Resenhas
A pessoa no discurso: português e espanhol: novo olhar sobre a proximidade. Adrián Fanjul. São Paulo: Parábola Editorial, 2017, 112 p.
| Fanjul Adrián. A pessoa no discurso: português e espanhol: novo olhar sobre a proximidade. 2017. São Paulo. Parábola Editorial. 112 p.pp. | 
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Recepção: 09 Setembro 2019
Aprovação: 22 Outubro 2019
No campo dos estudos discursivos, o professor e pesquisador Adrián Fanjul já é um nome de referência em trabalhos comparados entre espanhol e português. Essa importância é corroborada pela excelente qualidade da obra A pessoa no discurso: português e espanhol: novo olhar sobre a proximidade, escrita por ele e publicada pela Editora Parábola em 2017. O “novo olhar” do título refere-se ao fato de o livro estar constituído em parte por uma revisita a dados e resultados de sua tese de doutorado, defendida no campus Araraquara da UNESP em 2002. O trabalho havia sido publicado no mesmo ano como livro com o título Português e espanhol: línguas próximas sob o olhar discursivo pela editora Claraluz, de São Carlos. Conforme explica o próprio Fanjul na introdução da obra que resenhamos, após a Claraluz ter encerrado suas atividades, a editora Parábola lhe fez a proposta de reeditar o volume. A partir da constatação de que, por um lado, o amadurecimento e a ampliação de seu arcabouço teórico, metodológico e analítico o impediam de republicar o material apenas com um novo prólogo, e por outro, os dados e resultados da pesquisa ainda “têm muito a dizer” (8), o autor fez uma contraproposta à editora, que felizmente a aceitou e que resultou nessa nova obra, radicalmente diferente daquela.
Trata-se de um volume relativamente curto, 112 páginas, organizado em cinco capítulos, uma introdução e um breve encerramento. Talvez por estar baseado em sua tese de doutorado, o volume apresenta uma organização em que ressoam, para usar um termo de um dos âmbitos teóricos em que o autor transita, as partes de uma tese. Enquanto o primeiro é de cunho bastante teórico, na discussão apresentada no segundo sobressaem os aspectos metodológicos. Já no terceiro e quarto capítulos, nos quais Fanjul revê os resultados de sua pesquisa de doutorado de uma nova perspectiva, encontram-se a análise e discussão dos dados. O quinto, por sua vez, configura-se como o capítulo das conclusões e o encerramento, o das considerações finais.
Passando à explanação sobre os pontos principais de cada uma de suas partes, na Introdução, além de narrar a gênese da nova obra, Fanjul expõe que no âmbito dos diferentes tipos de estudos comparativos sobre o Brasil e a Argentina existentes no campo das Ciências Humanas, a emergência de estudos comparativos que têm por foco a ordem do discurso traz consigo alguns problemas de ordem teórico-metodológica sobre a comparabilidade. Problemas esses que podem ser formulados sob a forma de perguntas sobre: (i) as unidades que podem ser recortadas para formar conjuntos comparáveis, (ii) as categorias de análise para operar com essas unidades, (iii) a possibilidade de ser o discurso comparado em línguas diferentes, (iv) como intervém, nessa comparação, a ordem da língua e (v) a delimitação nacional e suas identificações (7). Esses questionamentos norteiam as reflexões que o autor desenvolve ao longo do livro e também sintetizam os objetivos a que se propõe.
No primeiro capítulo, Fanjul discute as bases teóricas que fundamentam suas análises e reflexões. Para tanto, parte das problematizações sobre a instância de pessoa nos estudos enunciativos e discursivos, para depois articulá-las com questões sobre a subjetividade no discurso, sobre a memória e sobre o conflito inerente a todo processo enunciativo. Nesse caminho, o autor não só refaz a cronologia das discussões e do aprofundamento dos conceitos com que trabalha, como também sintetiza com muita clareza as contribuições dos diferentes autores e autoras com quem dialoga, apontando as críticas e reformulações feitas aos primeiros modelos e suas respectivas categorias, e acrescentando suas próprias contribuições decorrentes de indagações surgidas durante os trabalhos que vem realizando e orientando. Como analista do discurso, Fanjul afirma com muita tranquilidade que embora profundamente marcado pelo “intenso contato com as continuidades e releituras da corrente de análise do discurso que teve início no final dos anos 1960, a partir de trabalhos de Jean Dubois e, fundamentalmente, de Michel Pêcheux” (18), nunca chegou a manifestar seu pertencimento à corrente denominada no Brasil como Escola Francesa de Análise do Discurso, chegando inclusive a assumir desenvolvimentos teóricos que “em alguma medida revisam aspectos clássicos dessa linha de pensamento”. A qualidade e a relevância dos trabalhos que o autor vem desenvolvendo e orientando avalizam esse seu percurso. Fanjul conhece profundamente os meandros e particularidades de cada um dos teóricos com que trabalha. Ao longo do capítulo, entrelaça com maestria as propostas conceituais e interpretativas de Benveniste, Ducrot, Pêcheux, Fuchs, Courtine, Authier-Revuz e Foucault. E ainda acrescenta o compositor carioca Cazuza para ilustrar suas explicações. Como se vê, é inconteste sua erudição e a amplitude de seu repertório. Todas essas referências aparecem de forma muito natural e são reelaboradas com didatismo e clareza, facilitando o entendimento de conceitos complexos como o de formação discursiva, por exemplo. Assim, é preciso destacar o grande valor desse primeiro capítulo para todos os que se movem no campo dos estudos discursivos, iniciantes e iniciados.
No capítulo dois, Fanjul detalha aquilo que é chamado no título do capítulo de “novo olhar discursivo sobre a proximidade”. Começa essa explanação aprofundada sobre como concebe a noção de línguas próximas e a comparabilidade, fazendo uma distinção entre, por um lado, a dimensão que ele denomina de “o linguístico”, caracterizada por “diferentes graus de sistematicidade”, a depender da perspectiva teórica adotada e por “ter a variação como constitutiva de seu funcionamento”, e por outro, as línguas “delimitadas sob um nome: ‘língua francesa’, ‘língua espanhola’, ‘língua portuguesa’ etc.” (28) cuja identidade está ligada à questão dos estados nacionais. Passa em seguida a analisar as problemáticas da proximidade linguística a partir do impulso que a discussão ganhou nas últimas décadas do século XX especialmente na União Europeia, com a multiplicação dos espaços de contato. No desenvolvimento de seu raciocínio sobre como concebe atualmente essa questão, Fanjul problematiza a intercompreensão, critério central para estabelecer a proximidade/distância entre línguas e medir seus graus, concluindo que nesse processo deve ser considerada também a dimensão histórico-social das línguas. Defende, nesse sentido, que o discurso se constitui como “o domínio adequado para especificar social e historicamente a proximidade” visto ser “precisamente a dimensão onde o histórico-social se encontra com o linguístico e o afeta, o modifica” (32). No decorrer do capítulo, abordará ainda o conceito de “proximidade contraditória” para o português brasileiro e o espanhol da América do Sul, e outros aspectos metodológicos dos trabalhos em que se dá “a observação comparada de discursos diferenciados por espaços linguístico-nacionais” (35). Conclui esse segundo capítulo afirmando que sua experiência como pesquisador e orientador de pesquisas tem mostrado a necessidade de articular de diferentes maneiras os níveis de abordagem do processo de enunciação “para indagar a proximidade contraditória no plano discursivo” (35).
Como já mencionado, nos capítulos três e quatro do livro, o autor revisita os dados da pesquisa que realizara em seu doutorado e que fora publicada sob a forma de livro em 2002.
No terceiro, além de apresentar os aspectos metodológicos de sua pesquisa de 2002 e discutir alguns dados do corpus, Fanjul discorre sobre os conceitos de paráfrase e reformulação parafrástica, fundamentais para a análise e discussão que apresentará. Novamente é de se notar o didatismo do autor na apresentação dos dois conceitos, bem como na discussão e interpretação dos resultados proporcionados pelos testes realizados para constituir o corpus de sua pesquisa de doutorado e do qual participaram estudantes universitários brasileiros e argentinos que estavam concluindo o curso de Letras1. O trabalho tinha como objetivo encontrar na materialidade discursiva elementos que fundamentassem a percepção de diferença percebida na discursividade de brasileiros e argentinos por quem transita entre ambas culturas. Para tanto, trabalhou sobre as modalizações de possibilidade e de certeza e a delimitação das entidades pessoais. Sua hipótese, confirmada, é que havia tendências diferentes no funcionamento da enunciação dos respondentes brasileiros e argentinos. Ao longo desse terceiro capítulo, Fanjul dialogará com suas interpretações daquele momento a partir de seu ponto de vista atual, amadurecido e aprofundado.
No capítulo quatro, Fanjul incorpora ao debate as reflexões proporcionadas por um trabalho seminal para o campo das comparações no plano discursivo entre o português brasileiro e o espanhol, a saber, os resultados da pesquisa publicada por Silvana Serrani em 19942. Além das análises e interpretações consistentemente embasadas, cabe destacar nesse capítulo a discussão de um exemplo utilizado pelo autor para introduzir suas reflexões. Fanjul compara de forma muito elucidativa as construções baixou/le salió, presentes em exemplos como “baixou o bicho-carpinteiro e saí consertando tudo” ou “me salió el salvaje y me enfurecí” (62). No desenvolvimento do raciocínio analítico, o autor interpreta essas representações análogas nas duas línguas a partir de sua configuração léxico-sintática relacionando-as com categorias semânticas, e situa essas construções como emblemáticas da “delimitação de contornos para as entidades pessoais” (64) nas análises comparativas que realizará ao longo do capítulo. Ao interpretar os resultados dessas, por sua vez, Fanjul aponta para percepções que afirma vir desenvolvendo desde sua pesquisa em 2002 e que giram em torno da hipótese, apresentada já nas páginas introdutórias do volume, de que a observação comparada pode “nos aproximar dos modos como cada um desses espaços, Brasil e Argentina, processa verbalmente aspectos da desigualdade social que os constitui” (9).
É esse precisamente o tema que aborda e fundamenta, a partir dos resultados de diferentes pesquisas, tanto próprias como orientadas por ele, no quinto e último capítulo do volume. Também se valerá de contribuições de diversas áreas das Ciências Humanas História, Antropologia, Sociologia, Ciências Políticas para discorrer sobre os processos históricos de construção da desigualdade e a violência política que caracterizam tanto Brasil como Argentina. Não obstante os pontos de contato, há também diferenças, especialmente no que se refere à desigualdade socioeconômica, em que a balança pende negativamente para o Brasil. Diferenças essas que, conforme a hipótese defendida de forma muito consistente pelo autor, se manifestam no plano do discurso principalmente por meio do funcionamento das instâncias de pessoa.
Fanjul conclui a obra com um breve encerramento no qual volta a dialogar consigo mesmo, num processo de heterogeneidade mostrada em que as palavras próprias constituem as palavras do outro, retoma as inquietações daquele momento, as atualiza e aponta para a necessidade de novos estudos que tornem mais nítidas as formulações sobre a hipótese de vinculação dos processos enunciativos com dados sócio-históricos.
Como vimos sinalizando em diferentes momentos desta resenha, o livro se configura como de especial interesse para estudantes e professores de Letras, mas não somente para esse público. Por seu didatismo, pela qualidade e profundidade das discussões que embasam o desenvolvimento de seu raciocínio, pela diversidade de referências teóricas postas em diálogo, trata-se de uma obra de importância capital para os estudos comparados, tanto os que têm lugar no campo dos estudos linguísticos como aqueles desenvolvidos em outras áreas das Ciências Humanas.
Contato: rosangela.dantas@unifesp.br