DOSSIER

UMA INSÓLITA MISTURA DE PRAZER E DOR

A STRANGE MIXTURE OF PLEASURE AND PAIN

Anastácio Borges de Araújo júnior
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil

UMA INSÓLITA MISTURA DE PRAZER E DOR

Revista Archai, núm. 17, pp. 45-55, 2016

Universidade de Brasília

Aprovação: 15 Novembro 2016

Resumo: O diálogo Fédon inicia-se com uma atmosfera deveras intrigante: o personagem homônimo começa sua narrativa descrevendo que, nos últimos momentos de Sócrates, se sentiu invadido por uma afecção estranha (atopon pathos), isto é, uma insólita mistura de prazer e dor (Phd. 59a5-a6). nossa investigação tentará, a partir deste afeto insólito, refletir sobre a natureza do prazer e da dor como afecções constitutivas do homem, ao mesmo tempo, que tentará elucidar a defesa socrática acerca do desejo e do prazer diante da perspectiva da morte e do morrer que parece caracterizar o verdadeiro amante do saber (philosophos). Deste modo, devemos compreender que a argumentação socrático-platônica tem como tarefa mostrar, por um lado, que mesmo numa situação extrema como na condenação injusta de um homem bom e justo, a vida filosófica merece ser vivida. Por outro lado, mostrar que se o verdadeiro amante do saber não pode conhecer a verdade na sua totalidade enquanto vive neste corpo, resta-lhe a doce esperança de alcançar, depois da morte, a sabedoria tão desejada. Deste modo, justifica-se assim a felicidade que Sócrates demonstra, diante da morte, nos gestos e nas palavras.

Palavras-chave: Platão, Fédon, prazer, dor, morte.

Abstract: The dialogue Phaedo begins in a rather intriguing atmosphere: the homonym character initiates his narrative by describing that, in Socrates’s last moments, he was invaded by a strange affection (atopon pathos), that is, a strange mixture of pleasure and pain (Phd. 59a5-a6). our investigation will attempt from this unusual affection, reflect on the nature of pleasure and pain as men’s constituent affections. in addition to this, we will also attempt to shed light on the Socratic defense regarding desire and pleasure when faced with the perspective of death and of dying, which seems to characterize the lover of true knowledge (philosophos). That way, we must understand that the Socratic-platonic argument aims, on one hand, at showing that even in an extreme situation, such as in the unfair condemnation of the good and just man, the philosophical life is worth living. on the other hand, it aims at showing that if the lover of true knowledge cannot fully access knowledge while inhabiting this body, he may, at least, hope to reach the much--desired wisdom after death. it is thus understable the happiness that Socrates reveals in his gestures and words when faced with death.

Keywords: Plato, Phaedo, pleasure, pain, death.

O diálogo Fédon começa com uma atmosfera, no mínimo, intrigante: Fédon, o personagem homônimo, começa sua narrativa descrevendo que, nos últimos momentos de Sócrates, se sentiu invadido por uma afecção estranha (atopon pathos, Phd. 59a5), isto é, experimentou uma insólita mistura de prazer e dor (Phd. 59a5-a6). Fédon, imediatamente, atribui a origem desta espantoso sentimento ao fato de, por um lado, estarem, como de costume, discutindo filosofia com Sócrates o que causava prazer, e, por outro, pelo pensamento de que dali a poucos instantes, o mesmo Sócrates estaria morto, o que provocava dor. Aliás, Fédon acredita que todos que estavam presentes compartilhavam, no último dia de Sócrates, um afeto similar, pois muitos riam e, logo em seguida, choravam. Esta instabilidade emocional parece, aos olhos de Fédon, algo, realmente, admirável.

Poderíamos dizer que, como já o fizemos em outro artigo (Araújo júnior, 2009, p. 95-105), que nos seus últimos momentos, Sócrates teria se colocado como tarefa filosófica enfrentar esta instabilidade emocional, isto é, o filósofo procurou modificar as sensações e temores que os discípulos julgavam dolorosos, transformando-os em uma oportunidade extrema de exercitar o pensamento, através de argumentos e encantos, modificando o ambiente afetivo do diálogo, ou seja, cultivando junto aos discípulos serenidade e equilíbrio.

Entretanto, o tema do prazer e da dor parece-nos muito mais enraizado na vida do homem do que podemos supor a partir desta elucidação realizada por Fédon. o prazer e a dor são as afecções constitutivas e fundamentais ao homem. São elas que junto ao pensamento o compõem e estruturam a vida própria do homem. É por isso, que o tema do prazer e da dor retorna ao diálogo, desta vez, na fala de Sócrates que ao reencontrar Xantipa, que chora e se lamenta, pede que a levem para casa, e então senta no seu leito, reposiciona seu corpo, dobra sua perna e a esfrega; esfrega, longamente, com sua mão a perna agora dobrada. Pelo que diz a seguir, Sócrates percebe uma sensação que sua alma denomina agradável bem diferente da sensação de sofrimento que experimentava antes quando a perna estava atada à corrente que o mantinha preso. Então, Sócrates diz:

Que coisa desconcertante (atopon), meus amigos, disse ele, parece ser isso que os homens chamam o prazeroso, e que relação surpreendente que há entre sua natureza e aquilo que julgam ser o seu contrário, o doloroso: no homem, nenhum dos dois consente coexistir contemporaneamente com o outro, mas procura-se um deles e se o captura, estaremos quase obrigados a capturar sempre também o outro, como se sendo dois, eles estivessem agarrados a uma única cabeça. Quer parecer-me, continuou, que se Esopo houvesse feito esta observação, não deixaria de compor um mito: o deus querendo recompor entre eles a contínua guerra, e não conseguindo, uniu-os pelas extremidades. Por isso, sempre que alguém alcança um deles o outro lhe vem atrás. Meu caso é parecido: após a dor da perna causado pela corrente, segue-se-lhe o prazer. (Phd. 60b1–c1)

Observe-se como Sócrates, a partir de sua experiência particular de prazer e dor, junto à Xantipa ou ainda ao desfrutar a referida sensação corporal, mostra como as sensações e emoções são, costumeiramente, qualificadas por nós humanos a partir de sua aparência agradável ou sofrível. Em virtude dessa apreciação reagimos e agimos, geralmente, apegando--nos ao que consideramos aprazível e distanciando--nos daquilo que chamamos penoso. Entretanto, sempre que experimentamos uma destas emoções a outra a acompanha de modo que a vida humana se dá em pensamento e ação neste entre no qual se misturam as afecções de prazer e dor. A estranha e inabitual mistura de prazer e dor, mostrada por Fédon, parece acompanhar nosso destino humano, de modo que se a observarmos apuradamente, nos detalhes dos instantes sucessivos ou na sua totalidade, a vida é, essencialmente, uma associação constante de prazer e dor. Ainda que Sócrates advirta que o prazer e a dor não são simultâneos no homem, eles são os fios constitutivos da vida, a nossa inteligência tem a função de tecelão que dará forma a esta tessitura da vida. Se conseguirmos uma boa composição desses afetos seremos felizes, caso contrário, nossa vida será difícil (Casertano, 2008, p. 5 e ss.).

Ou seja, sejamos mais claros, aquela estranha afecção inicial de Fédon parece caracterizar, de modo geral, a vida do homem que percebe muitos prazeres sem jamais desconhecer a dor, pois na sua natureza mortal vive entre estas afecções fundamentais e de todo modo, sempre aguarda a própria morte. De modo análogo, não há dor que não se misture ao prazer de estar vivo experimentando esta mesma dor. Há que se considerar em que medida se pode participar destas duas emoções e em que medida elas podem nos levar ao bem. (Pl. Lg. i 636d-e.) Há que se ter discernimento ou sabedoria para orientar-se na busca do bem permeado por prazeres e dores. Este, nos parece, é o fundamental papel da inteligência ao tentar misturas harmônicas e belas.

A vida feliz depende de viver a vida examinando-a no seu inexorável enraizamento afetivo, de prazeres e dores, que a caracteriza constitutivamente. neste sentido, a rivalidade entre o prazer e a inteligência, na busca do bem humano, tornou-se uma querela clássica na Academia Platônica (Berti, 2010, p. 173 ss.), pois muitos viram a busca pelo prazer como o bem supremo. A prova escrita desta disputa encontra-se, inequivocamente, no diálogo Filebo.

Filosoficamente, o prazer, assim como a dor, não é um bem em si mesmo nem mesmo um mal; a inteligência é a potência capaz de orientar o homem na busca da vida feliz que, notadamente, faz uso dos prazeres e, inexoravelmente, enfrentará as dores. A inteligência é o maior dos bens, pois pode julgar as consequências que acompanharão os prazeres e dores, neste sentido poderá antecipar o bem ou mal que acompanhará tal prazer ou dor. A vida eudaimônica é a vida excelente, aquela levada pela direção da inteligência que visa o bem. Entretanto, como observou Trabattoni (2011, p. XXi e ss.), o diálogo Fédon terá que dar conta de algo que está acontecendo nele mesmo: pois se Sócrates é o exemplo da vida filosófica, do homem bom e justo, como podemos compreender que sua vida tenha levado à algo tão trágico como sua execução e morte? A morte de Sócrates é um evento que desafia a lógica eudaimonística, defendida pela filosofia, pois como explicar a morte injusta do homem justo e bom?

Para superar este paradoxo, é preciso que ao tema do prazer e da dor seja associado a outro tema central do diálogo Fédon: o tema enfrentamento da morte. A questão do significado filosófico da morte e do morrer. Eis outra importante temática do diálogo para dar conta daquilo que está acontecendo ao próprio Sócrates: defender que, mesmo numa situação extrema como na condenação injusta ao homem bom e justo, a vida filosófica é a única vida que merece ser vivida.

Para isso, Sócrates mostrará que, por certa perspectiva, o filósofo pratica o exercício de morrer, na medida em que afasta-se do corpo na atividade do pensamento, desejando a morte, ainda que lhe seja interditado o suicídio (Phd. 61 c e ss.). Sem querer aqui adentrar na temática espinhosa do suicídio, o que se deduz deste passo é que aquele que ama o saber, deseja morrer. ou seja, a morte não é, filosoficamente, um al. Cebes, o interlocutor de Sócrates neste momento, reage, pois acha esta exortação algo sem sentido. Sócrates terá que fazer, em seguida, uma longa defesa para demonstrar que aquele que se ocupa corretamente da filosofia, ocupa-se, na verdade, com a morte e o morrer. Claro que para nós leitores do diálogo, este morrer pode torna-se uma metáfora da morte mesma, na medida em que aplacamos os ruídos do corpo para estarmos com nossos próprios pensamentos, o mais isolados possível. Porém, para o personagem Sócrates que vive os seus momentos finais, a metáfora se literaliza.

Se a morte é alguma coisa, como a separação da alma e do corpo, ou seja, a morte transforma o corpo que possui vida em corpo morto. ora, o filósofo, por sua definição, não é aquele que ama os prazeres da comida, da bebida, do sexo, mas aquele que ama o saber e amando-o sente prazer em separar-se das sensações e afecções e todos os desejos oriundos do corpo para refugiar-se nos raciocínios, nos logoi, que para ele constitui a verdadeira e eficaz atividade da alma.

O tema do refúgio nos discursos, nas argumentações e nas proposições (Phd. 99d e ss.) revela que precisamos de mediadores entre nós e as coisas mesmas. Pois ir direto as coisas, sem o uso do lógos que comunica e protege, pode nos levar à cegueira. É assim preciso especular através da linguagem na forma de diálogo, para purificar a linguagem e retratar as coisas da forma mais fidedigna possível, protegendo-se nos discursos e acessando, indiretamente, a verdade das coisas. A dialética, a ciência dos homens livres, é o melhor dos métodos para auxiliar os homens nas suas investigações, fazendo-os construir boas representações a partir daquilo que viu e compreendeu. o distanciamento do corpo é a condição para fazer o bom uso da linguagem fazendo-a refletir o mais próximo possível as coisas mesmas. neste sentido, silenciar o corpo torna-se a tarefa primeira daquele que investiga e ama o saber:

A alma pensa melhor quando nada disso vem perturbá--la, nem o ouvido, nem a vista, nem a dor nem prazer de espécie alguma, mas que esteja o mais possível consigo mesma, deixando perder o corpo, desejando a realidade das coisas, evitando, então ,tanto quanto possível, qualquer contato ou relação com o corpo. (Phd. 65c4-c9)

Importante notarmos, como frisou Trabattoni (2011, p. XXiii-XXVii e nota 47 na p.41), que a tentativa de Platão não é demonstrar como se dá o conhecimento inteligível na dimensão sensível, mas explicar porque o filósofo, segundo Sócrates, deseja morrer. Transformando o corpo obstáculo em corpo possibilidade de conhecer e pensar, torna-se claro que desenvolver o hábito de distanciar-se e separar-se do corpo produzindo a capacidade filosófica de preparar-se para o desapego final, restando, no mais, a boa esperança de poder, enfim, conhecer a verdade. Entretanto, não nos é dado a ter ou construir certezas a respeito do pós-morte e como não podemos, pela investigação, demonstrar nenhuma tese, resta-nos a boa disposição de um talvez. Assim Sócrates sentencia:

Se, de fato, junto ao corpo não é possível conhecer coisa alguma na sua pureza, de duas uma: ou jamais conseguiremos adquirir o conhecimento, ou só o faremos depois de mortos. (Phd. 66e5-e7)

O hábito de distanciar-se do corpo é a condição de purificação anímica e de possível libertação das coisas do mundo que estrutura o preparatio mortis. o temor diante da morte, ao contrário, sinaliza apego e despreparo filosófico. Eis aqui, segundo a nossa breve leitura, o nexo entre a boa condução dos prazeres e dores, que orientada pela inteligência e discernimento, produz e consolida a excelência humana, e a vida filosófica que anseia pelo conhecimento.

Para finalizar, podemos dizer que encontramos aqui um bom motivo para a felicidade de Sócrates expressa nos seus gestos e palavras. refugiado nos discursos, o filho da parteira encontrou sua pequena nau para fazer a travessia da vida, realizando seu telos humano, desembocando na morte, encontrando então, a vida o seu acabamento final. Fazendo aquilo que é devido aos mortais, paga sua última dívida de modo tranquilo e, ao mesmo tempo, exemplar para nós. Sócrates mostra que mesmo aparentemente mal sucedida, a vida filosófica vale a pena por ter realizado, sempre, aquilo que lhe pareceu mais justo, e não orientado pelas possibilidade de vida e de morte, conforme já havia anunciado na sua primeira defesa junto aos juízes (Ap. 28c). o homem justo não tem o que temer nem na vida, nem na morte.

BIBLIOGRAFIA

ARAÚJO JÚNIOR, A. Borges de (2009). Sócrates, o corpo, a morte e a tarefa do pensamento: um estudo do ‘Fédon’ de Platão. in: PEiXoTo, M. C. D. (ed.). A Saúde dos Antigos: Reflexões Gregas e Romanas. 1ºed. São Paulo, Loyola, p. 95-105.

CASERTANO, G. (2008). A verdade platônica en- tre lógica e páthos. in Anais de Filosofia Clássica, vol. 2 n.º 4, p. 1-18.

BERTI, E. (2010). Sumphilosophein: La vita nella Accademia di Platone. roma, Laterza.

TRABATTONI, F. I., MARTINELLI, S. (2011). Platone. Fedone. A cura di F. Trabattoni i Traduzione di S. Martinelli Tempesta. Torino, Einaudi.

Informação adicional

COMO CITAR: Araújo júnior, A. B. (2016). Uma insólita mistura de prazer e dor. Archai, n. 17, may-aug., p. 45-55. Doi: http://dx.doi.org/10.14195/1984-249X_17_2

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