Resumo: Tradução anotada de parte (M 1. 169-247) do tratado Contra os Gramáticos do filósofo cético pirrônico Sexto Empírico (séc. II d.C.). Nesta passagem, o filósofo dá continuidade ao ataque contra a parte técnica da gramática, abordando o tratamento gramatical da ortografia, helenismo e etimologia e advogando, contra o critério técnico dos gramáticos, pelo critério prático do uso comum. O espaço que ele destina a argumentos que, muito provavelmente, são de origem epicurista, e não cética, é considerável. Isso poderia sugerir que sua fonte principal fosse uma obra de ataque à doutrina gramatical, nos moldes daquelas ligadas à tradição epicurista de polêmica contra disciplinas que teriam a pretensão de se antepor à filosofia. As notas da tradução buscam esclarecer questões subjacentes ao argumento sextiano, justificar nossas escolhas tradutórias e disponibilizar informações que viabilizem traçar paralelos entre a passagem em questão e outras obras do autor ou do período.
Palavras-chave: Sexto EmpíricoSexto Empírico,ceticismoceticismo,epicurismoepicurismo,gramáticagramática,helenismohelenismo.
Abstract: Annotated partial translation (M 1. 169-247) of the treatise Against the Grammarians written by the Pyrrhonian skeptical philosopher Sextus Empiricus (II C.E.). In this section, the philosopher continues his attack against the technical part of grammar, addressing the grammatical treatment of orthography, Hellenism and etymology and advocating, against the technical criterion of the grammarians, the practical criterion of common use. The space he assigns to arguments that are most likely to be of epicurean origin rather than skeptical is considerable. This might suggest that its main source was a work of attack on grammatical doctrine, along the lines of the epicurean tradition of polemic against disciplines that would claim to be at the forefront of philosophy. The notes of the translation seek to clarify questions underlying the Sextian argument, to justify our translational choices, and to provide information that makes it possible to draw parallels between the passage in question and other works by the author or the period.
Keywords: Sextus Empiricus, Scepticism, Epicureanism, Grammar, Hellenism.
Artigos
Contra os Gramáticos de Sexto Empírico: tradução anotada, terceira parte (M 1. 169-247)
Against the Grammarians by Sextus Empiricus: annotated translation, part three (M 1. 169-247)
Recepção: 08 Agosto 2017
Aprovação: 22 Novembro 2017
Contra os Gramáticos é um texto escrito pelo filósofo cético pirrônico, e também médico, Sexto Empírico, por volta do século II d.C.1 Está integrado a uma obra maior, Contra os Professores, dedicada ao ataque de seis disciplinas centrais na vida intelectual dos gregos antigos: gramática, retórica, geometria, aritmética, astronomia e música. Além de expressão do posicionamento filosófico sextiano, em sentido amplo, esses tratados são importante fonte de informação histórica sobre tais áreas do conhecimento.
O ataque empreendido por Sexto nos seis livros do Contra os Professores insere-se no contexto amplo de sua oposição às filosofias dogmáticas através da crítica aos conhecimentos teóricos construídos com base em raciocínios especulativos. A crítica sextiana envolve a identificação das disciplinas do ciclo (enkuklia mathemata) com artes (tekhnai) racionais ou teóricas, nos moldes em que seus ‘praticantes’ costumavam enaltecê-las. Seu propósito seria não a transmissão e aquisição de habilidades com fins puramente práticos, mas a construção de teorias acerca da natureza das coisas. Sexto ataca, em vista disso, o estudo racional com pretensões teóricas, a incoerência interna e as consequências aporéticas do método racional, além de sua inutilidade para a vida.
O ataque a uma tradição é visível no Contra os Gramáticos. Sexto provê, nesse livro, um panorama da constituição dos saberes nessa área. Que ele mimetiza, não sem ironia, supomos, a disposição de um tratado gramatical do período é algo que se pode notar desde o início da obra. Aí alude às introduções laudatórias da gramática, logo a seguir, expõe e critica suas definições e, então, passa ao ataque das partes da gramática: técnica (que se ocupa de letras, sílabas, nomes, partes da sentença, ortografia, correção, etimologia); ‘histórica’ (que trata dos personagens, lugares, etc.); e específica (o exame das obras literárias, propriamente ditas, em verso ou prosa). Neste artigo, apresentamos a tradução da seção do tratado que dá continuidade ao ataque contra a parte técnica da gramática, abordando ortografia, correção e etimologia.2
É razoável supor, tendo em vista a autoridade de que a filosofia estoica desfrutou no período helenístico, e a inter-relação entre o desenvolvimento desta e da disciplina gramatical, que Sexto nutrisse interesse especial pela área, além de, possivelmente, ter tido a sua disposição bastante material referente a ela. O espaço que ele destina, na passagem aqui traduzida, a argumentos que, muito provavelmente, são de origem epicurista, e não cética, é considerável. Isso poderia sugerir que sua fonte principal fosse não um tratado gramatical, mas uma obra de ataque à doutrina gramatical, nos moldes daquelas ligadas à tradição epicurista de polêmica contra disciplinas que teriam a pretensão de se antepor à filosofia.3
O texto grego de base para a tradução a seguir é o de J. Mau e H. Mutschmann, Sexti Empirici opera, vol. 3, 2ª edição, Leipzig: Teubner, 1961, presente no corpus online Thesaurus Linguae Graecae. A mesma edição serviu de base para a tradução de Blank (1998). Bury (1949), para as edições Loeb, segue a edição de I. Bekker (1842). Quando seguimos uma inserção sugerida por Blank, informamos em nota de rodapé e usamos o sinal <...>. No caso de uma supressão, a nota de rodapé traz o texto grego suprimido usando os símbolos: {...}, bem como a tradução da passagem.
[169] Pois bem, dizem que a ortografia4 assenta-se sobre três fatores: quantidade, qualidade e divisão de sílabas. Sobre a quantidade, quando queremos saber se aos dativos se deve adicionar um ι (iota), ou se palavras como eukhalinos (‘com arreios bem postos’) e euodin (‘frutífero’)5 devem ser escritas apenas com ι (iota) ou com ει (épsilon e iota).6 Sobre a qualidade, quando consideramos se smilion (‘faca’) e Smyrna (‘Esmirna’) devem ser escritas com ζ (zeta) ou com σ (sigma).7 Sobre a divisão, quando estamos em dúvida se na palavra obrimos (‘robusto’), o β (beta) é começo da segunda sílaba ou fim da anterior, ou, em relação ao nome Aristion, onde devemos colocar o σ (sigma).
[170] Mais uma vez essa exposição técnica8 revela-se inútil - sem levantarmos nenhuma das aporias mais sérias - primeiro, por causa do desacordo (diaphonia) e, em seguida, por causa de seus resultados mesmo.9 Naquele caso, porque os entendidos (tekhnikoi) no assunto estão em conflito entre si e vão estar para sempre em disputa uns com os outros, defendendo, para a mesma palavra, uns que deve ser escrita de uma forma, outros de outra. [171] Por isso é que devem ser confrontados com o seguinte questionamento: se uma exposição técnica sobre ortografia é necessária para a vida, nós, e todos os gramáticos que discordam sobre ela (e o desacordo permanece insolúvel), estaríamos necessariamente paralisados diante do que se deve escrever. [172] Mas não paralisamos, nenhum de nós e nenhum deles. Ao contrário, todos alcançamos nosso propósito sem desacordos, precisamente porque de fato não é a ortografia que conta, mas uma prática (tribe) mais geral e unânime, segundo a qual, todos, gramáticos e não gramáticos, usam as letras que necessariamente devem ser usadas para informar (menusis) a palavra, e somos indiferentes às que não são necessárias. Conclui-se, portanto, não ser necessária a orientação ortográfica dos gramáticos.
[173] Essa refutação teve por base a questão do desacordo. Já a que se configura com base nos resultados é bastante óbvia. Pois não nos causa qualquer prejuízo escrevermos o caso dativo com ι (iota) ou sem ι (iota), ou grafar smilion (‘faca’) e Smyrna (‘Esmirna’) com ζ (zeta) ou com σ (sigma), e, com relação ao nome Aristion, se o σ (sigma) pertence à sílaba anterior, ou se o colocamos com a seguinte.
[174] Contudo, se smilion (‘faca’), por ser escrito com ζ (zeta) e não com σ (sigma), deixa de ser o que é e se torna drepanon (‘foice’); se o nome Aristion (‘aquele que desjejua’), por ser separado de uma forma e não de outra, se tornasse, como diria algum engraçadinho, Deipnion (‘aquele que janta’), se fosse esse o caso, conviria não sermos indiferentes. Porém, se, independente da grafia, smilion (‘faca’) é smilion (‘faca’), com ζ (zeta) ou com σ (sigma), e Aristion sempre Aristion, colocando-se o σ (sigma) com a sílaba anterior ou com a seguinte, que utilidade tem a interminável lenga-lenga vã dos gramáticos sobre essas coisas?
[175] Sobre ortografia, foram abordados os pontos principais. Para completar o ataque à parte técnica, veremos se possuem, ou não, um método consistente para a correção.
[176]10 Que é preciso, com alguma parcimônia, cuidar da pureza do idioma que se fala11 é, de imediato, óbvio, pois aquele que comete a todo momento barbarismos ou solecismos é menosprezado como ignorante. Por outro lado, quem fala grego corretamente é capaz de expressar com clareza e precisão o que pensa sobre as coisas. No entanto, há dois tipos de correção: um está desligado de nosso uso comum e parece proceder da analogia gramatical; o outro se adéqua ao uso dos gregos, tendo origem na imitação (paraplasmos) e observação da fala cotidiana.12
[177] Assim, quem, a partir do nominativo Zeus (‘Zeus’), forma os casos oblíquos como: Zeos, Zeï, Zea, se adequou ao primeiro tipo de correção. Já o que diz simplesmente: Zenos, Zeni e Zena, está usando a língua de acordo com o segundo tipo, com o qual estamos mais acostumados. Ou seja, há dois tipos de correção e consideramos que o segundo tipo seja útil, pelas razões antes mencionadas, mas o primeiro, ao contrário, é inútil, pelas razões que serão apresentadas a seguir.
[178] De fato, quando se utiliza uma moeda local em uma determinada cidade, de acordo com o costume, aquele que segue esse uso está apto a fazer seus negócios nesse local sem empecilhos. No entanto, aquele que não admite isso e, cunhando para si mesmo uma moeda nova diferente, pretende utilizá-la, será apontado como louco. O mesmo acontece com aquele que não deseja seguir na vida a maneira de falar que é comumente admitida, como uma moeda estabelecida, mas pretende talhar uma língua particular para si mesmo: está perto da loucura.
[179] Por isso, se os gramáticos tomam para si o encargo de transmitir uma certa arte a que chamam analogia, pela qual estaríamos obrigados a falar de acordo com aquele tipo de correção, devemos então demonstrar que tal arte é inconsistente, e os que desejam expressar-se de maneira correta devem dedicar-se à observação simples e não técnica da língua viva (ho bios) e do uso comum de muitos.
[180] Assim, se existe uma arte da correção, ou ela tem princípios sobre os quais se fundamenta, ou não os tem. Os gramáticos não diriam que não os tem, pois toda arte deve estar fundamentada sobre algum princípio. Então, se os tem, são princípios técnicos ou não técnicos. Se são técnicos, fundamentam-se, sempre, ou em si mesmos, ou em outra arte, que, por sua vez, fundamenta-se numa terceira, esta terceira numa quarta, e assim por diante ad infinitum, de forma que, se não há princípio para a arte da correção, tampouco ela existe como arte. [181] Se se considera que os princípios são não técnicos, nenhum outro será encontrado a não ser o uso. Logo, o uso é o critério para o que é correto e o que é incorreto em grego (anelleniston), e não uma outra arte da correção.
[182] Além disso, dentre as artes, algumas são realmente artes, como a escultura e pintura, e outras apenas se proclamam como tais, mas não são artes totalmente e de verdade, como a astrologia caldeia, e a profecia sacrifical. Para verificarmos de qual tipo é a chamada arte da correção, se promessa apenas ou uma capacidade de fato, teríamos que ter um critério para a avaliação. [183] E assim, de novo, esse critério ou seria técnico (e relativo à correção do grego, já que teria sido estabelecido para avaliar se esta arte, que julga a correção do grego, julga apropriadamente), ou seria não técnico. Mas não poderia haver um critério técnico relativo à correção, por causa do que foi dito antes sobre o regresso ao infinito. E se esse critério for dito não técnico, não se encontrará nenhum outro senão o uso. Logo, o uso julgará também a própria arte da correção, e não haverá necessidade de uma arte.
[184] Assim, se de fato não há outro modo de falar grego corretamente a não ser aprendermos o grego correto junto à gramática, então, ou isso é algo evidente, que se vê por si mesmo, ou é não-evidente (adeloteron). Mas não é evidente, ou haveria acordo unânime, como há acerca de todas as outras coisas evidentes. [185] Além disso, nenhuma arte é necessária para a apreensão do que é evidente, tal como não é necessária para ver o branco, provar um gosto doce, ou sentir calor. E, segundo os gramáticos, para falar grego corretamente, método e arte são necessários. Logo, falar grego corretamente não é algo evidente.
[186] E se for uma coisa não-evidente, e o não-evidente se conhece a partir de alguma outra coisa, seria preciso seguir algum critério natural, com o qual se distingue o que é correto e o que é incorreto. E empregar ou o uso de uma única pessoa que fale o grego de forma sumamente correta, para apreendê-lo, ou o uso de todos.
[187] Mas não temos um critério natural com o qual podemos distinguir o que é correto em grego e o que não é: porque para os atenienses dizer to tarikhos (‘carne seca’), no neutro, está correto, e os peloponésios têm certeza que o correto é ho tarikhos, no masculino; e um diz he stamnos (‘jarro’), no feminino, o outro ho stamnos, no masculino. De forma que o gramático não tem nenhum critério por si mesmo confiável para o que deve ser dito de uma forma e não de outra - a não ser o uso de cada um, o que não é técnico nem natural.13
[188] E, se disserem que se deve seguir o uso de uma única pessoa, ou isso é uma mera asserção, ou precisam apresentar provas metódicas. Mas, se dizem ser uma asserção, contrapomos a asserção de que se deve seguir de preferência o uso de muitos a um só. Se apresentarem metodicamente as provas de que tal sujeito fala grego corretamente, serão obrigados a chamar de critério para a correção não o sujeito, mas o método pelo qual demonstraram que ele fala grego corretamente. [189] Faltou então considerar o uso de todos. Se for isso, não é a analogia que é necessária, mas a observação de como muitos falam, do que admitem como grego correto ou evitam como incorreto.
A correção do grego se dá por natureza ou por convenção. Mas não é por natureza, porque se fosse, jamais aconteceria de uma mesma coisa parecer correta para alguns e incorreta para outros. [190] E se fosse por convenção e lei dos homens, aquele que tem mais prática e está mais habituado ao uso é que fala corretamente, e não o que domina a analogia.
Além disso, podemos demonstrar também de outra forma que nós não precisamos da gramática para falar grego corretamente. [191] Pois, nas conversas cotidianas, ou muitos irão se opor a nós no uso de algumas expressões (lekseis), ou não haverá oposição. E, se se opõem, irão, ao mesmo tempo, nos corrigir. De forma que, falar grego corretamente depende do que se aponta a partir da língua viva e não da gramática.
[192] E se os outros não se incomodam, mas se mostram familiarizados com o que estamos dizendo, como estando claro e correto, também nós iremos perseverar neste uso. E, ou todos (pantes) falam de acordo com a analogia, ou a maior parte (pleistoi), ou muitos (polloi): mas nem todos, nem a maior parte, nem muitos - porque dificilmente se encontram duas ou três pessoas que o façam, e a maior parte sequer conhece a analogia.
[193] Pois bem, já que é o uso de muitos, e não de duas pessoas, que é necessário seguir, deve ser dito que a observação do uso comum é necessária para falar grego corretamente, mas não a analogia. E, como em praticamente tudo na vida que é útil, é critério (metron) suficiente não se complicar para alcançar as coisas necessárias.
[194] Assim, se a correção foi aceita principalmente por causa de duas premissas: clareza e conformidade (proseneia) das expressões (já que falar (phrazein) metaforicamente, enfaticamente, ou de acordo com outras figuras (tropoi), foi algo agregado de fora e acessoriamente),14 vamos investigar através de qual das correções mais provavelmente se alcançam essas qualidades: a que segue o uso comum ou a analogia, e iremos então tomar seu partido.
[195] Percebe-se, contudo, que de fato mais vale o uso comum que a analogia. Logo, deve-se usar aquele, mas não esta. Pois, do nominativo Zeus (‘Zeus’), formar os casos oblíquos Zenos, Zeni, e Zena; e, de kuon (‘cão’), formar kunos, kuni e kuna, parece não somente claro, mas também sem objeções para muitos, e é próprio do uso comum. Mas, de Zeus dizer Zeos, Zeï e Zea; e, de kuon, dizer kuonos, kuoni, kuona; ou, a partir do genitivo kunos, considerar que o nominativo é kus; ou nas formas verbais dizer phereso e blepeso,15 por analogia a kueso (‘engravidar’) e theleso (‘querer’), não somente não é claro, como também parece ser motivo de riso e mesmo de ofensa. E isso resulta da analogia. [196] Portanto, como disse, não é esta que se deve usar, mas o uso comum.
E pode ser que acabem mesmo por refutarem-se a si mesmos, pois, querendo ou não, é obrigatório seguir o uso e deixar de lado a analogia. Vamos, então, examinar o que eles dizem a partir disto, ou seja, a partir da consequência para eles próprios.
[197] Pois, perguntados se se deve dizer khrestai ou khrasthai (‘servir-se de’), dirão que é khrasthai; e, quando se pede uma prova disso, dizem que khresis (‘uso’) e ktesis (‘aquisição’) são análogos. Portanto, já que se diz ktasthai (‘adquirir’), mas não ktesthai, assim também deveremos dizer khrasthai, e, de forma alguma, khresthai. [198] Mas se continuamos a investigar e perguntamos: ‘como sabemos que a forma ktasthai, a partir da qual indicamos krasthai, está correta?’ - respondem que é porque é de uso comum. E, ao dizer isso, confirmam que é preciso se ater ao uso como critério, e não à analogia. [199] Pois, se se deve dizer khrasthai porque no uso comum se diz ktasthai, então, vamos ter que deixar de lado a arte da analogia e retomar o uso comum, do qual também ela depende. De fato, a analogia é a comparação de muitas palavras (onomata) similares, e tais palavras são tiradas do uso. Portanto, também a consistência da analogia procede do uso.
[200] Pois bem, já que essas coisas são dessa forma, devemos confrontá-los com o seguinte: ou vocês aceitam o uso como confiável para distinguir o grego correto, ou o rejeitam. Se o admitem, a presente questão resolve-se por si mesma e não há necessidade da analogia. Se o rejeitam, visto que a analogia baseia-se propriamente nele, rejeitam também a analogia. E é absurdo aceitar uma mesma coisa como confiável e rechaçá-la como não confiável. [201] Porém os gramáticos, por quererem rejeitar o uso como não confiável, e, ainda assim, admitir esse mesmo uso como confiável, acabam por fazer com que uma mesma coisa seja confiável e não-confiável ao mesmo tempo. O fato é que introduzem a analogia para mostrar que não se deve falar segundo o uso, mas a analogia não tem validade se não tiver a confirmação do uso comum. [202] Logo, ao rejeitarem o uso através do uso, acabam por fazer com que seja confiável e não-confiável ao mesmo tempo.
A menos que digam isso não para rejeitar o uso comum ao mesmo tempo que o admitem, mas porque rejeitam um tipo e admitem outro. Isso é o que dizem os discípulos de Pindário. “Todos concordam” - dizem eles - “que a analogia provém do uso, pois é uma teoria acerca do que é similar e do que é diferente, [203] e similar e diferente são ambos tomados do uso consagrado: e o que é consagrado, e também o mais antigo, é a poesia homérica. Nenhum poema mais antigo que a poesia de Homero chegou até nós”- vamos então conversar seguindo o uso de Homero!16
[204] Mas o fato é que, primeiro, nem todos estão de acordo sobre Homero ser o poeta mais antigo: alguns dizem que Hesíodo é anterior, também Lino e Orfeu, e muitíssimos outros. Na verdade, é sim plausível que houvesse poetas antes dele, ou contemporâneos, já que ele mesmo diz, em algum lugar: ‘pois entre o povo recebem mais altos louvores os cantos / que para o ouvinte mais novos lhe soam’. [Odisseia I. 351-2 Trad. Carlos Alberto Nunes] Mas o brilho de Homero deixou esses poetas na obscuridade. [205] E, mesmo que se concorde ser Homero o mais antigo, ainda assim, nada razoável foi dito por Pindário. Pois, assim como estávamos em dúvida antes sobre17ser preciso seguir o uso ou a analogia, agora também iremos questionar se é o uso ou a analogia e, se for o uso, se é conforme Homero ou conforme o resto das pessoas - sobre isso, Pindário nada disse.
[206] E, em segundo lugar, é preciso, sobretudo, seguir o uso que não nos torne motivo de risada. Mas, se fôssemos seguir o uso homérico, estaríamos usando um tal grego que cairiam na risada quando nos saíssemos com coisas como marturoi (‘testemunhas’) e sparta leluntai (‘as cordas estão soltas’), ou outras ainda mais estranhas. Logo, tampouco esse argumento é apropriado, além de que confirma a proposição que estávamos tentando estabelecer, ou seja, de que não há por que servir-se da analogia. [207] Pois qual a diferença entre seguir o uso da maioria e o uso de Homero? Para seguir o uso da maioria é necessário observação, e não analogia técnica, e é a mesma coisa quando se trata do uso de Homero. Pois iríamos moldar nossa fala a partir da observação de seu modo usual de se expressar.
[208] Em suma, assim como o próprio Homero não utiliza analogia, mas segue o uso comum das pessoas de seu tempo, também nós não iremos prestar atenção à analogia, nunca, embora tenha18 Homero como suporte, mas nos moldaremos (paraplasso) ao uso dos homens de nosso tempo.
[209] Assim, acabamos de concluir, a partir das consequências de seus argumentos, que, para falar grego corretamente, a analogia é dispensável, e a observação do uso comum é que é bastante útil. Provavelmente isso também ficará evidente19 a partir do que afirmam.
[210] Pois, quando definem barbarismo e solecismo, afirmam que: ‘barbarismo é o desvio (paraptosis) do uso comum em uma palavra apenas’; e ‘solecismo é o desvio do uso, e da coerência, em toda a construção (suntaksis).’ [211] Contra isso, podemos logo dizer: mas se o barbarismo ocorre em uma palavra apenas e o solecismo na combinação (suntaksis) das palavras, e, como ficou demonstrado acima, não existe nem palavra sozinha, tampouco a combinação delas, barbarismo e solecismo não são nada.
[212] Ainda, se se concebe o barbarismo em uma única palavra, e o solecismo na combinação das palavras, mas não em relação às coisas subjacentes (ta hupokeimena pragmata), então, que erro haveria em dizer ‘ele’ indicando uma mulher; ou ‘ela’, quando indico um jovem? Pois não cometi solecismo, já que não foi pronunciada uma combinação incoerente de muitas palavras, mas tão somente a palavra ‘ele’, ou ‘ela’.
[213] E tampouco cometi um barbarismo, pois a palavra ‘ele’ não desvia do uso, como ocorre com as formas eleluthan (*’foram’) e apeleluthan (*’afastaram-se’),20 que são usadas pelos alexandrinos.
Seria possível apontar contra os gramáticos ainda muitos outros argumentos como esses. [214] No entanto, para não parecer que somos em tudo aporéticos, voltaremos à proposta do princípio e diremos que: se o barbarismo é um desvio do uso comum, observável em uma só palavra, bem como solecismo é o que se diz subsistir em muitas palavras; e é barbarismo dizer *trapeza,21 porque não se usa esse verbo (rema), e é solecismo o polla peripatesas kopiai mou ta skele (‘tendo andado muito minhas pernas doem’),22 porque não se diz no uso comum; então consente-se que ‘arte da analogia’ é um nome vazio, e que para não cometermos barbarismos ou solecismos é preciso observar, e adequar-se no falar, ao uso comum.
[215] Se mudassem de estratégia, e dissessem que o barbarismo é simplesmente ‘o desvio em uma palavra apenas’, sem acrescentar que é ‘contra o uso comum’’; e solecismo ‘o desvio da coerência em toda a construção’, mas sem mencionar que é um ‘desvio do uso’, estariam numa posição ainda pior. Pois as seguintes frases contêm desvios em sua construção: ‘Atenas [pl.] é uma cidade bonita [sg.]’, ‘Orestes [masc.] é uma bela tragédia [fem.]’, ‘Os 600 [masc. pl.] é a assembleia [fem. sg.] da cidade’; e será preciso afirmar que são solecismos, quando na verdade não são, porque são usuais. [216] Portanto, não se julga o solecismo apenas pela coerência, mas pelo uso.
Depois da objeção com base nas consequências de seus argumentos contra si mesmos e em suas próprias afirmações, seria interessante também constrangê-los usando o argumento da transição por similaridade (kata to homoion metabasis).
[217] Porque, se de fato eles se posicionaram como teóricos da analogia, dar um chute na canela (antiknemios) é análogo a dar um chute no nariz (rina) ou no estômago (gaster), e como o primeiro é dito antiknemiázein (*canelar), por analogia seriam: gastrizein (*barrigar) e mukterizein (*narigar). O mesmo dá-se com hippazesthai (‘cavalgar’) e katakremnizesthai (‘atirar-se de um precipício’) e heliazesthai (‘aquecer-se ao sol’). Mas não falamos desse jeito porque seria contra o uso comum. Da mesma forma, nem lueso,23 nem fereso,24 e todas as outras que se adequam à analogia não são ditas devidamente, porque não são ditas de acordo com o uso comum.
[218] Na verdade, se afirmamos que fala trácio muito bem aquele que fala conforme é usual entre os trácios; e que fala o mais belo latim, quem se expressa como é habitual entre os romanos; consequentemente, fala grego com propriedade aquele que fala como é usual entre os gregos: seguindo o uso, portanto, e não a regra. Assim sendo, por seguirmos o uso, e não a analogia, é que falamos grego corretamente.
[219] E, em geral, a analogia ou concorda com o uso, ou discorda dele. E, se concorda, em primeiro lugar, visto que o uso não é algo técnico, tampouco a analogia viria a ser uma arte, pois o que concorda com o não técnico, será ele mesmo, sempre, não técnico. E, em segundo lugar, se o que é grego correto conforme o uso comum é correto conforme a analogia, já que ela concorda com o uso, então, o que está de acordo com o uso será correto. [220] E, já que as coisas são assim, não haverá necessidade de recorrer à analogia para avaliar a correção: temos para isso o uso. E se a analogia discorda do uso, introduzindo um uso totalmente diferente - como um barbarismo, por assim dizer - cairá em descrédito, e, geradora de obstáculos, torna-se completamente inútil.
[221] Devemos argumentar também com base na consistência de sua arte. Pois, tendo reunido alguns teoremas universais, pretendem usá-los para julgar se cada palavra em particular está correta ou não. E não podem fazer isso porque sua regra universal não foi aceita como tal, e tampouco preservaria uma natureza universal se aplicada diferentemente.
[222] Tomemos, com relação a isso, alguns exemplos dos próprios gramáticos. Supondo que há uma questão acerca de uma palavra em particular, por exemplo, sobre se eumenes (‘favorável’) pronuncia-se, no caso oblíquo, sem o -ς (sigma): eumenou, ou com o -ς (sigma): eumenous: os gramáticos aparecem proclamando uma regra universal com a qual pretendem dar por encerrada a questão. Afirmam eles que: “todo nome não25-simples, que termina em -ης (eta sigma) e é oxítono, será necessariamente pronunciado no genitivo com -ς (sigma), por exemplo, euphues (‘gracioso’): euphuous, eusebes (‘pio’): eusebous, euklees (‘famoso’): eukleous. Por isso, já que também eumenes é acentuado na última sílaba como os outros, a exemplo destes deverá ser pronunciado com o -ς (sigma): eumenous.”
[223] Contudo, não perceberam, esses homens admiráveis, que, em primeiro lugar, a pessoa que julga adequado dizer eumenou não concede universalidade a sua regra: eumenes, dirá, mesmo sendo um nome não26-simples e oxítono, não se pronuncia com o -ς (sigma). Todavia, os gramáticos se apressam em dar por resolvido o que se está questionando.
[224] E, em segundo lugar, se a regra é universal, terá sido proposta após percorrerem todas as palavras em particular e perceberem a analogia entre todas elas, ou então foi proposta sem que tenham percorrido todas as palavras. Porém, não haveriam de ter percorrido todas as palavras, pois são infinitas, e não há conhecimento do infinito. E, se percorreram somente algumas delas, como poderiam saber que todo nome é do modo como dizem? Pois não é verdade que o atributo de alguns nomes seja atributo de todos.
[225] Mas há os que se opõem a isso de maneira ridícula, argumentando que uma regra universal é estabelecida a partir da maioria dos casos. Não teriam enxergado, que, em primeiro lugar, uma coisa é o universal, e outra completamente diferente a ‘grande parte’ dos casos: o universal jamais se revela falso, mas, o que vale27 para a ‘grande parte’, eventualmente sim.
[226] E, em segundo lugar, mesmo que o universal proceda de muitos casos, aquilo que é atributo de muitas palavras, não é sempre e necessariamente também atributo de todas as outras do mesmo tipo. Mas, exatamente como em muitos outros domínios, a natureza às vezes dispõe tipos únicos - como a víbora cornuda, entre infinitas espécies de serpentes; e o elefante com sua tromba, entre os quadrúpedes; ou, entre os peixes, o tubarão, que é vivíparo; e, entre as pedras, o imã, que atrai o ferro - assim, é razoável existir, dentre muitas palavras que se declinam da mesma forma, uma que não se declina como muitas. [227] Por isso, deixemos de lado a questão sobre a palavra ser ou não análoga a muitas outras, e examinemos como o uso se serve dela, se de forma análoga às outras ou como um tipo particular, e, tal como for utilizada, assim nós iremos pronunciá-la.
[228] Cercados por todos os lados, os gramáticos desejam inverter a aporia em seu favor. Assim, dizem que os usos são muitos: um próprio dos atenienses, outro dos lacedemônios; e, entre os atenienses, novamente, o uso antigo difere do atual, que sofreu mudanças; também não é o mesmo o uso daqueles que vivem no campo e o dos que residem na cidade, o que teria motivado a frase de Aristófanes, o comediógrafo:
Falando a língua normal da cidade,sem efeminações cosmopolitas,ou grosserias provincianas.28
[229] Havendo muitos usos, eles se perguntam: “qual devemos seguir? Porque não parece ser possível nos adequarmos a todos, já que, frequentemente, são conflitantes; nem parece possível seguir a um deles, a menos que tenha sido escolhido por meio da arte.” Mas, primeiro, diríamos nós, perguntar qual uso se deve seguir é o mesmo que admitir que não existe a arte da correção. Porque esta, e me refiro à analogia, é a teoria acerca do similar e do diferente: você toma o que é similar e o que é diferente do uso e, se for uma forma de uso corrente, você a utiliza, se não for, não a utiliza. [230] Portanto, também nós queremos saber: de qual uso você toma o similar e o diferente? Pois são muitos os usos, além de conflitantes com frequência. E seja qual for a resposta que der a isso, também será essa a resposta que ouvirá de nós.
[231] E, assim, sempre que você disser que barbarismo é “o desvio do uso comum em uma só palavra”, iremos nos intrometer perguntando a qual dos muitos usos que existem você se refere e, seja qual for sua resposta, diremos também nós que o seguimos.
[232] De forma que compartilhamos a aporia, mas solucioná-la, para nós, não é aporético. Pois existem entre os usos uns que são próprios dos saberes, e outros da vida cotidiana. Por exemplo, alguns termos são aceitos na filosofia e também na medicina de modo particular, e ainda na música e na geometria; porém existe um uso simples, próprio da vida cotidiana das pessoas comuns (idiotai), que difere entre cidades e povos.
[233] Consequentemente, na filosofia, nos alinharemos ao uso dos filósofos, na medicina, nos adequamos ao jargão médico, e na língua viva (ho bios), ao que seja mais usual, menos extravagante, e próprio do local onde estamos.
[234] Por isso, quando há duas formas de dizer alguma coisa, tentaremos nos adaptar às pessoas presentes e dizer aquilo que não provoque o riso, independente do que possa vir a ser a coisa por natureza.29 Por exemplo, um mesmo objeto é chamado tanto artophorion (‘porta-pães’) como panarion (‘cesta’); um outro, tanto skaphion (‘penico’) como hamis (‘urinol’), e assim também igdis (‘almofariz’) e thuia (‘pilão’). Nós, no entanto, nos alinharemos ao uso claro e adequado que não seja motivo de riso para nossos empregados, nem para as pessoas comuns, e diremos panarion (‘cesta’), ao invés de artophorion (‘porta-pães’), mesmo sendo barbarismo; e skaphion (‘penico’), não hamis (‘urinol’); e diremos thuia (‘pilão’) de preferência a igdis (‘almofariz’).30
[235] Em um debate, novamente consideraremos os presentes e evitaremos palavras vulgares, seguindo um uso menos coloquial e mais culto. Pois, da mesma forma que o uso culto é motivo de risada entre as pessoas comuns, assim também a linguagem popular junto aos cultos. Portanto, se habilmente endereçarmos a cada ambiente a expressão apropriada (prepon), nosso grego soará correto e irrepreensível.
[236] Além disso, já que reprovam o uso comum como anômalo e diverso, também nós iremos reprová-los com base no mesmo argumento. Pois, se a analogia é a comparação do similar, e o similar provém do uso comum, e o uso comum é anômalo e instável, necessariamente a analogia também não terá regras fixas.
[237] E isso se verifica em nomes, verbos, particípios e, de maneira geral, em todos os outros. Por exemplo, alguns nomes, mesmo sendo similares e análogos no caso nominativo, são diferentes nos casos oblíquos e não se declinam de forma análoga. Assim: Ares Khares [nom.]: Areos Kharetos [gen.]; Memnon Theon: Memnonos Theonos; Skopas Abas: Skopa Abantos.31
[238] No caso dos verbos, muitos têm a forma similar no presente e não se conjugam de maneira análoga nos outros tempos. Por exemplo: heuriskei (descobrir) areskei (agradar): heureken arereken; enquanto a conjugação de alguns é defectiva, e há ektone (matar) mas não *ektanke, e diz-se aleliptai (untar), e jamais *eleiptai. No caso dos particípios, temos: boon (gritando) saron (limpando) noon: boontos sarountos noountos; e entre os nomes genéricos: anaks (senhor) abaks (tábua): anaktos abakos; graus (velha) naus (barco): graos neos.
[239] E se passa exatamente assim em muitos outros casos parecidos: arkhon utiliza-se como nome de pessoa e também para designar ‘o que governa’ [particípio substantivado], e no primeiro caso o genitivo é Arkhonos, mas o genitivo do particípio é arkhontos. E, de modo similar: menon, theon, neon, que podem ser particípios [‘o que espera’; ‘o que corre’; ‘o que nada’] ou nomes próprios, possuindo diferentes declinações, pois o nome próprio tem genitivo em Menonos, enquanto o particípio em menontos, e Theonos é o genitivo do nome próprio, mas theontos do particípio. [240] Em todo caso, fica claro, a partir desses exemplos, que o uso é cheio de anomalias e por isso as regras da analogia não podem ser fixas, pelo contrário, é necessário abandonar essas regras e ater-se às formas que aparecem no uso, sem se preocupar com o que é análogo.
[241] Os mesmos argumentos devem ser contrapostos aos gramáticos quando querem decidir a correção baseando-se na etimologia.32 Pois, uma vez mais, ou a etimologia concorda com o uso, ou discorda dele. E, se concorda, é dispensável; mas se discorda, não deve ser utilizada, pois causa mais obstáculos que os próprios barbarismos ou solecismos.
De modo geral, cabem aqui as mesmas objeções (antirreseis) anteriormente expostas. [242] E convém ainda apontar uma mais específica: o nome (onoma) que for julgado correto por meio da etimologia, precisa em todos os casos ter palavras precedentes que sejam étimos, ou cessar em palavras que foram vocalizadas naturalmente. Mas, se procede em todos os casos de étimos, em um regresso ao infinito, a etimologia não terá começo, e não saberemos se a palavra em questão é correta, porque desconhecemos qual é a situação daquela primeira de que descende. [243] Para exemplificar: se lukhnos (‘lâmpada’) vem de luein to nukhos (‘dissolver a escuridão’), teríamos que verificar se nukhos se diz a partir de uma expressão correta, e se esta última, de novo, de outra. Deste modo, a sequência estende-se ao infinito, e torna-se impossível descobrir a palavra que foi pronunciada primeiro, assim é inapreensível se lukhnos está dito corretamente.
[244] E, se a etimologia da palavra cessar em palavras que não são étimos, do mesmo modo que essas são admitidas não porque se descobriu a etimologia, mas porque aparecem constantemente no uso, assim também acabaremos por admitir a palavra cuja correção se quer julgar com a etimologia: será admitida não por causa da etimologia, mas por causa do uso. Por exemplo: proskephalaion (‘travesseiro’) vem de tei kephalei prostithesthai (‘colocar na cabeça’), mas tanto kephale (‘cabeça’), quanto pros (‘em’), que é uma preposição,33 diz-se não serem étimos.34 [245] Assim, visto que se aceitam tais palavras sem etimologia por causa de seu uso corrente, assim também proskephalaion será aceita, independente de sua etimologia.
Além disso, às vezes uma mesma coisa tem dois nomes, um deles suscetível de etimologia o outro não, mas isso não faz com que o étimo seja grego correto e o outro seja bárbaro, mas um e outro estão igualmente corretos. [246] Por exemplo, o que nós chamamos hupopodion (‘banquinho para pés’) os atenienses e habitantes de Cós chamam de khelonis (‘tartaruga’): hupopodion [lit. ‘embaixo dos pés’] existe como um étimo35, mas não khelonis; e não é por isso que se diria dos atenienses que não sabem falar grego, e que nós falamos o grego correto: pois todos falamos grego corretamente.
[247] Portanto, tal como se diz que falam corretamente não por causa da etimologia, mas pelo uso mesmo, também nós usaremos o grego corretamente não por nos fiarmos na credibilidade da etimologia, mas por utilizarmos palavras correntes no uso comum.
Com o que foi dito fica suficientemente comprovado que a parte técnica da gramática é insubsistente.36 A seguir, passamos à parte ‘histórica’.
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