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OBSERVAÇÕES SOBRE “O IGUAL” E “OS IGUAIS”: FÉDON 72E‑77A
José Trindade Santos
José Trindade Santos
OBSERVAÇÕES SOBRE “O IGUAL” E “OS IGUAIS”: FÉDON 72E‑77A
OBSERVATIONS ON “THE EQUAL” AND “THE EQUALS”: PHAEDO 72E‑77A
Revista Archai, núm. 17, pp. 119-135, 2016
Universidade de Brasília
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Resumo: Embora a reminiscência platônica relacione dois saberes diferentes – um captado a partir das sensopercepções, outro concebido no pensamento –, encarando-a de um ponto de vista ontoepistemológico, proponho vê-los como um ato cognitivo único, descrito de perspectivas complementares. apesar de a captação e concepção do saber no pensamento só ocorrer a partir, ou depois, da captação de “algo” a partir das sensopercepções (74c, 75a, b, e, 75e-76a), é ao tipo de entidades concebidas no pensamento que o conhecido (73c, d) a partir das sensopercepções (74d) se refere e com ele que se compara (75b, 76d-e). Como teoria sobre a cognição e a aprendizagem, a reminiscência consiste nesta recíproca remissão dos saberes: um, captado a partir da percepção de “algo”; o outro, concebido como um conteúdo cognitivo ínsito na alma, subsequentemente recuperado pela experiência das percepções (76d-e; Men. 82-86; Phdr. 249b-c). Esta interpretação é possível se, no exemplo apresentado, o que é percebido não forem predicados atribuídos a paus e pedras iguais ou desiguais, mas “os próprios iguais” (74b): imagens do Igual, que “tomam como modelo” e ao qual se referem. Como concepção e teoria sobre a aquisição do saber, iniciada “pelo uso das sensopercepções”, a reminiscência consiste no processo gradual pelo qual a alma recupera o saber que é próprio dela (75e; Phdr. 249b ss.).

Palavras-chave:PlatãoPlatão,FédonFédon,ReminiscênciaReminiscência,“os iguais/o igual"“os iguais/o igual".

Abstract: Though Platonic anamnesis relates two different acts of knowledge – one grasped through sense perception, the other conceived in the mind –, from an ontoepistemological point of view, I propose to see them as one single cognitive act, described from different perspectives. Though this intellectual ‘conception’ of knowledge occurs only after “something” has been grasped from sense perceptions (74c, 75a, b, e, 75e-76a), what is known (73c, d) through the senses (74d) refers and is compared to entities previously conceived in the mind (75b, 76d-e). as a theory of cognition and learning, anamnesis consists in the reciprocal remission of these two acts of knowledge: one ‘grasped’ from the perception of something; the other conceived as a cognitive content kept in the soul, subsequently recovered through the experience of sense perceptions (76d-e; Men. 82-86; Phdr. 249b-c). In the given example, such interpretation is possible if what is grasped does not correspond to any predicates attributed to equal or unequal sticks and stones, but to “the very equals” (74b), understood as perceptual images of the equal: “the model they are formed from”, to which they refer. as a cognitive conception and a theory of the acquisition of knowledge, anamnesis consists in the gradual process started “by the use of sense perceptions” through which the soul recovers the knowledge which is its own (75e; Phd. 249b ss.).

Keywords: Plato, Phaedo, anamnesis, “the equals/the equal”.

Carátula del artículo

DOSSIER

OBSERVAÇÕES SOBRE “O IGUAL” E “OS IGUAIS”: FÉDON 72E‑77A

OBSERVATIONS ON “THE EQUAL” AND “THE EQUALS”: PHAEDO 72E‑77A

José Trindade Santos
Universidade Federal do Ceará, Brasil
Revista Archai, núm. 17, pp. 119-135, 2016
Universidade de Brasília

Recepção: 15 Outubro 2015

Aprovação: 15 Novembro 2015

I EXPOSIÇÃO DO ARGUMENTO

“Se alguém que vê, ouve ou capta algo (“alguma coisa”) por algum outro sentido, não apenas conhece (gnôi) essa [coisa] (ekeino), mas também concebe outra (heteron ennoêsêi), cujo saber (epistêmê) não é o mesmo, mas outro, não diríamos com justiça que tem reminiscência daquilo de que captou o pensamento (hou tên ennoian elaben)?” (Phd. 73c).

1. A reminiscência ocorre quando alguém, que “conhece algo” captado pelos sentidos, concebe no pensamento uma outra coisa, cujo saber não é o mesmo (73c-d). Inicialmente a reminiscência não é apresentada como uma teoria englobante sobre o conhecimento e a aprendizagem, mas como um tipo específico de experiência cognitiva.

  1. 1.1. O passo caracteriza a reminiscência como a situação em que se encontra alguém quando o seu conhecimento de “algo”, captado pelos sentidos, é acompanhado pela concepção no pensamento, sem a intervenção dos sentidos, do saber de uma outra coisa.

    1. 1.1.1. A experiência referida é documentada pela apresentação de exemplos correntes de associação (manto, lira, retrato, Símias, Cebes), sendo indiferente que relacione semelhantes ou de dessemelhantes (74c-d, 76a), uma vez que a semelhança não é oferecida como causa da reminiscência (Sedley, 2006, p. 318--327). ocorre muitas vezes (73d), sempre que, a partir de um episódio cognitivo originado em sensoperceções, é concebido, no entendimento (dianoiai: 73d), o saber de uma outra coisa. a avaliação do processo é a seguir refinada pela análise de casos de ‘igualdade’ (74a-75d):

      Só – “Pedaços de madeira e pedras iguais, permanecendo os mesmos, não parecem umas vezes iguais, outras não? Te parece que os próprios iguais (auta ta isa; Ficino 1588, 339: ipsa aequalia) são por vezes desiguais (inaequalia)? ou a igualdade desigualdade?

      Sí – nunca, Sócrates.

      S – não são o mesmo, ..., esses iguais (tauta te ta isa; M. Ficino: haec aequalia) e o igual em si (auto to ison; ipsum aequale)?

      Sí – De modo nenhum me parece Sócrates.

      S – no entanto, é a partir desses iguais (ek toutôn ...tôn isôn; ab his aequalibus), ..., que são diferentes daquele igual (ekeinou tou isou; ipsum illud aequale), que captamos e concebemos o saber dele [o igual]” (74b8-c3).

  2. 1.2. o enfoque no “saber” insere o argumento num contexto cognitivo. Quando “algo” é captado pelos sentidos e esse ato cognitivo é acompanhado por um outro, diferente dele, a esse processo se chama ‘reminiscência’. Inicialmente o problema incide nos modos de captação dos “conhecidos”. Só depois ele será gradualmente associado ao das naturezas captadas (78b-79e).

    1. 1.2.1. Traduzindo aisthêseis por ‘sentidos’, ‘sensopercepções’ (pace Frede, 1999, p. 377-378) e explorando a relação do passo com o tratamento conferido às dynameis na República, condenso na unidade do ‘sentido’ os seus ‘exercício’ e ‘produto’ (Santos, 2013, p. 39-40, 44-45). Isso significa que, com aisthêseis, no Fédon, não é feita a distinção entre o ‘sentido’ propriamente dito (vista, ouvido, etc.) e particularmente aquilo que é captado, “sobre que [o sentido] se exerce (eph’hôi te esti: R. V 477c-d)” e aquilo “que realiza” (apergadzetai: ibid. – o “produto” condensado em “opiniões” ou “saberes” – Fine, 1999, p. 215-225).

      1. 1.2.1.1. Daqui nascem duas interrogações que o texto mantém em suspenso: 1. o que é exatamente captado em cada um dos atos cognitivos?; 2. “De onde” (pothen: 74b) é captado cada um deles?

2. o saber do “Igual” captado no pensamento e no entendimento (73c-d) é diferente [do saber] dos “iguais” captado “a partir” das sensopercepções (74bss.; o uso das preposições ‘ek’, ‘apo’ – 74b, c, 75a, b, passim – caracteriza a experiência das sensopercepções como a origem do ato cognitivo que ocorre no entendimento). Mas o argumento visa a mostrar que, apesar de ser a partir dos iguais que o saber do Igual é “captado e concebido”, enquanto estes “aparecem por vezes desiguais” isso nunca acontece com o Igual (74a-c).

  1. 2.1. Na continuação, o argumento não explica porque isto acontece, mas concentra-se em duas novas interrogações, que condensam a crux múltipla de cuja resolução depende a sua compreensão. Se o Igual é captado a partir dos iguais, que quer dizer este “a partir de”? Quer dizer o que se dá quando, a partir da “visão, etc.”, de algo conhecido, ocorre no pensamento “algo cujo saber é diferente” (73c); por exemplo, no caso dos iguais, “aquele Igual diferente dos iguais” (74c). a manifestação de um saber provoca um outro, diferente dele. Este processo exclui a possibilidade de o Igual vir ser concebido, por abstração, a partir da repetida observação dos iguais.

    Todavia, embora a pergunta – de onde será captado o saber dos iguais? – nunca seja feita nem respondida, nem por isso ela deixa de condicionar a compreensão do argumento. Isso é logo evidente numa outra pergunta que o texto nem sequer formula: como é que “os iguais” podem alguma vez “aparecer desiguais” (“a uns e a outros?”, “agora e depois, ambos?”: 74b)? Será que são “iguais/desiguais”, ou apenas “aparecem” como tal?

    Penso que se pode dizer que aqui estão envolvidos distintos percipientes, ou episódios perceptivos – percepções e percebidos – diferentes. Embora, tal como a igualdade, “os próprios iguais”, enquanto percebidos, só possam ser iguais (74c1-2), ao contrário do que acontece com o Igual, nada impede que se pense que outras percepções [desses iguais] possam ser consideradas “desiguais” (74a-c).

  2. 2.2. a diferença entre o Igual e os iguais é a seguir explicada pela inferioridade dos percebidos, pois, “o que eu agora vejo”, “os iguais vistos” (atta idontes isa: 74b) “aspira” e “deseja ser como” o Igual concebido pelo pensamento, mas não é capaz, por ser mais grosseiro, se assemelhando imperfeitamente ao Igual que foi conhecido antes (74d-75d).

3. Invertendo a ordem inicial de apresentação dos dois saberes (73c), com estas considerações o argumento alega a anterioridade (cronológica e epistêmica) do saber do Igual ao dos iguais captados pelos sentidos, alargando-a depois a todas as “coisas em si”, cujo saber “é captado antes de nascermos” (75c-d). Logo, como usamos os sentidos desde então (75b), este saber [do Igual] – ao qual devemos “referir” (anoisein: 75b7; anapheromen: 76d9) “as coisas iguais nas sensações” (75b, 76d-e) – é anterior ao nascimento e à utilização dos sentidos (75c). Esquecido quando nascemos (76d; vide 73e), depois de perdido (75c-d), é posteriormente “recuperado” (75d-e) com o auxílio das sensopercepções.

O argumento pode então atingir a conclusão:

“... se existem um Belo, um Bom e toda a entidade desse tipo antes de descobrirmos o nosso ser, e a essa referimos as coisas nas sensopercepções e a ela as assimilamos (“a tomamos como modelo”: apeikadzomen), é necessário que, tal como esta existe, as nossas almas existam antes de nascermos” (76d-e).

II PROPOSTA DE INTERPRETAÇÃO

1. Esta leitura do argumento aborda a reminiscência como teoria da cognição e da aprendizagem, não prestando atenção à sua inserção na argumentação a favor da defesa da existência da alma. afasta-se das interpretações consensualmente aceitas, por apontar “os iguais” e “o Igual” (e não as “coisas iguais”) como o que é captado ora a partir das sensopercepções, ora no pensamento. Insistindo na correspondência ontoepistemológica do modo de captação com a natureza do captado, concentra-se no problema posto pela mútua remissão dos dois “saberes” envolvidos pela reminiscência (73c-d, passim).

  1. 1.1. Entendo “paus e pedras” como meros exemplos da modalidade cognitiva em virtude da qual “os iguais” são recebidos a partir dos sentidos (“as coisas nas madeiras ... e nos iguais”: ta en tois xylois... te kai... tois isois: 74d4-5). ora, se a expressão ‘os iguais’ – sempre no plural – refere-se a um produto imediato do modo de captação originado nas sensopercepções (atta idontes isa: “iguais que vemos” – 74b6), mais do que aos “paus e pedras percebidos”, não haverá fundamento para atribuir à “imperfeição do mundo sensível” as deficiências que na sequência lhes serão atribuídas (ca. nehamas, 1975, p.105-108). nego, portanto, a relevância nesta fase do argumento de quaisquer coisas (“sensible things”, ou “perceptible instances”: Cornford 1939, p. 75), captadas pelo exercício dos sentidos.

    1. 1.1.1. Justifico esta alegação pelo fato de não encarar “os iguais” como um “dado sensível”, mas como um “conteúdo” cognitivo (e não um “objeto”: Fine 1999, p. 217-225) captado “a partir dos sentidos”. Por essa razão (contra Cornford, a. nehamas et al), defendo que as expressões “as coisas nas sensopercepções”, “a partir das...”, podem funcionar apenas como referência indicativa da procedência de alguns conteúdos cognitivos (74d5-6; ver as referências correntes a “paus e pedras”, coletadas por Sedley (2006, p. 325), cujo estatuto a seção anterior do diálogo mostrou ser problemático (65dss.).

  2. 1.2. Se “os próprios iguais” se referem àquilo mesmo que é captado a partir das sensopercepções (Gallop 19833; Bostock 1986, p. 82-83; contra Dale 1987, p. 384-399), nada impede que, comparando essa experiência com a do Igual, “tomando-a como modelo” (ver o sentido de apeikazô: LSJ), Símias conjeture que o que em certos contextos cognitivos é visto e conhecido como ‘igual’ possa, noutros, ser visto ou pensado como ‘não igual’.

    No entanto, explorando a insinuação sobre a “carência” da reminiscência em relação àquilo de que é reminiscência (74a), o objetivo imediato do argumento é contrastar “os iguais” com “o Igual”, sempre no singular. Concebido no pensamento, sem ter passado pelos sentidos, este Igual não se acha sujeito à variação relacional de que são objeto “os iguais”.

    1. 1.2.1. Portanto, na medida em que decorrer da assimilação de dois atos cognitivos diferentes, porém, assimilados, a oscilante igualdade dos “paus e pedras” não precisa ser justificada por qualquer deficiência destes, nem entendida como uma propriedade substantiva que entra e sai deles (tal como, depois proposta da teoria da participação – 100c-e –, os predicados “mais alto/mais baixo” são atribuídos à comparação de Símias com Sócrates e Fédon: 102b-103a).

      O confronto dos iguais com o Igual visa a ilustrar a tese segundo a qual a reminiscência implica “dois saberes diferentes” (73c, d, 74b, c, 74d-76a), condensados nos produtos de atos cognitivos distintos. a deficiência de um deles em comparação com o outro reflete esta diferença, mas não é oferecida como a sua explicação. Em suspenso fica a pergunta que domina todo o argumento: que justificação haverá para que um ato cognitivo, originado nas sensopercepções, suscite outro, que ocorre no pensamento, sem o concurso das sensopercepções?

  3. 1.3. No entanto, pelo fato de a comparação se achar inserida na argumentação a favor da imortalidade da alma, é essa deficiência que a continuação do argumento vai explorar. Pois, embora “o saber” do Igual (do Maior, do Menor, do Belo, do Bom, etc.) seja captado no pensamento (e não ‘pelo’) a partir de um episódio perceptivo, a deficiência do saber recebido pelos sentidos – que usamos desde que nascemos – obriga a reconhecer que o saber no pensamento tenha sido captado num tempo anterior ao nascimento (75c).

    1. 1.3.1. Por essa razão, o argumento deixa em dúvida o estatuto e a autonomia da espécie de “saber” ao qual se chega a partir das sensopercepções, deixando ao intérprete duas alternativas:

      a) se a igualdade “conhecida” pelos sentidos (73c) for encarada como uma ‘propriedade’, que os “paus e pedras” podem ou não exibir, então não se entende como esse predicado que lhes é atribuído poderá, nalgum momento, vir a ser negado pelo pensamento e pelo discurso;

      b) contudo, se o que é percebido for entendido como uma imagem da Forma do Igual, percebida pelos sentidos, então, é admissível que os iguais que “aparecem” aos sentidos, possam vir a ser pensados “desiguais”. nesta perspectiva, não só se compreende por que o percebido pelos sentidos se refere ao pensado, como se torna evidente que só pelo exercício da reminiscência da Forma (através do método de pergunta e resposta: 76b-c, 78d; como aquele a que se assiste a partir de 74a) o entendimento venha a poder se dar conta da deficiência destes (74a-75b; Men. 82-86).

      naprimeiraalternativa, oqueépercebidosão“pause pedras”, considerados iguais ou desiguais. na segunda, o que é percebido é a espécie de igualdade à qual se chega pelo uso dos sentidos (a qual, ao contrário dos paus e pedras, pode ser imagem de uma Forma). Duas conclusões podem ser extraídas desta leitura do argumento:

      1. 1. É esta igualdade que se revela imperfeita e deficiente;
      2. 2. mas a deficiência só pode ser entendida a partir da referência àquela a que se chega pelo pensamento, com a qual essa é comparada, tomando--a como modelo (74a-c, 76d-e), num processo que constitui um avanço na reminiscência (ver Men. 82e, 84a).

2. Esta análise encara a reminiscência por uma perspectiva ontoepistemológica. a diferença dos saberes não tem de decorrer da remissão para duas entidades ontologicamente contrapostas – uma sensível, outra inteligível –, podendo resultar de dois atos cognitivos tão intimamente relacionados que podem ser encarados como um único ora captado a partir das sensopercepções, ora “concebido” no pensamento. Por essa razão, o argumento insiste repetidamente em que:

(1) apesar de a captação e concepção do saber no pensamento só ocorrer a partir (ek), ou depois (apo), da captação de “algo” a partir das sensopercepções (74c, 75a, b, e, 75e-76a);

(2) é ao tipo de entidades concebidas no pensamento que o conhecido (73c, d) a partir das sensopercepções (“as coisas nas percepções”: 74d, passim: os iguais) se refere, tomando-o como modelo (75b, 76d-e).

  1. 2.1. É nesta recíproca remissão de um saber para o outro que consiste a reminiscência, como teoria sobre a cognição e a aprendizagem. Em casos em que as Formas consubstanciam ‘predicados’ (“predicate concepts”: Gosling 1983, 161; como é o caso das propostas no Fédon), mas não em todos (como mostra o exemplo do “dedo”: R. VII 523c-d), o conhecimento captado pela percepção de algo não constitui um ato cognitivo independente. Isso só acontece quando o saber a partir do percebido remete para um outro saber, anterior a ele, do qual está próximo e ao qual se refere.

    Por outro lado, encarando agora a reminscência como teoria sobre a aquisição de conhecimento, a cognição só é possível se consistir no exercício de recuperação desse saber anterior, realizado a partir da experiência do conhecimento de “algo” captado a partir das sensopercepções (76d-e; Men. 82-86; Phdr. 249b-c).

  2. 2.2. não será, portanto, excessivo conjeturar que serão a “referência”, a consequente tendência a “tomar como modelo” (“assimilar”) o saber das “coisas nas sensopercepções” àquele que está “ìnsito [na alma]” (73a), que, por exemplo, levam Símias a admitir que os iguais podem por vezes “aparecer” (e nunca “ser”) desiguais (74a-c). Esta admissão será justificada pelo fato de o que é captado a partir das sensopercepções “aspirar a ser como” o que é concebido no pensamento, mas não poder, por ser mais grosseiro que ele (74d-75b). no entanto, esta justificação só é aceitável se o saber captado nas sensopercepções for avaliado pelo saber que é concebido pelo pensamento. ou seja, se se admitir que os iguais só “aparecem” não--iguais depois de terem sido “referidos” ao saber do Igual, que existe (“já existia”) na alma (73a), e com ele comparados (75a-b; no curso do argumento, Símias só admite que os iguais podem aparecer desiguais depois de ter reconhecido o Igual (74a-c; vide 74e-75b).

    1. 2.2.1. a adoção desta perspectiva tem ainda a vantagem de explicar como a relação, justificada pela “proximidade” dos dois atos cognitivos – um procedendo de fora da alma, o outro ocorrendo no interior dela –, pode provocar as subsequentes ‘referência’ e ‘comparação’, ‘assimilação’, do saber a partir da sensopercepção ao saber ‘no entendimento’, e mais tarde a posterior “recuperação” desse saber primeiro pelo sentidos (75a-b, 75e-76a), depois, através do diálogo (76b):

      “Se, penso, ao nascer perdemos o que captamos antes de nascer, e depois, por usarmos as sensopercepções, recuperamos aqueles saberes acerca delas, os quais detínhamos antes, não será a recuperação do saber que é nosso próprio aquilo a que chamamos ‘aprender’? E não será correto chamar a isto ‘reminiscência’?” (75e).

      1. 2.2.1.1. Esta “referência”, ou “remissão” de um saber ao outro deve funcionar nos dois sentidos. Se o que é captado a partir da sensopercepção “se refere” ao pensado, também o pensado deve consentir “ser comparado” com o percebido, por constituir “o modelo” a partir do qual o outro é formado, nesta comparação se manifestando a “proximidade” e “semelhança” que os liga. a reciprocidade destas relações permite encarar o percebido como uma imagem do pensado.

3. Esta interpretação, que depende de “os iguais” serem encarados como recordação vaga da Forma do Igual, é passível de uma objeção consensual. Se a reminiscência da Forma for condição da captação do saber a partir das sensopercepções, a experiência sensível não poderá ser invocada como origem da reminiscência, sob pena de infinito regresso (ackrill, 1973, p. 183; Scott, 1999, p. 105).

A objeção poderá, contudo, ser superada se ficar claro que nestes casos a percepção é já reminiscência, da qual constitui o momento inicial. não entendendo a reminiscência como um “tudo ou nada” entre duas alternativas opostas e incomunicantes (vide Men. 80d-e, 82e, 84a; Phdr. 249b, 249e-250e; Phd. 73c-d, 74b, 74c-d, 75e-76a; Tht. 188a), mas, iniciada “pelo uso das sensopercepções” (75e), a reminiscência consiste no processo gradual do qual as imagens assinalam os primeiros momentos da recuperação de uma memória mais ou menos vaga das Formas, susceptível de ser constantemente apurada pelo exercício do pensamento e do discurso (73a; Phdr. 249b-c).

3.1 Esta interpretação só pode ser aceita se se admitir que o que é percebido não são ‘predicados’ ou “conceitos empíricos” – por exemplo, de ‘igual’ –, formados a partir da observação de paus e pedras (Scott, 1999, p. 114), nuns casos julgados iguais, noutros desiguais, mas “os próprios iguais” percebidos (74b). Contra Scott, defendo que, no Fédon, os ‘predicados’ só aparecerão adiante, associados à ‘participação’ e inseridos num contexto predicativo:

“se alguma outra coisa é bela além do belo em si, não é bela senão por participar desse belo” (100c-e).

Ou seja, o argumento relata as diversas experiências de como qualquer um (e não apenas um filósofo: Scott 1995, p. 53-83) capta, por exemplo, os iguais a partir das sensopercepções, e depois os refere à reminiscência do Igual, com a qual os compara. Se admitirmos que essas “experiências” (73d) são condicionadas por uma reminiscência vaga do Igual, nada impedirá que a reflexão sobre elas sucessivamente viabilize o refinamento dessa primeira recuperação da Forma (Men. 84a). É nesse processo gradual que consiste a reminiscência, simultaneamente entendida como concepção do saber e teoria sobre a aquisição deste.

Material suplementar
Informação adicional

COMO CITAR: SANTOS, J. Trindade (2016). observações sobre “o igual” e “os iguais”: Fédon 72e-77a. Archai, n.º 17, may-aug., p. 119-135. DoI: http://dx.doi.org/10.14195/1984-249X_17_5

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