 2019

Introdução

O objeto de estudo assumido neste trabalho são os diálogos entre cinema e literatura tendo como pano de fundo contextos culturais. Especificamente, serão analisados o conto La increíble y triste historia de la cândida Eréndira y de su abuela desalmada(1972), de Gabriel García Márquez, e o filme Eréndira (1983), dirigido por Ruy Guerra.

Busca-se articular contribuições da literatura e do cinema para analisar este diálogo pensando como estas experiências estéticas se implicam na recriação de sentido. Para isso, serão considerados modos de fazer e contextos de produção que situam os pontos de vista de García Márquez e Ruy Guerra. Serão observadas eventuais aproximações, lacunas e apagamentos destes discursos ente si. Uma das hipóteses levantada é de que o elemento cultural, ao passar por tratamento mimético, de acordo com as possibilidades de expressão do conto e do filme, interfere no processo dialógico de interpretação de um sistema pelo outro. Deste modo, o objeto de estudo apresentado caracteriza-se por um processo que se retroalimenta.

Uma das motivações desta discussão é a escassez de trabalhos sobre o cinema de Ruy Guerra e esta obra específica de García Márquez no Brasil. Podem ser encontradas análises breves e pouco atenciosas em artigos científicos, bem como menções ao trabalho do cineasta em livros que, na abrangência de falar sobre Cinema Novo, diluem uma atenção mais exclusiva ao trabalho do cineasta.

Outro aspecto é a recorrência destes processos dialógicos de recriação. A seguinte pergunta sugere este quadro: “por que, de acordo com as estatísticas de 1992, 85% de todos os vencedores da categoria de melhor filme no Oscar são adaptações?” (Hutcheon, 2013, 24).

A escolha específica do corpus sugerido se dá pela natureza peculiar de nascimento do conto e da relação estética que faz convergir escritor e diretor. A gênese de La increíble y triste historia de la cándida Eréndira y de su abuela desalmada (1972) representa um emblemático e particular caso da relação literatura-cinema na estética de García Márquez. Primeiramente, a obra nasce como roteiro de filme, porém é esquecido. A história então é relembrada em formato de narrativa literária (Rocco, 2014). O que era para resultar no filme renasce literatura e, posteriormente, fecha-se o ciclo. Surge Eréndira (1983), cujo diretor é Ruy Guerra e García Márquez, o roteirista. Quanto ao contexto do primeiro encontro de Ruy Guerra e García Márquez, em uma singular passagem relatada pelo cineasta ele conta sobre a ocasião em que conheceu o escritor colombiano:

  1. Alheio ao meu drama, o misterioso Gabo serviu-nos um scotch, me recomendou só beber uísque de malte, conselho que sigo até hoje, e enquanto esperávamos Mercedes, pegou num livro e escrevinhou umas rápidas mas bem desenhadas palavras:

  2. - O conto se chama “El ahogado más hermoso del mundo”. Leia e vai ver que é igual ao teu filme Sweet Hunters.

  3. Peguei no livro aberto e discretamente olhei a capa, para ver o nome do autor. Em letras poderosas, sobre o título da coletânea de contos, três palavras me derrubaram: Gabriel García Márquez (Guerra, 1996, 104).

A história de elaboração da obra e o encontro revelam, no primeiro caso, um diálogo entre memória e esquecimento que conjuga cinema e literatura. No segundo caso, observa-se um diálogo prévio entre ambos. Antes mesmo de terem se conhecido pessoalmente já demonstravam uma afinidade a priori comprovando o laço imaginário que os une culturalmente como leitores, artistas, cinéfilos e sujeitos historicamente constituídos.

As obras narram a épica sem destino de Eréndira e sua avó que a escraviza nos afazeres domésticos. Apegada ao tradicionalismo simbólico e aos bens materiais, viúva de contrabandista e autárquica, a matriarca, após um incêndio que reduz praticamente todos seus bens materiais a pó – fruto de um vendaval que derruba o candelabro da lúgubre e isolada casa em pleno deserto – culpa Eréndira pelo descuido e a condena a prostituir-se até pagar o montante da dívida. As duas passam então a andar errantes pelo deserto em busca de clientes constituindo cidades, agrupamentos e carnavais de atrações. A neta, com o tempo, torna-se a cortesã mais cobiçada daquelas paragens. Em meio à saga, a história é permeada por amores, político demagogo, figuras extraordinárias, religiosos que contribuem para caracterização das personagens e da atmosfera das obras.

O filme encarna as personagens de García Márquez na figura da brasileira Cláudia Ohana no papel de Eréndira e da grega Irene Papas no papel da avó.

Tomado como processo, efetivado a partir de uma obra estímulo (o conto), a produção cinematográfica é um interessante caso de estudo das relações entre culturas e sistemas de signo. A obra consiste de uma coprodução de interesse intercultural, financiada por quatro países: Brasil, México, França e Alemanha (Barros, 2009). Apresenta atores de nacionalidades distintas e históricos diferentes. Além do que, suas imagens gravadas no deserto mexicano representam uma região descrita e mimetizada na literatura. Em outras palavras, o filme apresenta ressignificações do espaço desértico atribuído à região construída no texto literário. A câmera toma, então, este espaço ficcional da literatura como matéria-prima para a transformação artística do deserto mexicano. Assim, a elaboração do filme, ao se valer do deserto ficcional do conto e do deserto real do México, potencialmente, apresenta camadas miméticas por meio desta fusão de espaços.

A produção do longa está inserida em um momento sombrio da história do Brasil. Apesar de já haver um processo de amadurecimento da abertura política, a ditadura militar (1964-1985) ainda assombrava o imaginário dos artistas e atravancava suas produções, sobretudo daqueles diretamente envolvidos com a luta estética e política para mostrar um Brasil menos propagandístico, como no caso de Ruy Guerra. O cineasta foi um dos fundadores do movimento Cinema Novo no país, conforme sua opinião demonstra:

O Cinema Novo não lutou contra a ditadura. A ditadura é que veio para esmagar o Cinema Novo. O Cinema Novo lutou por um país diferente em relação a certas coisas, num momento de abertura criativa para a expressão cinematográfica. Essa ideia de que o Cinema Novo lutou contra a ditadura é toda falsa. Queríamos mostrar que o Brasil não era só o país do Carnaval, das mulatas, do samba e do futebol

(Guerra, 2009, 259).

A relação cinema-literatura é percebida quando se olha para a carreira incipiente do escritor colombiano que em meados da década de 1950 trabalhou em Roma como crítico cinematográfico. Na ocasião, como jornalista do colombiano El Espectador, conheceu Vittorio De Sica e escreveu a crítica ao seu filme Miracolo a Milano (Itália 1951), uma espécie de anunciação de suas próprias escolhas estéticas como escritor. Neste trabalho, García Márquez comenta sobre a fluidez que mistura real e extraordinário a tal ponto de não saber onde começa um e termina o outro.

Ruy Guerra, nascido em Moçambique, lutou na frente de libertação, FRELIMO, contra a exploração colonial portuguesa em seu país. Adotou o Brasil para viver em 1958. Sua experiência de leitor, de amante da literatura e de outras artes foi-lhe também útil para conhecimento, mesmo que virtual de início, de temáticas que envolvem os sertões do Brasil. Este espaço que tanto permeou seus filmes, assim como Macondo permeou a imaginação de García Márquez, criou seu imaginário artístico.

Para o amparo e alcance de uma discussão teórica que parte de um estudo de caso, serão articulados alguns parâmetros cruciais para fazer frente à proposição de estudo desta negociação dialógica.

Trabalhos intermidiáticos desenvolvidos por Sánchez Noriega (2000) quanto à narratologia, discurso e história contribuirão para situar o lugar de partida e as ferramentas de análise. Como será detalhado mais adiante, o processo dialógico conto-filme desmembra-se em uma única história e dois discursos: literário e cinematográfico. Esta separação baseada na escolha analítica do autor permite dar clareza e amparo a uma visão do processo dialógico como recriação, através das possibilidades de entendimento que o conceito o de discurso (efeito de sentido) amplia.

Há alguns aspectos colocados por Linda Hutcheon (2013) como incipientes para teorizar sobre diálogos transculturais: o quê?; quem?; por quê?; como?; onde? e quando?. Estes elementos são consideráveis para a discussão do lugar de produção discursiva e pontos de vista de ambos artistas em cena.

Mikhail Bakhtin (2013) ao recuperar a dimensão histórica, social e cultural da linguagem apresenta o signo como uma formação que implica as demandas pessoais, ideológicas e sociais do enunciador dialogicamente constituído. Seu conceito de dialogismo será bastante operacional neste estudo, afinal ele implica um jogo de mão dupla em que não basta apenas observar a bilateralidade do diálogo, mas também seu aspecto de interpenetração discursiva.

Relações entre cinema, literatura e cultura

Contextos culturais e diálogos midiáticos permeiam a histórica das artes promovendo modificações na literatura e no cinema. Esta dinâmica pode ser observada de acordo com a seguinte afirmação: “en la cultura audiovisual la escritura ha experimentado cierta transformación” (Sánchez Noriega, 2000, 68). Deste modo, novas ferramentas interpretativas devem acompanhar estas modificações, cuja necessidade justifica-se mais precisamente a partir da constatação adiante sobre o caráter perene e bilateral desta relação, “literatura y cine están condenados a coexistir, fecundarse mutuamente, dialogar entre sí y entretejerse” (Sánchez Noriega 2000, 65).

Deste modo, criar a partir de um processo explicitamente dialógico implica uma interpretação que desloca e produz deslocamentos de sentido. A dupla definição do fenômeno interdiscursivo dada adiante é de especial relevância para a caracterização do ato interpretativo e criador do sujeito participante do diálogo. No caso, esta relação é: “como um produto (transcodificação extensiva e particular) e como um processo (reinterpretação criativa e intertextualidade palimpsesta)” (Hutcheon, 2013, 47).

O trecho destacado reconhece uma autoria na primeira definição. A seguinte abordagem dada pela autora cuida de um processo interpretativo que se expressa através de uma criação. O diálogo é constituído de estímulo, resposta e réplica no mínimo. Ou seja, toma-se a obra primeira e cria-se a partir dela. Assim, possivelmente, dá-se ensejo a outra forma trabalhando sentidos através do tempo histórico, do modo de fazer, de uma intenção estética própria com relação a aspectos passíveis de representação. A resposta é o produto final do processo, a réplica advém do retorno do analista à obra estimulo para, a partir do parâmetro criado pelo diálogo, constatar silêncios, ampliações, apagamentos e reduções em contraponto (réplica do diálogo) sempre com a dita obra estímulo. Porém, uma obra aberta, polissêmica, modifica-se no tempo. Portanto, modifica-se o resultado do retorno à obra primeira e, consequentemente, todo o processo relacional – instala-se uma retroalimentação interpretativa.

Dentro de cada sistema de signo que caracteriza literatura e cinema há o sujeito operador do discurso. O lugar de onde o sujeito cria e interpreta é permeado de crenças, ideologias e experiências sócio históricas que podem imprimir-se na formação do enunciado. Deste jogo entre mídias e lugar dos sujeitos produtores do discurso, um questionamento se faz necessário quanto ao ato de trabalhar artisticamente aspectos culturais. Seria o condicionamento expressivo de cada sistema de signo uma abertura a ser preenchida com a subjetividade cultural do interlocutor-operador-interpretante de um meio material específico?

Recriação e dialogismo

Na interpretação de Vargas Llosa (1971) sobre o volume La increíble y triste historia de la cándida Eréndira y de su abuela desalmada (1972), o escritor peruano reconhece um movimento de leitura significativamente caro aos propósitos desta pesquisa: a retroalimentação necessária para a vida de aperfeiçoamento e longevidade criativa das obras. Esta via de mão dupla apresenta um reconhecimento da capacidade de plurissignificação da arte, conforme é apontado na seguinte afirmação:

Una vez más vemos ese sistema retroactivo, prospectivo e introspectivo que tiene la realidad ficticia de estructurarse y de renovarse de ficción a ficción, sin cortar nunca totalmente con ninguno de sus estadios anteriores, creciendo hacia adelante, hacia atrás o hacia adentro pero conservando vínculos (a veces muy sutiles) con los elementos que aparentemente abandona en la nueva etapa

(Vargas Llosa, 1971, 616).

Reconhecer a capacidade de múltiplos significados deve levar em conta o poder da cultura na elaboração destas representações heterogêneas. Afinal, a retroalimentação, o crescimento para adiante e para trás tal como coloca o escritor, faz, no caso da obra de García Márquez, as estórias anteriores serem recontadas a partir de criações futuras.

De posse do entendimento de discurso discutido na seção anterior e dos aspectos que esta noção possibilita trabalhar (cultura, modo de narrar e de representar), bem como de posse da percepção do movimento bilateral do diálogo entre obras logo acima apresentado, será dada especial atenção ao conceito de dialogismo, pensado por Mikhail Bakhtin (2013 [1929]). É sabido que estão em diálogo dois interlocutores com seus discursos: Ruy Guerra e García Márquez. Assim, deste ponto em diante, serão apresentadas as possibilidades do conceito bakhtiniano relacionado ao discurso para dar conta da natureza de recriação do diálogo transcultural e midiático.

O conceito de dialogismo apresenta a percepção de um mecanismo importante ao desenvolvimento do presente trabalho: a retroalimentação. Mais consistentemente identificado em Problemas da poética de Dostoiévski (2013 [1929]), sua formulação está ligada ao embate entre as vozes dos personagens criados pelo escritor russo. Bakhtin ao analisar a obra de Dostoiévski reconhece nos discursos dos personagens um diálogo que antecipa palavras e pensamentos caracterizando uma interpenetração de vozes. Fenômeno muito perceptível, por exemplo, no interrogatório de Raskólnikov em Crime e Castigo (2001 [1866]) este caso, trata-se particularmente de uma perseguição intelectual e um jogo de criação de subterfúgios para uma argumentação eficaz e salvadora, porém as palavras cursam uma via de mão dupla interpenetrando as consciências dos personagens e causando fissuras em seus estados mentais. Nesta medida, a percepção do dialogismo é a percepção deste movimento que funciona em sentidos opostos, que impregna a palavra de um interlocutor no outro, conforme o teórico soviético faz notar adiante:

Na consciência do herói penetrou a consciência que o outro tem dele, na autoenunciação do herói está lançada a palavra do outro sobre ele; a consciência de si mesmo, as cisões, evasivas, protestos do herói, por um lado, e o discurso do herói com intermitências acentuais, fraturas sintáticas, repetições, ressalvas e prolixidade, por outro

(Bakhtin, 2013, 240).

Releituras da obra de Bakhtin identificaram a potência do conceito para além do âmbito restrito às obras de Dostoiévski. Beth Brait (2005), por exemplo, chama a atenção para o caráter desta concepção que define essencialmente a linguagem e, ao mesmo tempo, apresenta suas possibilidades de uso:

O dialogismo diz respeito ao permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. É nesse sentido que podemos interpretar o dialogismo como o elemento que instaura a constitutiva natureza interdisciplinar da linguagem

(Brait, 2005, 94).

Neste âmbito mais amplo de discussão do conceito, é importante observar que a contribuição de Bakhtin (2013) passa por um entendimento do caráter aberto do discurso e do seu potencial de recriação. A passagem seguinte reconhece este aspecto inconcluso do discurso: “o ganho teórico do dialogismo bakhtiniano é assim, sem dúvida, notável. Ele tem consequências imediatas na maneira de conceber o discurso, como uma ‘construção híbrida’, (in) acabada por vozes em concorrência e sentidos em conflito” (Dahlet, 2005, 56).

Esta natureza aberta e permeável a vozes possibilita visualizar o discurso como um lugar de embates e negociações de sentido. Volóchinov (2009) argumenta sobre a natureza dupla dos signos constituintes do enunciado e faz saltar aos olhos as fendas por onde escorrem e justificam a instabilidade da significação: “toda imagem artístico-simbólica ocasionada por um objeto físico particular já é um produto ideológico. Converte-se, assim, em signo o objeto físico, o qual, sem deixar de fazer parte da realidade material, passa a refletir e refratar, numa certa medida, uma outra realidade” (Volóchinov, 2009).

Todo sistema que engloba um objeto culturalmente transforma-o em signo. Portanto, enquanto símbolo apresenta vozes que dialogam. A seguinte passagem aponta esta transformação do objeto em discurso, ou em outras palavras, em campo de trabalho de sentidos e valores:

Qualquer objeto já veicula para a sociedade na qual é reconhecível uma gama de valores dos quais é representante e que ele ‘conta’ qualquer objeto já é um discurso em si. É uma amostra social que, por sua condição, tornase um iniciador de discurso, de ficção, pois tende a recriar em torno dele (mais exatamente, aquele que o vê tende a recriar) o universo social no qual pertence. Desse modo, qualquer figuração, qualquer representação chama a narração, mesmo embrionária, pelo peso do sistema social ao qual o representado pertence e por sua ostensão

(Aumont, 2012, 90).

É possível questionar o fato de um processo dialógico que converge discursos para um mesmo objeto a história de Erêndira, no caso - impossibilitar contradições necessárias ao funcionamento perceptível do dialogismo. Porém, conforme pode ser constado adiante, não é o que acontece:

Dois discursos iguais e diretamente orientados para o objeto não podem encontrarse lado a lado nos limites de um contexto sem se cruzarem dialogicamente, não importa que um confirme o outro ou se complementem mutuamente ou, ao contrário, estejam em contradição ou em quaisquer outras relações dialógicas (por exemplo, na relação entre pergunta e resposta). Dois sentidos materializados não podem estar lado a lado como dois objetos: devem tocarse internamente, ou seja, entrar em relação semântica

(Bakhtin, 2013, 216).

O diálogo que penetra os espaços midiáticos em questão possibilita perceber aberturas de fissuras que recriam os sentidos construídos no filme para dentro do conto e do conto para dentro do filme. Em decorrência disso, caracterizar as condições de representação colocadas por cada mídia é fundamental ao caminho da percepção de diferenças a serem apropriadas e ressignificadas por cada experiência expressiva.

Deste modo, tem-se Ruy Guerra no contexto cultural e midiático que o justifica e o mesmo com relação à García Márquez. Seus discursos antecipam e recriam imagens a partir das vozes que se interpenetram em planos semânticos que variam de acordo com as condições que os tornam interlocutores distintos, a saber: o contexto cultural e os seus engajamentos discursivos – o efeito nítido do dialogismo será apontado na apresentação dos resultados, quando será demonstrada a antecipação de informação do filme para o conto.

Espaços: o sertão de Ruy Guerra e o deserto de García Márquez

O deserto de García Márquez é valorizado a partir das vozes do narrador e dos personagens. Lugar de impunidade, anterior ao mundo, infernal e cruel. A descrição do espaço faz o leitor associá-lo à figura da avó, branca e vasta. Neste lugar o desespero toma conta. Cabritos, por exemplo, suicidam-se.

Quanto às dimensões físicas do deserto, elas geram solidão e uma sensação de isolamento. A casa de Erêndira e da avó está reduzida a esta solidão árida, mais destacada no livro que no filme, afinal na narrativa literária uma panorâmica verbal descreve a casa reduzida na imensidão do lugar, “la enorme mansión de argamasa lunar, extraviada en la soledad del desierto” (La increíble y triste..., 2014, 95). No filme a casa começa descrita de dentro com sua decoração exagerada e intensa. O uso das palavras parece tomar a casa de um plano superior trabalhando dialeticamente suas dimensões para caracterizar o poder da natureza. A estrutura é enorme, porém pequena quando tomada do ponto de vista do deserto.

No deserto de García Márquez não há delimitação precisa do espaço. A ordem de entrada e saída dos personagens não obedece a uma lógica espacial, eles podem chegar de um além sem muita explicação. É como no sonho, onde tudo é possível, onde o mágico e o inusitado brotam sem chocar uma lógica racional e urbana. Parece que o lugar dos sentidos convencionais está no mundo, e o deserto é caracterizado como anterior a este lugar mais reconhecido ou identificável para o leitor. O deserto de García Márquez solta os grilhões para inventividade, cria suas próprias leis. Não tem dono e está em jogo a atitude do mais forte.

Sua vastidão é um elemento criador de imagens cinematográficas, muito caras aos rituais imagéticos de deslocamentos de massa de pessoas nos filmes de Ruy Guerra. A literatura recria imagens que se desenham no espaço, porém esta percepção não está tão cravada no seu modo costumeiro de fazer artístico, sempre mais próximo do humano individualizado. Em La increíble y triste historia de la cándidaEréndira y de su abuela desalmada (2014 [1972]), a analogia com animais feita pelo narrador caracteriza, inclusive, o deslocamento de massas recortadas pelo espaço e recortando-o ao mesmo tempo. Ao descrever a fila de homens interessados por Erêndira, o narrador constrói uma imagem fálica da concentração de pessoas e dá a ela um formato que transcende a mera aglomeração:

La fila interminable y ondulante, compuesta por hombres de razas y condiciones diversas, parecía una serpiente de vértebras humanas que dormitaba a través de solares y plazas, por entre bazares abigarrados y mercados ruidosos, y salía de las calles de aquella ciudad fragorosa de traficantes

(La increíble y triste..., 2014, 141).

Este controle da aglomeração em uma forma simbólica descreve um movimento do todo de pessoas, cria um monstro de muitas cabeças. A cidade se torna toca e as pessoas uma unidade de significação, a serpente com vértebras expostas. Esta descrição ampla do espaço, imagética e reduzida a um movimento sincrônico remete a um recurso presente em alguns filmes de Ruy Guerra quando da entrada do povo nas estórias. Deslocamento de pessoas em cortejo em um fluxo de mesma direção (sentido único de deslocamento) e busca de salvação criam uma imagem de obstinação que caracteriza um todo com aspecto individualizado de comportamento humano.

O uso das palavras no livro cria exageros, faz acontecer o exuberante, cria relógios que demoram seis horas para estarem acertados e funcionarem sincronicamente. Faz sair das entranhas da matriarca sangue verde e peixes navegarem no céu. No filme, o mesmo se passa, em alguns casos, em correspondência com esta aura mágica criada pelas palavras, mas o plano inventivo original de Eréndira (1983) com relação ao conto está no uso das imagens potencialmente trabalhadas pelo espaço. O deserto amplia tudo e já inscreve a exuberância, e seu solo não rejeita a construção do mágico pelo potencial das imagens em informar simultaneamente, de se recortarem. Em um espaço vago, amplo, às vezes pouco nítido o mágico é justificável. Neste sentido, figuras lembram centauros e imagens criam ligações entre céu e terra em uma cosmologia mítica própria. A atmosfera construída por palavras provoca a imagem a subverter instintos realistas e encher a aura mítica construída pela obra estímulo.



Eréndira (1983), Ruy Guerra

Figuras representadas no deserto de García Márquez dialogam com personagens representados no sertão de Ruy Guerra. É sabida a forte presença de figuras ligadas à religiosidade nos filmes do cineasta, tal como se pode constatar em Os fuzis (1964). Seres messiânicos que em nome de Deus prometem salvar regiões fustigadas pela seca e o sol implacáveis, que tomam as condições climáticas para nutrir seus argumentos redentores. Uma imagem bastante explorada em Eréndira (1983) possibilita a percepção deste sertão para dentro do deserto literário. Os jesuítas representados no espaço do filme ganham uma aura redentora e apocalíptica que se deve pela configuração destes personagens no espaço construído. Perfilados, vindos do alto e portando cruzes como se fossem espadas, estas figuras remetem ao poder messiânico semanticamente construído em alguns filmes do Cinema Novo brasileiro. O espaço desértico, sua vastidão e a delimitação de silhuetas tendo o céu por testemunha anunciam a chegada de homens salvadores e simbolicamente divinizados. Esta exploração do espaço com seu poder de presentificação do simultâneo faz convergir elementos e símbolos (tais como personagens, céu, ângulo e terra) que caracterizam o lugar como um plano de elevação espiritual.



Eréndira (1983), Ruy Guerra


Deus e o diabo na terra do sol (Brasil 1964), de Glauber Rocha

A literatura corta a representação do espaço para a inserção de diálogos retomando posteriormente o ambiente, mas fazendo dele uma construção entrecortada. A voz a distância dos personagens presentificados espacialmente todo tempo dá uma amplitude de poder a estes seres em meio a uma imensidão que poderia deixar a escuta de suas falas rarefeita ou aviltar o volume da voz perante a força aberta do espaço, no entanto não é o que acontece – o recurso sonoro do cinema cria bons efeitos de poder, o som da voz vence a distância espacial. A imagem sugere distância entre os personagens na cena do embate de vozes do primeiro encontro entre o séquito da avó e os jesuítas militarizados no campo, já o volume do áudio do diálogo travado sugere proximidade e, assim, constrói o vigor das figuras falantes que desafiam a acústica teoricamente falha imposta pela vastidão.

No sertão de Ruy Guerra, o clima do lugar impõe sofrimentos e o risco de sobrevivência às pessoas. Em Eréndira (1983), o espaço criado pelo conto de García Márquez amplia a possibilidade de justificar a entrada de figuras que usam a retórica para explorar o medo imposto pelas condições precárias do clima. O senador Onésimo Sanchez vale-se da crueldade da condição climática do espaço para ganhar votos, prometendo vencer a natureza. O espaço propicia o brotamento de figuras supostamente redentoras que usam o sofrimento imposto pelo lugar para se darem bem e nutrir sua retórica, tal como são representados homens messiânicos no sertão nordestino brasileiro. Não por acaso, o filme abre espaço para a figura de Onésimo Sanchez que no conto de García Márquez é apenas mencionado.

Do deserto literário, com sua vastidão e condições de trabalhar personagens espaçadamente, tem-se a escolha do espaço do deserto mexicano que recortado a partir de percepções culturais do sertão de Ruy Guerra resulta no deserto ficcional de Eréndira (1983).

Avó verbo e avó encarnada

Em La increíble y triste historia de lacândidaEréndira y de su abuela desalmada (1972), a personagem da avó é apresentada como um ser exuberante de dimensões físicas extraordinárias. É descrita como uma formosa baleia branca, seu corpo é tão grandioso que Erêndira demora horas para ajeitála. A matriarca apresenta traços de antiga grandeza e hábitos régios, mas é apresentada como uma figura cruel e branca como o deserto. Essa vinculação dos personagens a terra é recorrente na estória, Erêndira, por exemplo, é um solo (corpo) de onde são extraídas riquezas pela avó autoritária. E tal como discutido, o sangue de Erêndira, no filme, cobre suas pegadas na areia tornando crível esta associação corpo-espaço.

O interesse de Ruy Guerra pelo extracampo e pelo campo em profundidade é demonstrado pelo manejo destes recursos em Eréndira (1983) para potencializar sentidos criados pelo texto literário. No conto de García Márquez a personagem da avó se projeta em Erêndira. A cena em que a avó ajeita a neta projetando sua antiga imagem de dama na garota abre caminhos de criação através da imagem. Neste sentido, o filme explora o duplo dos personagens. O uso do extracampo em uma das primeiras cenas do filme em que Erêndira enfeita a avó diante de um espelho apagando a garota da imagem apresenta apenas seu reflexo, de modo que a avó presentificada se vê duplamente constituída por ela mesma e pela neta na imagem refletida. Esta construção adentra o conto para dar mais força a este motivo do duplo, a palavra sugere possibilidades de construção semântica que é refeita pela originalidade do recurso cinematográfico reconstituindo sentidos para as palavras do conto. Quanto à profundidade de campo, o recurso permite colocar em diálogo ampliações de ícones nas cenas. Em geral o primeiro plano pode criar uma assimetria das dimensões de objetos e personagens com relação ao fundo do espaço filmado. Na cena em que Erêndira se curva para limpar o chão sujo pela sopa que derramou, a avó em primeiro plano, alimentando-se, olha de soslaio para a garota. O rosto ampliado da matriarca em contraponto a imagem diminuta da neta ganha ares de monstruosidade, como se a boca ampliada da avó pudesse devorá-la. Esta cena, bem como as cenas em que avó aparece devorando afoitamente seus alimentos, cria, pelo impulso do recurso cinematográfico, uma atmosfera pantagruélica da avó. Tal como discutido sobre a cultura oral que caracteriza estéticas brasileiras – Antropofagia, Estética da Fome – cujo elemento ligado à boca, ato de devorar, é uma matriz de sentido. Tem-se aqui um exemplo do condicionamento do fazer cinematográfico conveniente a uma construção semântica que ressignifica e potencializa um aspecto cultural feito pelo aproveitamento do jogo de assimetrias sendo trabalhado para dentro do enunciado. Em outras palavras, o aspecto cultural ligado à oralidade encontra uma brecha nas possibilidades de recurso cinematográfico, com seus mecanismos próprios de representação, para se evidenciar.



Eréndira (1983), Ruy Guerra
Considerações finais

Os diálogos constituídos neste trabalho são possíveis em decorrência do trabalho de percepção das variantes que as mídias podem elaborar, tais como representações culturais e relações entre os elementos que compõem cada enunciado, por exemplo: delegação da voz na relação personagem-narrador quando da conversão dos diálogos diretos em indiretos (do conto para o filme), a construção e a natureza do material (homogeneidade da literatura, unicamente palavra, frente à heterogeneidade do cinema). É possível perceber que estas travessias midiáticas criam brechas, condicionadas e causadas pela peculiaridade e possibilidade de tratamento de cada mídia, por onde transitam representações próprias do lugar de produção do artista, tal como, por exemplo, o potencial do plano em profundidade do cinema. Recurso que trabalha o jogo das desproporções e convenientemente expressa formas de representação muito próprias da cultura brasileira: o ato de deglutir e o uso da boca como filtro de passagem para a elaboração do significado.

O imaginário que aproxima os dois artistas expressa-se nos sentidos comuns que são trabalhados pelas variantes históricas e o interesse pela parceria. Estes aspectos não excluem a realidade de vivência e interesse dos sujeitos. Neste prisma, é possível observar construções aparentemente distintas, mas que observadas no diálogo apresentam interfaces que ao mesmo tempo pode caracterizar lugares de produção e aproximar leituras-criativas para a confirmação deste imaginário unificador. Mesmo diante deste solo e interesse cultural comuns em García Márquez e Ruy Guerra o discurso que produzem cria variações positivas, pois possibilita a recriação que faz as obras transitarem.

Material suplementar
Referencias Bibliográficas
Aumont, Jacques. A estética do filme. Trad. Marina Appenzeller. 9ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2012.
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Notas
Autor notes

Contato: edupereira@hotmail.com



Eréndira (1983), Ruy Guerra


Eréndira (1983), Ruy Guerra


Deus e o diabo na terra do sol (Brasil 1964), de Glauber Rocha


Eréndira (1983), Ruy Guerra
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