Resumo: Realiza-se uma revisão sistematizada da literatura específica sobre gênero publicada na Revista Tempos e Espaços em Educação no período de 2014 a 2019. A ênfase se deu no processo metodológico que produziu os diferentes resultados encontrados nos estudos segundo a metodologia de revisão sistematizada. Verificou-se, a partir da seleção de variáveis e de critérios de inclusão/exclusão, que a literatura específica sobre gênero publicada no referido periódico sugere significativa ampliação na produção científica dos estudos de gênero, contribuindo para a desestabilização de normatizações, classificações e hierarquizações no campo da educação.
Palavras-chave :Gênero. Revisão sistematizada. Revista Tempos e Espaços em EducaçãoGênero. Revisão sistematizada. Revista Tempos e Espaços em Educação.
Abstract: In this article we carried out a systematic review of the specific literature on gender, published in Tempos e Espaços em Educação Journal between 2014 and 2019. The emphasis was on the methodological process that produced the different results found in the studies, based on the methodology of systematic review. Based on the selection of variables and inclusion/exclusion criteria, it was found that the specific gender literature published in Tempos e Espaços em Educação Journal suggests a significant expansion in the scientific production of gender studies, contributing to the destabilization of norms, classifications and hierarchies in the field of Education.
Keywords : Gender. Systematic review. Tempos e Espaços em Educação Journal.
Resumen: Se realizó una revisión sistemática de la literatura específica de género publicada en la Revista Tempos e Espaços em Educação de 2014 a 2019. El énfasis se situó en el proceso metodológico que produjo los diferentes resultados encontrados en los estudios de acuerdo con la metodología de revisión sistemática. Se encontró, con base en la selección de variables y criterios de inclusión / exclusión, que la literatura específica sobre género publicada en esa revista sugiere una expansión significativa en la producción científica de estudios de género, contribuyendo a la desestabilización de las normas, clasificaciones y jerarquías en el campo de la educación.
Palabras clave : Género. Revisión sistemática. Revista Tempos e Espaços em Educação.
Artigos
Os estudos de gênero na Revista Tempos e Espaços em Educação: uma revisão sistematizada
Gender studies in the Tempos e Espaços em Educação Journal: a systematized review
Estudios de género en la Revista Tempos e Espaços em Educação: una revisión sistemática
Recepção: 23 Janeiro 2020
Aprovação: 31 Janeiro 2020
Observamos um crescimento significativo da produção científica sobre gênero e sexualidade na última década em diversas áreas do conhecimento, especificamente no campo da educação. Uma característica que é comum nesses estudos é o fato de sugerirem que a discussão séria sobre esses temas contribui para a desestabilização de normatizações, classificações e hierarquizações (DIAS; AMORIM, 2015; DIAS; OLIVEIRA, 2015; DIAS; OLIVEIRA; SANTOS, 2018; RIOS; CARDOSO; DIAS, 2018).
Perante o volume de estudos que discutem questões de gênero e que são publicados em revistas científicas que têm como foco a divulgação de relatos de pesquisa em Educação, evidencia-se a necessidade de socializar com a comunidade acadêmica da área sínteses que destaquem os avanços e as lacunas teóricas acerca do tema em tela. Dentre as alternativas metodológicas para esse fim, Dias e Amorim (2015) e Dias, Oliveira e Santos (2018) apontam a revisão sistematizada de literatura.
Para esta investigação, tomamos como base de dados a Revista Tempos e Espaços de Educação (REVTEE), em sua versão on-line1, periódico de publicação trimestral editado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe. A REVTEE iniciou em formato impresso no ano de 2010 e a partir de 2014 passou para o formato on-line. Esse periódico se dedica à publicação de artigos acadêmico-científicos, fomentando e facilitando o intercâmbio acadêmico no âmbito nacional e internacional, o qual se dirige a professores, estudantes e pesquisadores das áreas das Ciências Humanas, com ênfase em estudos sobre Educação.
Ao explorar os números e volumes da REVTEE, observamos significativo número de artigos com foco em temas emergentes da relação entre gênero e Educação. Nesse sentido, emergiu o seguinte problema de pesquisa: que avanços e lacunas teóricas acerca das pesquisas com foco em questões de gênero a sistematização de estudos publicados na REVTEE pode revelar? Em face dessa questão, delineamos os seguintes objetivos: identificar a literatura específica sobre gênero na REVTEE; analisar as contribuições dos estudos encontrados para a relação entre gênero e Educação; apontar possíveis lacunas teóricas concernentes a esse tema. Para isso, organizamos este texto em duas partes: a primeira descreve o processo da revisão sistematizada; e a segunda aponta a discussão dos resultados encontrados.
A revisão sistematizada de literatura consiste numa abordagem de pesquisa que vem sendo explorada com mais frequência nos últimos dez anos, em função da necessidade de apontar o que já se produziu a respeito de um determinado tema, bem como “[...] verificar lacunas nesses dados para o direcionamento de novos estudos sobre o tema” (SANTOS; SILVA, 2018, p. 142).
Segundo Silva e Mercado (2019, p. 51), esse tipo de estudo “[...] comumente se baseia na análise de um levantamento que busca aprimorar a compreensão sobre a questão enfocada”. Assim, inicialmente se reúne um conjunto de estudos já publicados sobre o tema em questão e na sequência se procede à sistematização. Ao longo da sistematização, não se “[...] deve apenas levantar informações, mas perceber como essas informações estão sendo usadas” (SANTOS; SILVA, 2018, p. 142).
No campo da Educação, de modo específico, a revisão sistematizada contribui para a “[...] a concentração de resultados de vários outros estudos num mesmo trabalho, aumentando a confiabilidade e revelando o status de um problema de pesquisa” (DIAS; AMORIM, 2015, p. 196). Ante o potencial dessa abordagem de pesquisa, neste estudo optamos por utilizar o planejamento desenvolvido por Cooper (2010), já explorado no campo da Ciência Política (FIGUEIREDO FILHO et al., 2014).
Esse planejamento de pesquisa está organizado em sete etapas: a) identificação e formulação do problema de pesquisa; b) coleção de literatura (neste caso, o levantamento dos artigos na REVTEE); c) coleta de informações de cada estudo; d) avaliação da qualidade dos estudos; e) análise e síntese dos resultados dos estudos; f) interpretação dos dados coletados; e g) apresentação dos resultados.
Para a coleção de literatura, ou seja, a delimitação do material a ser sistematizado, é necessário se definir procedimentos de exclusão/inclusão. Nesta pesquisa, utilizamos os seguintes critérios de exclusão/inclusão: a) o artigo deveria estar publicado na REVTEE no período de 2014 a 2019 (período que o periódico passou a ter sua versão on-line); b) o artigo poderia estar publicado em qualquer idioma; c) o termo “gênero” deveria estar presente no título, no resumo ou nas palavras-chave do artigo.
Definidos os critérios de inclusão/exclusão, realizamos a coleta de informações de cada estudo e avaliamos sua pertinência a partir da consulta aos títulos, resumos e palavras-chave. Uma vez realizada a etapa do levantamento, procedemos à análise, à síntese e à interpretação dos dados coletados, conforme planejamento proposto por Cooper (2010). A apresentação dos resultados e as discussões acerca do material levantado estão dispostas a seguir.
Verificamos 21 edições e 409 artigos publicados no período de 2014 a 2019 na REVTEE. A partir dos critérios de inclusão/exclusão, selecionamos 40 artigos que tinham como foco questões que emergiam da relação entre gênero e Educação. Esse volume de artigos representa cerca de 10% do número total de estudos publicados pela REVTEE no período compreendido para este levantamento. O Quadro 1 apresenta os estudos que foram levantados.


Uma vez definida a coleção de literatura, realizamos, num segundo movimento recursivo, a coleta de informações de cada estudo já selecionado. Nessa coleta, avaliamos os títulos, resumos e palavras-chave (COOPER, 2010). Neste movimento de pesquisa, destacamos as abordagens metodológicas que foram utilizadas com mais e com menos frequência nesses estudos. Como resultado desse procedimento, é possível verificar a categorização indicada no Quadro 2.

O Quadro 2 evidencia uma multiplicidade de abordagens com as quais as questões de gênero têm sido abordadas do ponto de vista investigativo no âmbito dos estudos publicados na REVTEE. No entanto, observa-se que existe uma tendência para a exploração de análise de narrativas, ensaios/pesquisas bibliográficas, pesquisas de campo e pesquisas documentais. Dentre essas, os estudos do tipo ensaio/pesquisa bibliográfica concentram 15 estudos, correspondendo a 37,5% da amostra pesquisada.
Na sequência, realizamos a análise, síntese e interpretação dos estudos. A partir desses movimentos de análise, emergiram as seguintes categorias: a) Gênero e sexualidade como condicionantes da profissionalização dos sujeitos; b) Multiculturalismo e estudos interseccionais; c) Norma de gênero e corpo; d) Contribuições de pensadores/correntes teóricas para os estudos de gênero; e) Concepções acerca da mulher e seu papel social na contemporaneidade; f) Gênero, sexualidade e currículo; e g) Gênero, pessoas com deficiência, infância e família. Discutiremos acerca dessas categorias a seguir.
Dos 40 estudos levantados, quatro (10%) se preocuparam em investigar, de forma central, as implicações do gênero e da sexualidade nos encaminhamentos e percursos profissionais dos sujeitos. Dubet (2018, p. 9), por exemplo, preocupou-se em “[...] explicar o paradoxo de que, apesar das meninas apresentarem melhores resultados escolares que os rapazes, elas se voltam aos cursos menos rentáveis, que as levam a posições profissionais menos favoráveis que a dos rapazes”.
A esse respeito, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na atualidade, as mulheres ganham menos do que os homens em todas as ocupações. Esse dado foi revelado a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD - Contínua) de 2018, que, além disso, destacou que essa discrepância se acentua no caso das mulheres com faixa etária entre 40 e 49 anos, que recebem salários que correspondem a 79,4% dos salários recebidos por homens que ocupam os mesmos cargos que elas (IBGE, 2019).
O incômodo epistemológico emergente da conscientização atinentes às implicações dessa desigualdade social remeteu Pinto, Carvalho e Rabay (2017, p. 47) a analisarem “[...] como as relações de gênero condicionam as escolhas de cursos superiores de estudantes do ensino médio”. A parir desse estudo, esses autores constataram que essa escolha não se dá de forma aleatória, mas condicionada pelas múltiplas variáveis que definem papéis sociais específicos para as mulheres e papéis sociais específicos para os homens.
Sarat e Campos (2014, p. 45) analisaram as “[...] trajetórias de duas professoras de Pedagogia de uma universidade pública localizada no interior da Região Centro-Oeste”. A partir dessas análises, as autoras buscaram compreender como essas professoras universitárias “[...] vivenciaram/construíram concepções de gênero e sexualidade nas diversas relações interpessoais, nos espaços privado e público, uma vez que foram educadas e cuidadas para corresponderem aos comportamentos ‘ditos’ de meninas” (SARAT; CAMPOS, 2014, p. 45).
Quando a questão da condição feminina se assoma à uma orientação sexual declaradamente desviante da norma, o que se observa é a combinação de dispositivos socialmente excludentes. Nesse sentido, França e Ferrari (2016, p. 41) se preocuparam em problematizar as formas pelas quais os/as professores/as vão se constituindo como docentes homossexuais e discutir como esses/as “[...] vão se produzindo nas relações de poder, nas relações com o outro e, sobretudo, como se relacionam com os sujeitos e com a instituição escolar”.
A desigualdade de gênero entre homens e mulheres, evidenciada por estudos como os de Dubet (2018), Sarat e Campos (2014) e Pinto, Carvalho e Rabay (2017), numa sociedade machista, caminham pari passu com a luta para que os sujeitos que manifestem qualquer comportamento que seja associado à uma sexualidade desviante sejam paulatinamente excluídos e marginalizados. O estudo de França e Ferrari (2016) evidencia as dificuldades e a luta diária para que professores/as declaradamente homossexuais possam ascender e se manter nessa profissão.
Numa segunda linha de investigação, é possível agrupar os estudos de Eugênio e Lima (2015), Ferreira (2014), Kaplan e Xavier (2018), Rodrigues e Faro (2019), Silva (2014), Silva Junior e Ivenicki (2019) e Souza (2014). Sete estudos compõem essa categoria, o que representa 17,5% dos estudos levantados. Esses compartilham a preocupação com as implicações que as intersecções de marcadores sociais como gênero, raça, religião ou classe social trazem para o desenvolvimento dos sujeitos.
Estudos como os de Ferreira (2014), Silva (2014) e Souza (2014) se constituem em ensaios teóricos que investiram esforços em chamar a atenção para as características da sociedade em que vivemos e na qual questões de diferença, desigualdade, identidade, raça, classe, gênero, religião marcam a construção da identidade dos sujeitos, dentre os quais os homens. Nesse sentido, Silva Junior e Ivenicki (2019, p. 125, grifo nosso) enfocaram “[...] como o multiculturalismo pode oferecer subsídios para tematizar questões de sexualidades, raça, masculinidades e classe social em sala de aula”.
Dentro de uma abordagem contemporânea e lançando luzes a um lócus de pesquisa educacional pouco explorado, Rodrigues e Faro (2019) buscaram compreender os processos não escolares que contribuem para a elaboração identitária das filhas e filhos de santo da Orixá Iemanjá. Nesse caso, o trabalho aponta para campos de pesquisa que transcendem o escopo das instituições de ensino formal, mas nos quais há mecanismos que suportam o desenvolvimento, a aprendizagem, a formação e a liberdade dos sujeitos.
Kaplan e Xavier (2018 p. 111) buscaram “[...] compreender as diversas infâncias existentes”. Para isso, tomaram as narrativas autobiográficas de mulheres negras de três países (Brasil, Argentina e Uruguai) sobre suas infâncias. Ao darem voz às mulheres negras, os autores passam a legitimar epistemologias singulares e pouco tradicionais no campo da pesquisa em Educação e da ciência em geral. Num movimento contrário, Eugênio e Lima (2015) evidenciaram, a partir da análise de conteúdos de livros didáticos de História dos anos iniciais do ensino fundamental que tratam sobre as questões do povo negro, que aqueles que falam sobre esse tema o fazem desde uma visão adro e eurocêntrica.
O que se evidencia dessas sínteses é a necessidade de se subverter essas epistemologias, em favor de que os sujeitos possam dizer a sua palavra (FREIRE, 2018). A educação, como ferramenta de empoderamento, está profundamente ligada à maneira como ela é concebida e oferecida, nesse sentido, evidencia-se a urgência da hegemonização de uma educação libertadora, de uma educação como prática de liberdade (HOOKS, 2013).
Estudos como os de Almeida (2017), Anjos e Cardoso (2014), Cardoso (2019), Dias (2014), Dias et al. (2017), Galak (2017), Guzzi (2019) e Thürler e Santos (2014) se preocuparam em problematizar as normas sociais que regulam os corpos e os oprimem de tal maneira que aquelas/es que ousam desobedecê-las podem pagar com suas próprias vidas. Esses sete estudos representam 17,5% do total de artigos levantados.
Quando tratamos das questões de gênero e sua relação com a concepção de corpo, estamos tratando também da concepção de norma. Tais normas se apresentam nos adereços mais comuns, como destacado por Almeida (2017, p. 9), que percebeu o “[...] uniforme escolar como um aspecto essencial para se compreender o universo escolar e a cultura que o sustenta e o define”. O uniforme escolar é apenas um dos inúmeros dispositivos de controle utilizados para padronizar os corpos, como nos chama a atenção Guzzi (2019) ao analisar o filme 21 Gramos, lançado em 2003 e dirigido pelo diretor mexicano Alejandro González Iñárritu. Também na perspectiva da análise fílmica, Anjos e Cardoso (2014) analisaram o filme Hanami – Cerejeiras em Flor, lançado em 2007 e dirigido por Doris Dörrie, e problematizaram a estabilidade das normas discursivas do “sexo”.
Cardoso (2019, p. 322) ressalta que “[...] há um processo de produção de mecanismos de normalização, onde há a separação de indivíduos ‘normais’ e ‘anormais’”. Dentre as instituições nas quais esse processo é mais visível, destaca-se a escola. Essa é uma das principais “[...] instituições que atuam para a produção do sujeito moderno, do sujeito normalizado, a partir dos procedimentos disciplinares presentes nela” (CARDOSO, 2019, p. 322). Assim, a educação assume papel primordial. Essa, como parte de uma sociedade que discrimina, produz e reproduz desigualdades de gênero, constitui-se em um espaço generificado e, por isso, pode reproduzir a norma ou contribuir para subvertê-la.
A norma do gênero se expressa com mais clareza quando tomamos como exemplo o caso da disciplina de Educação Física. Segundo Donato e Tonelli (2019, p. 49), “[...] através das práticas de saber e poder da Educação Física sobre o corpo, ocorre uma de-subjetivação, dentro da qual condutas, comportamentos e hábitos acabam sendo naturalizados” Nas atividades desenvolvidas nas aulas de Educação Física é bastante comum a separação entre meninos e meninas. Esse tipo de segregação se pauta na concepção de que cada sexo tem suas atividades mais apropriadas. No limite, o que se obtém é um modelo que opera no sentido de “[...] educar os corpos de meninos e meninas para produzirem as diferenças” (DIAS, 2014, p. 105).
Nesse sentido, acerca dessa preocupação com a regulação dos corpos e da produção dessas diferenças, autores como Dias et al. (2017), Galak (2017) e Thürler e Santos (2014) investiram seus esforços em ensaios teóricos e pesquisas documentais para apontar alternativas de subversão da norma de gênero na busca por uma educação libertadora (FREIRE, 2018), uma educação que se expresse genuinamente como prática de liberdade (HOOKS, 2013).
Dentre os estudos levantados, chamou-nos a atenção a preocupação dos autores em tomarem como objetos de estudo pensadores ou correntes de pensamento que têm contribuído para o avanço dos estudos das questões de gênero. Quanto a essa categoria, podemos mencionar estudos como os de Becker e Oliveira (2016), Cardoso (2019), Cruz (2014), Dias e Menezes (2018) e Silva Junior e Ivenicki (2019). Trata-se de cinco estudos que representam 12,5% do total de artigos levantados.
Nessa categoria, é possível destacar o estudo de Cardoso (2019, p. 319), que tomou como objeto “[...] a contribuição da teorização de Michel Foucault para a discussão sobre gênero, sexualidade e educação”; o estudo de Silva Junior e Ivenicki (2019, p. 125), que investigaram “[...] como o multiculturalismo pode oferecer subsídios para tematizar questões de sexualidades, raça, masculinidades e classe social em sala de aula”; o estudo de Dias e Menezes (2018, p. 37), que problematizaram “[...] as potencialidades de uma pedagogia e um currículo queer na escola”; o estudo de Becker e Oliveira (2016, p. 163), que investiram na desconstrução da categoria gênero presente na Lei Maria da Penha, “[...] no sentido deleuziano/guattariano”; bem como o estudo de Cruz (2014, p. 15), que investigou uma “[...] epistemologia feminista à ciência e à pesquisa nas ciências humanas e sociais, particularmente na área da educação”.
O investimento dos autores desses estudos convergiu no sentido de produzir um corpo teórico capaz de dar conta dos fenômenos emergentes das relações entre gênero e Educação no sentido de uma educação libertadora (FREIRE, 2018; HOOKS, 2013).
Para a composição dessa categoria, contribuíram os estudos de Araújo e Barros (2017), Canotilho, Araujo e Oliveira (2014), Carvalho et al. (2017), Morais e Carvalho (2015), Sarat e Campos (2014), Porto e Galvão (2016), Santos e Feldens (2019) e Silva e Tavares (2019). Esses sete estudos representam 17,5% do total de estudos levantados e convergem para um conjunto de investigações que analisaram “[...] a produção discursiva acerca da mulher na escola contemporânea” (SANTOS; FELDENS, 2019, p. 379) e para além do espaço escolar. Esse material enfocou a análise de mulheres contemporâneas, empoderadas, que, já conscientes de sua condição oprimida, não se conformaram com os grilhões que o machismo lhes quis/quer impor. É o caso, por exemplo, do estudo de autores como Silva e Tavares (2019, p. 41), que “[...] analisaram a participação de mulheres nas ocupações realizadas em 2016 na Universidade Federal de Pernambuco”; mulheres que compõem o movimento estudantil, que levantam a voz contra as injustiças e que lutam por uma sociedade mais igualitária.
Esses autores, ao problematizarem a participação de mulheres universitárias nas ocupações estudantis de 2016, concluíram que “[...] a vivência de práticas democráticas e o ambiente propício à discussão dos direitos humanos fomentam uma potencial transformação nas práticas e nas relações” (SILVA; TAVARES, 2016, p. 41). Nesse sentido, as ocupações do ano de 2016 se configuraram como um importante momento para que as alunas tomassem a palavra, dissessem a sua palavra, atuassem como protagonistas de um processo político e se identificassem com questões relacionadas ao feminismo (FREIRE, 2018).
Nessa mesma linha de pensamento, o estudo de Porto e Galvão (2016) apresenta o contexto da “Marcha das Vadias da cidade de Natal”, Rio Grande do Norte (2011, 2015), e o significa como um campo político que deu visibilidade aos feminismos locais atuantes naquela cidade e naquele estado. Já com o olhar mais voltado para movimentos menos massivos, Araújo e Barros (2017, p. 173) analisaram “[...] alguns dos traços principais dos usos do tempo, por parte das mulheres académicas, identificando algumas das suas implicações para a política académica e científica a nível institucional”. De modo análogo, Morais e Carvalho (2015, p. 235) analisaram, “[...] através das narrativas de três acadêmicas feministas de uma universidade federal nordestina, suas contribuições para a institucionalização dos estudos de gênero”.
Apesar dos avanços identificados, é patente que o combate às desigualdades de gênero deve resistir e se intensificar para que possamos produzir uma sociedade igualitária. Nesse sentido, estudos como os de Araújo e Barros (2017), Morais e Carvalho (2015), Porto e Galvão (2016) e Silva e Tavares (2019) retratam cenários de luta tendo como protagonistas mulheres em seus movimentos de resistência e luta, as quais também arregimentaram movimentos exitosos.
Os dois primeiros estudos retrataram movimentos de luta de ampla repercussão nacional, e os outros dois, não menos importantes, destacaram a luta diária das mulheres, que, em seu fazer laboral, ao não se conformarem com a realidade (im)posta, travam disputas de poder com o machismo e arregimentam ganhos para a causa feminina. Paradoxalmente a esse cenário exitoso, Canotilho, Araújo e Oliveira (2014, p. 91) lançaram luzes aos “[...] constrangimentos no acesso das mulheres aos cargos de decisão e às estruturas de democracia formal”. Uma mulher ocupar um lugar de poder nessa sociedade machista já é, por si só, um grande desafio, mas se manter nesses lugares de poder é uma batalha diária.
Carvalho et al. (2017, p. 163) enfocaram “[...] as trajetórias dos centros de estudos de gênero afiliados à Rede Feminista de Estudos de Gênero do Norte / Nordeste (REDOR) e de seus fundadores”. O último estudo que compõe essa categoria é de autoria de Sarat e Campos (2014, p. 45), que apresentam “[...] reflexões construídas nas trajetórias de duas professoras de Pedagogia de uma universidade pública localizada no interior da Região Centro Oeste”. A preocupação desse estudo se coaduna com a preocupação dos estudos supracitados nesta categoria, uma vez que esse buscou “[...] conhecer e compreender como [essas mulheres] vivenciaram/construíram concepções de gênero e sexualidade nas diversas relações interpessoais, nos espaços privado e público” (SARAT; CAMPOS, 2014, p. 45).
Essa questão se justifica porque as mulheres que conseguiram resistir à opressão machista que diz a elas diariamente que seu lugar é em casa, sob o mando do pai, do irmão, do marido, ou equivalente, precisam redobrar sua força de trabalho para assumir os desafios laborais dentro e fora de casa. Segundo Sarat e Campos (2014, p. 45), essas mulheres, assim como tantas outras, “[...] foram educadas e cuidadas para corresponderem aos comportamentos ‘ditos’ de meninas, conforme padrões sociais e históricos dominantes”, as quais, ainda que ousem ocupar espaços laborais fora de casa, os afazeres domésticos continuarão a pesar sobre os seus ombros. É por não se conformarem em ocupar o lugar de oprimidas ad infinitum, mas em movimento coletivo de conscientização, que elas têm se empoderado, se fortalecido, tomado a palavra e se libertado (FREIRE, 2018).
Os estudos que nos auxiliaram a compor esta categoria foram os de Couto e Cruz (2017), Dias e Menezes (2018), Rodrigues (2016) e Santos e Lage (2017). Trata-se de quatro estudos que têm como foco a presença de questões de gênero e sexualidade no currículo escolar brasileiro e também no currículo escolar europeu (RUDD; GOODSON, 2016; ULJENS, 2016). Esse volume de material corresponde a 10% dos estudos levantados.
De modo comum, esses estudos buscaram “[...] identificar no currículo a ausência do gênero” (COUTO; CRUZ, 2017, p. 249) ou “[...] investigar o que indicam os conteúdos programáticos [...], em relação às questões de gênero e diversidade sexual” (SANTOS; LAGE, 2017, p. 69). Tais pesquisas sinalizam para a preocupação acerca da presença e da ausência de temas relacionados às questões de gênero no currículo escolar.
Dias e Menezes (2017, p. 37) lançaram mão das “[...] potencialidades de uma pedagogia e um currículo queer na escola”, como alternativa para uma formação libertadora e que valorize os sujeitos em suas mais altas potencialidades. É por meio do currículo que a instituição escolar revela e executa sua forma de ver e de pensar o mundo e também uma das formas pelas quais o governo exerce o biopoder e a governamentalidade (FOUCAULT, 1993). Partindo desse pressuposto, “[...] estranhar o currículo da escola, passar a ser uma das inovações que a pedagogia queer propõe a a@s estudantes e professor@s hoje” (DIAS; MENEZES, 2017, p. 37).
Ao enfocar a questão da presença de temas de educação sexual no currículo da Costa Rica, Preinfalk-Fernández (2016, p. 103) traçou um panorama do “[...] proceso histórico-evolutivo de la educación sexual en el sistema educativo costarricense”. Costa e Macarro (2016, p. 111) apresentaram uma análise “[...] de cómo el tema educativo se coloca en la Ley Orgánica 01/2004, de 28 de diciembre, que trata de las medidas de protección integral contra la violencia de género en España”. Já Rodrigues (2016) investigou um relatório que foi aprovado em setembro de 2015 e que foi solicitado pelo Parlamento Europeu à Comissão dos Direitos das Mulheres e da Igualdade dos Gêneros. Esse documento pretendia assegurar uma educação democrática e a educação para a igualdade dos gêneros pela via do currículo.
O que se verifica nesses três estudos que trazem à baila documentos e diretrizes curriculares internacionais que tratam de questões de gênero é que, nesse sentido, a realidade global não é assim tão distante da realidade brasileira e que a disputa entre uma formação progressista e uma formação conservadora está presente nos debates curriculares mundiais.
De acordo com Santos e Lage (2017, p. 69), existe um silenciamento, por exemplo, “[...] sobre transexualidade e cidadania de pessoas trans”. Segundo Silva (2000, p. 89), “[...] a diferença não é uma característica natural: ela é discursivamente produzida”. Portanto, é por meio dos discursos que produzimos e reproduzimos as diferenças que podem gerar conflitos e desestabilizar paradigmas tradicionais, pois “[...] são os próprios valores da civilização ocidental [...] que estão em risco quando o estilo de vida dos homossexuais, por exemplo, se torna matéria curricular” (SILVA, 2000, p. 92).
Para a composição desta categoria, contribuíram os estudos de Bogossian (2014), Carvalho et al. (2017), Di Gregorio e Silva (2014), Kaplan e Xavier (2018), Santana (2014), Santana et al. (2016) e Vieira e Coelho (2014). Esses sete estudos representam 17,5% do material levantado, os quais enfatizam o fato de gênero ser uma categoria que constitui todo e qualquer sujeito.
Acerca dessa questão, Kaplan e Xavier (2018, p. 111), ao captarem narrativas autobiográficas reminiscentes de “[...] diversas infâncias existentes, descritas em três países Brasil, Argentina e Uruguai, no período de 1930 a 1940, formalizaram uma compreensão da imagem do negro elaborada pela escrita de autoras mulheres”. Aqui nos chama a atenção o fato de esses autores terem pesquisado a infância de meninas negras a partir dessas quando em idade adulta.
Santana et al. (2016, p. 63) buscaram “[...] compreender a relação entre educação, gênero e sexualidade e seus desdobramentos para a compreensão das relações de gênero no lócus da educação infantil”. Já Bogossian (2014, p. 169) refletiu a respeito da “[...] desigualdade de gênero presente em uma instituição de Educação Infantil no município de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro”. Desses três, observamos que, apesar de esses estudos terem como foco a relação entre a infância e as questões de gênero, não tomaram como participantes as próprias crianças.
Por estarmos inseridos numa sociedade machista e vivermos na contemporaneidade uma onda conservadora, ao realizar pesquisas sobre gênero com crianças, é possível ter graves problemas – na investigação e para além dela. Essa pode ser uma justificativa para o fato de os estudos que analisaram as relações entre gênero e infância não terem trabalhado com as próprias crianças.
Essa onda conservadora e o populismo de extrema direita, ascendente no mundo inteiro, têm como um dos seus reflexos um clima de hostilidade contra os estudos sobre gênero, e isso se reflete diretamente na relação entre escola e família. Nesse sentido, Di Gregorio e Silva (2014, p. 79) apontam “[...] possibilidades de diálogo entre o tema Educação, Gênero, Diversidade Sexual e Direitos Humanos no lócus da Família e da Escola”. O foco desses pesquisadores é a “[...] sexualidade não heterossexual e seus desafios desde a orientação na família e a construção das identidades de gênero no cenário escolar/social” (DI GREGORIO; SILVA, 2014, p. 79). O mesmo se aplica para o caso tratado por Santana (2014), que enfocou a questão da mulher lésbica na relação homoafetiva.
Dentre os estudos que compõem esta categoria que envolve a infância, a família e as pessoas com deficiência, o tema menos frequente foi o último. Ao lançar luzes às questões de gênero e sexualidade de jovens com deficiência intelectual, Vieira e Coelho (2014) não usaram meias palavras para atestar que pessoas com deficiência são também pessoas gendrificadas. A invisibilização do gênero e da sexualidade desses sujeitos é reflexo da invisibilização desses sujeitos como um todo. Para a superação desse quadro, é imprescindível uma educação libertadora radical, uma educação como prática de liberdade (FREIRE, 2018; HOOKS, 2013).
Constatamos que a produção científica que abordou questões de gênero no âmbito da REVTEE, no período de 2014 a 2019, evidenciou que esse tema, por si só, constitui-se num marcador social que condiciona as escolhas e as carreiras profissionais dos sujeitos, mas que, quando analisado em intersecção com questões de raça, religião e classe, potencializa ideologias desumanizadoras que oprimem, marginalizam, excluem e invisibilizam aquelas e aqueles em cujos corpos estão revelados traços que os façam ser identificados como desviantes da norma.
Por outro lado, ressaltamos a presença de uma contracorrente que tem conferido força e empoderamento àquelas/es que têm sido silenciadas/os. São exemplos dessa contracorrente os movimentos de rua que lutam pela igualdade de gênero, como a Marcha das Vadias e a luta cotidiana das mulheres contra todas as formas, sutis e descaradas, pelas quais se manifesta o machismo.
Evidenciamos que, mesmo nos estudos que enfocaram a relação entre gênero e infância, nenhum deles considerou as falas das próprias crianças. Do mesmo modo, a escola e a família, como instituições irmãs no compromisso com a formação das crianças, ao tratar sobre questões de gênero, por aspectos de base moral conservadora, têm rivalizado em polos antagônicos. Além disso, pouco se discute acerca de questões de “gênero e pessoas com deficiência”. Esse panorama revela um quadro sintomático do levante da onda conservadora que insiste em negar a existência daquelas/es desviantes da norma.
Além dos temas que foram pouco discutidos ou discutidos de forma indireta, chamaram-nos a atenção os temas que não foram discutidos nos estudos levantados, por exemplo: a relação entre gênero e velhice; as políticas de prevenção e tratamento do HIV em ambientes formais e não formais de ensino; a pornografia de vingança em ambientes escolares; a medicalização dos comportamentos desviantes conduzidos a partir da escola; as polêmicas sobre o uso do banheiro por pessoas trans ou travestis, além de tantos outros temas latentes por investigações.
Nesse sentido, é possível sustentar que as relações de gênero são compreendidas como construção social, histórica e cultural, sendo a escola um dos espaços privilegiados para a sua abordagem. Os estudos levantados apontam elementos de originalidade, seja pelo próprio objeto, pelo lócus da investigação, pelo referencial teórico adotado, pela abordagem metodológica empregada ou pela ousadia com que os resultados foram apresentados.
Ainda que muito distante de uma sociedade igualitária, os estudos sistematizados nesta pesquisa indicam que a luta de todas/os que sentem na carne a opressão contra seu gênero tem surtido efeito e que a resistência precisa continuar e ser cada vez mais fortalecida. Na convergência desses estudos, percebemos que é urgente e necessária a luta diária por políticas públicas que subsidiem ações voltadas para a construção de uma sociedade combativa a qualquer ideologia que negue a humanidade dos seres humanos.


