Resumo: Os diálogos de Platão são grandes representações teatrais. representações em que se põe em cena sobretudo algo que nenhum dos tragediógrafos ou dos comediógrafos gregos se atrevera a tratar antes de Platão: a filosofia. Cada diálogo é, por conseguinte, uma obra teatral que trata um tema, ou muitos temas, da filosofia, aquela “filosofia” que precisamente com Platão recebeu a sua primeira e poderosa conotação. o Fédon foi, como é natural, interpretado das mais variadas formas. o que acontece é que, no Fédon, há, sim, a perspetiva das ideias contraposta à de um puro e simples empirismo; há, sim, a proclamação da imortalidade da alma; há, sim, incongruências lógicas e argumentativas: mas para alcançar o sentido disto tudo é preciso abandonar precisamente a pretensão de encontrar no Fédon um tratado de filosofia. É mister lê-lo, então, como uma obra teatral que põe em cena uma situação singular – o último dia da vida de Sócrates – com personagens singulares que discutem a filosofia, do que para eles é a filosofia. e discutem – é realmente isto que Platão põe em cena – com toda a complexidade dos sentimentos que às vezes experimentam: prazer e dor, lágrimas, sorrisos e gargalhadas, queixumes e comoção. Neste último dia, na cela de Sócrates representa-se em síntese toda a vida desses homens.
Palavras-chave:PlatãoPlatão,FédonFédon,almaalma,mortemorte,imortalidadeimortalidade.
Abstract: Plato’s dialogues are great theatrical performances. These representations put into the scene something that none of the Greek tragedians or comedians dared to treat before Plato: philosophy. each dialogue is therefore a play that deals with a topic, or many topics of philosophy, which makes Plato responsible for “philosophy” first meaning and connotation. The Phaedo was, of course, interpreted in many different ways. In the Phaedo, we do find a set of ideas opposed to a pure and simple empiricism; we do find the theory of the immortality of the soul; we do find logical and argumentative inconsistencies. However, in order to make sense of all that, we must stop seeing Phaedo as treatise on philosophy. Thus, Phaedo must be read as a theatrical work that brings into play a unique situation – the last day of Socrates’ life – with unique characters discussing philosophy, or, in other words, what is philosophy for them. and they argue – and this is really what Plato puts into play – with all the complexity of feelings that they sometimes experience: pleasure and pain, tears, smiles and laughter, groans and commotion. In this last day, in Socrates’ cell, a synthesis of all these men’s lives is shown.
Keywords: Plato, Phaedo, soul, death, immortality.
DOSSIER
ALMA, MORTE E IMORTALIDADE
SOUL, DEATH AND IMMORTALITY

Recepção: 15 Outubro 2015
Aprovação: 15 Novembro 2015
Os diálogos de Platão são grandes representações teatrais. representações em que se põe em cena sobretudo algo que nenhum dos tragediógrafos ou dos comediógrafos gregos se atrevera a tratar antes de Platão: a filosofia. Juntamente com ele, outros, talvez, como os chamados “socráticos”, fizeram o mesmo, mas deles sabemos pouco. Cada diálogo é, por conseguinte, uma obra teatral que trata um tema, ou muitos temas, da filosofia, aquela “filosofia” que precisamente com Platão recebeu a sua primeira e poderosa conotação. Cada diálogo é uma «obra de arte filosófica», come disse Gomperz, no sentido em que representa ao vivo o processo através do qual os homens, alguns homens, “constroem” e “fazem” filosofia: cada um deles retratado com o seu feitio, com as suas opiniões, com os seus receios, com as suas esperanças: todos esses factores que fazem parte da atitude filosófica. Porque a filosofia é, fundamentalmente, diálogo de homens, assim como o pensamento é essencialmente um diálogo, mesmo quando a alma está sozinha consigo mesma1.
Naturalmente, Sócrates é a personagem principal das tragédias e comédias criadas por Platão, quer quando conta diálogos, quer quando é ator dos diálogos contados. a Sócrates se dedica sobretudo o Fédon, a obra que põe em cena o último dia da sua vida terrena. a que desenha, talvez mais do que outras obras, o seu feitio “ideal”, a imagem do verdadeiro filósofo, da sua atividade em vida e da sua atitude perante a morte. a alma, a vida, a morte e a imortalidade são, portanto, juntamente com Sócrates, os protagonistas do Fédon. e tudo isto se acontece numa grande representação teatral, pormenorizadamente tratada, em que se manifesta de maneira plena o “estilo” das obras platónicas. estilo que é uma mistura irrepetível de raciocínios que demonstram e de mitos que narram, que não podem ser separados, sob pena de se perder precisamente o sentido desta «obra de arte filosófica».
O Fédon foi, como é natural, interpretado das mais variadas formas. em especial, para usar a bela expressão de Monique Dixsaut, é o diálogo mais usado para “substituir Platão pelo platonismo”, para construir aquela imagem de uma filosofia, com fortes instâncias metafísicas, que predicava o desprezo do corpo e do sensível, a reivindicação de um mundo de ideias puras nitidamente separado do mundo material e concreto, a proclamação de uma vida ascética e de uma imortalidade pessoal e antecipadora da mensagem cristã2. Também foi o diálogo mais usado por todos os estudiosos que realçaram – e muitas vezes se divertiram a fazê-lo – as incongruências dos raciocínios platónicos, as distorções lógicas, os “erros” das demonstrações filosóficas. o que acontece é que no Fédon há, sim, a perspetiva das ideias contraposta à de um puro e simples empirismo; há, sim, a proclamação da imortalidade da alma; há, sim, incongruências lógicas e argumentativas: mas para alcançar o sentido disto tudo é preciso abandonar precisamente a pretensão de encontrar no Fédon um tratado de filosofia. É mister lê-lo, então, como uma obra teatral que põe em cena uma situação singular – o último dia da vida de Sócrates – com personagens singulares que discutem a filosofia, do que para eles é a filosofia. e discutem – é realmente isto que Platão põe em cena com toda a complexidade dos sentimentos que às vezes experimentam: prazer e dor, lágrimas, sorrisos e gargalhadas, queixumes e comoção. Neste último dia, na cela de Sócrates representa-se em síntese toda a vida desses homens.
Mas não é suficiente. ao representar um esboço de vida, cada obra teatral serve-se de alguns ingredientes e de alguns estratagemas específicos que poderiam ser considerados acessórios, mas que, pelo contrário, são importantes para nos oferecerem o sentido pleno da representação, para o qual todos concorrem em termos de funcionalidade. Por exemplo, o uso dos provérbios, e das forças de expressão, as expressões dialetais, as analogias, as imagens, as metáforas que se misturam com as imagens; ou então os silêncios e as pausas, os intermezzos, os excursos, o falar de forma rápida e afetada, ou os mitos (nós diríamos antes, os contos), que servem para destemperar, ou para realçar, a comoção típica de uma situação que se criou ao longo da cena; ou ainda os saltos lógicos durante um diálogo, ou a utilização, com fins éticos, de uma afirmação aparentemente alheia ao discurso.
Sob esta perspetiva, penso que se deve examinar também a questão da alma, da morte e da imortalidade, questão central no diálogo, para entender o papel e a função das chamadas “demonstrações” platónicas. No Fédon não há uma verdadeira definição de alma, do género das que encontramos, por exemplo, no Fedro, onde lemos que «o que se move a si mesmo é imortal» e dado que a definição (o λόγος) da alma é precisamente esta, então a alma é totalmente imortal (245c5: ψυχὴ πᾶσα ἀθάναθος. τὸ γὰρ αὐτοκίνητον ἀθάναθον). ainda assim, o nosso diálogo já na antiguidade era qualificado como uma obra que tratava Da alma, e o seu género era classificado como “ético” (DL 3, 58-61). absolutamente justo: o Fédon trata da alma e é um diálogo, um drama, essencialmente ético, no sentido que desenha de forma poderosa e sugestiva o modo como deveria agir o homem que quer ser sábio e justo nesta vida e, por conseguinte, também no momento supremo da vida, o que a completa e a encerra, isto é, a morte.
Aceita-se sem questionar, como um facto que não necessita de nenhuma prova ou demonstração, que a alma é um dos dois elementos que compõem o ser humano, naturalmente, o outro é o corpo; cada ser humano é uma junção de alma e corpo e é a sua união que o constitui como tal: «uma parte de nós é corpo e a outra é alma» (79b1-2). Todavia, nunca se diz o que é a alma e o que é o corpo, o que se afirma constantemente é que a alma é imortal e o corpo é mortal. as argumentações socráticas deste tema são diversas e engastam-se, também cenicamente, nas várias viragens do diálogo, no sentido que seguem o andamento da discussão entre Sócrates e os seus interlocutores, que o dramaturgo sapientemente constrói e ordena. assim, por esta razão, também o valor “lógico” das demonstrações é diverso. Com efeito, nelas trançam-se, misturam-se e por vezes sobrepõem-se raciocínios e mitos, sentidos explícitos e sentidos escondidos, subentendidos e alusivos.
Neste diálogo, a morte recebe muitas definições ou caracterizações: morte como separação da alma do corpo (64c), sentido metafórico da morte, e dissolução total do ser humano (alma e corpo), que constitui precisamente a origem do medo da morte (77d--e). Mas é sobremaneira importante a morte vista em sentido metafórico. Neste sentido, aquilo que num primeiro momento fora pensado simplesmente como “separação” da alma do corpo adquire uma conotação especial, conotação que, a meu ver, se enquadra num horizonte especificamente gnosiológico. este horizonte é reafirmado no que Sócrates chama a opinião (66b2-67b) que os filósofos genuínos devem continuamente repetir a si mesmos, e que é o trilho (66b4: ἀτραπός) que os conduz na investigação, precisamente com o raciocínio (66b4-5: μετὰ τοῦ λόγου ἐν τῇ σκέψει): enquanto a alma estiver unida ao corpo, na busca da verdade, não poderemos conhecer nada na sua pureza (66d8: καθαρῶς; 66e5: καθαρῶς γνῶναι). adquire-se o saber (66e6: τὸ εἰδέναι), portanto, só quando morremos, o que significa, no significado metafórico do termo morte, quando a alma investiga sozinha a verdade sem o envolvimento da sensibilidade. Que é uma perspetiva absolutamente não metafísica, porque é precisamente a mesma perspetiva também do “materialista” Demócrito, quando afirma que o conhecimento (γνῶμη) que nos deriva dos cinco sentidos é obscuro (σκοτίη), enquanto que o outro conhecimento, bem distinto deste, superior a ele, e que visa a verdade, isto é, o conhecimento genuíno (γνησίη), se adquire só com o ato de pensar (νῶσαι) e com o intelecto (DK68B11). Isto é o que Platão chama, com um termo retirado da tradição dos mistérios e por ele elevado a valor gnosiológico e ético, “purificação” (67c5: κάθαρσις) do filósofo, ocupação de quem filosofa retamente (67d8: ὀρθῶς).
Gostaria de dar apenas dois exemplos do “estilo” narrativo e dramático típico deste diálogo, no qual se entrelaçam “demonstrações” lógicas com “significações” éticas, que são obviamente justificadas pela presença do mito. em primeiro lugar, falamos do bloco narrativo e dramático, em que, após ter introduzido o conceito de purificação, o aspeto gnosiológico da “separação” se mistura com o ético. este bloco abre--se em 78b e encerra-se em 84a. após a enunciação daquilo que parece ser uma lei geral dos acontecimentos, isto é, a que se refere ao nascimento a partir dos contrários (70d-e), aquela lei que parece ser uma prova suficiente (72a6: ἰκανὸν τεκμήριον) de que as almas dos mortos estão necessariamente em algum lugar e de lá voltam a nascer outra vez; após ter sido desenvolvido o argumento da aprendizagem como reminiscência (72e-77a), em que, mais uma vez, o aspeto mais propriamente epistémico acaba por misturar--se com o mítico da pré-existência das almas e, por conseguinte, da sua imortalidade, demonstração mais uma vez declarada “suficiente” (77a5, a8); após Símias e Cebes terem realçado que a demonstração de Sócrates, de facto, só provou, por assim dizer, meia--imortalidade, porque demonstrou apenas que a alma pré-existe ao nosso nascimento, mas não que continuará a existir também depois da nossa morte (77b--c); Sócrates introduz um novo conceito, o da “simplicidade” da alma. Também neste caso, e desta vez de maneira totalmente explícita, o aspeto lógico da nova demonstração (78b-c) que distingue o que é simples, e que não pode ser decomposto (a nossa alma), do que não é simples, e está destinado a decompor-se (o nosso corpo), liga-se ao ético: esta distinção entre os dois tipos de entes serve para estabelecer «se devemos ter coragem ou medo pela nossa alma» (78b9). Não só. em todo o bloco narrativo se fixam os alicerces para o que se será o argumento final para demonstrar a imortalidade e a indestrutibilidade da alma, isto é, o que liga a imortalidade da alma à existência das ideias (100b segs.), e se misturam também as observações gnosiológicas supracitadas com as entradas míticas da tese; e não faltam sequer os “espiões” estilísticos, como sempre em observações e conotações aparentemente marginais, da validade unicamente aproximada da argumentação. Vejamos.
Devemos, portanto, examinar qual, dentre os dois tipos de entes, se decompõe e se disperde e em seguida a que tipo de entes pertence a alma: o que é composto decompõe-se, o que não é composto não se decompõe: (78b-c); é, pois, “muito verosímil” (78c7) que os entes que se acham sempre no mesmo estado são os não compostos. Por bem duas vezes Cebes diz «assim parece» (78c5, c9). os entes que se acham sempre no mesmo estado são as ideias, o igual em si, o belo em si, cada coisa em si, que nunca admitem de maneira alguma e por nenhum modo a mudança, enquanto que as coisas belas nunca permanecem da mesma maneira nem em relação com as outras (78c-e). eis aqui o aspeto gnosiológico, isto é, as coisas que mudam são percebidas através dos sentidos, enquanto as que não mudam são entendidas por um raciocínio; podemos chamar às primeiras visíveis e às segundas invisíveis: estas permanecem sempre da mesma maneira, as primeiras não (78e-79a). a coisa estranha é que agora, transferindo este raciocínio para a distinção entre corpo e alma, não se diz que a alma é invisível e o corpo não o é, mas sim que o corpo é «mais semelhante e congénere» (79b4-5: ὁμοιότερον, συγγενέστερον) ao visível, enquanto que a alma é «mais semelhante (79b16: ὁμοιότερον) do que o corpo» ao invisível. estes graus de comparação reaparecem em 80a10-b5, uma passagem que não só introduz a noção de “divino” (junto com as conotações físicas e teoréticas, mas que não está, de um ponto de vista estritamente lógico, ligada a elas), como também – algo bastante estranho em Platão – se constroem duas séries de correspondência biunívoca3 perfeita. Que significam estes comparativos? Logicamente, deveriam significar, em primeiro lugar, uma não identidade: a alma não é o invisível, mas é semelhante ao invisível, o corpo não o visível, mas é semelhante ao visível; e em segundo lugar, uma relatividade: em relação ao corpo a alma é mais semelhante ao invisível, em relação à alma o corpo é mais semelhante ao visível. Mas isto implicaria, logicamente, uma certa visibilidade da alma, claramente inferior à do corpo, e uma certa invisibilidade do corpo, certamente inferior à da alma. ora, se realmente quisermos dar um sentido a estas “anomalias” do discurso argumentativo teremos de sair do contexto específico destas passagens e trançá--lo com outros contextos platónicos, igualmente pre-sentes neste diálogo, por vezes de maneira subentendida: de certo modo a alma é visível quando encarna num corpo, o corpo de certo modo é invisível quando “falamos” do corpo, isto é, quando usamos a ideia de corpo para nos referirmos à nossa corporeidade. Mas tudo isto talvez não conte. o que aqui interessa a Platão, na argumentação dramática e dialógica intensa que se desenrola entre Sócrates e o seu interlocutor, é a conclusão deste procedimento: o corpo dissolve-se, a alma vai para o Hades (80b-81a). Nesta conclusão convém assinalar algumas “estranhezas” e algumas “reservas” que também aparecem, tais como aquela relativa imortalidade do corpo (quando morremos jovens e em boas condições, ou como quando o cadáver é embalsamado à maneira dos egípcios), ou aquelas partes do corpo, como os ossos e os nervos, que se mostram «por assim dizer imortais» (80c-d); ou ainda, como a observação de que «é muito mais provável que as coisas estejam assim» (80e2), isto é, que a alma não pereça com a morte do corpo, porque a alma é totalmente indissolúvel, «ou quase» (80b11).
Portanto, não podemos procurar no discurso platónico deste diálogo a coerência da lógica pura: o fim do diálogo, como se disse, é fundamentalmente ético, e reafirma-se na conclusão deste bloco dramático, em 84a2-b7: a alma do filósofo pensaria deste modo e, seguindo o raciocínio, agiria de consequência. Para chegar a esta conclusão, o mito, as metáforas, a imaginação “popular” misturam-se intimamente com o discurso filosófico. então, se a alma se manteve pura, parte para um lugar puro, nobre e invisível (80d5--81a2), se pelo contrário se separa do corpo impura, o que significa «pensando que nada é mais verdadeiro do que o corpóreo e fugindo do inteligível» (81b1-c2), oprimida pelo peso do corpo, por assim dizer, vagueia como sombra e imagem pelos sepulcros e, por isso, pode ainda ser vista (81c8-d4), porque as almas dos não bons vagueiam em lugares semelhantes (81d6-e4). e há ainda o mito da reencarnação das almas, de todas as almas, das más e das boas, em formas animais com feitios semelhantes aos que cultivaram quando viviam (81e5-82b8); há a reafirmação da filosofia como libertação e purificação, que “docemente” impele a alma a manter-se distante, sempre «por quanto lhe for possível», dos prazeres e das dores, porque prazer e dor são como “pregos” que fixam a alma e a subjugam ao corpo (82d2-83c3), e quando a alma sente prazer e dor excessivos pensa que aquilo que sente é precisamente o que é mais verdadeiro (83c5-9). Tudo isto é a morte como metáfora, é o “cuidado da morte” que o filósofo experimenta em vida, é o “exercitar-se na morte”, que outra coisa não é senão o “filosofar corretamente” (81a1-2).
O segundo exemplo que gostaria de dar diz respeito às páginas 85-88, em que se mostra a grande capacidade “cenográfica” de Platão em dispor homens que “constroem” juntos as suas convicções filosóficas, teoréticas e éticas, numa representação dramática de grande eficácia. Que o sentimento de medo seja verdadeiramente difícil de acalmar, demonstra-se pelo facto de, depois de Sócrates ter mostrado que a alma, contrariamente ao corpo, sendo um ente simples, não pode decompor-se e, por conseguinte, morrer, Cebes voltar a objetar-lhe (86e6-88b8) que o discurso se mantém no mesmo ponto e ainda vale a objeção que lhe foi feita. Com efeito, admitindo que a alma existe antes de reencarnar e é mais nobre e duradoura do que o corpo, não leva a que se admita necessariamente que ela não acabe por perecer. Dá-se como exemplo o tecelão que tece muitas vestes, sobrevivendo--lhes, embora não sobreviva ao seu último trabalho; da mesma forma a alma poderia cansar-se no ciclo das reencarnações e destruir-se completamente junto com o corpo numa das suas mortes. Ninguém conhece (εἰδέναι) esta dissolução (διάλυσιν) do corpo, que leva à destruição (ὄλεθρον) também da alma, porque não existe tal experiência (αἰσθέσθαι). Portanto, é preciso ainda demonstrar (ἀποδεῖξαι) que a alma é absolutamente imortal e indestrutível (88b5-6: παντάπασιν ἀθάνατόν τε καὶ ἀνώλεθρον). Se isso não puder ser demostrado, forçosamente, quem estiver para morrer, temerá (δεδιέναι) que a sua alma seja completamente destruída.
Do ponto de vista cénico, esta longa intervenção de Cebes (precisamente 62 linhas) é importante não só porque mostra que o raciocínio ainda não acalmou o medo e o temor da morte, mas também por aquela menção à ausência completa de uma prova sensível de tudo quanto foi dito: podemos afirmar que possuímos uma experiência da nossa morte? obviamente que não, tal como não há nenhuma experiência da nossa vida após a morte, nem da vida da nossa alma independentemente da que leva quando está junto ao nosso corpo. Portanto, o facto de Cebes reconhecer aquela espécie de semi-imortalidade da alma, que consiste em pré-existir à vida reencarnada, é só um expediente dramático para reafirmar que a verdadeira imortalidade consiste unicamente na prova da sua absoluta indestrutibilidade; não por acaso, Cebes é o primeiro a unir os dois conceitos de imortalidade e indestrutibilidade (cf. 88b5-6), de que Sócrates se servirá no seu “argumento final”, sobrepondo os dois conceitos e suscitando, mais tarde, as críticas de um leitor inteligente como o foi estráton (cf. 106d1).
A intervenção de Cebes, em 86-88, segue a intervenção muito mais breve de Símias, em 85-86 (32 linhas contra as 62 de Cebes). Do ponto de vista cénico, porém, a objeção de Símias está enquadrada num contexto dramático de grande eficácia, sobretudo porque à personagem Símias o cenógrafo Platão atribui uma reflexão de grande importância, que exprime, a meu ver, uma das autênticas caracterizações da filosofia platónica. Sócrates acabou o seu discurso sobre a purificação realizada pela filosofia, concluindo que, com esse tipo de vida, o filósofo não deve temer que a sua alma, ao separar-se do corpo, se disperca e desapareça. o seu discurso causa um silêncio que se mantém por muito tempo (84c1-2: ἐπὶ πολὺν χρόνον). este silêncio é o sinal de que o que se disse suscitou perplexidade e dúvida e, como muitas vezes acontece durante as aulas de um “mestre”, ninguém intervém para abrir a discussão. Mas alguns, isto é, Símias e Cebes, cochicham (84c4). e como muitas vezes acontece ainda hoje, o mestre Sócrates pergunta de que estão a falar: se são coisas particulares, nada a objetar, mas se se trata das questões tratadas, então é bom que tornem explícitas as suas dúvidas de maneira a que se possa tentar melhorar juntos o que se disse. É uma cena de uma modernidade surpreendente. e Símias exprime a motivação do seu cochichar: num dia desventurado como esse, eles temem enfastiar Sócrates. a declaração de Símias dá a Sócrates a ocasião para “cantar” o que ele define ser o seu “canto do cisne” (85b3-4). então, Símias toma coragem e expõe a sua dúvida, mas antes de o fazer, faz uma consideração que exprime bem o espírito da filosofia platónica.
Sobre coisas do género, observa, «saber algo de certo na vida presente ou é impossível ou é extremamente difícil. Todavia, não submeter a refutação tudo o que foi dito sobre esses assuntos e desistir, antes de se sentir cansado após o ter examinado sob todos os pontos de vista, é típico de um homem demasiado fraco. De facto, neste campo é preciso fazer uma de duas coisas: ou aprender de outros como estão as coisas, ou descobri-lo sozinho. e se isso for impossível, então assumir pelo menos o melhor e o menos refutável dos discursos humanos, embarcando-se nele como se de uma jangada se tratasse, correndo o risco de fazer a travessia da vida, e, se esta não puder ser feita com segurança e com o menor perigo possível, fazer a viagem na nau mais sólida de um discurso divino» (85c1-d4). Trata-se de uma reflexão realmente importante que, por um lado, se liga à clássica afirmação socrática do “sei que nada sei”, que é a consciência, à maneira de Xenófanes e de Protágoras, da relatividade do saber humano e da dificuldade com a qual este se constrói e, por outro lado, exprime a necessidade perene de investigar, procurando o discurso melhor. ao mesmo tempo, com a bela metáfora da jangada e da “travessia da vida”4, liga-se mais uma vez o valor da atividade da investigação teorética ao da conduta de vida própria dos homens não fracos; e, por fim, contrapõe-se esta atividade inquieta, incerta, aberta também a possibilidade de fracasso, à aquiescente, tranquilizadora e soporífera viagem a bordo de um “discurso divino”.
A dúvida de Símias (85e-86d), que parte de uma analogia, diz respeito ao facto de todo o discurso de Sócrates sobre a invisibilidade, beleza, não corporeidade e divindade da alma em relação ao corpo poder ser tranquilamente aplicado também a uma lira e à harmonia que ela é capaz de produzir: também a harmonia que provém de uma lira é bela, invisível, incorpórea e divina, enquanto que as cordas e a madeira de que é feita são corpóreas e mortais. a objeção baseia-se claramente na conceção pitagórica da alma--harmonia, isto é, na de uma alma que é crase dos elementos corpóreos e a partir deles se constrói (vide 86d) e, como é natural, deste ponto de vista a alma não só seria mortal, porque não há harmonia quando o instrumento que a produz está partido, como nem sequer se poderia admitir a existência de uma harmonia antes de a lira ser construída. Por outras palavras, é uma objeção que praticamente aniquila todos os discursos feitos até ao momento e Sócrates deve refutá-la.
Aqui a sapiente “cenografia” platónica é realmente excecional em dosear os muitos elementos cénicos que preparam a resposta socrática, no interior dos quais, entre outras coisas, se dá ênfase a outra conotação importante da investigação filosófica. a cela de Sócrates, onde se desenrolam as objeções de Símias e de Cebes, esfuma-se e agora, no palco, reaparece a primeira cena, a que decorre em Fliunte. De forma brusca, em 88c1, aparece Fédon que já não narra, mas comenta com o seu interlocutor equécrates a desagradável sensação que todos os presentes tiveram naquele momento, os quais se sentiram perturbados por aquelas objeções e pensaram que não tinham mais nenhum motivo para acreditar no que se dissera. Por algum tempo, a cena mantém-se em Fliunte e equécrates e Fédon comentam aquele instante, especialmente equécrates, que se demonstra muito atraído pela tese da alma-harmonia e muito interessado em saber se Sócrates se sentiu perturbado com aquelas objeções e de que modo continuou o seu discurso (88d-89a). Fédon, por sua vez, confessa a equécrates que nunca havia admirado tanto Sócrates como naquele momento, quer pela benevolência com a qual recebera o discurso dos dois tebanos, quer pela sua consciência do efeito que os seus discursos haviam causado nos presentes, quer ainda pelo convite que fez a todos os espetadores para que não se dessem por vencidos e reexaminassem de novo o discurso. então, a cena passa novamente para a cela de Sócrates, mas este não começa com a refutação do discurso de Símias, mas acaricia os cabelos de Fédon (89b). e após ter brincado um pouco com os seus cabelos, e lhe ter tido que os deverá cortar no dia seguinte em sinal de luto, desta vez declara explicitamente que o maior luto seria dar-se por vencidos e não continuar a combater pelo seu discurso, refutando os discursos de Símias e de Cebes. o jogo continua, fazendo menção a um dito proverbial sobre Héracles e Iolau aliados contra os seus inimigos (cf. 89c5). Contudo, há ainda outro “prólogo” importante (e longo: 89d1-91c6) antes da refutação dos discursos dos dois tebanos: Sócrates convida Fédon, e com ele implicitamente todos os presentes, e todos os leitores, a não adoecerem de uma certa maleita (89c12: πάθος). esta doença é a misologia, análoga à misantropia, e não há mal pior do que tornar-se desprezadores do discurso. Sócrates deteta uma causa para estas duas doenças: a excessiva confiança, nos discursos e nos homens, sem a posse de um adequado conhecimento “técnico” de uns e dos outros (89d3-6); depois, face a experiências decepcionantes, acaba-se por odiar todos, homens e discursos. a propósito destes últimos, concretamente, a misologia nasce quando se considera um discurso verdadeiro e em seguida falso, e assim consecutivamente.
Mas aqui faz-se uma observação significativa, expressa por meio de uma proposição secundária concessiva, e depois esta cena conclui-se com outra declaração socrática importante que revela, a meu ver, o autêntico sentido deste diálogo. Diz Sócrates, falando ainda com Fédon, que seria realmente triste «um tal modo de sentir, se, mesmo existindo um discurso verdadeiro, seguro e suscetível de ser reconhecido como tal, depois, alguém atirasse a culpa para cima dos discursos, após ter-se embatido naquele tipo de discursos que às vezes parecem verdadeiros e às vezes não, em vez de acusar a si mesmo e à sua incompetência, devido ao que dolorosamente provou, acabando por odiá--los a todos e caluniando-os, privando-se da verdade e do saber certo sobre as coisas que são» (90c8-d7).
Tal como alguns homens são bons e outros são malvados, alguns discursos são verdadeiros e outros são falsos: saber reconhecer uns e outros é fundamental para saber agir da melhor forma em relação a eles. Mas aquele inciso que pusemos em itálico é muito importante: é o sinal da confiança platónica numa verdade que deve existir e para a qual os nossos discursos devem dirigir-se sempre. Pode dar-se àquele inciso, se realmente se quiser, o sentido “platónico” de uma verdade “objetiva” que está além e é independente dos discursos humanos5, mas não se pode negar que é só dentro do horizonte dos discursos que o ser humano a pode encontrar, que deve continuar a procurar por ela, porque a verdade pertence aos discursos e sem os discursos não se pode aspirar à verdade6. Desistir de procurar por ela, como havia antecipado Símias com pleno espírito platónico, é típico de homens demasiado fracos, e significa não só privar-se da verdade e do saber sobre as coisas que são, mas também perder o sentido autêntico da vida, como Sócrates declara no desfecho da cena. É preciso procurar sempre pela verdade, mas nunca poderemos saber com absoluta certeza se com os nossos discursos a alcançamos; o importante é procurar por ela com sinceridade de espírito, como se diria hoje: é um facto “acessório” (91a9: πάρεργον) que os outros presentes considerem verdadeiro o que Sócrates está a dizer, o importante é que a Sócrates aquilo que diz lhe pareça verdadeiro. Porque num momento como o que Sócrates está a viver, face à morte, «se por acaso, forem belas as coisas que digo, então vale a pena acreditar nelas» (91b2-3). a absoluta verdade não é uma posse humana, só divina, como Platão repete em vários momentos, mas construir um discurso “belo” é sempre um bem, porque só com os discursos belos e bons se constrói um sentido para a vida boa e justa. e, se pelo contrário, «nada houver para quem morre» (91b3) – hipótese que aqui permanece sempre aberta, apesar de tudo o que se disse e se dirá –, pelo menos, no tempo que precede a morte teremos sido “menos desagradáveis” para os homens que estiveram junto connosco. estas considerações estão longe de serem acessórias pois, como vimos, acabam por dar sentido a toda a investigação e filosofia platónicas. assim, após estes intermezzos, Sócrates pode então começar a refutação dos discursos dos dois tebanos.
Tradução de Maria da Graça Gomes de Pina
COMO CITAR: CASERTANO, L. (2016). alma, morte e imortalidade. Archai, n. 17, mayaug., p. 137-157. DoI: http://dx.doi.org/10.14195/1984-249X_17_6