Resenhas

El cuerpo y otra cosa. Darío Jaramillo Agudelo. Bogotá: Luna Libros, 2016, 56p.

Ricardo Javier Barreto Montero
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil

El cuerpo y otra cosa. Darío Jaramillo Agudelo. Bogotá: Luna Libros, 2016, 56p.

Caracol, núm. 19, pp. 940-949, 2020

Universidade de São Paulo

Agudelo Darío Jaramillo. Agudelo. 2016. Bogotá. Luna Libros. 56 p.pp.

Recepção: 20 Agosto 2019

Aprovação: 17 Setembro 2019

Darío Jaramillo Agudelo é um poeta, novelista e ensaísta colombiano. Sua obra narrativa se compõe, entre outros, dos romances La muerte de Alec (1983), Memorias de um hombre feliz (2000), La voz interior (2006) e Historia de Simona (2011), além de três livros de ensaios e o livro autobiográfico Historia de una pasión (2006). No ano 2018 foi galardoado com o Premio Internacional de Poesía Federico García Lorca pelo conjunto da sua obra poética. Escreveu, entre outros, os livros de poesia Tratado de retórica (1978) – com o qual obteve o Premio Nacional de Poesía Eduardo Cote Lamus –, Poemas de amor (1986), Del ojo a la lengua (1995), Gatos (2005), e El cuerpo y otra cosa (2016).

Precisamente com este último livro ganhou no ano 2017 o Prêmio Nacional de Poesia outorgado pelo Ministério de Cultura da Colômbia. O título do livro faz referência à estreita relação que o poeta tem com o corpo. Este é um assunto essencial para o poeta colombiano, não só na sua escrita, mas também na sua própria vida. É importante mencionar que Darío Jaramillo, depois de sofrer um atentado com uma mina antipessoal em 1989, perdeu uma perna. A consciência de um corpo mutilado está em consonância com o fato de que muitos dos temas da sua poesia tenham que ver diretamente com a carne, a ausência, a ideia do outro e o corpo material. Neste sentido, seus poemas se defrontam diretamente com a dor produzida pelas feridas do corpo, não só pela ausência física de um dos seus membros, senão também pelas consequências que isso tem na perspectiva que a voz poética assume a partir da concepção de corpo, de sofrimento e de escrita.

O livro se compõe de 37 poemas (a grande maioria sem títulos) e quatro elegias finais em verso livre. A partir de contrastes entre duplas como vida e morte, o passo do tempo e o instante presente, o esquecimento e as lembranças, a palavra e o silêncio, os poemas de Jaramillo compõem um constante oceano de dicotomias no qual o poeta mergulha para dar testemunho das experiências que constituem o corpo e essa outra coisa indefinível, às vezes alma, às vezes coração, às vezes vazio.

No livro, o silêncio é matizado constantemente. Por um lado, se constitui na alternativa para o que não tinha de ser dito, para esse gasto excessivo em que se constituem as palavras, essas manchas que são em ocasiões “lo que debí callar, los ruidos que pude suprimir, mis aturdimientos” (Jaramillo, 2017, 19). O silêncio, neste sentido, não é apenas uma ausência de palavras ou uma apatia, é uma dívida com um estado mais puro e adequado no mundo. Porém, Jaramillo trata o silêncio como uma coisa que quer ser, mas que não é essencialmente: não há um silencio em si mesmo, pois ele também está constituído por pequenos sons, por “ruídos que se escondem detrás [de él]” (2017, 22). Por isso, essa procura por um silêncio parecido com um “esplendoroso vacío sin ecos” (2017, 22) é uma tarefa que nunca se concretiza. Por outro lado, o silêncio é também um estado da alma, no qual a mente se dá uma pausa e cede espaço ao coração, e os ruídos dos desejos, das ânsias, dos excessos, são eliminados. Assim, o silêncio é uma condição à qual o poeta aspira: não só procura alcançá-lo através da ausência ou do apagamento, senão tentando fazer da sua própria existência um silêncio, fazendo-se silêncio: “Reducirse al tamaño del silencio.\Ser silencio\quieto silencio” (2017, 20). Por fim, o silêncio também é algo intrínseco ao homem, que lhe pertence e a quem pertence, na medida em que “uno mismo [está] hecho de silencio” (2017, 21). Esse silêncio que nos habita é um lenitivo que nos permite deixar para trás não só o ruído constante da cidade e do mundo, mas também o passado e as lembranças.

Para Jaramillo, o escritor é de certo modo um instrumento através do qual a palavra adquire realidade. Não é o escritor dono da palavra nem está no controle da escrita, não se exerce uma instrumentalização da palavra nem se subordina ao criador para que ele a use como ele quiser, a aproveite, a molde e dê conta do mundo através dela, senão ao contrário: “La palabra es mi dueña, la palabra piensa por mí y por mí siente” (2017, 27). O mundo que se expressa através da palavra não é claro nem definido. Esta palavra não é o lógos ordenador dos pensamentos e dos objetos no mundo, senão, pelo contrário, “etiqueta que me distancia de las cosas, máscara o maquillaje” (2017, 27). Porém, Jaramillo estabelece uma dupla condição da palavra: por um lado, é aparência das coisas, pelo qual não pode ser as coisas, pois ela está sempre vinculando o mundo da linguagem (que é precário e limitado) com a realidade que é ampla, plural e diversa. Por outro lado, a palavra está intimamente ligada com algo secreto que habita nas coisas, com a ideia que fica no fundo delas, com a ‘coisa’ em si. É a isso que o poeta, por meio da palavra, tenta se acercar precariamente: “Las palabras no son las cosas pero las palabras son la cosa” (2017, 29). Antes do que renunciar à palavra, o poeta estabelece a distância que a separa da realidade, e ao mesmo tempo a situa como o elemento que está mais ao seu alcance para dar conta dessa realidade quase inatingível. Assim, Jaramillo define a palavra também como um elemento que tem um leve efeito nas coisas, pois é através dela que identificamos os objetos da realidade e, ao nomeá-los, intrinsecamente estamos mudando sua condição, agregando alguma coisa a sua essência, um substantivo que nos permite referenciá-los. O anterior permite ao poeta refletir em torno à escrita que muitas das vezes não alcança o fato: ao pôr por escrito uma palavra que represente uma realidade, sempre vai fugir alguma coisa, seja pelo tempo, no qual o acontecimento deixa de ser existência para se converter em lembrança, seja porque a precariedade da palavra não alcança para atingir plenamente essa realidade que se tenta representar, pois o acontecimento, a coisa representada, sempre vai ser outra: “Aquí debo escribirla palavra plenilúnio, /invocar la luz de plata de mejores noches/sin poder repetir su jadeo/ni repetir la risa que era la música entonces” (2017, 37).

Agora bem, para Jaramillo o lugar onde coisas e palavras encontram um ponto de equilíbrio, o ambiente no qual podem conviver simbioticamente, é o poema: “Los poemas son cosas hechas solamente con palabras” (2017, 21). Nessa outra realidade que constrói o poema, coisas e palavras estão intimamente inter-relacionadas, pois as palavras dão conta das coisas e as coisas que são retratadas e trazidas a essa realidade do poema são palavras. Uma palavra, no poema, é uma coisa (a ideia, a representação), mas as coisas, representadas nos poemas, são ideias das coisas. Não são coisas ‘reais’ as que estão no poema, nem são as coisas em si o que as palavras deixam como marcas no poema, pois as coisas estão na realidade. O que está no poema são representações linguísticas das coisas, e é por isso que “Si el poeta busca cosas, no hallará palabras/ Si el poeta busca palabras, hallará palabras” (2017, 30). Ao nomear as coisas, o poeta está estendendo uma ponte entre a realidade e a representação, mesmo que, segundo Jaramillo, sempre “estará lejos de las cosas” (2017, 30). Por isto, quando quer se referir às coisas, não é nas palavras onde deve fazer sua procura, pois estas são nomes, representações de “hechos, objetos, acontecimentos, ideas” (2017, 31): se quer ir até as coisas mesmas, tem que deixar as palavras e ir até a realidade, onde não há mais representação, mas sim existência, apresentação.

O corpo para Jaramillo está em consonância com a ideia de Bataille (1957) a respeito do erotismo, da dor e o gozo do corpo que no prazer último deixa a consciência e a identidade individual para trás para entrar no nada1. A dor é corporizada a través do sofrimento: a identidade, perante as feridas e a dor do sofrimento, se deixa de lado, ultrapassa a própria carne e o próprio corpo numa experiência representada numa ferida e uma dor que “era más que yo” (2017, 10). Essa dor e a experiência do sofrimento desembocam numa mudança tanto física como mental: se é outro depois da dor, o estremecimento que implica conviver com o padecimento e com a tribulação física faz com que o poeta sinta à flor da pele esse sentimento no seu corpo, e ao mesmo tempo a obrigatória necessidade de mudar que, ao final, oferece uma espécie de revelação que se dá no jeito em que a voz poética percebe a relação do corpo com o mundo e, neste caso, com o tempo: “Cambio de piel, metamorfosis (...) Necesidad de desconectar los sentidos(...)mudo de piel y una parte dentro de mí hace crac (…)intuyo otra manera de llevar el tiempo” (2017, 11). O corpo temporal que experimenta a dor e o prazer, muda constantemente: ao tempo que goza com o amor, também o padece, e é nessa experiência corporal que o ser traspassa limites. Esse limite está marcado pela tríada corpo-tempo-morte. Num primeiro momento, o corpo é definido como o lugar das experiências, dos prazeres e das dores, “que se alimentó de risas y orgasmos” (2017, 16), “entre sueños y vigílias” (2017, 17). Posteriormente, é comparado com o tempo: o corpo está composto da mudança temporal, de um transcorrer que não fica no presente, que traz lembranças do passado e que viaja inexoravelmente até o futuro. O corpo está feito de tempo, o corpo é o tempo. E é aí que a morte entra. Para Jaramillo, “la muerte que es cuando el tiempo ha dejado de pasarnos” se constitui no limite até o qual as experiências da vida levam seu corpo. As lembranças, o passado, são “una manera despaciosa de la muerte” (2017, 21).

Na dualidade corpo/alma o corpo é a materialidade física que define ao poeta, a quem pertence o nome que tem, as lembranças que o definem, a carne que dói e os prazeres aos quais se entrega, o tempo que termina e fecha o presente. O corpo cheio de tempo tem um limite, e ao morrer, também vai desaparecer. Porém, a outra face é a alma, isso indefinido, isso outro que também tem a sua morada no ser, mas que o habita temporariamente, que não termina quando o tempo acaba no corpo: sem memória, sem a lembrança que o ata ao mundo e ao presente, e sem tempo, essa alma “seguirá sin recordarme más” (2017, 14). O corpo, para o poeta, é efêmero, enquanto a alma vai ter a transcendência que a carne não tem: “El cuerpo de mis gozos se extinguirá entre la tierra, será ceniza, y lo otro que estuvo dentro de mí será aliento de otro ser, será parte de otra nada” (2017, 14). Jaramillo estabelece essa dualidade adjudicando ao corpo características que têm que ver com o temporal e com a experimentação dos gozos e as mudanças da carne, do que é vivo mas também morre: velhice, crescimento, doença, amor. A alma, por outro lado, se constitui em uma entidade pouco definível, que parece carregar os caracteres contrários aos do corpo: enquanto ele goza, ela “pagó el precio, cargar todas las misérias, el desamor, el lento olvido, cierto rencor gris extinguiéndose” (2017, 15); enquanto o corpo é “sábio em colores” a alma é “blanco y translúcido”. O corpo pertence à individualidade, ao eu, e se identifica com o portador do nome, “sabe decir<<yo>>, porque el<<yo>> es solamente vísceras e instinto (...) matéria que llora”, é a quem lhe chega um final porque está feito de tempo e caduca. No final, cindida do corpo, quando já não for parte dessa carne que a une a um nome e a um tempo que não lhe pertence, a alma “olvidará todo, hasta mi nombre, cuando se vaya de mí ” (2017, 15).

O tempo também estabelece uma relação direta com o corpo na poesia de Jaramillo. A velhice traz mudanças no corpo, novas sensações e diferentes maneiras de se comportar e de agir no mundo. Para o poeta, nesse corpo diferente, cheio de tempo, mudado, pode habitar um outro diferente, “otro nuevo que no conoce el lenguaje de mis vísceras, otro que apenas se adapta y va más despacio y tarda mucho en entender las cosas” (2017, 16). No trânsito da vida para a morte, “el cuerpo nunca permanece” (2017, 17), pois por intermediação das experiências contínuas o corpo vai mudando: do prazer até a dor, do amor gozado até o amor padecido, é um corpo que se transforma na medida em que o tempo também avança, porque, em última instancia, “El cuerpo está hecho de tiempo.” (2017, 17). Mas para Jaramillo este tempo é um desconhecido: apesar de experimentar fisicamente seu trânsito, de compreender que muda porque o corpo evidencia essa mudança, o tempo se apresenta como uma coisa “inexorable, absurdamente simple, tiempo que no entiendo” (2017, 18). Ao tentar alcançar uma ideia de tempo, o poeta tenta dar características que possam defini-lo: fala dele como um tempo “curvo (...) hueco” (2017, 18), que não tem forma determinada e se apresenta quase como uma ausência. Mesmo que considere o tempo com um passado que traz as lembranças e os esquecimentos (esses silêncios do tempo) e com um futuro no qual a morte revela seu rosto, é no presente que essa ausência é mais evidente, pois o hoje é o momento no qual o tempo se apresenta com mais claridade, onde deixa ver com mais certeza a relação que estabelece com a existência do poeta e com o próprio corpo: “tempo con nada, tempo sin hoy, en mis narices el hueco del presente capaz de no existir y de ser mi única existencia. \ Eso es el cuerpo, el cuerpo hecho de tiempo (...)El tiempo, que es el cuerpo” (2017, 18). O presente para o poeta não existe, pois é uma nada movimentando se, que muda constantemente. Ao tentar dizer o presente, ele já é passado pois o instante inatingível é impossível de medir, não tem quietude, é uma espécie de nada do tempo. Nesse presente, Jaramillo localiza sua própria existência, e na medida em que flui constantemente, sua própria existência se converte em outra coisa “el tempo en que soy lo que acabo de ser hace sólo un instante, el mismo pero otro, /el presente, mi nada” (2017, 34).

No livro o corpo se apresenta dicotômico, ferido mas também gozoso, “exuberante o enfermo, mutilado o entero (...) creciendo o en plenitud ” (2017, 13). É um corpo feito de tempo, sofredor das mudanças próprias da velhice e da dor. Por meio dele reflete em torno a temas que constituem essa outra coisa indefinível e incerta à qual se refere o título do livro e que fica sob um manto de dúvida. Por um lado, pode ser a alma intemporal que vai sobreviver à morte do corpo. Pode ser essa mesma morte que ronda os versos dos poemas e o corpo do poeta como uma presença fantasma. Pode ser também as palavras que não são o instrumento todo-poderoso com que a realidade é representada e que não estão subordinadas ao escritor. Pode, por fim, ser esse tempo também fugitivo do qual está feito o próprio corpo. A poesia de Jaramillo fala desde o corpo e em direção ao corpo, da materialidade corporal das coisas expressada em palavras e da metafísica dessa outra coisa, incerta, que habita o corpo e que se evidencia no tempo, na inapreensível alma ou no constante e cúmplice silêncio.

Referencias Bibliográficas

Jaramillo Agudelo, Darío. El cuerpo y otra cosa. Bogotá: Luna libros, 2017

Bataille, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, (1957) 2013.

Notas

1 O erotismo, já o disse, é a meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca em questão, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde objetivamente, mas então o sujeito se identifica com o objeto que se perde. Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco. (Bataille 1957 [2013], 55).

Autor notes

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