VÁRIA

Escrita de Trânsito Universal: o drama trans de Copi

Universal Transit Writing: Copi's drama trans

Ivan Delmanto
UDESC, Brasil

Escrita de Trânsito Universal: o drama trans de Copi

Revista Caracol, núm. 22, pp. 219-252, 2021

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Recepção: 08 Janeiro 2021

Aprovação: 10 Janeiro 2021

Resumo: O artigo analisa um texto teatral do autor argentino Copi, buscando abordar implicações de diferentes noções de identidade no teatro argentino moderno. Procura-se demonstrar que aspectos do teatro contemporâneo, antecipados na obra do autor argentino, tais como a participação criadora do espectador na experiência artística e a existência de um conceito ampliado de encenação, são necessários para se compreender a espécie de escrita de trânsito universal, fortemente ancorada à realidade histórica argentina, presente em Eva Perón de Copi.

PALAVRAS-CHAVE: performatividade, dramaturgia, teatro contemporâneo, teatro argentino.

Abstract: The article analyzes a theatrical text by the Argentine author Copi, seeking to address the implications of different notions of identity in modern Argentine theater. It seeks to demonstrate that aspects of contemporary theater, anticipated in the Argentine author's work, such as the spectator's creative participation in the artistic experience and the existence of an expanded staging concept, are necessary to understand the kind of universal transit writing, strongly anchored to the Argentine historical reality, present in Eva Perón de Copi.

KEYWORDS: performativity, dramaturgy, contemporary theater, argentine theater.

O tubarão avança até mim. (...) Pierre esconde a cara na areia para evitar ver a cena. Soam as três. Onde estou? (Copi, 2012, 101-102).

“Merda. Onde está meu vestido de Presidente?” (Copi, 2007, 7). Assim começa a peça Eva Perón, de Copi. Escrita em francês, a peça estreou em Paris, em 1970, acompanhada de escândalo: “na noite de estreia, um grupo de mascarados entrou na sala, golpeou várias pessoas do público e detonou uma bomba. Segundo os jornais da época, o grupo estava ligado ao general Perón, que então vivia em Paris1” (Molina, 2017). Após o episódio, Copi teve a peça censurada em seu país e não voltou à Argentina, até 1984.

A resposta da mãe à pergunta inicial de Eva revela o foco narrativo antiperonista2 que caracteriza a Eva Perón de Copi: “todos os seus vestidos são vestidos presidenciais” (Copi, 2007, 7). Então Evita revira malas que estão jogadas pelo cenário, diz que já enlouqueceu procurando o vestido, para depois reencontrá-lo, amarrotado no chão, pois a enfermeira, que deveria ter cuidado da conservação das roupas, também está perdida na desordem de Eva. “Pegue o vestido, pinte minhas unhas. É disso que se trata. Do vestido presidencial e das unhas. Corpo visível e trajes de gala, usados como atributo porque são, como se sabe, uma dimensão fundamental da personagem (teatral e política)” (Sarlo, 2005, 21).

Segundo Molina (2017), “a Eva de Copi é trans, e ela o é explicitamente”. Não só porque na encenação original era interpretada por um homem (a pedido do autor, e esse ator era Facundo Bó), mas porque

é claro que a personagem não tem o câncer que a história atribui a Eva (do útero) porque - sendo homem - Evita não tem útero (ou câncer). Eva Perón de Copi transmuta os sexos e os significados de todas as coisas, especialmente ideias e ideais políticos, ódios e amores. Eva Perón vive (e por isso não morre na peça) porque sua transexualidade a salva do câncer, da submissão ao poder político e de todas as banalidades da vida social. Evita não morre na peça, mas para não morrer (e para o Povo acreditar que ela morreu) deve matar uma mulher, a enfermeira, a verdadeira, a representante do povo peronista que acredita em El Líder. Perón, no trabalho de Copi, não sabe que Eva escapou e que a morta é a enfermeira (Molina, 2017).

A esse cadáver trocado Perón dedica o discurso final, que encerra a peça. E cada palavra que ele diz tem outro significado ao compreendermos que não é Eva quem está no caixão, mas outra, anônima, uma trabalhadora, representante de sua classe. A regra geral do texto, que a encenação sugerida pelo autor aprofunda, é a do trânsito e transmutação de quase tudo o que surge em cena: fatos históricos, sentidos, identidades.

Interpretada pelo ator Facundo Bo, a Evita de Copi se apresenta, já da dramaturgia, como uma “cópia” vulgar e carnavalizada da Evita “original”. Aqui, o procedimento do travestismo não consiste apenas em produzir uma personagem feminina por um intérprete masculino, mas em deslocar o sentido histórico da figura pública que ele recria. A travesti Evita dispensa aquelas características ideais de cuja incorporação performativa a histórica Eva Perón foi produzida como a exemplar “mãe da pátria”. (...) Não só não corresponde aos ideais das mulheres (uma feminilidade dócil, maternal e abnegada, disponibilidade ao serviço e cuidado, submissão ao marido, etc.), nem corresponde aos ideais de uma primeira-dama (decente, culta e educada, gentil e patriótica, humilde, etc.) - suposições de uma heroína popular -, mas também não faz nenhum esforço para escondê-la (Succi, 2016, 95).

Ao apresentar Eva como uma personagem bastante distinta da mitologia peronista que a construíra como “mãe da pátria”, conforme aponta Succi, Copi reproduz uma série de acusações bastante frequentes no repertório antiperonista. É importante notarmos que os procedimentos de travestismo não consistem, na peça, apenas em apresentar uma personagem feminina por um intérprete masculino, há uma espécie de teor de verdade histórico subjacente que vai além dos importantes aspectos performativos de gênero apontados por Succi.

A mitologia de Evita como redentora dos pobres, antes tratados como o Outro da modernização nacional, esteve relacionada, desde seu início, a um dos mitos fundadores da nação argentina, presente, por exemplo, na obra Facundo: civilização e barbárie, de Domingo Faustino Sarmiento. O texto narra as disputas para a construção do Estado-nação e define um processo histórico que estaria marcado pela oposição entre o bárbaro e o civilizado, ou seja, entre o gaúcho e o estrangeiro. Sarmiento cria a imagem de duas argentinas, rivais e incompatíveis. Luciana Medeiros Teixeira (2015) recorda que durante o período colonial essas duas argentinas se desenvolveram separadamente, sem estabelecer contato. “Os homens da cidade conservaram os hábitos europeus enquanto os do campo desenvolveram hábitos próprios frente às adversidades impostas pela natureza” (p. 91). A criação da nação dependeria, portanto, de uma ação civilizadora a ser realizada pela intelectualidade, por meio da educação universal, de matriz liberal democrática. Uma primeira-dama inculta e de passado duvidoso, que se confundia com as palavras e cometia graves erros ortográficos, era, para a elite europeizada e colonialista de Buenos Aires, o retorno dos piores pesadelos reprimidos da barbárie, o que justificaria sua oposição encarniçada à Evita peronista - como podemos identificar no seguinte trecho de Santa Evita, romance de Tomás Eloy Martínez:

Os argentinos que se acreditavam depositários da civilização viram em Evita uma obscena ressurreição da barbárie. (...) A repentina entrada em cena de Eva Duarte arruinou o bolo da educada Argentina. Aquela mulher barata, aquela bastarda, aquela merda - como era chamada nos leilões de fazenda - foi o último peido da barbárie. Ao passar, você teve que cobrir o nariz (Martínez, 1996, 70, grifos nossos).

A outra Argentina, que não era depositária da “civilização”, que era tão “barata”, “bárbara” e “bastarda” quanto Evita, identificara-se com as representações mitológicas do peronismo, que convencionou chamar seus adversários de “oligarcas”. A argumentação que pretendo desenvolver neste artigo procurará, a partir de um embate com a forma teatral da peça de Copi, revelar que o travestismo presente em Eva Perón não se relaciona apenas a uma problematização da performatividade mítica da “mãe bárbara da pátria” e às acusações, frequentemente reproduzidas pelo discurso da oposição, que requentavam impropérios patriarcais como forma de atacar Evita, a quem tais adversários consideravam “o único e verdadeiro macho” do governo. A obra de Copi não transforma Eva em um homem. E também não a apresenta como travesti somente para

mostrar a cozinha do jogo político de construção de uma heroína, Copi propõe um olhar para a política como uma grande operação performativa que materializa as coisas que enuncia por meio da repetição e da espetacularização (Succi, 2016, 97).

Não estamos diante, salvo engano, de uma crítica à “política”, como entidade abstrata ou metafísica, mas sim de uma mirada histórica capaz de desvelar o contexto da sociedade argentina em um momento decisivo da formação do país durante o século XX. As dicotomias entre civilização e barbárie, classe trabalhadora e Estado, liberalismo e populismo, sindicalismo e autonomia operária, geralmente identificadas nas melhores análises sobre o período peronista, configuram-se, por meio da construção da heroína e protagonista de Eva Perón, como um campo de forças instável, ambíguo e em perene movimento. O universo “trans”, pressuposto da dramaturgia e da encenação sugerida por Copi, abrange mais do que as performances de gênero: procura definir uma escrita cênica de trânsito universal, movimento de impasses que está relacionado ao substrato histórico do Estado peronista e de suas múltiplas tensões.

Procurarei utilizar neste artigo um conceito capaz de abarcar os múltiplos trânsitos presentes na Eva Perón de Copi, bem como, ao mesmo tempo, as exigências particulares que a obra apresenta ao espectador/leitor. Esse conceito, que a análise da peça pretende testar, parte de uma ampliação do campo semântico do opsis, empreendida por Luis Fernando Ramos, a partir de uma leitura da Poética, de Aristóteles3, que procura destacar a dimensão da encenação como parte fundamental à consumação do texto teatral.

Em um momento histórico que pode ser definido, desde a década de 1960, pela suspensão das fronteiras entre artes como o teatro, a performance, a dança e a chamada “performance-art”, considerando-se também que o campo das artes visuais transcendeu os suportes tradicionais da tela e da escultura, e transformou as galerias e museus de espaços expositivos em espaços não convencionais de encenação, “a predominância do opsis sobre o mythos no teatro contemporâneo, que se constituiu ao longo de todo século 20, e, na primeira década do século 21, configura uma teatralidade expandida para todas as artes performativas” (Ramos, 2009, 79).

Nessa configuração, que Ramos identifica como a de uma teatralidade expandida, a separação entre mythos e opsis - que na Poética aristotélica opunha a narrativa textual4 e os recursos cênicos, de pura visualidade, utilizados para apresentar essa dramaturgia -, agora estabelece a encenação como universo independente do texto teatral, capaz de produzir sentidos por meio “da construção imagética de superfícies e cores, e de fruições áudio tácteis e percepções sensórias não codificáveis” (Ramos, 2009, 79). Procurarei demonstrar a seguir que, se para a leitura de Eva Perón ainda é necessário considerar a sua dimensão literária (mythos), o elemento necessário para aprofundar essa leitura será o opsis.

Há na obra teatral de Copi uma urgência e necessidade dessa dimensão da encenação. Na Eva de Copi, o seu opsis, já previsto pelo autor durante a escrita do texto, é baseado na transexualidade da protagonista, enigma que atira o espectador em um campo de forças instável, exigindo um esforço de cocriação para consumar os sentidos da obra. Não estamos, assim, diante de mera aleatoriedade dos significados, mas sim de uma obra, formada por texto e espetáculo, em que o movimento e a transformação modificam o tecido da mitologia original, que envolve o fenômeno histórico do peronismo na Argentina tecendo, por meio da encenação, significados alegóricos5.

Se o núcleo vivo da peça é realizado em sua encenação, é possível ler na exigência de Copi, da representação do papel de Evita ser realizada, necessariamente, por um homem, um recurso cênico que configura sentidos fundamentais à leitura crítica do texto. Tal recurso permite transformar o transformismo de corpos e de gêneros, de masculino e de feminino, de Perón e Evita, do Rei e da Rainha, em uma alegoria nacional do poder soberano na Argentina e da sua crise e impasses históricos, durante o regime peronista. O corpo em trânsito constante de Evita, ora homem, ora mulher, ora vivo, ora morto, está em disputa durante a peça. E o que resta, no final, é um corpo falso, de enfermeira vestida de rainha. A fuga final de Evita pode ser lida como o declínio definitivo do poder soberano, que deixa no seu lugar um falso cadáver, em um trânsito constante de imagens e de significados.

DIALÉTICA NEGATIVA ARGENTINA

Em seu já clássico estudo sobre a peça de Copi, Beatriz Sarlo ressalta as dimensões ficcionais e espetaculares, em torno de Eva Perón, desveladas no texto de Copi, localizando assim o escândalo gerado pela estreia da peça6. Dizer que a peça trata do vestido presidencial de Eva e das unhas (aquelas que, nas fotos, sempre aparecem perfeitamente cuidadas, brilhantes e vermelhas), significa identificar, na obra de Copi, as ressonâncias simbólicas do corpo político de Eva.

Nos regimes monárquicos, aponta Claude Lefort (2011), a pessoa do monarca apresenta-se como poder incorporado: o corpo régio ungido seja por laços de sangue, seja por direito divino7. Para E. H. Kantorowicz (1998), o rei possui um corpo político e um corpo natural, sendo que “os Dois Corpos do Rei constituem uma unidade indivisível, sendo cada um inteiramente contido no outro. Entretanto, não pode haver dúvida em relação à superioridade do corpo político sobre o natural” (Kantorowicz, 23). O estado de perfeição absoluta sobre-humana dessa persona fictícia real seria resultado de uma ficção no interior de uma ficção, de um corpo no interior do outro. Essa encarnação do corpo político em um rei de carne não somente desfaz as imperfeições do corpo natural, mas “transmite imortalidade para o rei individual como Rei, isto é, em relação ao seu supercorpo” (Kantorowicz, 1998, 25).

O corpo de Eva inscreve-se, segundo Sarlo, nessa linha simbólica e ideológica: “O regime peronista era escassamente republicano, mais plebiscitário que democrático, com um baixo nível de instituições políticas representativas, e, em contrapartida, sustentado por algumas corporações e um vasto movimento social” (Sarlo, 2005, 89). Além de personalista, tal regime era “cortesão na aquiescência e no afago ao líder”, e, dado importante para compreendermos a peça de Copi, era “fanático na devoção e culto à sua esposa” (Sarlo, 2005, 89). Eva representava, mais do que uma colaboradora de Perón, alguém que incorporava o poder em uma sociedade política de duas cabeças, de dois corpos. Se Perón representava o “corpo natural” da presidência, Eva simbolizava o corpo político do poder, de caráter sobre-humano, detendo foros especiais acima das instituições republicanas.

Para Zanatta, que colheu depoimentos de diversos embaixadores que trabalharam na Argentina durante o período peronista, era difícil entender, mesmo para observadores experientes na diplomacia internacional, se era Perón ou Evita quem governava a Argentina, e por isso podemos dizer que investigar o período é estar diante do "caso extraordinário de um regime verdadeiramente dual" (Zanatta, 2011, 181).

Eva (...) simplesmente apresentara ao governo e à administração um grande número de funcionários que eram leais a ela, até que controlassem grande parte do mecanismo. A situação que prevaleceu por algum tempo, (...) era de dura luta interna, em que o peronismo se dividia entre seu núcleo original e o lado dos seguidores de Eva, organizados no partido peronista feminino e no poderoso sindicato dos trabalhadores, o Confederação Geral do Trabalho (CGT) (Zanatta, 2011, 152).

O dualismo de poderes, que também significava a representação contraditória de diferentes frações e interesses de classe, corporificados em Eva e em Perón, agravou-se após a morte de Eva. Foi como se sua morte reformulasse os diferentes problemas que sua liderança havia levantado:

como se sua pregação moralizante e mística, extremista e maniqueísta, mais parecida com sermões religiosos do que com discursos de políticos, tivesse dividido o país e as consciências a ponto de romper a delicada teia de interesses e acordos corporativos em que o peronismo confiou desde o início, tornando a recomposição do quebra-cabeça mais difícil do que nunca (Zanatta, 2011, 324).

Assim, a identidade cambiante de Eva, na peça de Copi, alegoriza também essa transitória e “delicada teia de interesses e acordos corporativos”, tensão que também se manifestava na oposição entre Eva e o marido, e entre os interesses distintos que cada um representava. Rosto do peronismo perante o povo, coordenando os programas governamentais de auxílio social8, Eva funcionava no imaginário coletivo como porta-voz dos humildes, “seu corpo é aurático, no sentido que tem essa palavra nos textos de Walter Benjamin. Produz autenticidade só pela própria presença” (Sarlo, 2005, 89).

IBIZA - Vamos, minha querida. Você nos pediu para ficarmos aqui trancados com você até o fim. É o inferno, eu concordo, mas foi ideia sua. E agora você quer dar um baile?! Ou um jantar para os íntimos! Vamos Evita, não seja covarde; já estamos quase no fim. Continue nos torturando, nós, o quanto você quiser, de qualquer maneira nós amamos isso, mas não se dê ao espetáculo, querida. Não seria bom. Nós sairemos daqui com o seu cadáver embalsamado e você será para sempre a imagem exata da santidade. Evita Virgem Maria. Não estrague seu próprio plano (Copi, 2007, 16).

A fala de Ibiza, ajudante de Perón, apresenta a situação dramática da peça de Copi: Eva está com câncer, ou afirma estar, e vive às custas de injeções de morfina, trancada na própria casa com a mãe, o marido e uma enfermeira, há dez dias, aguardando a morte. Ibiza revela, no entanto, que a agonia final do corpo natural de Eva é uma estratégia política, que garantirá, por meio do seu cadáver a ser embalsamado, a persistência da memória e do simbolismo do corpo político da primeira-dama. Na trama articulada pela personagem de Copi, escondendo-se durante a etapa terminal da doença, Eva protegeria suas belas formas físicas da deterioração em público, e o embalsamento seria um meio para manter esse corpo material produzindo o corpo político do peronismo, encarnando o poder nas suas formas femininas e dando corpo à sociedade argentina9.

MÃE - Evita, eu não estou brincando. Você sabe o que dizem no rádio?

EVITA - O que dizem?

MÃE - Eles falam de você o tempo todo. Eles passam sua vida como uma novela e dizem que você está morrendo. Tem um monte de gente esperando do outro lado da porta.

EVITA - E daí?

MÃE - E daí, e daí que a gente não pode dar um baile! E se eles perceberem? (Copi, 2007, 20).

A suspeita que emerge da fala da Mãe - a de que Evita não estaria verdadeiramente doente - ronda todas as cenas da peça, como o fantasma de sua presença soberana, assombrando Perón, mas também alimentando o domínio do casal sobre a população enfeitiçada. O fato de Evita ser representada por um homem reforçaria, no plano da encenação, a falsidade da narrativa do câncer de útero da soberana. O desfecho da trama, em que Evita foge após assassinar sua enfermeira, enquanto Perón pronuncia um longo discurso que antecipa o culto à memória e ao corpo desaparecido de Eva, parece confirmar as narrativas da doença e da morte como derradeiras e definitivas estratégias de propaganda. Desaparecido, o cadáver de Evita se perpetuaria como um infinito reclame no imaginário popular:

PERÓN - Eva Perón se apagou. Eu decreto uma semana de luto nacional no final da qual será realizado o funeral. (...) Eva Perón foi atacada pela mais atroz das doenças. (...) Tentemos interpretar, mais uma vez, a vontade divina. Eva Perón não está morta, ela está ainda mais viva do que nunca (Copi, 2007, 48).

Se a democracia surge quando o corpo do rei se encontra destruído, fazendo com que o poder apareça como “um lugar vazio e aqueles que o exercem como simples mortais que só o ocupam temporariamente” (Lefort, 2011, 150), o regime democrático ideal apagaria a identidade entre os dois corpos: corpo político e corpo natural do monarca. A doença imaginária da Evita de Copi faz com que o corpo duplo do peronismo resista, transformando, na narrativa da peça, sua fuga em uma morte também fantasiosa:

EVITA - A ideia do câncer foi sua. Eu não sei como explicar, mas eu tenho certeza que foi ideia sua; está me entendendo? Não está. Não é uma coisa que eu tenha inventado sozinha, essa doença. Tanto faz. Onde está o chapéu? (...) Evita sai. Ibiza deita o corpo da enfermeira sobre uma mala, coloca uma peruca. Ibiza sai (Copi, 2007, 46-47).

É preciso nos determos nessa difusão social da fantasia, exposta na peça pela estratégia da doença, da falsa morte e do corpo sacralizado de Eva. A fantasia surge entrelaçada à criação de um Outro ameaçador do qual é preciso imunizar-se, representado na peça pelas unidades de ação, de tempo e de lugar, recurso estranho aos padrões do drama moderno europeu, referência inicial da dramaturgia de Copi : Evita está sempre trancada em casa, junto com os outros personagens, como se buscasse exorcizar a ameaça de um arrombamento do locus soberano, em que a intrusão de elementos estranhos faria desfalecer o corpo peronista. A manutenção das três unidades parece expressar, no plano da forma dramática, o encerramento e encarceramento dos representantes do poder peronista, em que as fantasias de uma doença e de uma morte imaginárias funcionam, no âmbito social, fora do espaço privado do poder, como a transformação do corpo da Rainha no corpo do Estado, que permanece presente, fantasma ameaçador, mesmo que em sua ubiquidade. Como diz na peça Perón, ainda em seu discurso final: “Sua imagem será reproduzida infinitamente em pinturas e em estátuas para que a sua lembrança fique viva em cada escola, em cada local de trabalho, em cada lar. Do alto de seu pedestal” (Copi, 2007, 48).

Ao mesmo tempo, a fuga de Evita sugere, na peça, uma recusa à individuação, uma negação final do seu papel como soberano e como indivíduo constituinte. Para Esposito, ao contrário de excluir-se ou contrapor-se, absolutismo e individualismo estão “implicados numa relação reconduzível ao mesmo processo genético” (2017, 78). Por meio do absolutismo, “os indivíduos se afirmam e se negam ao mesmo tempo (...), eles se destituem enquanto sujeitos instituintes” (Esposito, 2017, 78). Exatamente a comunidade é abolida mediante a individualização forçada constituída pelo dispositivo soberano. Há um efeito de desvinculação que o poder absoluto projeta sobre todos os súditos, ao transformá-los em indivíduos igualmente absolutos por meio de sua subtração ao espaço comunitário e sua vinculação ao corpo do soberano. “A soberania é o não ser comum dos indivíduos. A forma política de sua dissociação” (Esposito, 2017, 78). Ainda para Esposito, indivíduo significa ser tornado indiviso, unido a si mesmo, pela mesma linha que o separa dos outros. Quando afirma, na sua cena final, que não inventou sozinha a doença, Evita transfere para o corpo soberano, para a estrutura do Estado, a responsabilidade por suas encenações e pelo seu desaparecimento. “Poder-se-ia afirmar que a soberania, em última análise, não é mais do que o vazio individual criado em volta do indivíduo” (Esposito, 2017, 79).

Sabemos que, no plano dos fatos históricos, após a morte de Evita, a disputa violenta por seu corpo embalsamado aprofundou a dimensão mitológica da primeira-dama, ganhando dimensão de artefato cultural e de troféu político.

Uma disputa por sua posse foi travada, uma vez que se acreditava que quem o possuísse teria também o controle da Argentina. Isso o que o levou a vários esconderijos, passando dos cuidados da CGT (Confederación General del Trabajo de la República Argentina), ao fundo de um telão de cinema em Buenos Aires e indo parar embaixo de uma cama de hotel em Madrid, até Perón voltar ao poder em seu terceiro mandato, em 1973, e reivindicar a devolução do corpo de Evita para o enterrar com as devidas honras no cemitério da Recoleta, onde permanece até o momento (Rodrigues, 2020, 57).

O combate pelo cadáver embalsamado de Eva Perón revela o corpo da soberana argentina transformado em alegoria viva da disputa pelo poder econômico e político, expondo publicamente um processo de dissensão que sempre esteve presente, em latência, nas bases sociais que deram apoio ao peronismo10. A posse do cadáver de Evita garantiria uma oscilação do poder político, pendendo-o a favor de quem herdasse seu corpo e fosse ungido por seu fantasma. Temos assim, além do corpo como alegoria, nessa disputa imagética pela soberania, a representação direta do cadáver como um objeto de desejo político. Além disso, seguindo a biografia de Eva Perón, escrita por Zanatta (2011), é preciso destacar também que nem Perón nem seu governo puderam realmente se libertar de Eva ou da marca que ela havia deixado no regime, a tal ponto tendo a primeira-dama penetrado nas entranhas do poder e contribuído para moldar ideias, criar equilíbrios e gerar promessas e expectativas. O espírito de Eva continuava, então, vibrando na continuidade do peronismo, e seus supostos herdeiros não tiveram outra opção senão lutar para se apossar desse fantasma e ocupar o lugar que ela havia deixado, agora escravos, para sempre, de seu cadáver

A Eva de Copi, por outro lado, diferente do personagem histórico, pretende abandonar seu corpo individual mas recusa abandonar seu corpo político, diante da ameaça de perder o poder e o trono11, e por isso incorpora-se como imenso “reclame imaginário” quando faz desaparecer seu cadáver, em uma morte simulada que eterniza sua presença política. Ao escapar de seu corpo físico por meio da fantasia coletiva de sua morte, Eva deixa para trás, como herança, seu corpo perpetuado como imagem, em uma dupla, e contraditória, saída de emergência - capaz de revelar o núcleo duro dos conflitos constitutivos da sociedade argentina do período.

Ao tratar do percurso histórico das relações entre corpo e biopolítica na Argentina, Luis García Fanlo expõe uma ampla transformação social em que, a partir de meados da década de 1930, as migrações internas do interior da Argentina para os grandes centros urbanos - especialmente a cidade de Buenos Aires - produziram um efeito semelhante ao do início do século pela grande imigração. “O corpo falido, anormal, extraviado, ‘mal educado’, ‘lumpen’, desviado, inadaptável, passou a ser o do ‘sem camisa’, ‘cabeça negra’, ‘gordo’, ‘negro’, tornados corpos estigmatizados” (Fanlo, 2009). O peronismo partiu dessa base social e procurou reabilitá-la, implantando uma política de controle social cujo objetivo era a definição do verdadeiro e perfeito corpo argentino, estabelecendo um rompimento “em relação às práticas corporais anteriores, em sua necessidade política de incluir os corpos de migrantes internos na Argentina e dos trabalhadores” (Fanlo, 2009).

Essa inclusão dos corpos “dascamisados” fazia parte da plataforma peronista em torno das demandas populares acumuladas por décadas de políticas excludentes: casa própria, férias, educação, saúde, lazer criativo (em particular por meio da promoção das modalidades esportivas e do dispositivo cinematográfico), melhoria do ambiente de trabalho, acesso ao consumo de bens duráveis e acesso controlado a espaços sociais antes reservados exclusivamente à alta cultura. “Até o bairro foi organizado com a instalação de um dispositivo de poder originariamente peronista: a “Unidade Básica”, e o surgimento de um novo modelo corporal: ‘o militante peronista’” (Fanlo, 2009).

Para James, “termos que antes simbolizavam a humilhação da classe trabalhadora e sua explícita falta de status em uma sociedade profundamente desigual, agora adquiriam conotações e valores diametralmente opostos” (James, 1990, 50). O exemplo mais famoso residiria nas implicações atribuídas à palavra “descamisado". Este vocábulo havia sido usado inicialmente pelos anti-peronistas, antes da vitória eleitoral de Perón em 1946, como um qualificador dos trabalhadores que o apoiavam. A conotação explícita de inferioridade social, “baseava-se no critério de valor social que tomava um dos sinais mais evidentes do status da classe trabalhadora, a roupa de trabalho, e o apresentava como uma insígnia evidente por si mesma de inferioridade” (James, 1990, 51). O peronismo adotou o termo e inverteu seu significado simbólico, transformando-o em uma afirmação do valor da classe trabalhadora. Esse investimento foi ampliado pela adesão do termo "descamisados" na retórica oficial de Eva Perón, sua protetora titular.

O corpo descamisado da peça de Copi é o de Eva Perón. Por isso, logo na primeira cena, a apresentação da personagem se realiza por meio de sua troca de roupas. “Merda. Onde está meu vestido de Presidente?” (Copi, 2007, 7). O vestido de presidente não aparece em cena porque Eva troca de roupas a todo instante. Sua figura soberana é mais descamisada que seus protegidos, os trabalhadores, e se veste deste vazio precisamente porque precisa intercambiar sua aparência e sua identidade soberana a todo instante. Eva não é, na peça, uma “descamisada” no sentido que falamos acima, de uma figura tosca e popularesca, que geraria, no seu aspecto de barbárie, uma identificação com a população humilde do país. Sua figura “descamisada” é, na verdade, “despersonalizada”, mas tal esvaziamento da personagem visa torná-la plural e contraditória, transitória, alegoria de uma realidade maior do que o palco.

Ao fazer de sua Eva Perón uma farsante, que forja a própria morte para despir-se do seu corpo soberano, Copi revela o grande vazio que sempre recobriu o projeto de poder peronista. A imagem do corpo flagelado e martirizado de Eva, exibido na arena pública da indústria cultural, esconde, na peça de Copi, uma doença inventada, um câncer de útero que nunca poderia ter existido por tratar-se Evita de um corpo “trans”, de um corpo masculino travestido de mulher. O cadáver embalsamado, e mitificado pelo discurso final de Perón, que encerra a peça, é, na verdade, o defunto de uma enfermeira, travestida de Eva. Esse jogo de travestimentos e de identidades falsas, alegoriza um Estado constituído sobre dois corpos mitologizados, o de Perón e o de Eva, que serviram para encobrir um pacto político de dimensões muito maiores. “Uma governamentalidade peronista dispensa absolutamente o sujeito fundador (Perón, o Movimento, a classe operária, o povo) para descrever e/ou explicar o fenômeno peronista como dispositivo singular para o exercício do poder na Argentina do século XX” (Fanlo, 2005, 394).

Essa abordagem do peronismo como um pacto instável de classes antagônicas reformula, a partir de outra perspectiva, as trajetórias de Eva e de Perón como indivíduos providenciais que protagonizaram a história do período. Seguindo o que afirma Fanlo, acima, seria possível dizer que, negando seus corpos de indivíduos, o casal Perón afirma-se como soberanos, como corpos político-mitológicos. A troca frequente de identidades, além desse aspecto de trânsito entre corpo individual e corpo soberano, presente na peça de Copi, revela que há, na boca de cena, um vazio, ocupado pela presença ausente daqueles que realmente determinam as ações da peça e da história. A obra permite reformular as conceituações em que o casal Perón ocupa o centro da cena política, levando-nos a reconsiderar suas relações com os sindicatos, militares, empresários, sujeitos coletivos da peça, ainda que ocultos:

O lugar de Perón, antes que o peronismo existisse como o conhecemos, mas depois de 17 de outubro de 1945, poderia muito bem ter sido ocupado por Domingo Mercante, Manuel Fresco ou Amadeo Sabattini - só para dar alguns dos exemplos mais paradigmáticos - sem alterar a matriz governamental do Estado (Fanlo, 2015, 395).

Ao permitir essa dissociação entre o indivíduo empírico Eva Perón e o que poderia ser chamado de uma espécie de “dispositivo soberano Perón”, a peça de Copi torna relevante aqueles personagens que não entram em cena, que não pisam no palácio em que transcorre o drama. A peça faz emergir relações sociais de poder inscritas em um campo de forças instável, aleatório e contraditório, transitório, atravessado por forças sociais que nascem, morrem e se transformam, que sofrem múltiplas mutações, em um corpo social que é alegorizado pelo corpo de Eva, em trânsito contínuo. No plano histórico, um dos objetivos do governo peronista seria dar segurança à população contra os abusos das classes dominantes, mas sempre mantendo o quadro de regras da sociedade capitalista: segurança social (pensões), direitos laborais, acesso à saúde, justiça, educação, lazer, desporto, habitação e até bens de consumo duráveis serviriam para garantir "a felicidade dos trabalhadores".

Porém, ao contrário da governamentalidade partidária dos totalitarismos europeus, a governamentalidade peronista atua não tanto nos corpos quanto nas almas, ela molda subjetividades que fazem o peronismo ser vivido como um modo de ser e não como uma ideologia, uma crença ou mera imposição disciplinar, mas como subjetivação (Fanlo, 2015, 393).

Ao permutar o corpo de Eva em um corpo masculino, depois substituí-lo pelo cadáver de sua enfermeira, ao colocar em cena a fuga e não a morte de Eva - na verdade, o abandono consciente de sua posição de soberania -, Copi expõe um corpo de poder formado por máscaras e rostos intercambiáveis, que escodem a realidade instável e transitória de um pacto impossível, em que as classes trabalhadoras argentinas deveriam, por consentimento, por meio de um processo de subjetivação, como menciona Fanlo, acima, aliar-se e identificar-se ao sujeito automático do capital e a seus gestores. Por meio do trânsito frenético, Copi desvela o único corpo que permanece, fora de cena, mas como protagonista do peronismo, para além de suas mistificações e feitiços: o da luta social.

ESCRITA DE TRÂNSITO UNIVERSAL

Essa recusa da própria identidade, ato terminal de Eva na peça, já foi abordada pela tradição crítica de Copi. Em um importante ensaio, Cesar Aira (2003) identifica que a “prática do transsexualismo” nos personagens de Copi está relacionada a uma espécie de “adaptabilidade mágica”, em uma realidade expressa não sob o ponto de vista de sonhadores, mas sim de sonâmbulos. O movimento contínuo dos personagens apresenta-se sob diversos trânsitos “trans”: sonho e realidade, ficção e documento, gênero masculino e feminino, já que em Copi “não se trata nunca do personagem da realidade extraviado no sonho, senão do homem do sonho (por exemplo o sonho de ser mulher, ou artista) dominando todos os fluxos caprichosos da realidade” (Aira, 2003, 45). O trânsito entre os gêneros, a instabilidade constante da personagem de Evita, agregado a outros procedimentos dramatúrgicos que definem a primeira-dama por meio da movência acelerada e abrupta (a troca de roupas constante, a troca de papéis com a enfermeira, o pacto com Ibiza, que ocupa o papel de parceiro, antes ocupado por Perón), marcariam a dissolução do mito, a revelação crítica das contradições insuperáveis que basearam o peronismo, com seus duplos corpos de poder soberano.

O aspecto de simulacro constante que essas transformações ganham ao longo da peça, devido à sua inverossimilhança, ao seu acúmulo e à sua velocidade estonteante, expressa, no seu aparente absurdo, os simulacros sobre os quais o peronismo consolidou-se: a imagem da “mãe dos pobres”, a mitologia dos “protetores dos descamisados”, os papéis, representados pelo casal soberano, de “construtores da nação”, etc.

Ao contrário da forma dramática de tradição europeia12, de origem burguesa e definida pela existência absoluta do âmbito interno dos conflitos familiares, Eva Perón é um “drama trans”. Há um trânsito constante entre as esferas públicas e privadas durante a ação dramática da peça, em que personagens da história argentina, trancafiados no interior do palácio governamental (espaço público e privado, ao mesmo tempo), discutem - ou tentam discutir - seus conflitos íntimos.

A intimidade, assim, não é apenas da ordem da sentimentalidade dramática, mas expressa na peça um teor de verdade público, como o golpe da falsa doença de Evita e o seu travestismo denotam. A fuga de Evita revela que a sobreposição das esferas da intimidade e da coletividade eram características do sistema de poder peronista e, ao negar sua individualidade e o papel de gênero a que estava determinada por esse corpo político13, Evita não fez mais do que afirmar a autonomia dessa estrutura de poder, espécie de sujeito automático, em relação aos corpos individuais do casal soberano. O discurso final de Perón - citado acima - é o testemunho de que o corpo político soube se imunizar e renascer, ainda sob a égide da duplicidade autoritária: agora com o corpo masculino e físico de Perón sobreposto à imagem feminina de Evita, poder soberano incorporado a uma ausência que funcionaria como um perene reclame. O desfecho da peça de Copi aqui parece alegorizar a modernização capitalista de caráter transformista, na Argentina, em que as formas modernas de produção capitalista transformam-se incessantemente no seu contrário, dependendo da manutenção dos regimes mais atrasados de controle sobre a força de trabalho, em que a oposição entre barbárie e civilização parece ser substituída pela contínua transformação de um no outro.

Renata Pimentel (2011), em estudo sobre a obra de Copi, menciona a “escrita transformista” do autor, caracterizada pelo “exagero” de máscaras em que “se agiganta a dimensão do monstruoso, da potência de câmbio constante, das transformações”. Poderíamos dizer, da protagonista de Eva Perón, o mesmo que afirma Pimentel acerca de outra personagem de Copi, Marylin, presente no romance Baile das loucas: “são tantas as metamorfoses, tanto físicas quanto psicológicas que sofre (...), que parece não haver explicação possível para esta criatura” (p. 187). Em Eva Perón, entretanto, mais do que o transformismo da protagonista, há a elaboração formal de um verdadeiro sistema de trânsito universal, de transformações sem síntese, que terminam em negativo, dando dimensão de impasse à peça.

Em 1926, em uma reflexão acerca do papel da escrita no mundo do auge do capitalismo, contida no fragmento de Rua de mão única, chamado “Revisor de livros juramentado”, Walter Benjamin afirma que as letras e frases, que haviam encontrado asilo no livro impresso, para onde carrearam seus destinos autônomos, ver-se-iam cada vez mais lançadas às ruas, arrastadas pelos reclames, submetidas à brutal reificação do caos econômico capitalista. Neste panorama, em que o horizonte será infectado por pragas de outdoors, “antes que um contemporâneo chegue a abrir um livro, terá desabado sobre seus olhos um turbilhão tão denso de letras móveis, coloridas, litigantes” (Benjamin, 1991, 193). Nuvens de “letras-gafanhotos”, que já naquele instante obscureciam o sol do suposto espírito ilustrado dos habitantes das metrópoles, “adestrados” no estilo arcaico dos livros, tornar-se-iam cada vez mais espessas, com a sucessão dos anos. Essa espécie de grafia icônica e visual, presente também nos filmes, cartazes e anúncios, foi chamada por Benjamin de “escrita de trânsito universal”.

Décadas depois, partindo da mesma escrita de trânsito universal prevista por Benjamin, Vilém Flusser (2007), ao detectar uma crescente presença das expressões audiovisuais nas linguagens artísticas e de comunicação em geral, teorizou sobre um certo “abandono da linha”, enquanto leito por onde jaziam anteriormente as possibilidades de escrita, e uma adesão às superfícies. Para Flusser, as superfícies representam um mundo distinto daquele das “linhas”. “O pensamento oficial expressava-se muito mais por meio de linhas escritas do que por superfícies” (Flusser, 2007, 110). As linhas determinariam, por meio de uma produção dos significados de uma sequência de pontos, um “estar-no-mundo histórico”, enquanto as superfícies, que expressam o mundo por meio de imagens em movimento, estabeleceriam a vivência de um mundo pós-histórico, fazendo com que, atualmente, o “pensamento-em-superfície” absorva o “pensamento-em-linha”. A superfície consiste, assim, em uma maneira de pensar, ao contrário do que sempre se baseou a epistemologia ocidental, que parte da premissa de que o pensamento “significa seguir a linha escrita” (Flusser, 2007, 111). O pensamento imagético pode produzir “conceitos em forma de modelos de superfície”, mas a virada no pensamento de Flusser apresenta a possibilidade do surgimento de “novos tipos de mídia, com sua própria lógica e seus próprios tipos de símbolos codificados” (2007, 111), em uma síntese da mídia linear com a de superfície, o que poderia resultar numa “nova civilização”, quando nem mesmo a ciência será mais discursiva e conceitual, mas recorrerá a modelos imagéticos. Flusser assim descreve o papel de um espectador de TV nesse futuro próximo:

Ele terá à sua disposição um videocassete com fitas de vários programas. Estará apto a mesclá-los e a compor, assim, seu próprio programa. Mas poderá fazer ainda mais: filmar seu próprio programa e outros na sequência, inclusive filmar a si mesmo. (...) Ele se verá, portanto, em seu programa. Isso significa que o programa terá o começo, o meio e o fim que o consumidor quiser (...) e significa também que ele poderá desempenhar o papel que quiser (2007, 122).

Aqui estamos diante de um importante acréscimo às características da escrita de trânsito universal previstas por Benjamin: Flusser adiciona a esse pensamento-em-superfície o paradigma de recepção estética presente em diversas reflexões, como a que mencionamos acima, de Luiz Fernando Ramos (2009), sobre as cenas teatrais contemporâneas. A síntese entre o pensamento-em superfície e o pensamento-em-linha, descrita por Flusser, exigiria o deslocamento do espectador (ou do leitor, vislumbrado por Benjamin) de consumidor para consumador da experiência artística.

Luís Fernando Ramos estabelece que tal participação do espectador ancora-se na já mencionada predominância da opsis sobre o mythos nas artes performativas em geral. “É um projeto de espetáculo que abdica do centro narrador e se entrega às potências dos espectadores para que formulem soluções e sínteses” (Ramos, 2009, 80). A capacidade de produzir uma resposta a partir de um esvaziamento absoluto que o autor teatral venha a promover, livrando a obra da sua condição de objeto, depende, para Ramos, de uma experiência de fruição do seu observador que apenas se realiza no momento da encenação, do opsis. “Na desambição de narrar uma história definida e procurando na interlocução com o público, mais do que um efeito, alguém que possa estabelecer um sentido próprio e fazer valer aquele acontecimento” (Ramos, 2009, 81), estabelece-se a dramaturgia textual como material lacunar, a ser configurado e completado durante a participação ativa do espectador, provocada pelo tecido múltiplo de linguagens artísticas que caracteriza o panorama teatral a partir dos anos de 1960.

Em Eva Perón há um trânsito contínuo entre vida e morte, entre o corpo humano e o corpo do soberano, entre presença e ausência, em um processo de retroalimentação infindo. Esse processo está ancorado sobre a diferença e sobre o trânsito contínuo entre os discursos da cena e da dramaturgia, principalmente quanto à condição transgênero de Eva. A obra apresenta uma urgência e necessidade de trânsitos contínuos: entre espectador/leitor e obra, visando a consumação da fruição estética, e também entre linha e superfície, identidade e não-identidade. Procurei demonstrar acima que as diversas interpretações acerca da peça dependem da encenação da transexualidade da protagonista, enigma - de sentidos múltiplos, para além de um trânsito entre identidades de gêneros - que exige do espectador um esforço de trânsito incessante e de cocriação para consumar os sentidos da obra.

Para compreender o particular “sistema de trânsito universal” presente na peça de Copi, em toda sua multiplicidade, contraditória e instável, é preciso suspender-se na corda tensa que sobrevoa os binarismos, sem superá-los por meio da síntese, mas conservando-os de forma negativa, ausente de síntese: as oposições entre texto e cena, entre linha e superfície, entre soberano e indivíduo, entre os papéis de homem e de mulher , devem manter-se na constelação de tensões abarcada por uma mirada de trânsito universal. A grande alegoria nacional do peronismo é, na peça de Copi, o próprio trânsito generalizado, determinando a instabilidade da trajetória de Evita e das imagens propostas cenicamente.

Esse trânsito universal expressa ainda o processo de crise do Estado peronista e as diversas máscaras e metamorfoses assumidas por suas figuras de poder, visando manter a soberania. Procurei ler Eva Perón identificando, em seu devir dialético negativo, que problematiza expectativas de identidade e de síntese, a expressão de aspectos históricos do processo de formação da modernidade capitalista argentina, espremida pelo balançar incessante que leva do atraso do mandonismo ao ensandecido progresso da forma mercadoria absoluta, sem possibilidade de pacificação desses conflitos.

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Notas

1 Tradução minha. Sempre que citadas obras que estão originalmente em espanhol, a tradução será minha.
2 Sempre foi lugar comum entre os antiperonistas a acusação de que Eva Perón era a verdadeira governante do Estado, submetendo o marido presidente a seus caprichos e vontades. A seguir analisaremos a presença desse discurso na peça de Copi.
3 Aristóteles apresenta duas visões aparentemente contraditórias sobre o “espetáculo” (opsis) na sua Poética. Em 1450b, afirma: “das restantes partes constituintes da tragédia, a música é o maior dos embelezamentos, e o espetáculo, se é certo que atrai os espíritos, é contudo o mais desprovido de arte e o mais alheio à poética. E que o efeito da tragédia subsiste mesmo sem os concursos e os atores. E, para a montagem dos espetáculos, vale mais a arte de quem executa os acessórios do que a dos poetas” (Aristóteles, 2008, 50-51). Mais adiante, no entanto, em 1462a, o embelezamento produzido pelo espetáculo já não é visto como estranho à arte: “[a tragédia] é melhor porque tem tudo que a epopeia tem (já que até pode usar o mesmo metro) e tem ainda um elemento que não é de menos importância, como a música [e o espetáculo], através dos quais se produzem os mais vivos prazeres” (Aristóteles, 2008, 105). Parece-me que o importante para a discussão proposta neste artigo é observar que o mythos, nas poéticas de origem aristotélica, era sempre considerado de maneira autônoma em relação ao espetáculo, mesmo que o último fosse capaz de despertar “os mais vivos prazeres”. As experiências cênicas iniciadas e desenvolvidas durante o século XX, a partir do teatro europeu, das quais Copi é um representante, consideram, pelo contrário, o papel da encenação tão significativo quanto aquele atribuído ao texto dramatúrgico.
4 O termo mythos, empregado por Aristóteles na sua Poética, pode ser traduzido por “enredo”, ou seja, a história organizada em entrecho ou intriga. Nas obras teatrais que seguem o paradigma aristotélico, podemos ver no mythos a totalidade da dimensão textual da peça, já que, nestes casos, a dramaturgia literária é sempre organizada por meio de uma narrativa, que expõe uma ação unitária e progressiva.
5 Parto aqui do conceito de alegoria formulado por Walter Benjamin. A alegoria revelaria a antinomia das coisas, em que “cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra”. A ambiguidade e a multiplicidade podem ser consideradas as marcas essenciais da concepção alegórica, em que a ambiguidade não passa da “riqueza do desperdício” (Benjamin, 2007, 192) . A marca da alegoria seria assim o distanciamento das coisas do seu sentido original, a alienação das coisas da sua verdadeira essencialidade, na medida em que allo-agorein significa dizer outra coisa; a alegoria é a afirmação da diferença sem qualquer perspectiva de reconciliação. No universo da alegoria não existe mais ponto fixo e imutável, nem no objeto, nem no sujeito da interpretação alegórica, que garanta a verdade do conhecimento.
6 Para Sarlo, “Eva, a defensora das trabalhadoras, assassina sua jovem enfermeira; Eva, mãe dos humildes, provoca uma cena fortemente homossexual antes de matá-la; Eva, que rememora o passado de humilhada para que mais ninguém tenha de suportar humilhações, na peça de Copi submete a própria mãe à abjeção de mendigar a futura herança” (2005, 18).
7 Nas palavras de Lefort, “O Antigo Regime é composto de um número infinito de pequenos corpos que dão aos indivíduos suas referências identificadoras. E esses pequenos corpos se organizam no seio de um grande corpo imaginário do qual o corpo do rei fornece a réplica e garante a integridade” (2011, 150).
8 Por meio da Fundação Eva Perón, gradualmente, o trabalho social voluntário assumiu grande significação durante a trajetória deste “duplo governo” peronista, envolvendo-se com as demandas das comunidades, vigiando e denunciando seus comportamentos políticos desviantes e distribuindo presentes, que eram fornecidos pela Fundação. “Eva reconhece essa mudança quando afirma que de acordo com o que ela havia concebido, o trabalho social também era uma forma de participação política, que ela definia como ‘fazer sentir a presença protetora de Perón em todo lugar e em toda família na Argentina’” (Sohiet, 2000, 43).
9 Para Sarlo, o corpo de Eva “dava corpo a um novo tipo de Estado, o que se poderia chamar de ‘Estado de bem-estar à criolla’ , e consolidava um ritual absolutamente necessário a esse Estado” (2005, 91).
10 Para conseguir equilibrar-se na tensão entre classes antagônicas, e obter o apoio da classe trabalhadora e do empresariado argentino, Fanlo assim identifica a estratégia peronista: “Governar em termos peronistas exige ampla e discricionária margem de manobra para sustentar a invenção daquela Argentina peronista que subsume nos trabalhadores a essência que define a linha tênue de separação entre quem são e não são verdadeiros argentinos. E para isso, continuamente define e redefine os limiares que delimitam esse povo trabalhador, não só no que diz respeito ao conjunto de trabalhadores que, por não serem peronistas, ficam de fora da Argentina, mas também, e principalmente, pela dificuldade de fazer ver e enunciar o burguês como trabalhador” (Fanlo, 2015, 391). Nessa contradição sempre mutante, o peronismo recorrerá ao discurso nacionalista cultural e à sua matriz antinômica que define o verdadeiro argentino na oposição entre ricos e pobres, mas sem questionar essa divisão. A divisão não pode ser questionada porque o peronismo, insisto, quer cancelá-la, mas não exercendo poder repressivo sobre os plebeus, mas sim com seu próprio consentimento.
11 Antes de sua morte, em 26 de julho de 1952, Eva Perón vira o poder peronista ser ameaçado pela tentativa de golpe militar de setembro de 1951. A ameaça de um novo golpe também ronda diversos diálogos da peça de Copi: “MÃE - Para um golpe de estado é um pulo, Ibiza! Lembre-se, é um pulo para um golpe de estado!” (Copi, 2007, 12).
12 Considero aqui a definição de Peter Szondi (2001), para quem o gênero dramático tem origem histórica determinada, durante a ascensão burguesa europeia, nos séculos XVIII e XIX, e se caracteriza por uma presentificação absoluta da ação, que se apresenta de maneira unitária e progressiva, apenas por meio de diálogos. O indivíduo autodeterminado, capaz de fazer escolhas e resolver seus conflitos, de teor privado, por meio da conversação e do entendimento, é pressuposto desse gênero teatral.
13 Ao refletir sobre o papel de Eva Perón nos movimentos feministas argentinos, Rachel Sohiet identifica uma dualidade na atuação da primeira-dama: “De alguma forma, a análise dos discursos de Eva, em que testemunha total lealdade e subordinação a Perón, exigindo o mesmo de suas seguidoras, revela um significado diverso daquele de uma submissão humilhante. Na verdade, está se valendo de uma tática que mobiliza para os seus próprios fins uma representação imposta, aceita, mas desviada contra a ordem que a produziu, ou seja, longe de estar se vergando a uma submissão alienante, constrói recursos que visam subverter a relação de dominação” (Sohiet, 2000). Para a autora, ao utilizar-se dessas imagens legadas aos papéis de gênero femininos, Eva Perón revelava sua concordância com as diretivas estabelecidas para as mulheres pela ordem vigente, o que, ao mesmo tempo e contraditoriamente, facilitava e ampliava o seu espaço de atuação.

Autor notes

Contato: ivandelmanto@yahoo.com.br

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