VÁRIA

Machado de Assis e Jorge Luis Borges: dois classicistas em plena Modernidade

André Luiz Barros
UNIFESP, Brasil

Machado de Assis e Jorge Luis Borges: dois classicistas em plena Modernidade

Revista Caracol, núm. 20, pp. 662-695, 2020

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Recepção: 29 Setembro 2019

Aprovação: 18 Dezembro 2019

Resumo: Analisamos o tom classicista de narradores e personagens de Machado de Assis e de Jorge Luis Borges, focando nas estratégias estéticas, ligadas a épocas e culturas específicas. Diferenciando-se do romantismo e do realismo, Machado se valeu de encarnações do libertino, personagem saído da prosa ficcional setecentista francesa, entre elas o cortesão renascentista. Sua indiferença aristocrática diante da dor alheia, seu hedonismo distinto da praticidade burguesa são a chave de entendimento dessa opção de Machado. Para mostrá-lo, analisamos quatro contos do autor. Os narradores de Borges encarnam outro tipo de indiferença: frieza, serenidade (pseudo-aristocrática), assombro (influência da literatura de terror anglo-saxã) e erudição integrada à ficção. Tais características definem a obra do argentino como devedora do etos classicista, mas sem o aspecto erótico, dada sua formação híbrida entre tradição anglo-saxã (que suas obras acatam e solapam) e origem argentina reconfigurada. Ambos comentam, parodiam e, a seu modo, corroem a herança europeia.

PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis, Jorge Luis Borges, contos e romances de libertinagem, literaturas brasileira e latino-americana, teoria da literatura.

Abstract: We analyzed the classicist tone of narrators and characters by Machado de Assis and Jorge Luis Borges, focusing on aesthetic strategies, linked to specific times and cultures. Differentiating himself from romanticism and realism, Machado made use of incarnations of the libertine, a character out of the French eighteenth-century fictional prose, among them the Renaissance courtier. His aristocratic indifference to the pain of others and his hedonism, so distinct from bourgeois practicality are the key to understanding this option. To show it, we analyzed four stories by the author. Borges' narrators embody another type of indifference: coldness, serenity (pseudo-aristocratic), astonishment (influence of Anglo-Saxon horror literature) and erudition fictionalized. Such characteristics define the Argentine's work as indebted to the classicist ethos without the erotic aspect, given its hybrid formation between Anglo-Saxon tradition (which his works accept and undermine) and reconfigured Argentine origin. Both comment, parody and, in their own way, erode the European heritage.

KEYWORDS: Machado de Assis, Jorge Luis Borges, libertine stories and novels, Brazilian and Latin American literature, theory of literature.

A postura classicizante de Machado de Assis e de Jorge Luis Borges a nosso ver esclarece aspectos importantes das respectivas estratégias como artistas1. Ela nos parece decisiva em ambos os casos pois dá acesso a pelo menos três eixos fundamentais que sempre despertaram surpresa crítica nesses autores: 1) o enfrentamento da tensão de criar uma obra à margem da cultura emanada da Europa, antigo centro cultural e econômico - obra que, paradoxalmente, mostra-se a um só tempo partícipe e observadora/comentadora em relação a tal tradição, o que explica, pelo menos em parte, seu interesse internacional; 2) a relação entre universal e particular, inclusive no campo temporal, numa tentativa de confrontar (dialogar) até mesmo com a concepção linear e progressiva do tempo, no Ocidente; e 3) a singular criação de literatura que se hibridiza com o ensaísmo ou com um metanarrador que comenta as ações narradas e/ou reflete pseudofilosoficamente, sem contar as citações nominais. Tais temas nos parecem centrais para compreender a potência intrínseca das duas obras, embora não sejam os únicos possíveis de se extrair de sua leitura.

Partiremos, então, da constatação de vários críticos2 segundo a qual ambos os autores praticam um estilo classicizante, a torná-los refratários aos traços de romantismo (nacionalista ou sentimental) e de realismo que tanta hegemonia tiveram no campo dos estilos literários, desde meados do século XIX3. Mas os modos de fazê-lo diferiram: se em Machado apontaremos traços de um personagem típico do classicista século XVIII francês, o libertino, a constatação do débito de Borges para com o conto filosófico daquele mesmo século nos permitirá ver em sua obra traços - como a tradição anglo-saxã do fantástico e do terror e o eruditismo passadista - a impedir o hedonismo cruel do libertino.

No caso de Machado, se desde os anos 1830-40 a hegemonia dos romantismos brasileiros fora total, com José de Alencar como primeiro “herói” do romance, nos anos 1880 (decisivos para sua maturidade) o realismo chega com força. A contraposição a ambos4 é ato estético singular. No caso Borges, é preciso contextualizar a vanguarda argentina dos anos 1920-30, mesmo sem esgotar os aspectos do início de sua trajetória. A diferenciação diante do criollismo e do modernismo argentinos, ambos ligados à virada do século XIX para o XX, significava rejeitar, por um lado, a “cor local” regionalista e, por outro, os excessos experimentais na linguagem (comparáveis a de nossos parnasianismo e simbolismo). Isso determinou escolhas singulares de Borges: ao apagamento do criollismo (cuja exceção, o conto-chave “El hombre da la esquina rosada”, confirma a regra) se alia a busca de uma linguagem límpida, deixando o labirinto para a trama detetivesca ou para a erudição. Tal erudição vinha da prática ensaística, comum a sua geração, que publicou muito em revistas e polemizou bastante. Mas Borges a imbrica, de forma singular, à ficção. Ele próprio explicou a diferença entre o ultraísmo argentino e o espanhol:

El ultraísmo de Sevilla y Madrid fue una voluntad de renuevo (...), fue una lírica escrita (...) cuyos más preclaros emblemas - el avión, las antenas y las hélices - son decidoras de una actualidad cronológica. El ultraísmo en Bueno Aires fue el anhelo de recabar un arte absoluto (...). Bajo la enérgica claridad de las lámparas, fueron frecuentes, en los cenáculos españoles, los nombres de Huidobro y Apollinaire. Nosotros, mientras tanto, sopesábamos líneas de Garcilaso (...), solicitando un límpido arte que fuese tan intemporal como las estrellas de siempre. Abominamos los matices borrosos del rubenismo y nos enardeció la metáfora, por su algébrica forma de correlacionar lejanías (Itálicos nossos) (Borges apudMonegal, 1970, 20).

Em ironia erudita típica de Borges, Garcilaso de la Vega (1539-1616), por sua origem peruana de ascendência espanhola e inca, é aqui citado por ser visto como inaugurador das letras na América Latina numa época em que ideias como nacionalismo ou identidade regional ainda eram de todo impensáveis, pois o que imperava era o classicismo.

Mesmo assim, pode-se argumentar que as vanguardas do século XX tatearam épocas pré-modernas para escapar dos refluxos românticos e realistas da literatura ocidental - Borges teria sido apenas mais um a fazê-lo. Não obstante, a trajetória desse autor - entre a negação do personalismo5, a busca de uma linguagem límpida e não-experimental e a incorporação erudita do etos e das referências pré-modernas, incluindo séculos anteriores ao XVIII6 - remete a uma trilha distante de experiências como as de James Joyce ou Ezra Pound. Essas últimas incorporaram no jogo da linguagem tal pseudo-mergulho nos séculos passados, mesclado ao vetor experimental voltado ao futuro, como na verdade fizeram muitas vanguardas. A nosso ver o cerebralismo de Borges na narrativa integra eruditismo, enredo detetivesco (mesmo no campo bibliófilo...) e pseudo-gnóstico (o ar de esoterismo supostamente ligado a seitas não oficiais da Europa pré-moderna), nunca experimentalismo formal tout court.

Portanto, se a relação ambígua das vanguardas com a tradição pré-moderna permitiu o “retorno ao classsicismo” de Borges, nos anos 1920-30, no caso dele houve uma radicalização do “desejo de classicismo” para se diferenciar tanto do modernismo latino-americano (exacerbado no experimentalismo de linguagem), quanto do ultraísmo espanhol. Entre as primeiras reações, cite-se a de Ramón Doll, em seu “Contra Borges”, de 1932: “Toda su expressión frigida, donde la emoción es espiada y luego anestesiada deliberadamente, es realmente una evasión obsesionada del lugar comun, pero a costa de los más genuínos y auténticos impulsos de si mismo” (Lima, 1988, 259). Trinta anos depois, Ernesto Sábato ia na mesma linha: “Los dramas en que hombres de carne y hueso luchan y mueren, en medio del caos y la contingencia, son substituidos por bellos relatos que semejan teoremas” (Idem, 263). Apesar de alguns elogios7, na Argentina de Borges alguns setores progressistas, inclusive na seara estética, rejeitam uma obra que lhes parece indiferente tanto à sensibilidade do autor, quanto ao drama social.

Não se defende, aqui, que Machado e Borges tenham empreendido um retorno cego (ou não-moderno) ao pré-moderno. O próprio diálogo de autores do século XX com certo classicismo (no Brasil, Dante Milano ou a Geração de 45) torna verossímil o desejo de retorno. Como defendem alguns autores (Compagnon e, antes dele, Walter Benjamin), as vanguardas, com toda sua radicalidade, não deixam de dialogar com a tradição. O que propomos é que Machado e Borges empreendem seus retornos por vias singulares em relação aos contemporâneos, em momentos e países diferentes e por motivos conjunturais divergentes. Para entender suas estratégias nos parece crucial explorar o veio em comum do classicizante, que os posiciona em relação a suas origens a partir das bordas da cultura centralizada (eurocêntrica, de origem).

1. RELAÇÕES COM PRÉ-MODERNO/MODERNO E CENTRO/PERIFERIA

Comecemos pela obra de Machado, a partir de uma característica típica do século XVIII francês: o tratamento da atração extraconjugal. Nos contos que analisaremos, emerge a figura do homem ou da mulher sedutores, em uma versão toda própria do libertino, personagem típico de contos e romances franceses do XVIII8. Não se afirma que Machado tenha composto nesse gênero de transição, que desaparece no início do século XIX9. A aclimatação feita pelo autor brasileiro em sua época demandará nítidas mudanças em relação ao modelo original, fazendo com que o personagem conviva com temas inexistentes para antigos autores do gênero10. Ainda mais se compararmos a valorização do ato soberano dos aristocratas - inclusive sobre objetos de atração sexual - e os constrangimentos que a moralidade e a ética do trabalho burguesas necessariamente engendrarão. Porém, escrevendo longe dos centros de poder do capitalismo, Machado de Assis pôde incorporar, com certa liberdade experimental, vários modelos e temas da biblioteca pré-moderna - a que remonta a Luciano e desemboca em Swift, Voltaire e Sterne11 - e da transição para o romance moderno. Certas características do libertino são não apenas localizáveis nos contos tratados, mas também indicariam uma via possível de análise de outras referências do século XVIII, em especial Voltaire, cuja importância para a cunhagem de uma ironia moderna a partir da vida aristocrática é incontestável12.

A inclusão de elementos do personagem do libertino serviu à estratégia de Machado de combate, a um só tempo, da onipresença da concepção de uma “verdade do coração” (desde Rousseau), de corte romântico, e do determinismo cientificista da corrente naturalista, já que aquele personagem é frio e calculista em suas ações eróticas (anti-Rousseau) e credor de uma literatura que prefere o etos aristocrático à calculabilidade planejada do mundo burguês (como demonstrou Bento Prado Jr.13, o cálculo erótico e de poder do libertino nunca se confunde com o pragmático do burguês)14. Eram as frentes de combate mais prementes caso um autor quisesse se diferenciar, à época. A “terceira via” machadiana o faz recorrer à biblioteca pré-moderna, onde numa prateleira está a narrativa de libertinagem. Do mesmo modo que, no caso de um autor singular como Machado, a noção de atraso latino-americano se relativiza, pois é autor da margem que ombreia com os do centro, não é cabível a ideia de um retrocesso no recurso ao pré-moderno. Ainda mais se se nota que os desdobramentos setecentistas da sátira latina (Sterne à frente) incluem uma liberdade formal que estará muito ao gosto de certo modernismo do século XX15.

Em vez de retrocesso, trata-se de experimentação de vias que descortinassem “formas livres”16 a se deixarem flagrar em momento de transição ímpar, favorável a uma liberdade que se explica, em parte, pela falta de prestígio do romance nos séculos XVII e XVIII. É momento anterior à consagração do gênero e à imposição de padrões para sua composição, o que só ocorrerá no século XIX, com o romantismo e o realismo. Assim, Machado participa a seu modo (isolado na periferia) do esforço em âmbito mundial (o que, paradoxalmente, relativiza aquele isolamento...) para suplantar a forma do romance hegemônica de sua época. Nessa lógica, sua estratégia foi reler o momento de gênese do romance (século XVIII), para retomar trilhas esquecidas ou mal aproveitadas17. O autor-leitor é autor ousado: combate a literatura novecentista apostando as fichas numa liberdade satírica e formal minoritária e alheia, senão ameaçadora, em relação à estética consagrada. A localização geograficamente periférica em relação aos centros da economia e às pressões do cânone eurocêntrico torna mais leve a tarefa.

Nesse âmbito é que propomos uma inclusão do personagem do libertino nas sessões seiscentista e setecentista da “biblioteca” de Machado. Trata-se de um personagem de transição, cujas primeiras incidências se dão na forma do tipo18, mas que evolui para um “personagem-tipo”, dada sua condição intermediária entre o tipo, linear em sua paixão constitutiva (impulso erótico no Don Juan, hipocrisia no Tartufo), e o personagem do romance moderno, de subjetividade complexa. A primeira ocorrência do libertino está no inacabado Égarements du cœur et de l’esprit, de Claude Crébillon (1735). É um precursor de Les liaisons dangereuses, de Choderlos de Laclos (1782), destaque do gênero. Indicaremos como seu etos inclui não só a volúpia das conquistas, mas também o cinismo aristocrático, que o torna mestre das intrigas de salão19. Depois de apontar sua ocorrência em contos de Machado, mostraremos como seu etos se transfere dos personagens para o próprio etos do narrador, numa inovação de amplas consequências. Essa ideia nos levará a propor uma hipótese para a origem do cinismo cruel, francamente elitista20.

Mas como essa estratégia geral machadiana se sintoniza com a de Borges, que usa o legado ocidental com uma ironia de matiz pré-moderno, como que revertendo os vetores do universalismo (no sentido de utilizar-se do cânone ocidental para relativizar a própria ideia de centralidade). O fio da questão é o gosto tanto de Machado, em fins do século XIX, quanto de Borges, a partir dos anos 1940, pelas referências literárias anteriores ao romantismo e ao realismo, a ponto de criarem narradores a um tempo cínicos e, digamos, heterodoxamente clássicos21. Adiantemos que Borges inclui elementos alheios ao projeto machadiano, como a tradição do fantástico e do terror. Mas há semelhanças, pois criaram narradores singulares que tendem à indiferença em relação às contradições da vida concreta, como os libertinos. Como mostra a fortuna crítica, seria grosseria analítica creditar-lhes a pecha de elitistas ou desligados da realidade social de seus países por conta da invenção de narradores indiferentes de molde aristocrático22.

2. CRUEL E INDIFERENTE: O LIBERTINO NÃO SE DEFINE SÓ PELO EROTISMO

O amoralismo maledicente de salão, ambiente propício ao desenvolvimento do personagem do libertino, tirava sua importância social do movimento centrípeto que fazia do pertencimento aos círculos aristocráticos mais próximos da corte o alvo da vida social. No centro da contradança, é claro, está o rei. Mas, pelo menos desde o advento do hôtel da marquesa de Rambouillet, na França dos anos 1620, cria-se um contraponto à corte, onde artistas, filósofos, financistas, advogados e nobres em geral praticavam o engenhoso jogo da conversation mondaine. Nesse ambiente, a disputa por meio da fala é tanto erótica quanto política, e a conquista das mulheres integra a luta pelo favor do soberano. Como mostraram N. Elias e B. Hours, o designativo genérico “cortesão” se refere a nobres da corte que, transitando entre ministros e juízes e ambicionando cargos, empregavam o tempo na inexorável luta pela atenção do rei. O requisito básico era a mestria em erigir e manter uma boa reputação, utilizando-se para isso, inclusive, de intrigas eróticas mundanas23. Além disso, desde o Renascimento, “cortesão(ã)” também significava pessoa dedicada ao prazer sexual. Prova disso é o título de uma obra de Aretino, o mais famoso precursor renascentista da prosa libertina: La cortigiana (s/ data)24. O modelo descrito por Castiglione em seu Il Cortegiano (1528) vai por aí: deve dominar a sprezzatura, a dissimulação graciosa, nunca afetada, que o faz agradar às mulheres e aos homens certos e, assim, manter a reputação e buscar seus interesses (vide também L’Art de plaire à la Court, título da obra de Nicolas Faret, 1630)25. Hours mostra como as versões francesas dos livros de Castiglione e do espanhol Baltasar Gracián, outro mestre da cortesania, viraram bem-sucedidos manuais para nobres franceses nos séculos XVI, XVII e XVIII, até Luís XV26.

O personagem do libertino, inaugurado por Claude Crébillon com o Versac dos Égarements du cœur et de l’esprit, toma forma a partir dessas tradições cruzadas27. De um lado, a tradição dramática de Don Juan, tipo do cortesão com hybris classicista amoral e antirreligiosa. De outro, a tradição do ideal-tipo do “perfeito cortesão”, mestre da dissimulação e da conversation, habitando o imaginário beletrista e a vida da corte28. A interseção das duas vertentes dá lugar a um nobre que, por seus desejos e interesses amorais e até criminosos (Don Juan), maneja dissimuladamente a fala na corte e nos salons, onde o erótico se cruza com o político. Logo se vê que a frieza e o cerebralismo demandados a um libertino requerem um nível de indiferença ética definível, na modernidade, como cinismo: diz-se não uma “verdade do coração”, nem uma verdade dogmática ou poderosa (discurso paternalista), mas o que serve aos interesses por intrigas eróticas e pela obtenção de status na corte.

3. LIBERTINOS SALPICADOS AQUI E ALI

Há um denominador comum nos contos “Missa do Galo”, “D. Paula”, “Singular ocorrência” e “Almas agradecidas”, de Machado: a relação erótico-amorosa extraconjugal é o centro da trama. O primeiro centra-se na feminilidade sem iniciativa própria, num tipo de magia sedutora que marca a memória do narrador. “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos...” (Assis, 1998, 386), inicia-se. A mensagem erótica é transmitida quase que pela própria ausência de arroubos, gestos ou insinuações; no limite, sedução é hipnose: “Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que me tolhia a língua e os sentidos” (Assis, 1998, 392-3). Se no início o adultério prolongado do marido é motivo do único trecho de tom maledicente do narrador (“Boa Conceição! Chamavam-lhe ‘a santa’, e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido”) (Assis, 1998, 386-7), no final é a forma altamente ambígua em sua feminilidade que triunfará, já que Conceição não só sobrevive ao marido, mas se casa com o ex-escrevente dele. O temperamento da mulher, descrito no início como “atenuado e passivo” (Assis, 1998, 387), se mostra sedutor por discrição, e o etos burocrático do marido, que batia ponto com a amante fazendo do desrespeito à mulher moeda semanal, o leva ao túmulo. Além do escrevente, ela seduz, irrevogavelmente, a memória do narrador.

Em “D. Paula”, no lugar de subtração pela presença sedutoramente passiva, tem-se subtração pelas camadas da memória da protagonista. Esta revive sentimentos intensos de seu caso passado ao ouvir o nome do filho de seu amante fugaz, que corteja como rematado libertino, no presente, a sobrinha, Venancinha. Chegado de Paris, ele “...dizia-lhe coisas amigas, que ela era a mais bonita moça do Rio (...). Tinha graça em criticar os outros, e sabia dizer umas palavras sentidas, como ninguém” [grifo nosso] (Assis, 1998, 239). A arte da maledicência e a galanteria são traços do ator social que faz da natureza artifício: a comparação entrega o fingidor, já que a frase “...sabia dizer umas palavras sentidas...” equivale a: “comparado aos outros, era mestre em simular seu sentimento diante da presa”.

As memórias “importunas” da tia “...voltavam, ou de manso ou de assalto, como raparigas...”, assim como as ideias do sobrinho de Rameau eram “prostitutas”, no famoso conto filosófico de Diderot. Mas, trinta anos depois, ela só tem acesso a um laivo da antiga intensidade: “Passava-se tudo na cabeça. D. Paula tentava emparelhar o coração com o cérebro” (Assis, 1998, 238). Dá-se a inversão: o coração, a rapariga e o erotismo extraconjugal hoje estão alocados no frio cérebro, assim como o filho de seu amante chegara “com um ar tão parisiense” da Europa. O libertino, no caso, possui a chama para acender o diabo guardado no coração da mulher. O “diabo” reaparece na última frase, em que as criadas, como temia a Conceição de “Missa do galo”, estranham a insônia da patroa: “Sinhá velha hoje deita tarde como o diabo!” (Assis, 1998, 242). A impaciência das pretas trai a visão amarga e maledicente do outro, na fala que não era para ser ouvida por Sinhá. A natureza feminina (raparigas) exerce impiedade amoral diversa da do libertino, posto que mais próxima da amoralidade da natureza. É o caso da descrição pelo narrador de uma reação de Genoveva em “Noite de almirante” (conto que, no entanto, não trata de libertinagem, mas de fidelidade). Pode-se dizer das pretas e das lembranças selvagens de D. Paula o que o narrador diz da resposta de Genoveva: “...estamos aqui muito próximos da natureza. Que mal lhe fez ele? [o amante que substituiu o ausente Deolindo no coração de Genoveva]. Que mal lhe fez esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre da física lhe explicaria a queda das pedras” (Assis, 1998, 178). Como a lei da gravitação universal, a intensidade erótica ameaça o “prestígio e consideração” de D. Paula.

Em “Singular ocorrência”, Marocas, uma ex-prostituta - como a protagonista da Dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho, peça que ela vê às lágrimas - parece regenerada aos olhos do apaixonado Andrade, um pai casado. Mas tem uma recaída com Leandro, “sujeito reles e vadio” (Assis, 1998, 48) que, para azar dela, conhecia Andrade. Este descobre o caso de uma noite, ela foge para uma pensão e, lá, chega às portas da morte, como a Dama das Camélias, provando regeneração e amor. A conclusão chega veloz: eles teriam reatado, recalcando o passado; tido um filho, que morre; ele viajara e morrera na província; ela “...considerou-se viúva”, embora sem aliança (Assis, 1998, 53). O interlocutor sugere que Marocas agira daquela forma por “...nostalgia da lama”. E o narrador (cínico?): “...nunca a Marocas desceu até os Leandros”. Então, por quê? “Era um homem que ela supunha separado, por um abismo, de todas as relações pessoais; daí a confiança. Mas o acaso, que é um deus e um diabo ao mesmo tempo...” (Assis, 1998, 53).

A origem humilde de Marocas e seu passado “baixo” de prostituta analfabeta contrastam com seu comportamento “afogado” e “sem espavento” (Assis, 1998, 45), ou seja, comedido. Inclusive com o dinheiro: o amante elogia “...a modéstia da moça, que não queria receber dele mais do que o estritamente necessário” (Assis, 1998, 48). O interlocutor do narrador, no tempo presente, acha-a com “ar de duquesa” (Assis, 1998, 48). O verbo agressivo do início do conto, “...dominou-o” (Assis, 1998, 46), referindo-se à rapidez com que seduzira Andrade, dá lugar a certa admiração por sua altivez e afeição convincente. E aí, volta a questão: mas então, por que a recaída? Se não fora saudade da origem baixa, Marocas pecara - e arrependera-se, numa outra prova de grandeza de espírito - por delicadeza: imaginava cometer um pecadilho que o amante nunca descobriria. Esse erotismo altivo, dir-se-ia libertino, contrasta com o arrependimento, que é de base patética, burguesa à la Dumas Filho. A Marocas que comete a libertinagem já não é a prostituta analfabeta, embora a “D. Maria de tal” do final seja, enfim, uma ex-libertina regenerada, optando pelo amor autêntico, romântico e matrimonial, mesmo sem matrimônio.

Em “Almas agradecidas”, cujo tema central é a traição entre amigos, traços do libertino surgem na figura de Magalhães, o amigo docemente amoral. Sendo, no caso, menos importante a trama, destaquemos elementos do personagem e o episódio da conquista de Cecília, paixão recente de Oliveira, o ingênuo. “A conversa de Magalhães era mais picante, mais variada, mais atraente. Há muito quem prefira a amizade de um homem sarcástico...” (Assis, 1979, 13). Oliveira se diz apaixonado por Cecília e o faz conhecê-la. Com sua lábia, Magalhães cativa o folgazão pai da moça. E, antes que Oliveira a ela se revele, por pura extroversão retórica, depois de fazer mistério, o outro diz: “Conheço alguém que a ama muito”, e completa, para surpresa até do leitor: “Sou eu” (Assis, 1979, 19). O cúmulo da malandragem é a carta de Magalhães contando o affair: tão bem simula falsa compaixão que o amigo que a lê se assusta e teme que se mate. O final é de pura falsa abnegação de Magalhães, Oliveira ajudando com sua cegueira diante do ferrão do outro (como Quintanilha diante de Gonçalves em outro conto sobre o tema, “Pílades e Orestes”).

Os contos citados indicam, em algum momento e, é claro, sempre em meio a outros temas, a presença de traços do personagem do libertino. Há, por um lado, inexorabilidade da atração extraconjugal. E, por outro, a figura do mestre da conversação, capaz de dissimular o que de fato quer para melhor obtê-lo.29

No tempo de Machado o conto de libertinagem desaparecera. O que apontamos é a incorporação de traços definidores do personagem do libertino setecentista em meio a outras temáticas, como a regeneração do libertino pelo amor ou o cerebralismo indiferente à dor alheia. Mesmo assim, é factível comparar o ritmo lento e misterioso da sedução em “Missa do Galo” com o tempo erótico misterioso do conto Point de lendemain [Por uma noite], de Vivant Denon, de 1777, em que uma dama casada guia um novato no labirinto de jardins e alcovas de sua propriedade com intenções eróticas, até mandá-lo embora de manhã, diante do amante substituto30.

Se a libertinagem surge em meio a outros temas, também o etos erótico e cinicamente cruel do personagem libertino surge em meio a outros ēthe, o mais flagrante sendo o do apaixonado romântico - o parvo Oliveira, em “Almas agradecidas”, a arrependida Marocas, em “Singular ocorrência”, herdeiros, os dois, do Estevão do romance A mão e a luva, perplexo com o pragmatismo interessado de Guiomar. A referência a Guiomar indica outro tipo caro a Machado, e cujo contraste em relação ao libertino é mais sutil: o pragmático radical. É o caso, entre muitos outros, dos pais de João Aguiar e de Serafina, no conto “Longe dos olhos...”, defensores do casamento por interesse (Assis, 1979, 34-44). Difere do libertino, pois sua ojeriza à paixão romântica nada tem a ver com interesses eróticos, de cinismo mundano ou de reputação pessoal. É utilitarista, não sensualista, e seu materialismo não é epicurista (mundo como reino do prazer sensorial), mas de motivação econômico-financeira, por trás da gana por status. Ao contrário do libertino, seu cinismo não remete à indiferença amoral e universalista, dos moralistas do século XVII (que, como veremos, integra a prosa cínica de Machado), mas à busca do lucro e da reputação na economia de mercado31.

4. MACHADO ENTRE VOLTAIRE E OS MORALISTAS DO SÉCULO XVII, PAIS DO LIBERTINO

O episódio de Eugênia, a moça coxa e pobre que Brás Cubas namora, no romance de 1881, foi destacado por Schwarz como exemplar do cinismo que impregna o narrador machadiano a partir desse romance de maturidade32. Ao tratar do “festival de maldades” que o defeito físico incita no narrador, o crítico aponta que “....a malícia da frase está na jura inicial, que faz supor o leitor acanalhado (mon semblable, mon frère), avesso a imaginar que um defeito na perna não se acompanhe de uma diminuição da pessoa” (Schwarz, 1991, 89). Na verdade, esse traço remete a um autor que o próprio Schwarz cita como influenciador de Machado: Voltaire. “...digamos que ao materialismo vulgar dos contemporâneos de vanguarda [a “...causação quase física, e (…) científica’, proposta pelo Naturalismo”] (...) Machado contrapunha o racionalismo setecentista, de corte voltairiano, com seu interesse humorístico pela diversidade e irracionalidade das instituições” (Schwarz, 1991, 124).

Davi Arrigucci Jr. também ressaltou a influência de Voltaire e de seu conte philosophique em Machado ao tratar, exatamente, de Borges. Aponta a abertura à fantasia e a “outros mundos estranhos onde é permitido desconfiar do nosso” (como em Candide), só para ressaltar as “tomadas de distância e modulações relativizadoras da expressão” ligadas à “leveza e mobilidade intelectual” de Voltaire33. A invenção de Voltaire integra leveza, aguda concisão e racionalidade a serviço de certo engajamento - pelo riso, Voltaire destruía instituições. A definição indica a diferença crucial para com seus precursores - Castiglione, Gracián e os moralistas franceses. Estes últimos não partilhavam do universalismo e do racionalismo otimistas de Voltaire, típico das Luzes.

Sabe-se que os moralistas franceses do XVII tiveram como antecedentes exatamente Castiglione, Della Casa, Gracián e outros. Estes forjaram um estilo elegante, sereno e leve, oprimido pelos combates e intrigas de corte, mas sem a certeza de uma racionalidade que, pela lógica, suplantasse qualquer instituição humana, como a que Voltaire defenderá. O intuito daqueles moralistas tinha raízes no humanismo: o cortesão devia ser cultivado nas artes e praticar o ramo da retórica civilitas, conversação entre pares cultivados, para agradar homens e, principalmente, mulheres, bem como se adequar à corte34. A concepção da fala nesse período - a Renascença de Castiglione e Della Casa - ainda se liga intimamente à retórica. Se desde Aristóteles a definição da retórica é marcada por uma postura artificialista, afastada da noção de verdade, ela é prenhe de prescrições que fazem do orador um promotor das instituições onde circula35.

Logo se nota o vão entre fala e moral moderna: tal concepção clássica vê o discurso público como meio para atingir fins políticos (na obra de Cícero ou Quintiliano, os fins são descritos como magnânimos, mas a Renascença desidealiza um pouco os alvos da retórica, imiscuindo-o ao bem falar palaciano) (Meyer, 1999). Castiglione, Della Casa e outros aproximam tal concepção da conversação mundana. Ainda é impossível colar ética e fala, e há distanciamento do falante quanto ao conteúdo ético do que é dito. Eis uma definição do que chamamos de cinismo amoral de molde aristocrático.

5. BORGES CRIA O NARRADOR INDIFERENTE (ARISTOCRÁTICO) ASSOMBRADO PELO ABSURDO DO REAL

Se Machado se valeu do libertino, personagem anti-humanista e antirreligioso, na época de Borges a questão da busca erótica extraconjugal (variações do adultério) já tinha perdido a centralidade que tivera na prosa ficcional do século XIX, no mundo todo, já que fora momento de afirmação dos valores burgueses. Como mostra, por exemplo, Beatriz Sarlo, a geração de Borges, das vanguardas, tinha no próprio campo estético o locus de combate privilegiado (Sarlo, 1993), apesar, obviamente, da continuidade da importância do nacionalismo e dos embates ideológicos, causas, como apontamos acima, da rejeição do estilo de Borges como pseudoaristocrático (conservador) e frio. Sem o traço erótico, observa-se, porém, na obra desse autor um narrador (ou um eu lírico) altaneiro, sereno, erudito ao ponto do filosófico e com aparente acesso a descrever até mesmo mundos paralelos possíveis, divergentes em relação à realidade compartilhada como única. Há certa crueldade, posto que essa voz plaina sobre os fenômenos e até sobre o tempo (“La loteria en Babilonia”, “La biblioteca de Babel”), indiferente às dores e contradições ao redor, etos que se completa com a consciência arquitetante e filosofante que não se ilude diante do que a maioria toma por realidade. Mesmo quando há premência do narrador-protagonista envolvido em uma trama que passeia por vários tempos e deve retornar ao presente (“Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, “El jardin de senderos que se bifurcan”, “Deutsches Requiem” etc.), não apenas a erudição, mas também o tom frio e cerebral comanda o ritmo geral da narração. Eis um afastamento que mimetiza o aristocratismo erudito vigente na Europa por séculos. Foi o que Paul de Man notou:

The least inadequate literary analogy would be with the eighteenth-century conte philosophique: their world is the representation, not of an actual experience, but of an intellectual proposition. One does not expect the same kind of psychological insight or the same immediacy of personal experience from Candide as from Madame Bovary.36

Beatriz Sarlo defendeu que se veja a obra de Borges integrando as orillas (bordas, limites) entre “Europa e América Latina, livros e caudillos ou compadritos, seus ancestrais ingleses e seu sangue criollo” (Sarlo, 1993, 47). Um Borges intrinsecamente criollo pode conviver com o europeizado aristocrata das letras; porém

...como seus ancestrais, que forjaram uma amizade com os pampas, Borges tinha perdido sua ligação “natural” com a Europa. Embora tendo sido educado em Genebra e sendo amigo, em Madri, dos escritores ultraístas (...), embora repetidamente tenha apontado que os primeiros romances que leu em criança (...) estavam em inglês, Borges só poderia ter sentido o problema de uma cultura que foi definida como europeia mas que não o era completamente, pois se desenvolvera num país periférico e se misturara ao mundo criollo. (Tradução nossa, 35-36).

Contra os modernistas e os ultraístas, Borges buscará os “enredos perfeitos” de Kipling ou Stevenson, que “serviam de modelos para uma disciplina estética destinada a rejeitar a natureza caótica e desorganizada da realidade como era imitada pela literatura realista” argentina e latino-americana (Sarlo, 1993, 50-51). Como se sabe, tais autores, e outros anglo-saxões, têm débito com Edgar Allan Poe, mestre do assombro e dos “perfect plots” fantásticos e também detetivescos37. A questão de uma intertextualidade cerebrina - a invenção de uma erudição ficcionalizada - imbrica-se ao próprio enredo; não há lugar para erotismo, a tensão vem de elementos do intelectualismo e da altaneria de um pseudo-europeu com acesso até mesmo aos bastidores da cultura eurocêntrica. Isso é possível por conta das descobertas então recentes da física, do advento do pós-colonialismo e até da arqueologia de movimentos contestadores da Igreja Católica, como os gnósticos - Borges temperará suas tramas com uma espécie de imersão no “mundo (europeu) pelo avesso”, a partir da Argentina não mais (mas ainda...) eurocêntrica.

O narrador indiferente lida com questões mais abstratas - afronta o humanismo pela via do assombro diante da vacuidade do real (Borges foi acusado de niilismo por críticos como A. M. Barrenechea) e, espantosamente, vive a idear filosofias e até mundos alternativos. Além disso, busca em símbolos pré-modernos (o horror diante do espelho e da duplicidade do eu, o labirinto, a ideia de eternidade) a forma de se afastar olimpicamente da tarefa do escritor moderno de expor e experimentar a subjetividade de seus personagens. Contra o novo espírito pragmático, o narrador indiferente, de um impossível ponto de Sírio, onde as contradições se igualam, lida sem otimismo com fortíssimas tensões subsumidas no próprio comportamento (aparentemente) sereno da elite. Outra vez se vê a tensão entre o voltairismo e os moralistas e autores de manuais de cortesania dos séculos XVI e XVII.

Em vez da “pena da galhofa” ou da sátira, a secundar o cinismo sereno (clássico) de Borges encontramos o assombro (conto de terror, da tradição anglo-saxã), o detetivesco (da mesma tradição) e a erudição ficcionalizada. A seriedade se aproxima da paródia de uma cultura (a europeia) que tentara resolver os aspectos mundanos por meio da escrita, do livro. A figuração do duplo (a ideia do espelho) nos serve de imagem: fantasma perdido (prazerosamente) nos corredores da biblioteca europeia, Borges é assombrado pelo passado europeu - mas também assombra esse passado, revertendo geografia e cronologia. Maneja-o e o altera com mestria, a partir de sua concepção de que a memória refaz o passado38.

Não se trata de analisar contos caso a caso, já que o tom serenamente indiferente (mesmo no assombro...) dos narradores dos contos da fase áurea do escritor (digamos, Ficciones, El Aleph, Otras inquisiciones e El Hacedor) é amplamente conhecido. Terminemos, portanto, apenas com alguns poemas (gênero iniciado antes dos contos, e que manteve até o fim), como “La pesadilla”, do livro La moneda de hierro, uma pérola a esse respeito (Borges, 1989b, 126). Dir-se-ia que o cinismo de Borges é serenamente cruel apenas na medida da liberdade de dispor dos textos do passado pré-moderno, mas não no tratamento dos temas. Em Borges, a crueldade fica sublimada na serenidade ou indiferença de temas afastados da realidade, com narradores de fria erudição. É a posição irônica e nostálgica não quanto às instituições humanas (como Voltaire), mas quanto a toda a tradição livresca pré-moderna europeia, com direito a elogio da literatura norte-americana, com Poe, Lovecraft e Hawthorne, reforçando a tensão entre margem e centro (Europa)39. No ensaio “Nathaniel Hawthorne”, Borges explicita sua busca do nível abstrato a superar a moralidade:

Hawthorne, aquí (no contoEarth's Holocaust”), se ha dejado arrastar por la doctrina cristiana, y específicamente calvinista, de la depravación ingénita de los hombres y no parece haber notado que su parábola de una ilusoria destrucción de todas las cosas es capaz de un sentido filosófico y no sólo moral. (Borges, 1989a, 679)

Note-se que a defesa da ficção literária como sonho, comum em Borges e, no caso desse ensaio, amparada na citação de Jung, parece remeter a uma concepção sua da excelência artística no ponto abstrato onde a moral desaparece em prol de certa “álgebra singular y secreta” dos sonhos, nos quais também o tempo é não cronológico e acolhe tanto a ideia arcaica de eternidade quanto um tempo do espírito no qual “...un gran escritor crea a sus precursores. Los crea y de algún modo los justifica” (Borges, 1989a, 168). Também no campo temporal Borges parece buscar uma concepção alternativa à modernidade e, portanto, nem progressiva, nem linear do tempo40. É como se sua libertação dos parâmetros da modernidade e seu mergulho no arcaísmo da literatura ocidental41, a imbricar erudição e ficção, o liberassem para invadir a biblioteca autocentrada da tradição europeia e, ali, reler aquela mesma tradição - relê-la com ironia, simulando respeito para em seguida poder adentrar seus desvãos secretos, inclusive os gnósticos42.

Em vez da indiferença apenas moral do libertino, Borges traz personagens e/ou narradores que passaram por experiências iniciáticas ligadas à incursão em mundos que apenas semelham ser o nosso, mas que se revelam alternativos, paralelos, nem que seja por justificativa (pseudo)física (“Jardin de senderos que se bifurcan”). O espelho seria a alegoria mínima dessa duplicidade de cosmos. A facilidade com que tais personagens e/ou narradores lidam com questões filosóficas ou teológicas já indica o ponto de Sírio de onde podem falar. Em textos como “Nathaniel Hawthorne” fica claro que, para além do terrífico, há a indiferença cosmológica de deuses e de sonhos, com sua álgebra própria. Portanto, a ideia da construção de mundos paralelos, que é intrínseca à ficção43, integra o próprio enredo, como se ele se ancorasse numa possibilidade humana de criação de (e acesso a) mundos divergentes (que, segundo T. Pavel, vem da muito arcaica bipartição entre sagrado e profano) (Pavel, 1986). Trata-se de autor que usa o legado ocidental de abstração (metafísica/teologia) como matéria ficcional, criando a ambiguidade (talvez inédita) de narrativas ficcionais em forma de ensaio - sem deixar de assinar ensaios propriamente ditos.

Mas terminemos nos referindo à poesia de Borges, cujo eu lírico mantém um tom sereno e abstrato, pseudo-passadista e pseudo-europeu, na mesma linha dos narradores. Indiquemos poemas como “Edgar Allan Poe”, sobre a questão do terror da (e na) literatura, ou “Baruch Espinoza”, sobre filosofia e a geometria de Deus. E citemos o poema “La pesadilla”, onde se vê um rei antigo, nórdico (a Europa extrema...), com olhar indiferente, impassível, “metafísico” e... cego - o tema do duplo Borges, também presente na ideia de “espelho”, no verso seguinte desse poema44, bem como em poemas como “El espejo” (Borges, 1989b, 126). Ele impõe ao poeta “su antaño y su amargura”, sonha-o e julga-o, com olhar frio e metafísico. No final, o dia (a vigília) entra na noite (o sonho) e... “No se ha ido”. Borges a um só tempo admirou, incorporou e lutou contra o fantasma Europa, capaz do olhar mais indiferente e, portanto, mais frio e abstrato e, no entanto, também, para ele, mais amplo e cosmológico, embora de difícil acesso no mundo antimetafísico da modernidade.

Na América Latina, Machado e Borges se destacam pela indiferença diante das mazelas, visitando, de forma irônica e iconoclasta, a pré-modernidade europeia. É estratégia fina e enviesada, sem iludir-se com uma (impossível) falta de mediação estética. Em suas obras, não atacam direta e nomeadamente as dimensões da realidade social dada - a qual, para os dois escritores, constituiu-se não apenas como “dada”, mas também como sonhada, projetada, reconstruída, reerigida ficcionalmente, a partir do olhar da margem.

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Notas

1 A crítica aos termos “clássico”, “classicista” e “classicizante” é extensa no meio acadêmico. Para os objetivos deste estudo, digamos que seu uso integra uma tradição de assim nomear estilos e gêneros relacionados aos preceitos que têm como esteio, na Antiguidade, tanto o Aristóteles da Poética, quanto o Horácio da Ars poetica. Mas sabemos que essas (e muitas outras) obras de regragem das belas-letras antes da reviravolta do século XVIII não definem nenhuma homogeneidade total, entre o mundo greco-romano antigo e o Antigo Regime derrubado em 1789-93. Portanto, na linha de autores como Marc Fumaroli e Jules Brody, usamos o termo para nomear a tendência geral - hegemônica, mas nunca homogênea - que imperou na Antiguidade a partir da Poética aristotélica, foi obnubilada na Idade Média e retornou com grande repercussão na Europa do Renascimento até o século XVIII. Como se sabe, foi uma tendência geral ligada também à tradição da retórica, arraigada na Antiguidade e de imensa influência ao longo de vários séculos, até sua desvalorização tardia, no século XIX, com o advento do romantismo. Por fim, tal tendência geral submetia a poesia e as belas-letras em geral a preceitos de gênero, de temática (mitos ligados a deuses e histórias ligadas a reis príncipes etc.), de unidades de tempo e lugar, de mímese e de coerência na concatenação de ações, bem como a conceitos retóricos (agudeza, écfrase, emulação, a trinca ethos-pathos-logos etc.) que, não tendo sido homogênea e fielmente obedecidos, serviram, no entanto, como pano de fundo geral a pressionar com sua régua o fazer poético. Uma característica central dessa tendência multissecular que se percebe tanto em Machado quanto em Borges é uma sobriedade (mais cômica em Machado) que se confunde com indiferença diante das disputas do dia a dia, bem como diante do tempo e da contingência em geral, remetendo às ideias de eternidade (temporalidade universal) e transcendência, termos mais comuns em Borges, mas exacerbados em romances de Machado como Memórias póstumas de Brás Cubas, dada a situação de já falecido do narrador, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, dados o tema da velhice e a indiferença pseudo-aristocrática do Conselheiro Aires, que aparece nas duas obras. Quanto a Borges, cremos que o tom metafísico-transcendente é conhecido, mas a título de exemplo, citemos, desde Fervor de Buenos Aires, um poema como “Final de año”, para não falar na reflexão irônica do tempo em contos ou ensaios como “Historia de la eternidad”, “El tiempo circular”, “El jardín de senderos que se bifurcan”, “Pierre Menard, autor del Quijote”, poemas como “La noche cíclica”, “Del infierno y del cielo” etc. Como se sabe, o tema do tempo cíclico e da eternidade é muito recorrente na obra de Borges.
2 Os que citaremos serão Antonio Candido, Alfredo Bosi, Paul de Man, Davi Arrigucci Jr., Beatriz Sarlo e Roberto Schwarz.
3 Tendo sido estilos inaugurais da modernidade, romantismo e realismo foram referências epocais de Machado de Assis, que os praticou, mas na maturidade se afastou de ambos (apesar da classificação, um tanto sucinta, de “realista” dada por alguns críticos a seu estilo). A nosso ver, o novo narrador interveniente e digressivo criado a partir de 1881, um narrador típico do século XVIII europeu, que trazia em si uma síntese da postura classicizante, deixa claro tal afastamento em relação ao narrador onisciente típico do realismo. No caso de Borges, há uma tensão entre um autor que surge na cena e as vanguardas dos anos 1920-30, na Argentina. Sua deriva singularizadora se dá pela via de um narrador e de um eu lírico classicizante, cuja sobriedade e gosto por temas elevados (da metafísica aos jogos de erudição bibliográfica) contrastam com as lutas estéticas e ideológicas da época, dos novos formalismos às ideias políticas. Trata-se, nesse caso, de ir contra até mesmo um modo de narrar nacionalista e ao estilo “cor local”, que Borges praticou em suas primeiras obras, retomando-o em livros como O informe de Brodie (1970).
4 Apontada, por exemplo, por em “Esquema de Machado de Assis”, in: Candido, 1995.
5 Como se sabe, Borges construiu certa automitologização fora das obras. Foi o caso do repúdio em republicar livros do início da carreira ou o veto a traços de emotividade pessoal ou a dedicatórias, que desaparecem das reedições de algumas de suas obras.
6 Sua obsessão pela metafísica clássica é o símbolo máximo dessa incorporação no campo da filosofia.
7 Nos primeiros anos, críticos como Gómez de la Serna, Valéry Larbaud ou P.H. Ureña acolhem bem a obra do jovem Borges.
8 Referimo-nos, no caso, a personagens de peças de teatro, de contos ou de romances dos países e séculos referidos, e não aos ditos libertins érudits, denominação dada a escritores ou filósofos seiscentistas franceses de perfil antirreligioso e neoepicurista, como Gassendi e Cyrano de Bergerac. Cf.: Adam, Antoine. Les libertins au XVIIè siècle.Paris: Éditions Buchet/Chastel, 1964; Pintard, René. Le libertinage érudit dans la première moitié du XVIIè siècle. Genebra/Paris: Slatkine, 1983 (1943). Do mesmo modo, a denominação generalista da Igreja do século XVII, libertins, em geral denominando ateus e materialistas, não vem ao caso no presente estudo.
9 A obra de Sade, que chega até os anos 1810, é considerada ao mesmo tempo o paroxismo e o fim do romance de libertinagem. Trousson, Raymond. Romans libertins du XVIIIè siècle. Paris: Robert Laffont, 1993.
10 Dois exemplos a serem citados adiante neste trabalho: a traição entre amigos, no conto “Almas agradecidas”, e a velhice assexuada, no “D. Paula”.
11 Sá Rego, Enylton de. O calundu e a panacéia. Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
12 Spitzer, Leo. “Quelques interpretations de Voltaire”. In: Études de style. Paris: Gallimard, 1970 (1931); Auerbach, 1994, 368 e sqq.
13 A filosofia das Luzes e as metamorfoses do espírito libertino, In: Prado Jr., 2008.
14 Tal visão geral da obra do autor foi apontada por Antonio Candido, como lembramos na nota 4, acima.
15 Apenas indicamos que há experimentalismo formal tanto em Sterne como nas vanguardas, embora as motivações conjunturais sejam totalmente diversas, é claro. No século XVIII, sem prestígio cultural, o romance é campo de experimentação assim como no XX, das vanguardas e da crise dos modelos estéticos do século anterior. Hélio de S. Guimarães inclui até a teoria de Wolfgang Iser sobre a não-linearidade e os hiatos na narrativa para apontar que a obra de Machado é uma inusitada precursora desse tipo de procedimento, que se tornaria comum a partir das vanguardas do século XX. Guimarães, 2004, 41-46; 247-262; 274-281.
16 O termo surge na epígrafe “Ao leitor”, de Memórias póstumas de Brás Cubas, quando o narrador define o romance: “Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo”. (Assis, 1977).
17 Vê-se, pelo próprio movimento das últimas frases, que o termo “periferia” é sempre precário para descrever fenômenos culturais amplos no tempo e no domínio simbólico, como é o caso da leitura de romances, contos etc. Se Machado e Borges, numa visada macroeconomicista, escreveram e publicaram suas obras em economias ditas periféricas em relação a um suposto centro da produção e da apropriação mundial da riqueza, seus “produtos” estéticos têm um ritmo, uma geografia e um dinamismo no tempo que ultrapassa essa binaridade centro-periferia. Entre as duas obras, a de Borges pôde usufruir com maior rapidez desse dinamismo, já que foi um autor da segunda metade do século XX.
18 Basta lembrar o Don Juan de Tirso de Molina, de 1613, adaptado para a França por Molière, em 1665, e para o teatro da Restauração inglesa (pós-1660).
19 Não entramos, aqui, na outra face desse personagem que, na história literária, se transformará, para além do desaparecimento do gênero “romance de libertinagem”. Pois, se com Stendhal, Byron e mesmo Kierkegaard (Cartas de um sedutor) ele ainda guarda o sabor da época de Laclos, na literatura, e de Casanova, na seara das memórias, ele possui elementos passíveis de ser incluídos em um personagem burguês pragmático: o individualismo, o cerebralismo, o cálculo dos interesses até na seara erótica etc.
20 Tais características são apontadas como fundamentais do narrador machadiano por críticos como R. Schwarz (que fala da “volubilidade” de classe do narrador) e J. Gledson (que propõe a ideia do “narrador enganado e enganador”). Schwarz, 1991; Gledson, John. Machado de Assis - Impostura e realismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 (1984). Concordamos com a definição de “narrador enganado e enganador” que Gledson vê em Dom Casmurro. Mas acrescentemos que, no limite - e seus últimos romances o mostram -, Machado tende a um ideal de indiferença dir-se-ia clássica, ou melhor, à moda dos já citados moralistas do século XVII francês. Uma indiferença entre os contrários que dá ao narrador uma espécie de crueldade serena, de ironia anti-humanista que, aliás, tem no próprio “Humanitismo” uma excelente metáfora: o mais idealista de seus personagens loucos, Quincas Borba, é autor de uma filosofia da imanência dos sentidos (dir-se-ia de corte libertino), que ataca qualquer esperança de universalismo condescendente com os atos humanos. Voltaremos ao tema adiante.
21 “Heterodoxamente clássico”, aqui, significa: um narrador sereno, equilibrado, nos poemas de Borges um eu-lírico respeitoso da métrica e da rima, indiferente à agonística concreta da vida, mas cínico, já que ligado a uma tradição da sátira (paródia e ironia). Cremos que uma diferença em relação ao narrador de Machado é o recurso, em Borges, ao fantástico e a uma pseudo-erudição que esconde seu matiz paródico. Uma chave de entendimento do impacto desse narrador seria o peso do romantismo na tradição anglo-saxã, que constituiu a formação de Borges (pois a literatura fantástica surge no movimento romântico, a apontar para os desvãos perigosos da subjetividade humana recém-valorizada). O racionalismo entre o moralismo seiscentista e a criticidade moderna comparece na forma do tom pseudo-ensaístico - a ironia estando exatamente nesse “pseudo”, já que se trata de uma sofisticada paródia do ensaísmo de pretensões científicas, embora se apresente em tom sério (ao contrário de Machado). Uma pista para se prosseguir nessa via de análise é a obra de Horácio Quiroga (1897-1937), uruguaio autor de obras de horror fantástico, na trilha de Edgar Allan Poe. (Rocca, Pablo. “The short story in the works of Machado de Assis and Horacio Quiroga: A material aesthetic?” In: The author as plagiarist. The case of Machado de Assis. Dartmouth: University of Massachusetts Dartmouth, 2006, 525-538).
22 Silviano Santiago relaciona, de forma interessante, a posição periférica do escritor latino-americano com a obrigação ou a ambição de inserir-se no movimento mundial da literatura, sem deixar de refletir, em sua escrita, as contradições da realidade de seu continente e, de quebra, ainda empreende um combate próprio (Santiago, 1971). De Beatriz Sarlo (1993) a Robert Fiddian (2017), muitos já analisaram aspectos ligados à tensão constitutiva de Borges por escrever na periferia da cultura eurocêntrica.
23 Hours, Bernard. Louis XV et as Cour. Paris: PUF, 2002; Elias, Norbert. A sociedade de corte. Lisboa: Estampa Editorial, 1972.
24 Lawner, Lynne. As cortesãs do Renascimento. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
25 “Introdução”. In: Castiglione, Baldassare. O cortesão. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
26 Hours, Bernard, op. cit., 15-61.
27 Citamos a seguir algumas obras que tratam da constituição do romance de libertinagem e do personagem do libertino na França do século XVIII: Trousson, Raymond. “Préface” e “Introduction”, in: Romans libertins du XVIIIè siècle. Paris: Robert Laffont, 1993; Wald Lasowski, P. Romanciers libertines du XVIIIè siècle. Paris: Gallimard, 2000; Perrin, J.-F. e Stewart, Philip. (org.). Du genre libertin au XVIIIè siècle. Paris: Desjonquères, 2004; Delon, Michel. Le savoir-vivre libertin. Paris, Hachette, 2000; Goldzink, Jean. À la recherche du libertinaje. Paris: L’Harmattan, 2005; Goldzink, Jean. Le vice en bas de soie. Paris: José Cortí, 2001; Cazenobe, C. Le système du libertinage de Crébillon à Laclos. Paris: SVC, 1991; Reichler, Claude. L’âge libertin, Paris: Éditions du Minuit, 1987; Hartmann, Pierre. Le contract et la seduction. Paris: Honoré Champion, 1998; Novaes, Adauto (org.). Libertinos, Libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; Barros, André Luiz. Sensibilidade, coquetismo e libetinagem. São Paulo, Alameda Casa Editorial, 2019; Prado, Raquel de Almeida. Perversão da retórica e retórica da perversão. São Paulo: Editora 34, 2000.
28 Com a frase quero concordar com Raymond Trousson quando ele aponta no libertino um personagem que espelhava um tipo social idealizado, caro aos nobres do século XVIII. “Introduction”. Trousson, Raymond. Romans libertins du XVIIIè siècle. Paris: Robert Laffont, 1993.
29 Se, como se indicou, em “Pílades e Orestes” o tema da indiferença moral diante do sofrimento alheio (indiferença que aproximo, aqui, do aristocratismo) e a busca do interesse próprio sem atenção à dor do outro, inclusive de amigos, é o núcleo da trama, em “A causa secreta” a questão da indiferença se liga à do gozo diante do sofrer alheio. Trata-se, como se sabe, de tema central na obra do Marquês de Sade, em momento de radicalização paroxística do gênero, na França de fins do século XVIII. A questão do erotismo aparece (na atração de Garcia pela mulher de Fortunato), mas é secundária. Fica patente que o gozo de Fortunato está em simplesmente testemunhar o sofrimento alheio, infligido ou não por ele.
30 Denon, Vivant. “Por uma noite”. In: Na alcova. Três histórias licenciosas. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, 67-96.
31 Antonio Candido une o traço da ganância ao da obtenção e manutenção do prestígio e da reputação sociais, depois de destacar a filiação de Machado aos “...ironistas do século XVIII”, bem como “...seu gosto pelas sentenças morais, herdado dos franceses dos séculos clássicos”. Eis o trecho, incluído na passagem em que Candido aponta o que acredita ser um forte motivo da força da obra do escritor: “Pela sua obra toda há um senso profundo, nada documentário, do status, do duelo dos salões, do movimento das camadas, da potência do dinheiro”. Candido, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. In: Vários escritos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1995, 37. Alfredo Bosi busca a constituição do olhar (e da biblioteca) de Machado ancorado na tradição, e encontra, entre outros, os moralistas franceses, de Pascal a Vauvenargues. Machado de Assis: O enigma e o olhar. São Paulo: Martins Fontes, 2007, 165 e seq.
32 Nos contos por nós destacados tal narrador cínico aparece ao lado dos personagens mais ou menos cínicos.
33 Arrigucci Jr., 1999, 283. Roger Chartier indica uma origem seiscentista do conto filosófico em seu ensaio “Livres parlants et manuscrits clandestins. Les voyages de Dyrcona”, no qual trata do libertin érudit Cyrano de Bergerac. Chartier, Roger. Inscrire et effacer. Culture écrite et littérature (XIé-XVIIIè siècle). Paris: Gallimard/Seuil, 2005, 101-125.
34 Trata-se de um estágio do que N. Elias chamou de “processo civilizador”: a aristocracia europeia criava para si padrões de sofisticação no trato e na conversa. Elias, Norbert. O processo civilizador. Volume 2. Formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 (1939).
35 Como se sabe, “arte da persuasão” é uma definição possível de “retórica”.
36 De Man, Paul. “A Modern master”. In: New York Review of Books. 19/10/1964. Acesso em 20/02/2020: https://www.nybooks.com/articles/1964/11/19/a-modern-master/ .
37 Além de Poe, é preciso lembrar da admiração da singularidade de Horácio Quiroga, como já citado na Nota 19, acima.
38 Tal ideia é expressa em textos como o famoso “Kafka e seus precursores”, ou no ensaio-ficção “El falso problema de Ugolino”, no qual simula intervir num debate de mais de 600 anos sobre alguns versos de Dante, e diferencia o tempo literário do real.
39 O próprio Borges, no ensaio citado logo adiante, escreve, atacando a tendência exclusivamente realista das literaturas em idioma espanhol e defendendo a capacidade por parte dos escritores da tradição anglo-saxã de criar fantasias apartadas da dita realidade: “Éstas (as letras da América do Norte) (como las de Inglaterra o las de Alemania) son más capaces de inventar que de transcribir, de crear que de observar”. (Borges, 1989a, 684).
40 Um poema como “La Trama” relaciona essa secreta álgebra cosmológica à ideia de tempo cíclico ou não-linear. Já “Yesterdays” inclui o tema da divisão do eu e do abismo da memória, também ligada a um tempo fora da cronologia moderna. São dois exemplos entre muitos. (Borges, 1989b, 312-313).
41 Lembremos de algumas citações desse texto: o Siglo de Oro de Quevedo e as obras de Plotino, de São Paulo, de Dante, de Cervantes e de tantos outros em sua “máquina de citações” (com prolixidade semelhante à de Machado), bem como as imagens magicamente pré-modernas do espelho, do labirinto ou do livro infinito, do duplo Borges etc.
42 Machado adentra essa mesma biblioteca com a “pena da galhofa”, ou seja, da sátira e com ceticismo, em vez de gnosticismo. Quanto a Borges, no ensaio sobre Hawthorne, ele destaca que mesmo indo para a Europa, o escritor norte-americano se manteve em essência provinciano (nasceu em Salem e, como lembra Borges, tinha os famosos queimadores de bruxas como familiares ancestrais). A observação nos faz lembrar do salto do próprio Borges a partir de temas locais argentinos em direção ao cosmopolitismo europeizado que o tornou famoso mundialmente, aportando no que chamamos de certa ousada ironia na ressignificação de conceitos e imagens poéticas arcaicas europeias a partir da margem argentina.
43 Lembremos dois autores que trataram do fato teórico que indica a ficção como possibilidade (no caso da literatura, linguística e imaginativa) de criar mundos: o filósofo Nelson Goodman (2006) e o teórico da literatura Thomas Pavel (1986). Devo a Ivan Pinto, amigo e professor, a indicação dessa via de análise da obra de Borges, além da ideia de que mesmo para a física enquanto ciência o espelho é um problema insolúvel, já que inclui a possibilidade de medição de distância (pseudo-física...) no campo da imagem espelhada (o mundo duplicado pela imagem especular, de que fala Borges).
44 Citemos a parte final do poema e a referência a “espejo”: “¿De qué apagado espejo, de qué nave/ de los mares que fueron su aventura,/ habrá surgido el hombre gris y grave/ que me impone su antaño y su amargura?/ Sé que me sueña y que me juzga, erguido./ El día entra en la noche. No se ha ido.”

Autor notes

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