DOSSIER

A transmigração da causalidade no Fédon de Platão

The causality’s transmigration in Plato’s Phaedo

Rubens Nunes Sobrinho
Universidade Federal de Uberlandia, Brasil

A transmigração da causalidade no Fédon de Platão

Revista Archai, núm. 16, pp. 263-303, 2016

Universidade de Brasília

Recepção: 15 Junho 2015

Aprovação: 15 Setembro 2015

Resumo: No dialogo que encena a ultima fala filosofica de Socrates, Platao examina o tema da morte: Socrates recorre ao acervo tradicional dos Misterios para encontrar imagens que possam justificar sua atitude insolita diante da morte. A propria definicao de morte pressupoe a realidade e a subsistencia da alma. Sem definir a alma, Platao reconfigura os axiomas tomados da heterogeneidade dos Misterios. Essa reconfiguracao de antigas crencas resulta na transmigracao causal que modela a hipotese das Formas. A composicao do mito final surge apos um longo percurso dialetico que restabelece a razoabilidade discursiva de imagens qualificadas como um “nobre risco”. A finalidade desta analise e identificar o itinerario pelo qual o ‘nobre risco’ da palingenesia constroi o axioma e principio causal das Formas como explanacao sobre a verdade e natureza de todos os seres.

Palavras-chave: Causalidade, Formas, Participacao, Palingenesia.

Abstract: In the dialogue that shows the last philosophical speech of Socrates, Plato examines the theme of death: Socrates explores the tradition of Mysteries to find images that may justify his unusual attitude towards death. The very definition of death presupposes the existence and survival of the soul. Without defining the soul, Plato reconfigures the axioms based on the heterogeneity of the Mysteries. This reconfiguration of ancient beliefs results in the causal transmigration that moulds the hypothesis of Forms. The composition of the final myth is the results on a long dialectical pursue which re‑ establishes the discursive reason of images qualified as a “noble risk” (‘καλὸς’, Phd. 114d6). The aim of this analysis is thus to identify the itinerary by which the ‘noble risk’ of palingenesis constructs the axiom and the causal principle of Forms as the explanation of truth and the nature of all beings.

Keywords: Causality, Forms, Participation, Palingenesis.

1. Pressupostos Interpretativos

O carater unico da ultima discussao filosofica de Socrates molda o cenario dramatico para a apresentacao de uma causalidade unificadora: para justificar as causas de sua felicidade1 – um afeto espantoso diante da morte iminente (egōge thaumasia epathon paragenomenos Pl., Phd. 58e1) –, Socrates deve dar razoes que sao tributarias de uma antiga tradicao cultual (palaios logos, Pl. Phd. 70c4) e reconfigura‑ las no ambito argumentativo da filosofia.

Dixsaut identifica as antigas sentencas (τις παλαιὸς λόγος, Phd. 70a4) indiferentemente com os Misterios, as iniciacoes orficas e o pitagorismo, mas tambem o dionisismo e o cinismo (Dixsaut, 1991, p. 46‑ 65). Boyance (1993) identifica a tradicao com o orfismo e o pitagorismo. Bernabe (2011, 62‑ 78) expoe um conjunto de evidencias textuais que fundamentam suficientemente a inferencia de que as mencoes platonicas a antiga tradicao remonta, em ultima instancia, a tradicao orfica, sem no entanto, excluir a gama heterogenea abarcada pela rubrica e o pitagorismo. O carater vago e nao explicito da expressao παλαιὸς λόγος realca o aspecto da autoridade e valor derivados da antiguidade das sentencas. Uma vez que o valor e transmitido pela antiguidade da tradicao, Socrates emprega o termo como meio de estabelecer uma tese provisional lastrada no peso desta tradicao2.

A finalidade desta reflexao consiste em demarcar o itinerario pelo qual a concepcao da palingenesia se configura como axioma e principio que justifica a causalidade das Formas, a verdade e a realidade de todos os seres.

Para tanto, adotarei como pressuposto interpretativo uma abordagem contextual que prioriza o ambiente e o movimento dramatico do dialogo (a exemplo de Cooper (1997), Nightingale (2004), Burger (1984), Zuckert (2009) e Morgan (2004), dentre outros) de modo a empreender uma leitura livre das amarras conceituais implicadas pelo criterio de divisoes cronologicas, tornadas canonicas pelo criticismo textual hegemonico. Como afirma Catherine Zuckert (2009, p. 4, 6.):

Se quisermos descobrir como Platão viu o mundo ou oque ele pensou, precisaremos encontrar um outro modode mostrar (...) o quanto os leitores são mais encorajadosa entender o estatuto e o caráter dos argumentos tomadosnão simplesmente em si mesmos, ou em abstrato, mas damaneira como são apresentados por este filósofo particular,com seu pano de fundo e abordagem distintivos,para uma pessoa específica, ou pessoas, no tempo e lugarindicados, com um efeito discernível.

Em segundo lugar, adoto o pressuposto de Pradeau e Dixsaut da distincao entre “realidade inteligivel” (auto kath’ auto; ousia) e “forma inteligivel” (eidos). No plano da multiplicidade em constante mudanca, a inteligencia pode apreender, mediante os raciocinios, alguma estabilidade na determinacao dos seres. A estabilidade no plano sensivel suscita a possibilidade do conhecimento e indica o “estatuto de uma determinacao” que e inscrita pelas formas. Como afirma PRADEAU (2001, p. 20), a “forma e a determinacao que e dada a uma multiplicidade de coisas sensiveis pela realidade inteligivel, que e uma qualidade singular”. Como inscricao de regularidade no plano sensivel, a determinacao configura uma estrutura relativamente estavel nos seres particulares. Embora comum a cada ser da mesma especie, nada e mais unico do que a “forma” estruturadora.

1.1 A distincao semantica: ousía, eîdos, idéa (οὐσία, εἶδος, ιδέα)

A distincao semantica entre eidos . idea e claramente explicitada por A. Bernabe (2013) a partir do contexto dos pre‑ socraticos. Relacionada com o aspecto visual, a silhueta, eidos abarca aquilo que Bernabe aponta como “valor classificador” e, sobretudo, a funcao de configuracao da materia. Alem disso, a partir de Empedocles3, eidos designaria a forma natural propria, a natureza propria de algo. A relacao material de “configuracao” do visivel confere a nocao de eidos o valor arquetipico da Beleza, na sua funcao de modelar de configurar uma impressao material. Por outro lado, a idea implica um vinculo com a apreensao racional de realidades passiveis, somente, de serem “imaginadas ou conceberem‑ se por meio da razao” (id. p. 102).

Embora Bernabe atribua uma funcao “classificadora” a ambas nocoes, o enfoque causal da filosofia nao e destacado em sua analise filologica. Em vez da assuncao moderna da logica de classes, parece evidente que, no contexto dos pre‑ socraticos, ja emerge uma conexao entre a estruturacao, ou determinacao essencial dos seres, material e visivel, e a apreensao pela inteligencia de conexoes somente pensaveis. A conexao causal entre eidos . idea aponta para a molda de antecedentes pre‑ socraticos da causalidade platonica, os quais pressupoem a inferencia de relacoes inteligiveis a partir da natureza propria, ou determinacao estrutural dos seres4. Ha, pois, uma passagem do visivel para o inteligivel, calcada na distincao semantica entre eidos . idea.

A investigacao mais fecunda (e polemica) acerca de uma distincao semantica entre ousia, eidos . idea foi empreendida por M. Dixsaut no contexto do Fedon.

Em sua analise da questao, A. Lefka (in: Motte, 2003, p. 85‑ 105) endossa a opiniao de Couloubaritsis de que eidos e uma causa e, como tal, designa a especificidade das coisas que a causa representa. A participacao a um eidos e a causa da aquisicao da qualidade designada por este genero, qualidade que e expressa por uma denominacao apropriada. Nao obstante concordar com a tese geral da distincao semantica por ela proposta, neste estudo redefino os tracos distintivos de cada uma das concepcoes em razao da primazia linguistica que a interprete confere ao “pensamento” – dianoia – (Dixsaut, 2000), em detrimento de modalidades imageticas do pensar, notadamente, a do mito filosofico.

Lefka discorda da distincao semantica proposta por Dixsaut, talvez porque os “dados” por ele levantados derivem de uma analise estatistica que ja emprega categorias logicas e linguisticas modernas, alem de abolir a relevancia da coerencia intrinseca ao movimento dramatico dos dialogos. Por sua vez, Jeanmart (ibid. p. 80, 81), em sua analise semantica do termo em Grg. 503e, atribui a eidos o sentido nao tecnico de “aspecto”. Em funcao dos resultados oriundos de um enfoque contextual sinotico, nao sigo o esquema logico‑linguistico que constitui a pedra angular de toda a arquitetura do trabalho de Motte.

Seguindo estes pressupostos, passo a examinar o precedente da imortalidade no contexto do Gorgias como um antecedente proleptico para o estabelecimento da associacao entre causalidade e imortalidade conforme apresentada por Platao no Fedon.

2. O precedente do Gorgias

O delineamento da determinacao estrutural dos seres ja aparece no Gorgias, dialogo em que os scholars nao atribuem uma acepcao tecnica ao termo eidos. Neste dialogo, apos estabelecer a distincao entre o bem e o agradavel (500d), Socrates discrimina a diferenca entre o conhecimento tecnico dos meios, que redundam na melhor qualidade para os seus objetos, da mera habilidade, que visa o prazer como finalidade em detrimento do conhecimento do melhor.

O homem de bem, cujo discurso visa o melhor, fala aoacaso? Não fala com olhar fixo em algo? Como cada umdos outros demiurgos olham fixamente tendo em vista assuas atividades, não é por acaso que escolhem, mas procuramo que precisam para aplicar à sua obra, e selecionamafim de que seu trabalho seja dotado de sua formaprópria. (Pl. Grg. 503d 5‑e6)5

Em todo trabalho demiurgico cada parte e disposta em funcao de uma ordem que impoe ajustamento e harmonia a totalidade, ate que esta seja uma composicao ordenada e com kosmia .hapan systēsētai tetagmenon te kai kekosmēmenon pragma, ‑ Grg. 504a1) e o trabalho seja dotado de sua forma (eidos) propria. Alem disso, ha uma homologia estrutural entre as obras materiais e a alma que suscita a seguinte analogia: assim como a saude e a excelencia que resulta da boa ordenacao do corpo, assim tambem a excelencia da justica e da temperanca resultam da boa ordenacao da alma, chamada lei (tais de ge tes psychēs taxesi kai kosmēsesin nominon te kai nomos, Pl. Grg. 504d,1‑3). Se o retorico e um tecnico, deve olhar fixamente para o paradigma da tecnica e do bem para instilar justica e temperanca na alma do concidadao (Pl. Grg. 504d5‑505e3).

Destarte, a qualidade propria de cada ser deriva da presenca da excelencia da qual deriva:

A excelência própria de cada ser e que lhe torna aquiloque é, seja um artefato, o corpo, a alma e de todos os seresvivos, não se encontra presente nele ao acaso, mas resultade uma ordem, de uma retidão, de uma técnica, proporcionadaa cada um deles6. (Pl. Grg. 506d, 5‑8).

A conexao entre a boa ordenacao, o regramento, a kosmia e a excelencia propria de cada ser equivalem nao somente a determinacao causal, da qual derivam as qualidades dos seres, mas a homologia estrutural entre a natureza propria dos artefatos materiais, dos seres vivos e da alma. As mesmas determinacoes causais que estruturam o plano do devir, estruturam a alma, mediante a presenca de ordenacao e kosmia. Alem disso, o bem constitui, simultaneamente, o fim, a partir do qual sao discriminados os meios para a melhor disposicao, e o modelo normativo tanto para a demiurgia tecnica, como para a praxis etico‑politica.

No Gorgias, a partir da autoridade advinda do influxo da tradicao orfico‑pitagorica7, Platao establece a extensao do dominio de validade da conexao entre causa e efeito, modalidades de regramento e qualidades correspondentes, para o dominio de validade da conexao entre modalidades de ordenacao psiquica e o carater, entre genero de vida e virtude, entre acao e consequencia.

A ordenacao e o regramento modelam uma visao unificada que vincula o ceu, a terra, os deuses e os homens numa realidade complexa bem ajustada, formando uma comunhao cingida pela amizade, ou amor da ordem

(...) O homem que vivesse assim não poderia ser amadonem por um homem nem por um deus. Ele seria impotentepara a comunhão e quando não há comunhão, nãopode haver amizade. Os sábios dizem, Cálicles, que o céu,a terra, os deuses e os homens formam em conjunto umacomunhão; que eles são ligados pela amizade, o amor daordenação, da temperança e senso de justiça. É por causadisso, companheiro, que eles chamam o todo de ‘kósmos’e não desordem nem desregramento. Mas tu, me parece,não prestas atenção a essas coisas, sendo sábio, e nãonotas que a igualdade geométrica é todo poderosa entredeuses e entre homens e tu consideras a ganância de termais (pleonexía), pois negligencias a geometria. (Pl. Grg.507e‑508a)8.

Uma lei absoluta – a proporcao geometrica – governa todas os planos do kosmos e unifica o plano etico‑politico com a physis. Essa ordenacao matematica confere as determinacoes em todos os seres e e todo‑poderosa (mega dynatai) tanto entre os deuses como entre os homens.

2.1 O Influxo orfico e pitagórico

O pano de fundo do passo, como observa De Vogel (1966), e, ao mesmo tempo, orfico e pitagorico. A extensao da nocao de philia do plano das relacoes praticas para o plano cosmico, e vice‑ versa, e uma heranca pitagorica (id. p. 151, ss.). A “amizade” expressa, simultaneamente, a justica natural, civica e a solidariedade entre todos os planos do cosmo. Alem disso, a philia define um “estado” psiquico de “harmonia interna” que poe em consonancia elementos dissonantes. O conjunto cosmico, cingido pela comunhao e amizade, abarca a justica e auto regramento no plano psiquico.

Esta claro que que os homens sabios referidos (no Gorgias) sao os Pitagoricos. Seu pensamento cosmico e universal e usado por Socrates‑Platao como a base da doutrina da existencia social humana, assim como eles sempre tem feito a si mesmos. A virtude humana deve ser uma imitacao da harmonia cosmica; o principio da ordem implica refreamento de desejos e, portanto, unidade, justica, paz interna e felicidade. (De VOGEL, 1966, p. 194)

A ordem nas relacoes e a proporcao geometrica equivalem a beleza e a verdade (Pl., Ti. 31c‑ d), pois “a medida (metriotes) e a proporcao (symmetria) engendram em tudo beleza (kallos) e excelencia (arete) (Pl. Phil. 64c). A virtude e a beleza convergem com a verdade e se unificam na identidade de relacoes, na “comensurabilidade em um todo, segundo o principio geometrico da proporcao” (PERILLIE, 2005, p. 10).

A filiacao pitagorica do contexto que correlaciona a ganancia hedonista (pleonexia)9 com a proporcao matematica remete para o Fr. 3 de Arquitas de Tarento, o qual, segundo Huffman (2005, p. 183, 191), constitui evidencia de que o tarentino certamente foi um dos homens sabios referidos no Gorgias:

Uma vez que o cálculo foi descoberto, cessou a discórdiae aumentou a concórdia. Pois as pessoas não queremmais do que suas partilhas e a igualdade existe, uma vezque isto veio a ser. Pois, por meio do cálculo, nós vemosreconciliação em nossas transações com os outros. (Fr.3, 6‑8)10.

Por outro lado, as colunas V e XXII do Papiro de Derveni sugerem fortemente uma conexao com a tradicao orfica naturalizada, representada pelo “exegeta” do papiro:

Os terrores do Hades... quando consultam (ou consultamos)um oráculo... consultam um oráculo... para elesvamos (iremos) ao santuário oracular a perguntar, comvistas ao que se profetizou, se é lícito crer nos terrores doHades. Por que não creem neles? Se não compreendemos sonhos nem cada um dos demais acontecimentos, emque modelos se baseariam para crer? Assim que, vencidospelo erro e também pelo prazer (kaì tês állēs hēdonês),não aprendem nem creem, e é que a desconfiança e a ignorânciasão uma mesma coisa. Pois se não aprendemnem conhecem, não há maneira de que creiam, inclusivequando veem os sonhos... a desconfiança ... aparece...(BER NABÉ, T 116)11.

O excesso de prazeres leva ao erro e a descrenca e constituem um impedimento para o conhecimento da verdade subjacente aos sinais divinos. O aprimoramento moral aparece como condicao para o conhecimento. Isso indica, Segundo Betegh (p. 90), que o melhoramento moral constitui um sucedaneo intelectualizado para a purificacao catartica obtida mediante a pratica dos ritos. O autor do papiro, em sua exegese intelectualizada, ja promove uma naturalizacao da tradicao orfica mais antiga.

Nas discussões mais recentes acerca da relação entreorfismo e pitagorismo, Bernabé (2004, p. 137 ss.)e Casadesús (in: Bernabé, 2008, p. 1053) apontam avexata quaestio decorrente da tentativa de se identificarelementos comuns entre orfismo e o pitagorismo:“a intenção de identificar o pitagorismo com oorfismo, ou vice versa, responde à impossibilidade dedefinir individualmente cada um dos conceitos quecompõem o termo ‘órfico‑pitagórico”.Por outro lado,Bremmer (2002) e Betegh (in: Huffman, 2014, p. 149‑166.)tendem a apontar mais as diferenças entre asduas classes de fenômenos do que os pontos doutrinárioscomuns.

Mas, enquanto Bremmer defende que o “orfismo foi o produto de uma influencia pitagorica nos misterios baquicos no primeiro quartel do quinto seculo” (id. p. 24), Betegh afirma que tanto o orfismo como o pitagorismo conferem “nova relevancia religiosa a conceitos integrados em uma filosofia natural” (id. p. 166). O aspecto principal nas rubricas heterogeneas e multifacetadas do “orfismo” e “pitagorismo” constitui‑ se na reinterpretacao de concepcoes miticas e na promocao de uma naturalizacao desse amalgama difuso12. Em seu comentario ao Fedon, Durand (2006) ressalta que a ambiguidade com que Platao se refere a tradicao de misterios lhe possibilita o uso sincretico de nocoes religiosas com o objetivo de demarcar a especificidade de uma “atitude filosofica”, que parte de um acervo religioso, como paradigma ou metafora, para estabelecer a finalidade do exame racional

Pode‑ se inferir, a partir das supramencionadas colunas do papiro, o evidente paralelismo com a conexao entre prazeres desregrados dos irrefletidos (tōn anoetōn, Pl. Grg. 493c1), e a negligencia (ameleia, Pl. Grg. 508a), a ignorancia, a falta de formacao (apaideusias, Pl. Grg. 527e), a falta de fe e o esquecimento (apistian te kai lethēn, Pl. Grg. 493c2) nao pode ser fortuito, sobretudo pelo fato de o Papiro de Derveni nao possuir correlacao direta com o corpus platonico. Ademais, na col. XXII do papiro, a alusao explicita a pleonexia associa, mais uma vez, a ignorancia (amathia) com a inconstancia dos desejos e a incapacidade de nomear corretamente as coisas (BERNABE, 2004, T. 133, p. 181; 2007, p. 244).

No Gorgias, o genero de vida filosofico se distingue pelo postulado desse principio unificador segundo a regularidade matematica. Neste todo, a alma e a instancia que engendra a unificacao causal entre a multiplicidade do devir, a praxis etico‑politica e a natureza psiquica. Cada acao pratica (hekastou pragmatos) acarreta a natureza e afeccao propria tanto para o corpo como para a alma (Grg. 524d).

A alma, afirma Dixsaut (2003, p. 169), e o elo interno que impede que a psicologia a etica, a politica ou a cosmologia platonicas de se constituirem como dominios autonomos. A vida e o pensamento derivam dos movimentos psiquicos e eles se transferem para a natureza como coesao e como padrao de organizacao na cidade.

As multiplas referencias orfico‑pitagoricas do Gorgias sugerem, implicitamente, a transmigracao como fundamento para a conexao causal acao/retribuicao – (Cornelli (2011); Bernabe (2013); e Marc Durand (2006); contra Annas (1982) e Irwin (1979). Todos os sofrimentos e dores infligidos aos injustos no Hades atuam como remedios amargos e lhes sao uteis como meio para desembaracar‑ se da injustica e como paradigma para os demais homens (524b‑ c): “Ora, todo ser que se pune e ao qual se inflige o castigo necessario merece melhorar e tirar proveito de sua pena” (Grg. 525b). A possibilidade de tornar‑ se melhor (beltious gignōntai) justifica a inferencia da oportunidade de uma nova vida.

Alem disso, a determinacao matematica que estrutura os seres e consonante com a determinacao psiquica da philia cosmica e com a natureza dos desejos psiquicos, que operam como causas da natureza da propria alma. Por essa razao, a natureza propria de todos os seres pressupoe a presenca de uma forma propria.

A tese da transmigracao como condicao para o melhor, esbocada no Gorgias, e reforcada por um passo simetrico em Republica X (601d, 4‑ 6):

Ora, a excelência, a beleza e a retidão de cada artefato, decada ser vivo, de cada ação são ordenadas a algo diferentesomente para o uso de cada um, ou seja, àquilo por quecada um existe, quer seja fabricado, quer exista naturalmente.

Neste contexto, as contradicoes entre as imagens do aparecer denunciam uma vulnerabilidade na natureza da alma que a torna suscetivel as encantacoes da magia. Somente a medida, o calculo e a pesagem salvaguardam a apreensao da natureza propria de cada ser, ou seja, de sua forma determinante (R. X. 602d).

A reconfiguracao platonica da doutrina da transmigracao representa uma naturalizacao de fenomenos etico‑ psiquicos que nao poderiam ser explicados por causas materiais ou evitar o agenciamento abusivo das encantacoes magicas. Esse processo de naturalizacao e particularmente destacado por Gregory (1996)13:

O fato de Platão ter considerado que explanações materiaiseram inadequadas para explicar alguns fenômenos,não significa que as explanações que ele emprega sejamnão naturais. As Formas podem ser de uma ordem diferentedas entidades dos objetos físicos, mas dificilmentepoderiam ser pensadas como não naturais, pois elas possuemnaturezas invariantes em seus modos específicos dese relacionarem com entes físicos.

Nessa naturalizacao, Platao promove uma transposicao das iniciacoes orficas mediante as imagens do mito filosofico. A autentica decifracao da hyponoia consiste em apreender as relacoes de causa e consequencia que se ocultam sob os signos do mito de julgamento. O filosofo e aquele que investiga o regramento cosmico e a proporcao geometrica e os aplica como principios de acao e de inteligibilidade da alma. A alma justa e a alma bem ordenada em consonancia com a harmonia cosmica (Pl. Grg. 507a).

Na planicie invisivel, em que as hierarquias da vida sao equalizadas no mesmo metron, as formulas de reconhecimento, as palavras de passe e a memorizacao de prescricoes rituais orficas sao transpostas pelo “olhar da alma” que perscruta outra alma. Para Platao, os discursos sagrados (hieroi logoi) nao mais expressam a natureza propria do recipiendario e por isso, o sentido enigmatico do discurso polissemico perde a finalidade. Somente o olhar perscrutador, despido de toda aparencia artificial, pode apreender a verdade dos seres e determinar o destino correlativo a natureza propria de cada alma. Os verdadeiros bakkhoi nao sao os que se declaram puros, mas sao aqueles que, puros, resplandecem as ordenacoes da justica, efetivadas em vida, na silhueta de sua propria natureza psiquica.

3. Alma e causalidade no Fédon

A desconcertante atitude de satisfacao (adeōs) e nobreza (gennaios) de Socrates contrasta com a piedade e tristeza (eleinon, penthos) suscitada pelo misterio da entrada na morada de Hades. Os opostos se interpoem: Fedon experimenta uma mistura (krasis) entre prazer e dor, ao passo que Socrates, o mais justo dos homens, aquele que mais merece viver, deseja a morte iminente, porque alimenta a bela esperanca de encontrar a realizacao dos seus esforcos e o alvo de seu amor: a purificacao plena do pensamento.

A atopia da atitude procura justificacao no acervo tradicional das imagens miticas dos Misterios. A propria definicao de morte pressupoe a realidade, o desligamento e a subsistencia da alma – a instancia que reclama razoes e cuja natureza exige camadas sempre aprofundadas de significacao.

Sem definir a alma, Platao reconfigura os axiomas de pistis tomados de uma tradicao amalgamica e heterogenea, particularmente do orfismo. As referencias as formulas secretas (apoorretoi) e uma antiga tradicao (palaios men oun esti tis logos, Pl. Phd. 70c) sugerem a postulacao de crencas e hipoteses cuja autoridade deriva de uma transmissao iniciatica que remonta a poemas atribuidos a Orfeu.

Nao obstante, crer e diferente de conhecer e Platao submete este acervo de crencas ao crivo da investigacao argumentativa. Os argumentos desenvolvidos no Fedon repassam as nocoes causais forjadas no campo mitico dos cultos ate operar a radical reconfiguracao que redunda na sofisticada hipotese das Formas.

O emprego de uma gama de modalidades discursivas multifacetadas, entrelacando mythos . logos inextricavelmente, concilia a eficacia magica da encantacao imagetica com a razoabilidade do argumento que se abre para niveis mais elevados de inteligibilidade. Todos os argumentos acerca da imortalidade se abrem para a possibilidade de revisao diante de novas investigacoes. Mas para lidar com o medo, um dos signos que denunciam o amor ao uso do corpo como meio de saciacao, e preciso mais do que o estabelecimento de hipoteses provisionais: e preciso assumir a coragem do risco propiciada pela exortacao e encantacao musical (Nunes Sobrinho, 2007). As imagens e a encantacao compoem um modo de comunicacao polissemica, com sentido subliminar (hyponoia), enderecada a afetividade da alma.

3.1 Corpo ‑ Prisao

A formula orfica que identifica a vida corporal com um posto de guarda (phroura), do qual devemos cuidar e nao nos evadir, e grandiosa, mas de dificil discernimento (dieidon) e algo irracional (Phd. 62b).

Segundo Bernabe (2011, p. 215), a palavra phroura, por ele traduzida como custodia, nao pode ser orfica e denota uma invencao do proprio Platao, por ser impropria para o uso em hexametro, que e a metrica dos poemas orficos. Sumarizando sua interpretacao, 1) a questao do corpo como prisao (sōma‑sēma), explicitamente mencionada em Cratilo 400c, remonta aos circulos orficos; 2) orficos e pitagoricos ja entendiam sēma no sentido de que a alma significa (sēmainei); 3) Platao reinterpreta sōma no sentido positivo de salvamento (soizdō) e protecao da alma.

A etimologia do termo sugere a conotacao de vigilancia, de uma guarnicao ou posto de guarda (Chantraine, 1968)14. A partir de Damascio15, Dixsaut (1991) traduz o termo como “residencia guardada”, mas nao exclui o sentido de “jaula” ou “lugar de detencao” (Grg. 525a). A ambivalencia sugere que Platao pode ter usado o termo intencionalmente visando transpor a tradicao orfica para a sua propria cosmovisao.

O corpo passa a ser veiculo necessario para que a alma signifique e expresse o pensamento. Ao expressar‑se atraves do corpo, em palavras, gestos e toda forma de expressao mimetica, a alma comanda a natureza corporal pelo pensamento. Como meio de expressao, o corpo pode ser, simultaneamente, salvaguarda da alma e da phronesis, ou custodia, aprisionamento. Somente o modo de relacao estabelecido entre a alma e o uso que ela faz do corpo pode determinar se esta sera uma relacao de preservacao e salvamento ou a relacao de um encadeamento.

O que determina a natureza da alma e sua relacao corporal em sucessivas transmigracoes sao suas ocupacoes habituais, o modo de viver e, em ultima instancia, suas escolhas (Phd. 81e). Terrores, apetites selvagens (Phd. 81a), prazeres, dores e temores (Phd. 83b) colam a alma no corpo (Phd. 83d) e configuram sua realidade. Por outro lado, embora a vida corporea seja uma injuncao necessaria, a alma que estabelece uma boa relacao com o corpo, como meio de expressao e significacao, obtem a salvaguarda de seu parentesco e similaridade com o divino: o pensamento purificado.

(...) Aqueles amantes do aprender, no momento em que afilosofia toma posse de suas almas, esta alma que era encadeadaao interior do corpo de um modo bom, fundidaa ele, se vê obrigada a examinar todos os seres atravésdele como através das barras de uma prisão (hósper diàheírgmoû dià toûtou skopeîsthai tà ónta), e não fazê‑lo emsi e por si mesma, se enrolando na total ignorância. Ora, afilosofia discerne que o que há de mais terrível na prisão éque ela é causada pelo apetite (toû heírgmoû tèn deinótētakatidoûsa hóti di’ epithymías estín) de modo que é o encadeadomesmo que coopera da maneira mais eficaz comseu estado de encadeado16 (Pl. Phd. 82d‑e).

Platao reconfigura a concepcao orfica do corpo prisao e a transpoe em prisao e encadeamento da alma aos proprios apetites. A verdadeira prisao nao se identifica tanto na necessidade de que a alma esteja em um corpo, mas no modo como a alma estabelece a relacao com o corpo e na usurpacao de seu uso com a finalidade de saciar apetites que lhes sao intrinsecos.

Injuncao inexoravel, a vida corporal enseja a oportunidade de libertar a alma dos enganos (apatēs) mediante a emancipacao do pensamento em relacao as impressoes, ate que ela atinja o estado correlativo a purificacao iniciatica, a phronesis (Nunes Sobrinho, 2011b). A filosofia acalma e pacifica o mar agitado dos apetites e transforma a alma em um mar calmo (galenē), fazendo com que ele seja aparentada e semelhante ao divino (Phd. 84a‑ b).

A reflexao filosofica postula a morte como o estado oposto ao da vida, cuja experiencia e a da uniao psicofisica. O oposto dessa uniao implicita e a separacao (chōris) em realidades distintas, que passam a existir apartadas em si mesmas (Phd. 64c).

O longo exercicio de separacao equivale a emancipacao do pensamento das injuncoes corporais. O paroxismo desse penoso exercicio e o isolamento possivel da inteligencia neste modo de relacao que e a vida corporal. Este relativo isolamento jamais se consuma integralmente antes da morte e constitui um estado da alma, a phronesis, que e a resultante de uma vida inteira devotada ao exercicio filosofico.

3.2 A Purificacao Filosofica

O desejo pela verdade dos seres e o amor por uma condicao da alma, amor da phronesis17. E aquele que realmente e amante da phronesis possui a esperanca de encontra‑ la no Hades, o invisivel cuja separacao assimila a pureza completa e a emancipacao do pensamento18. O destino da alma invisivel e purificada e o nobre, verdadeiro e puro Hades invisivel (Phd. 80d).

Essa nova concepcao suplanta a experiencia religiosa orfica e associa o Hades com o reino inteligivel do pensamento puro (Dorter, 1982). Por conseguinte, a phronesis e um pathēma, um estado psiquico que, como ressalta Durand (2006, p. 43), nao designa “uma funcao ativa que permitiria apreender o Ser ou o Deus, mas um estado de perfeicao, uma atitude, uma disposicao da alma atingivel apos um processo de purificacao filosofica, a exemplo dos Misterios”.

A concepcao platonica de um estado psiquico marcado pelo pensamento depurado e sucedanea ao estado de pureza ritual decorrente da iniciacao. Tal estado de pureza constitui o fim ultimo do bios orfico, caracterizado por observancias e interdicoes exigidas para a pertenca no grupo. A questao da pureza e claramente esbocada na lamina mortuaria de Turios (Bernabe, 2001, p. 136):

Venho de entre os puros, pura, rainha dos seres subterráneos

Eucles, Euboleu e demais deuses imortais.

Pois tambem eu me aprecio por pertencer a vossa estirpe bem‑ aventurada,

mas me submeteu o fado e o que fere dos astros com o raio.

Sai voando do penoso ciclo de profundo pesar,

me lancei com ageis pes para por a ansiada coroa

e me sumi sob o regaco de minha senhora, a rainha subterranea:

“Venturoso e afortunado, deus seras, de mortal que eras”.

Cabrito, em leite cai.

A purificacao expiatoria orfica, que envolvia preceitos e abstinencias, foi transposta em penoso exercicio de isolamento do pensamento e de substituicao dos apetites tempestuosos pela calma do desejo amoroso pela sabedoria. O exercicio dialetico e o correspondente psiquico analogo ao dos ritos orficos encenados e uma dramatizacao mental que interioriza o drama exterior.

No primeiro argumento em prol da imortalidade da alma, Platao parte da alusao aos misterios orficos para inferir uma generalizacao e estabelecer o principio de que a geracao de contrarios provem de seus contrarios. O argumento dos opostos institui o principio da simetria em todos os processos da experiencia e, uma vez que a alma faz parte da natureza, seria razoavel inferir que os processos psiquicos sejam igualmente simetricos e reversiveis, notadamente, o morrer e o viver. Desse modo, Platao estabelece a isotropia e a simetria nos processos naturais e empreende uma naturalizacao da antiga nocao orfica de alma: uma composicao heterogenea de elementos titanicos e dionisiacos que deveria purificar‑ se atraves de cultos rituais e esconjuracoes magicas19.

A questao da distincao racional das virtudes se entrelaca na exigencia epistemica da emancipacao do pensamento e na insercao dos processos psiquicos no ambito das causas naturais. Socrates reconhece os preceitos daqueles que ele denomina “os genuinos filosofos” (tois gnēsiōs philosophois, Pl. Phd. 65b2) apenas para operar a transposicao filosofica que distingue o verdadeiro iniciado bacante como aquele que filosofa retamente e nao com os portadores de tirso (Nunes Sobrinho, 2011b).

Mas por que Platao adota provisoriamente axiomas de um cadinho heterogeneo de cultos orficos somente para supera‑ los e abandona‑ los? Por que a oscilacao entre modalidades discursivas diversas, cujas ressonancias, ora afetivas, ora argumentativas, nao se implicam mutuamente? Tais questoes exigem sempre uma decisao interpretativa que necessariamente exclui um numero ilimitado de vieses possiveis.

Nao obstante, deve‑ se notar que toda iniciacao pressupoe uma longa cadeia de transmissao de saberes, praticas e valores cuja autoridade deriva da antiguidade. Nenhum recipiendario inicia‑ se a si mesmo, mas e iniciado, reconhecido numa pertenca, desde que passe por provas rituais num contexto tradicional (Eliade, 1959). As hipoteses que se reportam aos misterios sao impregnadas de valor e autoridade. O recurso a autoridade confere solidez a teses que devem passar pelo escrutinio do exame racional, mas, como afirma Kathryn Morgan (2004, p. 181, 182), a linguagem e apanagio da vida corporal e, por isso, e sujeita as distorcoes introduzidas pela encarnacao da alma e pela propria instabilidade intrinseca ao plano do devir que e o palco da linguagem20.

Sócrates afirma que a linguagem tem uma natureza duale isto levanta o problema de como alguém deve distinguirum discurso falso. A falsidade reside somente na maioriados homens e isso confere a esperança de que os filósofospossam aproximar‑se da verdade através dos discursos.Palavras são imagens que se assemelham à realidade queelas apresentam, mas há sempre uma deficiência entreimagem e realidade. (...) A melhor fala tem a maior semelhançacom a realidade, mas Sócrates qualifica este prospecto:isso só ocorre na medida do possível.

4. Anámnesis, Afinidade e Opostos

No argumento da reminiscencia, a questao da natureza da alma e de sua imortalidade modela a conexao entre o estado da alma e seu estatuto moral com o conhecimento. Embora se inicie com os sentidos, o conhecimento daquilo que existe em si mesmo, o igual em si, e necessariamente anterior ao inicio temporal da percepcao. A argumentacao acerca da anterioridade da alma ao nascimento traz em sua esteira o principio subjacente de que a questao das virtudes exige justificacao no desenvolvimento de uma epistemologia. A imortalidade e o conhecimento alcam a memoria a um papel constitutivo na questao da pureza do carater e da inteligencia longamente preservado pela tradicao orfico‑pitagorica.

O influxo tradicional que se desdobra em uma filosofia da memoria foge ao escopo deste estudo. Mas, a titulo de exemplo, e pertinente lembrar os versos da lamina mortuaria de Petelia:

Acharas a esquerda da mansao de Hades, uma fonte

e junto dela, um alvo cipreste erguido.

Desta fonte nao deverias te aproximar nem um pouco!

Mas acharas do outro lado o lago de Mnemosine,

agua que flui fresca. E muito perto alguns guardioes.

Dize: “Da Terra sou filho, e do Ceu estrelado,

mas minha estirpe e celeste. Sabei‑o tambem vos.

De sede estou seco e me morro. Da‑me,pois, depressa

agua da que flui fresca do lago de Mnemosine”

E eles te darao de beber da sagrada fonte

e em seguida reinara com os demais herois.

Isto e obra de Mnemosine (...)

Lamina de ouro de Petelia, L3.

(BERNABE, 2001, p. 27).

No imaginario orfico, qual e a necessidade do vinculo entre a memoria e a condicao futura? Por que aqueles que se lembram se distinguem dos demais e conseguem acesso a fonte eterna ate ascenderem ao destino da divindade? E por que aqueles que nao se lembram padecem na lama e sao condenados a um ciclo indefinido de nascimentos e mortes?

As imagens da lamina indicam que as almas chegam ao Hades com a lembranca de uma experiencia imediata em vida: o apetite da sede. A aflicao apetitiva reclama saciacao e alivio e, por isso, as almas nao iniciadas sao incapazes de refrearem o impulso para o refrigerio. Somente os iniciados, depois de uma vida de ascese, podem resistir a sede ardente e beber da fonte de Mnemosine. Os apetites reclamam saciedade nas aguas do esquecimento e implicam a queda no ciclo de transmigracoes. A memoria, por outro lado, representa, ao mesmo tempo, a libertacao do corpo e dos apetites e o acesso a uma condicao bem‑ aventurada.

Desse modo, ha varios niveis de memoria: 1) a lembranca imediata suscitada pela saciedade previa de um apetite; 2) a reminiscencia de um saber ritual e das formulas de reconhecimento; e 3) a memoria consignada aos que tem acesso a fonte da memoria eterna. A distincao entre as almas que chegam ao mundo invisivel e determinada pelas escolhas que compoem o genero de vida. Aquele que vive preso ao tempo do corpo e incapaz de reconhecer a propria identidade no tempo eterno sem o corpo.

No Fedon, o argumento da reminiscencia expoe a conexao entre as impressoes e a subsequente conservacao pela memoria. Num primeiro nivel, a memoria e a faculdade de conservar uma afeccao. Em seguida, ha a associacao entre afeccoes e concepcoes e, por fim, a reminiscencia de um conhecimento a partir de nocoes previas. Somente a recuperacao de um conhecimento latente na alma e anamnesis.

A anamnesis filosofica supera o conhecimento ritual do iniciado, pois constitui o resultado de recuperacao de um conhecimento ja inscrito na alma. A reminiscencia unifica aquilo que e disperso e perdido na custodia do corpo. Quando a alma busca, por si mesma, concentrar‑ se em si mesma e assemelhar‑ se ao divino, unifica o conhecimento disperso na multiplicidade do devir.

Platao promove uma inflexao em relacao a tradicao naturalizando a nocao de transmigracao e convertendo‑ a em postulado que justifica a unificacao de sua etica, epistemologia, causalidade e cosmologia. Como afirma Francesc Casadesus (In: Bernabe, 2011, p. 295), o exercicio filosofico exige um metodo para que a alma passe da condicao de esquecimento e ignorancia para o saber e a verdade:

Recorrer a este longo e arduo caminho, do esquecimento ao conhecimento da verdade, e a tarefa que o filosofo tem de realizar. Viagem que, por sua vez, deve ser levada a cabo mediante um metodo que garante o exito da empresa. Nisto consiste o que poderiamos denominar “o nucleo epistemologico do pensamento platonico: as almas devem dirigir sua atencao para as Formas, ou Ideias divinas (...)

A transposicao da transmigracao em causalidade prossegue no argumento da afinidade no qual, reconfigurando os antecedentes orfico‑pitagoricos, Platao separa dois planos de realidade distintos: o visivel e o invisivel. O recurso dramatico permite uma cadeia de associacoes entre a natureza propria de cada plano e a natureza da alma. A dissolucao do corpo nao impede a apreensao de conexoes causais ao mesmo tempo fisicas e materiais. Acoes repetidas em vida engendram efeitos correspondentes no corpo cujos sinais sao manifestos e duradouros. Abusos deixam marcas relativamente estaveis no corpo, mesmo depois de consumada a morte.

Por outro lado, o cultivo de afetos violentos, atraves de uma relacao corporal abusiva, deixa marcas estaveis na alma. A analogia entre planos de realidade e a separacao pressuposta pela definicao de morte e direta e reciproca: as escolhas e acoes constituem as causas da natureza da alma atraves da instauracao de um modo de relacao estabelecida previamente em vida. A presenca de ininteligencia (anoia, Phd. 81a), medos (phobōn) e amores brutais (agriōn erotōn), bem como todos os outros males e impurezas, produzem o efeito de tornar a natureza da alma semelhante a dos seres sujeitos a dissolucao.

Em contrapartida, a comunhao e companhia constante com o invisivel imutavel e divino torna alma semelhante a natureza divina, suscetivel de habitar junto aos deuses, segundo a formula dos que foram iniciados (hosper de legetai kata ton memyēmenōn, Phd. 81a‑5, 6.).

O plano da realidade visivel e dos seres sujeitos a decomposicao e o efeito cuja causa origina‑ se em uma realidade incomposta, identica a si mesma e invariavel. Esta realidade permite que se de razoes da existencia dos seres (aute hē ousia hēs logon didomen tou einai, Phd. 78d1) mediante a dialetica. Esta “realidade em si mesma” invariante tem uma forma unica (monoeides on auto kath’ auto) e inscreve, mediante participacao, determinacao nos seres de modo a terem uma realidade semelhante e direito a um nome especifico.

Platao emprega um vocabulario amplo para designar a acao estruturadora das formas: metekhein, metalambanein, metexis, kinonein, koinonia, parousia, pareinai, dentre outros termos. De modo geral ha o traco comum de inscricao, de presenca, compartilhamento, indicando a transferencia de regramento de uma realidade para outra. Mas, diferentemente dos seres destituidos de vida, a alma elege livremente o alvo de sua presenca, de seus movimentos e comunhao. O alimento e a ocupacao ordinaria determinam a natureza psiquica. Essa nova concepcao promove uma sintese entre as causas fisicas e causas psiquicas e encontra justificacao na imortalidade e na transmigracao.

Entretanto, alem de ser imortal, e preciso a justificacao de que a alma seja, tambem, indestrutivel, para afastar o temor de que seja dispersa como fumaca. A dissipacao de cinzas provavelmente remete para o mito orfico do desmembramento de Dioniso Zagreu e dos Titas, fulminados com o raio de Zeus e transformados em cinzas. A tradicao orfica indica a possibilidade de que seres divinos possam ser destruidos como cinzas (Bernabe, 2001).

A reconfiguracao platonica enseja a naturalizacao da transmigracao como suporte imagetico para uma teoria causal unificadora: 1. Ha seres cujas propriedades essenciais sao completamente determinadas pelas Formas que lhes conferem o nome; 2. Ha seres que possuem propriedades essenciais e que, simultaneamente, participam de Formas opostas, mas que nao sao determinados essencialmente por estas propriedades opostas correspondentes; 3. Ha seres essencial e completamente determinados por Formas, de maneira indireta, ou seja, seres cuja essencia e simultaneamente determinada pela Forma que lhes confere o nome e por outra Forma que lhes impoe uma propriedade essencial.

A alma e essencialmente, e indiretamente, determinada pela forma da vida e e indissociavel dela. Essencialmente destinada a infundir a vida, a alma implica a ideia, a inteligibilidade racional propria de “vida”. Indissoluvelmente ligada a Forma da vida, eterna e indestrutivel, a alma se opoe indiretamente a Forma contraria da vida, que e a Forma da morte. Nao podendo acolher a sua determinacao essencial contraria, quando a Forma da morte conquista e se sobrepoe ao composto psicofisico, a alma se retira e se deliga do corpo, carregando a Forma da vida. Como as Formas sao indestrutiveis, alem de imortal e transmigrar rumo a excelencia divina, a alma e, tambem, indestrutivel, ja que e inseparavel da Forma da vida.

Desse modo, Platao modela a apoteose que reconfigura o antigo relato da transmigracao numa teoria causal abrangente que, a despeito de sua formulacao racional, nao prescinde da nocao da transmigracao como postulado fundamental.

5. Conclusoes

No Fedon, reconhecido como o “mais religioso” dos dialogos platonicos, Platao empreende uma radical reconfiguracao da “doutrina” da transmigracao orfico‑pitagorica. Nessa remodelagem, ha um completo despojamento das praticas rituais, das observancias asceticas exteriorizadas e das preocupacoes de ordem soteriologica. A condicao de pureza implica a emancipacao do pensamento e a conquista de um estado psiquico particular atraves do exercicio filosofico: a phronesis.

A natureza da alma deriva do objeto de sua ocupacao e frequentacao; e seu destino e consequencia natural que emerge em harmonia com sua condicao. Tal natureza depende do modo como a alma se vale do corpo para isolar‑ se em si mesma naquilo que lhe e mais distintivo: o pensamento. Instancia que deve ser guardada, o corpo pode ocasionar a plena expressao e significacao do pensamento. Custodia carceraria, o corpo pode ensejar a dispersao da alma na multiplicidade dos apetites.

Nos argumentos em prol da imortalidade, a transmigracao suscita o estabelecimento de principios que haveriam de ser perenes no pensamento ocidental: a simetria, a estabilidade nos processos e a causalidade universal. A simetria, a mais bela das relacoes (Tim. 31c), identifica‑ se com a proporcao geometrica e com a verdade (Phil. 64e). A questao dos opostos engendra a nocao de que em todos os processos naturais existe equivalencia . reversibilidade (Lederman, 2004). Ademais, a estrutura e determinacao essencial dos elementos particulares implica a proporcao geometrica e harmonia, num equilibrio de compensacoes que garantem invariancia. So existe anamnesis daquilo que e invariante e, por conseguinte, o conhecimento e conhecimento de invariancias.

Paradoxalmente, no mais “mistico” de seus dialogos, em vez de forjar uma causalidade para a transmigracao, Platao se vale do postulado da transmigracao para forjar uma causalidade natural, ao mesmo tempo racional e encantadora.

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Notas

1 εὐδαίμον γάρ μοι ὁ ἀνὴρ (Pl. Phd. 58e 3).
2 Como afirma K. Morgan (2004, p. 163, 164), “a audiencia do mito reconhece que seu conteudo ou ‘moral’ e verdadeiro. Socrates explicitamente introduz a verdade como um criterio para julgar o valor de qualquer tradicao”. A autoridade “verdadeira” da antiga tradicao e posta em um contexto dialetico. 3 τρίς μιν μυρίας ὧρας ἀπὸ μακάρων ἀλάλησθαι, φυομένους παντοῖα διὰ χρόνου εἴδεα θνητῶν ἀργαλέας βιότοιο μεταλλάσσοντα κελεύθους. (...) eles erram tres vezes dez mil anos longe das moradas dos bem‑ aventurados, nascendo atraves do tempo sob todas especies das formas mortais, que penosos caminhos de vida vao mudando entre si. Hipolito, Refutacao, VII, 29. Emp. 107.6‑ 7 W. = DK B 115. 6‑ 7. Trad. de J. Cavalcante de Souza, ligeiramente modificada.
3 τρίς μιν μυρίας ὧρας ἀπὸ μακάρων ἀλάλησθαι, φυομένους παντοῖα διὰ χρόνου εἴδεα θνητῶν ἀργαλέας βιότοιο μεταλλάσσοντα κελεύθους. (...) eles erram tres vezes dez mil anos longe das moradas dos bem‑ aventurados, nascendo atraves do tempo sob todas especies das formas mortais, que penosos caminhos de vida vao mudando entre si. Hipolito, Refutacao, VII, 29. Emp. 107.6‑ 7 W. = DK B 115. 6‑ 7. Trad. de J. Cavalcante de Souza, ligeiramente modificada.
4 O recurso as imagens como meio de inteligibilidade e apontado por Olimpiodoro (1998, 46.2, 46.3) como a “inferencia do invisivel a partir do visivel, do incorporeo a partir do corporeo”. A alma e uma imagem da natureza e o discurso mitico, uma imagem da alma. Por conseguinte, o mito filosofico e uma “imagem da imagem”.
5 Trad. Modificada a partir de M. Canto. Orig. ὁ ἀγαθὸς ἀνὴρ καὶ ἐπὶ τὸ βέλτιστον λέγων, ἃ ἂν λέγῃ ἄλλο τι οὐκ εἰκῇ ἐρεῖ, ἀλλ᾽ἀποβλέπων πρός τι; ὥσπερ καὶ οἱ ἄλλοι πάντες δημιουργοὶ βλέποντες πρὸς τὸ αὑτῶν ἔργον ἕκαστος οὐκ εἰκῇ ἐκλεγόμενος προσφέρει πρὸς τὸ ἔργον τὸ αὑτῶν, ἀλλ᾽ ὅπως ἂν εἶδός τι αὐτῷ σχῇ τοῦτο ὃ ἐργάζεται. 6 ἀλλὰ μὲν δὴ ἥ γε ἀρετὴ ἑκάστου, καὶ σκεύους καὶ σώματος καὶ ψυχῆς αὖ καὶ ζῴου παντός, οὐ τῷ εἰκῇ κάλλιστα παραγίγνεται, ἀλλὰ τάξει καὶ ὀρθότητι καὶ τέχνῃ, ἥτις ἑκάστῳ ἀποδέδοται αὐτῶν: ἆρα ἔστιν ταῦτα;
6 ἀλλὰ μὲν δὴ ἥ γε ἀρετὴ ἑκάστου, καὶ σκεύους καὶ σώματος καὶ ψυχῆς αὖ καὶ ζῴου παντός, οὐ τῷ εἰκῇ κάλλιστα παραγίγνεται, ἀλλὰ τάξει καὶ ὀρθότητι καὶ τέχνῃ, ἥτις ἑκάστῳ ἀποδέδοται αὐτῶν: ἆρα ἔστιν ταῦτα;
7 Para um maior detalhamento acerca da transmissao de um pano de fundo orfico mais antigo para o contexto do fim do seculo V e inicio do IV, no qual havia uma reelaboracao desta tradicao mediante interpretacoes alegorizantes, ver Bernabe (2011).
8 Traducao modificada a partir de M. Canto (1993).
9 Para uma discussao detalhada da pleonexia na Grecia antiga, ver Huffman (2005, p. 205‑ 211); Ballot (2001). 10 στάσιν μὲν ἔπαυσεν ὁμονόιαν δὲ αὔξησεν λογισμός εὑρετείς. πλεονεξία τε γὰρ οὐκ ἔστι τούτου γενομένου καὶ ισότας ἔστιν· τούτῳ γὰρ περὶ τῶν συλλαγμάτων διαλλασσόμεθα.
10 στάσιν μὲν ἔπαυσεν ὁμονόιαν δὲ αὔξησεν λογισμός εὑρετείς. πλεονεξία τε γὰρ οὐκ ἔστι τούτου γενομένου καὶ ισότας ἔστιν· τούτῳ γὰρ περὶ τῶν συλλαγμάτων διαλλασσόμεθα.
11 Adoto a traducao de Bernabe (2004, p. 160; 2007, p. 192).
12 Para uma discussao detalhada sobre o influxo do orfismo em Platao ver: Bernabe (2011).
13 Kindle version, Loc. 1014.
14 Segundo Chantraine (1968, p. 1229), φρουρός designa “guarda, guardiao”; φρούριον, “forte”, “guarnicao”; e o verbo φρουρέω, “montar guarda, guardar, defender”. Dai, φρουρά: “guarda, vigilancia, guarnicao, faccao”. Nesse sentido, ver: Hdt. 2.30; 6.26; 7.59.
15 Damascio (I, 2‑ 3) afirma que a φρουρά nao e nem o Bem, nem o prazer, como afirma Numenio, nem o Demirgo, como diz Paterio, mas, como diz Xenocrates, e da ordem titanica e culmina em Dioniso (Westerink, 1977). No vies neo‑platonico a “custodia” remonta as iniciacoes, τῆς τελεστικῆς.
16 Traducao modificada a partir de Dixsaut (1991). 17 ἡμῖν ἔσται οὗ ἐπιθυμοῦμέν τε καί φαμεν ἐρασταὶ εἶναι, φρονήσεως (Phd. 66e2); 18 φρονήσεως δὲ ἄρα τις τῷ ὄντι ἐρῶν, καὶ λαβὼν σφόδρα τὴν αὐτὴν ταύτην ἐλπίδα (Phd. 68a5); μηδαμοῦ ἄλλοθι καθαρῶς ἐντεύξεσθαι φρονήσει ἀλλ᾽ ἢ ἐκεῖ (Phd. 68b3).
17 ἡμῖν ἔσται οὗ ἐπιθυμοῦμέν τε καί φαμεν ἐρασταὶ εἶναι, φρονήσεως (Phd. 66e2);
18 φρονήσεως δὲ ἄρα τις τῷ ὄντι ἐρῶν, καὶ λαβὼν σφόδρα τὴν αὐτὴν ταύτην ἐλπίδα (Phd. 68a5); μηδαμοῦ ἄλλοθι καθαρῶς ἐντεύξεσθαι φρονήσει ἀλλ᾽ ἢ ἐκεῖ (Phd. 68b3).
19 Sobre o mito orfico do desmembramento de Dioniso, ver West (1983), Bernabe (2001) e Graf (2007).
20 Para o vinculo entre nomes e imagens, ver (Pl. Crat. 432b‑ 435c).
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