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PRESSUPOSTOS E IMPLICAÇÕES ÉTICAS DA METAFÍSICA DIALÉTICA NA CARTA SÉTIMA DE PLATÃO
Luiz Rohden
Luiz Rohden
PRESSUPOSTOS E IMPLICAÇÕES ÉTICAS DA METAFÍSICA DIALÉTICA NA CARTA SÉTIMA DE PLATÃO
PRESUPPOSITIONS AND ETHICAL IMPLICATIONS OF THE DIALECTICAL METAPHYSICS IN PLATO’S SEVENTH LETTER
Revista Archai, núm. 17, pp. 13-35, 2016
Universidade de Brasília
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Resumo: Partindo do fato de que a hermenêutica filosófica de hans-Georg Gadamer incorporou vários aspectos da filosofia de Platão, objetivamos explorar e aprofundar alguns pressupostos éticos da metafísica dialética. elegemos, como objeto de leitura filosófica, a Carta Sétima de Platão do ponto de vista da imbricação entre metafísica dialética e ética. Trataremos de mostrar que a metafísica dialética platônica é tramada pelo movimento ascendente e descendente dos princípios; o primeiro exercício teórico-prático pavimenta a metafísica e o segundo exercício prático-teórico institui a ética. em linguagem gadameriana, isso se estampa no modo de proceder dialógico da hermenêutica filosófica, sustentada sobre o entrecruzamento permanente entre o percurso da palavra ao conceito e deste àquela. essas indicações apontam traços de uma concepção de metafísica distinta daquela que foi alvo de crítica de boa parte da tradição filosófica contemporânea. em primeiro lugar, fundamentaremos a reflexão explicitando alguns pressupostos éticos da metafísica dialética, e, num segundo momento, justificaremos que a metodologia própria da metafísica dialética constitui um exercício ético.

Palavras-chave:GadamerGadamer,PlatãoPlatão,metafísica dialéticametafísica dialética,ética dialéticaética dialética,hermenêutica filosóficahermenêutica filosófica.

Abstract: Assuming that Gadamer’s philosophical hermeneutics has incorporated several aspects of Plato’s philosophy, we aim to challenge some ethical presuppositions of dialectical metaphysics. For this reason, we have chosen Plato’s Seventh Letter because it reveals a clear interconnection between dialectical metaphysics and ethics. We will try to show how the Platonic dialectical metaphysics consists in the upward and downward movement of the principles; the first theoretical and practical exercise paves metaphysics, and the second practical and theoretical exercise establishes ethics. In Gadamer’s discourse, this is shown in the dialogical way of proceeding of philosophical hermeneutics which consists in the permanent intersection between the path of the word itself to the concept and vice versa. These indications are traces of a conception of metaphysics distinct from the one that has been explored by the contemporary philosophical tradition in general. Firstly, in order to establish the theoretical grounds of my argument, I will mention some of the ethical presuppositions of dialectical metaphysics and, secondly, we will demonstrate that the methodology peculiar to dialectical metaphysics is an ethical exercise.

Keywords: Gadamer, Plato, dialectical metaphysics, dialectical ethics, philosophical hermeneutics.

Carátula del artículo

ARTICLES

PRESSUPOSTOS E IMPLICAÇÕES ÉTICAS DA METAFÍSICA DIALÉTICA NA CARTA SÉTIMA DE PLATÃO

PRESUPPOSITIONS AND ETHICAL IMPLICATIONS OF THE DIALECTICAL METAPHYSICS IN PLATO’S SEVENTH LETTER

Luiz Rohden
Universidade do Vale do Rio do Sinos, Brasil
Revista Archai, núm. 17, pp. 13-35, 2016
Universidade de Brasília

Aprovação: 15 Novembro 2015

[...] os gregos nos ensinavam que o pensamento da filosofia não pode seguir a ideia sistemática de uma fundamentação última e um princípio supremo para poder dar conta da realidade, mas que já se encontra sempre sob uma orientação [...] (GadameR, 2002, p. 551-552).

Visamos aqui explorar, explicitar e refletir sobre alguns pressupostos e algumas implicações éticas da metafísica dialética em ato (Grondin, no prelo, p. 6), da perspectiva da Carta Sétima de Platão, sob o ponto de vista da hermenêutica filosófica de hans-Georg Gadamer. Porém, antes de nos adentrarmos na fundamentação da nossa hipótese de trabalho propriamente dita, convém fazermos algumas ressalvas: 1. embora o uso termo metafísica ainda cause certo desconforto e gere uma série de desconfianças no âmbito acadêmi- co, sustentamos que ela não morreu (Rohden, 2004) – nem somos pós-metafísicos – mas um modelo me- tafísico, sim; 2. o exercício filosófico mesmo, tanto em Platão quanto em Gadamer, na medida em que visam a compreensão e elevação do real a uma compreensão universal de determinados termos e questões, é uma atividade metafísica, mas não metaempírica; 3. tanto em Gadamer quanto em Platão, a metafísica é tratada como uma atividade argumentativa que não se esgota na construção de um conceito definitivo nem na construção de um sistema fechado (Rohden, 2013).

A presente reflexão é um desdobramento das pregressas interpretações sobre a Carta Sétima de Platão, nas quais sustentamos a constituição da filosofia ou metafísica dialética enquanto uma trama entre fenomenologia e hermenêutica; respondemos aos elogios da verdadeira filosofia; explicitamos os movimentos, momentos e método da metafísica dialética; justificamos a especificidade da linguagem metafísico-dialética para compreender e falar sobre a verdade; fundamentamos a peculiaridade do método dialético ascendente e sua proximidade com a meta da hermenêutica filosófica; e, por fim, exploramos algumas indicações da metafísica dialética enquanto exercício espiritual.

Em diversas ocasiões, nos deparamos com pressupostos e implicações éticas ínsitas ao próprio processo metafísico dialético platônico que foram assimiladas por Gadamer. essa perspectiva investigativa, que entrelaça metafísica e ética, foi objeto específico, en passant, de nossa inquirição quando justificamos que a metafísica constitui-se em um exercício espiritual cujo escopo último não é elaborar um sistema desvinculado do sujeito, mas implica uma modificação do modo ser e de viver do filósofo. Concedemos atenção maior ao entrecruzamento entre metafísica e ética no texto “metafísica dialética enquanto exercício teórico-prático na Carta Sétima de Platão” (2014). nesse texto, na esteira da ótica gadameriana, fundamentamos “a noção de metafísica dialética enquanto um exercício teórico-prático tematizado no significado e sen- tido da dialética ascendente relativo à compreensão dos princípios últimos ou das coisas mais importantes” (idem, p. 143).

Dito isso, objetivamos, aqui, aprofundar essa perspectiva a partir da hermenêutica filosófica de Gadamer (2002, p. 555) que realizou, por sua vez, uma “interpretação fenomenológica” do Filebo e, da nossa parte, estamos propondo uma interpretação hermenêutico-filosófica da Carta Sétima de Platão pela imbricação entre metafísica dialética e ética. diferentemente da posição de dennis Schmidt (2011, p. 48), que sugere uma identificação entre linguagem conceitual e meta-física, e, portanto, um vácuo entre metafísica e ética, sustentamos uma perspectiva metafísica tecida por pressupostos éticos (no caso, de matiz platônico) própria da hermenêutica filosófica (Rohden, 2004).

Nossa opção pela filosofia gadameriana, enquanto arcabouço teórico que orienta e sustenta nossa hipótese, se alicerça sobre os seguintes motivos: o primeiro, e mais simples, é que Gadamer (2002, p. 564) se autodenomina um estudioso de Platão, conforme confessou: “a hermenêutica e a filosofia grega foram os dois pontos básicos de meu trabalho”, e “Platão continuou sendo o centro dos meus estudos”. Sua volta aos gregos se deve ao fato de que “neles a autoconsciência não é o critério de tudo” (idem, p. 550). em outras palavras,

Frente à inanidade do filosofar acadêmico (...) os gregos nos ensinavam que o pensamento da filosofia não pode seguir a ideia sistemática de uma fundamentação última e um princípio supremo para poder dar conta da realidade, mas que já se encontra sempre sob uma orientação: na reflexão sobre a experiência originária de mundo, pensar até o fim a virtualidade conceitual e intuitiva da linguagem dentro da qual vivemos. Pareceu-me que o segredo do diálogo platônico consistia nesse ensinamento. (GadameR, 2002, p. 551-552)

Justificamos nossa opção também pelo fato de que Platão e Gadamer elaboraram um modelo, uma proposta metafísica – ainda que implícita no bojo de suas obras – que procuramos elucidar nos últimos anos. além disso, nem Platão nem Gadamer escreveu uma obra sobre ética, mas suas propostas filosóficas contêm e são marcadas por uma tradição e perspectiva metafísico-ética que julgamos importante ser elucidada e que lançam algumas luzes sobre nosso modo de fazer filosofia.

Outro argumento para retomar a hermenêutica ga- dameriana é que ela incorpora e atualiza a proposta filosófica de Platão a partir e em prol da tradição con- temporânea:

Analisar com recursos lógicos as argumentações que figuram num diálogo platônico, mostrar suas incoerências, preencher suas lacunas, detectar conclusões falsas, etc. (...) pode conter um caráter esclarecedor. mas será que desse modo aprendemos a ler Platão? aprendemos a apropriar-nos de suas perguntas? Será que conseguimos aprender dele, em vez de confirmar nossa superioridade sobre ele? o que é dito sobre Platão é aplicável mutatis mutandis a qualquer filosofia. Parece-me que Platão definiu isso, de uma vez por todas, na Carta Sétima: os recursos do filosofar não são o próprio filosofar (...) limitar-se ao aspecto lógico reduz o horizonte do questionamento a uma verificabilidade formal, eliminando assim a abertura ao mundo, que se produz em nossa experiência de mundo interpretada na linguagem. (GadameR, 2002, p. 579)

Enfim, quem se debruçou sobre a interpretação de Gadamer sobre Platão já pode perceber uma série de afinidades entre seus projetos filosóficos. a metafísica dialética platônica é tramada pelo movimento ascendente e descendente dos princípios; o primeiro exercício teórico-prático pavimenta a metafísica e o segundo exercício prático-teórico institui a ética. em linguagem gadameriana, isso se estampa no modo de proceder dialógico (ou circular ou pelo jogo) da hermenêutica filosófica, sustentada sobre o entrecruzamento permanente entre o percurso da palavra ao conceito e deste àquela. do ponto de vista metodológico, o primeiro visa a experiência da síntese e o segundo almeja a instauração do sentido1. em outras palavras,

A metafísica dialética é um exercício teórico, especulativo, sobre o sentido de determinados princípios. ela é uma atividade que exige esforço, dedicação e persistência para compreender as coisas mais importantes ou os princípios últimos. (...) a compreensão dessas coisas mais importantes efetiva-se enquanto uma experiência filosófica que, por sua vez, implica um modo de viver mais livre e justo o que se corporifica em leis de mesmo matiz. (Rohden, 2014, p. 158)

Teceremos nossa reflexão explicitando, (1) inicialmente, alguns pressupostos éticos da metafísica dialética, (2) em um segundo momento, refletiremos sobre a metodologia própria da metafísica dialética enquanto um exercício ético, e, ao final, (3) indicaremos algumas implicações éticas da metafísica dialética e da ética enquanto ciência procurada.

1. PRESSUPOSTOS ÉTICOS DA METAFÍSICA DIALÉTICA

A metafísica dialética que encontramos em Platão possui pressupostos e implicações éticas. Vaz designou essa abordagem como “um dos pontos nodais das linhas do pensamento platônico”, a saber,

(...) em que metafísica e ética se entrelaçam e se consti- tuem, ao mesmo tempo, na sua feição propriamente pla- tônica, segundo a qual a metafísica é uma ética ou nor- mativa do ser (...), e a Ética é uma metafísica ou ontologia do agir. (Vaz, 2011, p. 104).

Embora os termos metafísica e Ética não pertençam “ao vocabulário de Platão (...) ambos vieram a designar mais tarde, dentro da própria tradição platônica, estilos e formas de pensamento justamente inaugurados por Platão” (Vaz, 2011, p. 104). nosso escopo, aqui, consiste em desenvolver uma compreensão hermenêutica da Carta Sétima de Platão, lançando luzes sobre o entrelaçamento entre metafísica dialética e ética a partir dessa epístola. ora, tal perspectiva acaba por marcar a própria hermenêutica filosófica tal como encontramos em Gadamer. escolhemos, da tradição platônica, a noção de dialética e dos princípios ou ideias enquanto valores éticos.

1.1. SOBRE A DIALÉTICA

1.1.1. O primeiro pressuposto que atesta a imbricação entre metafísica e ética é a noção de dialética enquanto um movimento (ele mesmo também dialético) (Rohden, 2012, p. 105-130) de subida rumo aos princípios inteligíveis e de retorno à realidade empírica. Incorremos em erro e cometemos uma injustiça para com Platão [e, portanto, para com sua proposta filosófica] se consideramos a dialética apenas sob um desses movimentos ou desvinculados entre si. Prova clássica e exemplar disso é o movimento dialético que encontramos na Alegoria da Caverna de Platão, em que o movimento é de saída e de retorno à realidade. na Carta Sétima, a metafísica dialética principia-se pela efetivação da fenomenologia da realidade de Siracusa, sua posterior crítica, sua explicitação dos momentos da dialética ascendente com o projeto de Platão para aquela cidade.

1.1.2. A meta da dialética é realizar uma síntese que não deveria ser compreendida como uma abstração pura ou um conceito desvinculado do real, mas como uma experiência hermenêutica. na dialética ascendente importa efetivar a experiência de compreensão, de intuição (do todo, do bem...), ou seja, ver as coisas assim como são em sua integralidade. Realizada essa experiência, ainda que fugaz, o movimento se completa com a descida ao particular. a síntese não é um ponto de estagnação, mas elo, passagem e porto para outra partida!

1.1.3. O quinto momento da dialética ascendente se compreende como um salto, uma intuição da coisa mesma que extrapola o âmbito do conhecimento puro e afeta aquele que a realiza. Se o fim da dialética ascendente e descendente é similar, a saber, trata-se de uma experiência e uma efetivação da liberdade e da justiça – rompendo com a determinação dos diferentes tipos de determinação pelo exercício da razão –, o modo de efetivá-las é que as distingue. Uma se faz pela trilha teórica (metafísica) e outra pelo esforço de efetivação ou atualização (ético/político).

1.2. SOBRE AS IDEIAS OU SOBRE OS PRINCÍPIOS

1.2.1. os princípios ou as ideias possuem matiz ético. essa é a hipótese de hadot, com quem concordamos. de acordo com ele, “as ideias ou formas são valores morais” o que se encontra na maior parte dos diálogos:

As Formas são sobretudo valores morais, que fundam nossos juízos sobre as coisas da vida humana: trata-se, antes de tudo, de procurar determinar, na vida do indiví- duo e da cidade, graças a um estudo da medida própria a cada coisa, esta tríade de valores que aparece de uma ponta a outra dos diálogos: o que é o belo, o que é o justo e o que é o bem. (hadoT, 1999, p. 116)

1.2.2. nessa perspectiva, corroboramos também a proposta de Trabattoni (2010, p.105), que coloca a questão: “a teoria das ideias: uma ontologia ou uma filosofia dos valores?”, à qual o mesmo responde: “as ideias mais citadas por Platão são as ideias de valor”. Trabattoni (2010, p. 108) sustenta que “a ‘doutrina das ideias’ tem um caráter eminentemente axiológico, ou seja, que tem como escopo a identificação, nas ideias, daqueles valores absolutos que servem de modelo para a vida ética e política”2. em outras palavras,

Platão preferia privilegiar, na sua metafísica, o aspecto axiológico [ou seja, o aspecto pelo qual ela é um método para a pesquisa dos valores] em detrimento ontológico [isto é, o aspecto pelo qual ela é uma doutrina geral do ser] [...] essa não tem tanto o escopo de responder à pergunta “o que é o ser?”, quanto o escopo de justificar a emergência de sentido e de valor já implícitos na experiência que, como acredita Platão, sem recorrer aos princípios metafísicos não poderiam ser explicados e compreendidos. (TRABATTONI, 2010, p. 109)

Dito isso, compreendemos melhor porque Gadamer considera sua hermenêutica filosófica não como uma atividade metodológica, instrumental, mas como uma postura [Tugend]. nessa linha investigativa, Vaz (2011, p. 66) designa a proposta platônica como “ontológica enquanto descobre nas ‘aporias’ concretas que embaraçavam o ateniense do século IV à implicação de um absoluto de inteligibilidade – a Ideia – capaz de dar consistência a uma nova visão do mundo e de dar um sentido portanto à vida humana”, como lemos na Carta Sétima.

1.2.3. AS IDEIAS ENQUANTO REFERENCIAIS ÉTICO‑‑POLÍTICOS

As ideias ou princípios, como podemos ler nos diálogos e na Carta Sétima de Platão, “devem reger tanto a direção espiritual como a ação política” (hadot, 1999, p. 305). ora, “a formação para a dialética era absolutamente necessária, na medida em que os discípulos de Platão eram destinados a desempenhar seu papel na cidade”, de modo que “a dialética platônica não é um exercício puramente lógico” (hadot, 1999,p. 99), mas ético-político.

Uma das razões que levou Gadamer a tecer sua hermenêutica com os fios da filosofia platônica se deve justamente ao fato de ela sempre ter sido “intimamente ligada ao cuidado do outro e que essa exigência é inerente à vida filosófica” (hadot, 1999, p. 394), isto é, a filosofia como um modo de ser melhor e mais justo.

Mesmo havendo controvérsias sobre o tema central das doutrinas não escritas, há fortes indícios de que seria sobre o Bem. Levando em conta isso, em nossa compreensão da Carta Sétima, o bem se desdobra nas noções de liberdade e de justiça. mais do que meros conceitos, eles são princípios, ideias, referenciais teórico-práticos e metas a serem efetivados.

  1. 1.2.3.1. PRÁTICA DA LIBERDADE

    O princípio da liberdade constitui um pressuposto ético da metafísica dialética, conforme sustenta Platão na Carta Sétima: “serem livres os siracusanos e se governarem de acordo com as melhores leis” (324b). na esteira da proposta socrática, a filosofia platônica ratifica a “homologia entre Arete e a epistéme”, ou seja, a

    Submissão da práxis virtuosa à norma da Razão implica necessariamente, aos olhos de Platão, uma correlação estrutural entre liberdade e razão, ou seja, em termos sistemáticos, entre Ética e metafísica, na medida em que a justificação racional da práxis caminha para buscar seus fundamentos nos princípios supremos aos quais a Razão deve elevarse ou, em outras palavras, no terreno da metafísica [...] o que significa, para Platão, suprassumir a necessidade cega do destino na necessidade manifestada da Razão. (Vaz, 2011, p. 109)

    Nessa perspectiva, podemos dizer que a epístola de Platão corporifica uma “metafísica da liberdade” que, enquanto “ciência dos princípios [...] vem a ser, como uma Ética metafísica que se propõe estabelecer a ciência do ser como norma suprema do agir livre” (Vaz, 2011, p. 119)3.

  2. 1.2.3.2. FILOSOFIA E PODER JUNTOS

    Um pressuposto e, ao mesmo tempo, uma implicação ética do exercício metafísico dialético, conforme lemos no texto platônico, vinculado ao princípio da liberdade, é o da junção entre justiça, poder e filosofia. Platão lastimou o assassinato de dião não apenas porque era seu amigo, mas porque tiraram “a vida a um homem que se achava no ponto de realizar a justiça” (335b). Uma das críticas de Platão a dionísio era que ele não integrara, em sua vida, o uso do poder com o exercício da filosofia:

    Se a filosofia e o poder se tivessem reunido em sua pessoa, ele faria luzir aos olhos dos helenos e dos bárbaros e gravar no espírito dos homens a noção verdadeira de que não po- dem ser felizes nem as cidades nem os indivíduos, se todos não viverem sabiamente sob o amparo da justiça (335d).

    A implementação da liberdade seria possível se “tudo isso houvesse sido levado a cabo por um homem justo, corajoso, temperante e filósofo” (336a-b) que, aos olhos de Platão, estampava-se na pessoa do seu amigo dião, que só “ambicionava implantar nova constituição e leis melhores e mais justas, com o menor número possível de execuções ou penas de banimento” (351a). enfim, aqui nos encontramos diante de uma articulação dialética entre vida justa, livre, temperante para o âmbito pessoal e o da pólis, entre ética e política. dionísio se recusou a conjugar o uso do poder com a procura dos princípios.

    É clara a proposta platônica de que o exercício dialético implica a prática pessoal e a vida mais livre e justa na pólis. Trata-se, pois, de um ato não filosófico gerenciar o poder para obtenção de vantagens e de interesses pessoais e, pior, em nome de argumentos aparentemente filosóficos. a posse do poder para garantir concessão de benefícios para parentes e amigos implica a instituição da injustiça e da escravidão, que implode a razão de ser da filosofia. À revelia da máxima kantiana, nesse caso, as pessoas são usadas como meios, e não fins. na Carta Sétima, é clara a proposta platônica segundo a qual há uma universalidade valorativa que deve garantir a vigência da justiça, da liberdade, o que torna alguém, de fato, feliz. Retomamos as palavras de Vaz, que atesta a imbricação originária entre metafísica e ética:

    Logos e Arete ou “verdade do ser” e “excelência da vida”: eis aí designada a estrutura fundamental da primeira grande construção metafísica da filosofia ocidental, e que é igualmente uma construção ética. ao contrário do que vai repetindo a apideusia filosófica de ontem e de hoje, não se trata de uma construção no ar. (Vaz, 2011, p. 113)

    Enfim, as ideias de liberdade e de justiça precisam ser sempre buscadas, procuradas, seja porque não existem em termos práticos, seja porque somos seres históricos, seja porque precisamos ressignificá-las no tempo em que nos encontramos. esse exercício filosófico institui uma atividade como uma metodologia apropriada aos seus contornos.

2. TRAÇOS ÉTICOS DO MODO DE PROCEDER DA METAFÍSICA DIALÉTICA

Como já se pode perceber, a metodologia da metafísica dialética pressupõe e comporta uma proposta ética por ser dialético-dialógica. enquanto exercício, atividade, sua meta não está no final do processo. de acordo com Trabattoni, na Alegoria da Caverna, nós temos indícios claros de que

A dialética se configura muito mais como o ato de dialegesthai, ou seja, de discutir, do que como uma ciência noética pura. [...] quando Platão começa a falar diretamente da dialética como o gênero de saber mais elevado, para definir ele utiliza uma fórmula na qual a alusão ao ato concreto do dialogar, do interrogar e do responder não poderia ser mais clara: exclui-se do saber mais elevado [isto é, do objeto da dialética] quem [literalmente] “não é capaz de dar e receber razão – ou de fazer discurso [logos] com as mesmas características”. (TRABATTONI, 2010, p. 120)

Mais que uma ciência noética pura, a dialética está assentada sobre a prática do diálogo, em que importa esclarecer, argumentar, dar razões sobre a matéria em questão. a efetivação do método dialético consiste em um exercício espiritual (Rohden, 2013, p. 4-11) que implica uma espécie de iniciação à liberdade, à felicidade, à justiça, similar à proposta de iniciação ao saber como lemos no Banquete de Platão.

Enquanto exercício espiritual – mediante a escritura e/ou leitura – a dialética e a hermenêutica são itinerários para “viver de modo filosófico”, o qual pressupõe um

voltar-se para a vida intelectual e espiritual, realizar uma conversão que põe em jogo “toda a alma”, isto é, toda a vida moral. a ciência ou o saber jamais são para Platão um conhecimento puramente teórico e abstrato, que se poderá “introduzir de modo acabado” na alma. Quando Sócrates [...] dizia que a virtude é um saber, ele não entendia por saber o puro conhecimento abstrato do bem, mas um conhecimento que escolhia e queria o bem, isto é, uma disposição interior na qual pensamento, vontade e desejo são apenas um. (hadot, 1999, p. 103)

O que chama nossa atenção na Carta Sétima é o esforço de Platão para compreender e efetivar a verdadeira noção de felicidade, de liberdade e de justiça. nesse texto, a maior parte do relato retrata a dialética descendente, o caminho de volta da experiência dos princípios, isto é, a sua tentativa de efetivá-los. Quem volta ou quem desce procura libertar os presos do seu véu de ignorância e de sua infelicidade porque fez a experiência da liberdade e da felicidade pelo exercício de compreensão mediante o logos. a descida se faz mediante ponderação, discernimento, pautada pela experiência do todo realizada pelo dialético. dito de outra forma, o filósofo está implicado ao seu trato com as noções de liberdade, de felicidade, de justiça, ou seja, o filosofar “funda-se numa escolha intencional de dialogar numa experiência concreta e vivida do diálogo falado e vivo”. (hadot, 1999, p. 115-6)

Nas palavras de hadot (1999, p. 253), há, entre discurso filosófico e vida, uma “espécie de causalidade recíproca; a escolha de vida determina o discurso, e o discurso determina a escolha de vida justificando--a teoreticamente [...] o discurso filosófico é mesmo uma das formas de exercício do modo de vida filosófico, sob a forma do diálogo com outrem ou consigo mesmo”. Visto assim, de acordo com hadot (1999,p. 254), “pode-se defini-lo como um exercício espiritual, isto é, como uma prática destinada a operar uma mudança radical do ser”. em suma, “no diálogo do tipo socrático” as interrogações socráticas levam o interlocutor “a tomar cuidado consigo mesmo e, por conseqüência, a mudar de vida” (idem, p. 256), o que tem implicações políticas.

O método próprio para efetivação da metafísica dialética em seu desdobramento ético é o diálogo. nas palavras de hadot,

O diálogo platônico, por exemplo, o Sofista ou o Filebo, é um exercício mais intelectual, porém, tem-se de reconhecer, é antes de tudo um exercício. [...] ele não tem por objetivo principal e único resolver o problema proposto, mas fazer o participante “tornar-se melhor dialético”. e, precisamente, ser melhor dialético não é apenas ser hábil em inventar ou denunciar sutilezas do raciocínio, mas antes de tudo saber dialogar, com todas as exigências que isso demanda: reconhecer a presença e os direitos do interlocutor, fundar sua resposta sobre o que o interlocutor reconhece saber, pôr-se em acordo com ele em cada etapa da discussão; é sobretudo submeter-se às exigências e normas da razão, da investigação da verdade e, finalmente, reconhecer o valor absoluto do Bem. É sair de seu ponto de vista individual para elevar-se a um ponto de vista universal, esforçar-se para ver as coisas na perspectiva do Todo e do Bem, e transformar, com isso, sua visão do mundo e a próprio atitude interior (hadoT, 1999, p. 256-257).

A efetivação do método dialético-metafísico constitui um exercício teórico-ético, que, ao visar a intuição ou a apreensão dos princípios, implica uma experiência hermenêutica que diz respeito ao sujeito que se esforça por apreendê-los. nas palavras de henrique Vaz,

esse périplo da inteligência, o mais longo e o mais audaz, não é, para Platão, apenas um exercício intelectual: é uma aventura de vida, é a exigência essencial do filosofar como estilo e regra do viver. aqui aparecem definitivaGmente entrelaçadas metafísica e Ética: o conhecimento do ser como norma do agir. (Vaz, 2011, p. 127)

ALGUMAS CONCLUSÕES

Foi com a intenção de filosofar com Platão e Gadamer que elaboramos uma leitura hermenêutica da Carta Sétima de Platão, entrelaçando metafísica e ética dialética. mostramos alguns pressupostos e implicações éticas presentes no exercício metafísico dialético à luz da filosofia de Gadamer, que se nutre da dialética platônica. embora não tenham escrito um tratado sobre ética, suas propostas são tecidas por temas éticos, cuja pertinência é inegável para todo saudável exercício filosófico.

Preocupados com o que o texto tem a nos dizer, hoje, interessou-nos assinalar, aqui, a experiência e instauração de sentidos que sua leitura nos proporciona realizar em termos pessoais e políticos. mostramos isso recordando o caminho ascendente e descendente da dialética platônica espelhado no movimento de subida da palavra ao conceito e retorno deste àquela, conforme sustenta Gadamer. ora, o primeiro percurso caracteriza o exercício metafísico, teórico, cujo ápice – representado pela síntese – propicia uma experiência que implica a conversão do dialético e sua efetivação, que compõe o campo da ética e da política. há uma circularidade virtuosa, dialético-dialógica, entre ambas.

A metafísica dialética, enquanto exercício teórico--prático e a ética dialética, enquanto exercício prático--teórico, estão às voltas com a compreensão, a tematização e a efetivação da ideia de bem corporificada, como lemos na Carta Sétima de Platão, na noção de liberdade e de justiça. Seja porque são princípios, portanto, ideias inesgotáveis e inexpressáveis totalmente em forma de linguagem, seja porque o dialético é finito, histórico, institui-se um conhecimento com contornos que lhes são próprios, a saber, de se caracterizar como ciência procurada. enquanto ciências procuradas, a metafísica e a ética dialética, são instituídas mediante o exercício do diálogo com suas exigências e condições próprias, isto é, abertura, sensibilidade e desejo de aprender com o outro, a fim de instituir veredas mais livres e justas para nossas vidas em termos pessoais e políticos.

Material suplementar
Informação adicional

COMO CITAR: Rohden, L. (2016). Pressupostos e implicações éticas da metafísica dialética na Carta Sétima de Platão. Archai, n. 17, may -aug., p.13 -34. doI: http://dx.doi.org/10.14195/1984 -249X_17_1

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VAZ, H. C. de Lima (2011). Platônica. Escritos de Filosofia VIII. São Paulo, ed. Loyola.
Notas
Notas
1 “A síntese da dialética, que é a meta da metafísica, não consiste numa produção conceitual abstrata e separada do seu ponto de partida. a hermenêutica segue caminho similar, pois o sentido é sempre instauração de sentido” (Rohden, 2014, p. 145).
2 “Na República o princípio metafísico mais elevado não é o ser em geral e tampouco um ser de natureza superior, mas “o bem” (idem, p. 107).
3 assim, “tentar elevar a hermenêutica da liberdade humana [ou da práxis humana na sua prerrogativa de livre agir] ao plano de uma metafísica da liberdade ou de uma ética enraizada na necessidade suprema do ser revelou-se como uma aventura intelectual de assombrosa audácia” o que lançou Platão “nas rotas de uma ‘segunda navegação’ [...] da qual tornará para estabelecer nos firmes vínculos do inteligível a natureza, a cidade e o indivíduo. a partir de então o destino da ética ocidental está inexoravelmente ligado ao da metafísica ou a ciência dos fins intrinsecamente ligada à ciência dos princípios” (ibidem, p. 111-112).
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