DOSSIER
O AGNOSTICISMO PLATÔNICO NO FÉDON DE PLATÃO
THE PLATONIC AGNOSTICISM IN THE PLATO’S PHAEDO
O AGNOSTICISMO PLATÔNICO NO FÉDON DE PLATÃO
Revista Archai, núm. 17, pp. 159-172, 2016
Universidade de Brasília

Recepção: 15 Outubro 2015
Aprovação: 15 Novembro 2015
Resumo: Tratar-se-á aqui do problema epistemológico que envolve afirmações relativas à alma e ao Além no contexto do Fédon de Platão. Especial atenção será dedicada aos elementos teóricos que jogam forte dúvida sobre aspectos considerados essenciais da metafísica do filósofo, quais sejam: a relação corpo--alma, a morte enquanto bem e/ou mal, a natureza eterna da alma, bem como aos valores e limites das provas e contraprovas apresentadas no contexto dramático do texto.
Palavras-chave: Platão, Agnosticismo, Fédon, Corpo, Alma.
Abstract: The aim of the paper is to analyse the epistemological problem involving statements concerning the soul and the afterlife in the context of the Phaedo. Special attention is dedicated to the theoretical elements that cast doubts on aspects considered essential for his metaphysics, namely: the relationship between the body and the soul, death as good and/or evil, the eternal nature of the soul as well as the values and limitations of the evidence and counterproofs presented in the dramatic context of the text.
Keywords: Plato, Agnosticism, Phaedo, body, soul.
Já nas primeiras linhas da sua L’etica di Aristotele: Il mondo della vita umana (2012, p. 7), Arianna Fermani recorda que, nos anos 50 e 60 do século XX, surgiu um movimento de jovens intelectuais americanos que, de modo provocativo, portavam distintivos com o escrito “Não-A”, isto é, em linguagem própria de lógica “antiformalista”, pensamento não aristotélico. Negar Aristóteles, de acordo com os seguidores daquele movimento, significava refutar um pensamento reduzido à perspectiva “aut...aut”, supostamente representativa da totalidade inflexível da argumentação do Estagirita. Para aqueles jovens, de fato, a lógica binária de Aristóteles se reduzia a uma só lei que regia todo o seu corpus especulativo: “A” ou “não-A”; ou “isto” ou “aquilo”. Nada menos aristotélico, nada menos grego1.
De fato, se, por um lado, o filósofo propõe com absoluta clareza a distinção entre A e não-A, formalizando alguns dos eixos de sustentação de toda a lógica e de todo o pensamento ocidental – como o é, por exemplo, o princípio da não-contradição – por outro, não usa jamais tal recurso para simplificar o mundo ou para negar-lhe a riqueza ou a ínsita multiplicidade constitutiva. Ao contrário: se vale com frequência de lógica diversa para, tanto quanto possível, se aproximar de uma visão completa e articulada de uma realidade (cósmica e humana) que não se deixa reduzir (ou apreender) pela rigidez própria de argumentação “binária” (e, então, não polivalente). Longe, então, de simplificar a realidade, Aristóteles procede constantemente por associação de possibilidades, valendo-se da presença de propostas diversas ou, mais exatamente, em pleno acordo com aquela lógica do “et...et” da qual muitos quiseram fosse ele o primeiro e principal adversário:
Nossa discussão será adequada se tiver tanta clareza quanto comporta o assunto, pois não se deve exigir, por igual, a mesma precisão em todos os raciocínios [...]. (EN I 3, 1094 b 11-13)2
[...] é próprio do homem instruído, de fato, buscar em cada gênero de coisas apenas tanta precisão quanto a natureza do seu objeto o permite. Seria, com efeito, algo insensato aceitar que um matemático avance com raciocínios apenas prováveis e exigir demonstrações de um orador. (EN I 3, 1094 b 22-25)
Mas este não é um dado histórico de efeitos válidos apenas para Aristóteles. Também Platão e, em geral, toda a Filosofia Antiga não parecem tão interessados em produzir um paradigma, um sistema de pensamento, uma visão, uma definição. Pelo contrário: o pensamento clássico parece desejar compreensão de mundo – cuja complexidade jamais é negada – que deve emergir de uma pluralidade muito flexível de instrumentos investigativos. Nas palavras de Maurizio Migliori (2013, p. 163), em suma:
[...] enquanto o pensamento moderno, filho das ideias “claras e distintas” de cartesiana memória, tende a pensar na forma aut...aut, isto é, na contraposição entre posições inconciliáveis que se deve escolher, o pensamento clássico, sobretudo aquele platônico-aristotélico, pensa na forma et...et (que, como é óbvio, contempla também a possibilidade – rara – da forma aut...aut), tende, vale destacar, a alargar as malhas e a estrutura da sua análise de modo a incluir o maior número possível de dados.
A propósito da necessidade de abandonarmos a rigidez da estrutura “aut...aut” para ler os filósofos gregos antigos, evoco aqui o problema da alma no Fédon de Platão.
O primeiro dado com o qual temos que lidar é a extraordinária impostação de dúvidas e também de convicções postas na boca de Sócrates na relação da alma com o divino e sobre o seu destino após a morte.
As alegadas certezas, de fato, se multiplicam no horizonte da argumentação platônica: a morte é a separação alma-corpo (64c, 68d); os deuses cuidam os homens porque também são seus bens (62b8); há prêmios e castigos no Além (63c, 69c); a alma colhe em melhores condições a verdade quando se separa do corpo: não é perturbada pelos sentidos nem em plano epistemológico, nem em plano emocional – dado importante quando o que está em jogo é o conhecimento do justo, do belo, do bom e, em geral, da essência das coisas (65a-67b). Aqui se entrevê a força de uma esperança de possuir, no Além, aquilo pelo que tanto se empenha em vida; de fato, se a verdade enquanto tal se conquista no momento mesmo em que a alma vê as coisas como são, isto deve se dar não na vida, mas na morte (66e-67b), quando uma pura realidade, exatamente a alma, se depara com realidade igualmente pura/perfeita. Mas o elenco de certezas avança: a morte em si não é um mal, ao contrário, é evento decisivo para os filósofos, abre perspectivas melhores para a alma, não mais cerceada pelo corpo (63c-64a; 66b-68b; 84d-85b; 95c); os mistérios são citados com respeito (62b, 69c) e, então, o mesmo é feito com uma antiga doutrina que propõe a metempsicose (70c-d). Enquanto Símias e Cebes apresentam a morte segundo um esquema tradicional, Sócrates está convencido de não ter que abandonar a vida sob o pesado jugo da tristeza e/ou de um silêncio solene, mas, isso sim, como os cisnes e adivinhos, certos das benesses do Hades, que cantam no dia da morte (85b).
Este elenco de afirmações peremptórias se confirma em dimensão comportamental no registro que se faz da serena morte de Sócrates: o próprio Fédon recorda (58e-59a) não ter experimentado compaixão na partida do seu mestre, pois que “naquele momento, tanto pelo comportamento quanto pelas palavras, parecia um homem feliz” (58e, 3-4). Não obstante este quadro geral, dois dados devem ser levados em séria consideração pelo leitor do diálogo: a) Sócrates não sabe – em sentido “forte” – como se dá a vida no Além (63b-c); b) Cebes exprime sem receio as incertezas que tantos têm sobre a imortalidade da alma e alega, com a concordância de Sócrates, que, para compartilhar a tal “grande e bela esperança” (70a8), é necessário provar que: b.1) a alma existe após a morte do homem; b.2) que ela conserva poder e pensamento (dynamis. phronesis, 70b3-4).
O cruzamento entre as dúvidas de Sócrates e a interrogação de Cebes leva a imediata reflexão: se, de fato, a alma não conserva a lembrança da vida precedente, todas as certezas afirmadas entram em crise, visto que o sujeito, enquanto tal desaparece e, então, não teriam sentido esperas, punições etc. Aqui, então, se impõem questões tais como: a eventual sobrevivência de uma realidade denominada alma se confunde com a sobrevivência do sujeito? Ou estamos diante de dois elementos diversos? Se forem coisas diversas, em algum momento se identificam?
As tentativas de demonstração da imortalidade da alma são enfrentadas no interior do diálogo com base em indicações metodológicas que Platão, ele mesmo, nos fornece. De fato, diante de temas assim complexos, é preciso avançar com extrema cautela e sem ilusões. A bem da verdade, admite-se de imediato: a solução do problema que se impõe é impossível ou muito difícil, motivo pelo qual é preciso aprender com outros como as coisas funcionam ou descobrir por conta própria. E se a verdade eventualmente escapa, é preciso limitar-se a aceitar o melhor argumento, vale dizer, o menos facilmente confutável (85c8-10), sempre que não se possa contar com a decisiva ajuda de uma espécie de revelação divina.
Trata-se aqui, então, de não cair vítima dos belos discursos, mas de selecionar aqueles que têm a capacidade de resistir às críticas ou que, em todo caso, se deixem entrever como as melhores (ou mais plausíveis) hipóteses explicativas. Neste sentido, mesmo o mito enquanto narração provável possui uma sua força, desde que mantenha natureza racional e não fantasiosa, subordinada ao juízo do logos, entenda-se.
Tais dados constituem um arcabouço epistemológico determinante para o Fédon: de fato, fala-se continuamente de “esperança”, um dado comum à argumentação platônica, ao menos desde a Apologia e anota-se como melhor, por motivo de coerência lógico-existencial, para aqueles que “estão a ponto de iniciar uma viagem rumo ao outro mundo, indagar com a razão e discorrer com mitos” (61e 1-2). Segundo Casertano (2015, p. 300):
Todo o raciocínio que segue, então, é um discurso que se desenvolve sob o influxo da verossimilhança e não sob aquele da verdade. Note-se que, diferentemente de mythologeo, o verbo diamythologeo é usado apenas duas outras vezes em Platão, em Apol. 39e5 e nas Leg. I 632e4-5, com seu significado mais comum, que é aquele de conversar; aqui, em vez disso, penso que, de acordo com o contexto (com as várias remissões à esperança, à opinião, à verossimilhança), que o significado seja exatamente aquele de “continuar a narrar mitos”.
Trata-se, então, de proceder, a um só tempo, tanto em plano racional quanto naquele mítico. As provas aduzidas, assim propostas, são e não são decisivas, isto é, ainda que não possuam a força de uma demonstração apofântica, devem produzir e/ou justificar uma convicção adequada/verossímil.
Ao que parece, desta forma, estamos aqui em uma situação limítrofe, mas que não nos escapa completamente. As “certezas” de Sócrates podem e devem ser postas à prova por vias racionais e toda a parte final do diálogo pretende evidenciar que um bom resultado foi alcançado.
Em um dos blocos de provas aduzidos por Sócrates, no qual se insiste na afinidade entre a alma e as Ideias, afirma-se que:
Diante de tal quadro, posta a bipolaridade corpo--alma, temos
É evidente que as provas apresentadas aqui não são exatamente inequívocas, ainda que tenham a sua eficácia. Numa visão binária do cosmos, a alma pertence ao bloco das realidades superiores, simples e estáveis, enquanto que o corpo pertence àquele das realidades inferiores e compostas. O raciocínio se baseia no critério da afinidade. No entanto, para que não seja interpretado simploriamente (como explicar, por exemplo, a relação da alma com o corpo físico exclusivamente a partir dele?), Platão insere de imediato um excursus relativo ao poder: a alma domina o corpo e por causa de tal relação é levada a apegar-se também a coisas terrenas, enquanto que, em si, ascende ao que é eterno, vale dizer, ao que lhe é próprio ou “congênere” (sungenes, 79d3). Assim, o filósofo põe em evidência um dado sobremaneira importante: a alma emerge como algo complexo de um ponto de vista funcional, o que deve ter alguma consequência ontológica, visto que uma realidade superior – que como tal permanece – é submetida a uma relação com a dimensão terrena da existência.
Mestre na arte da composição cênica, Platão abre aqui um inciso e, antes de avançar, põe na boca de Sócrates rápida digressão sobre o valor e sobre os limites do logos e sobre os efeitos devastadores do erro de quem, tendo confiado em excesso em certos argumentos, acaba por desiludir-se (89d-91c). Segue-se o longo tratado filosófico que leva o Sócrates do Fédon de uma investigação naturalista à doutrina das Ideias e aos Princípios: premissa necessária para o que virá a seguir. De fato, diz Sócrates:
[...] se me concedes e admites que existam tais realidades, espero (elpidzo), partindo delas, [...] descobrir o porquê de a alma ser imortal. (100b7-9)
Eis que, assim, volta o tema da esperança: agora, vinculado à capacidade de alegar a imortalidade da alma com base na existência das Ideias.
Não estamos diante de algo irrelevante, mas de um eixo de sustentação de toda a argumentação probatória. A presença das Ideias faz derivar uma serie de consequências. Analisa-se a alma, distinguindo a predicação essencial daquela acidental: aqui, não em sentido lógico ou linguístico, mas ontológico e real. É de tal analise que se chega à conclusão que a alma é intrinsecamente vinculada à Ideia de vida, como mostra o fato de que um corpo está vivo se tem em si a alma: realidade que porta vida consigo em qualquer corpo em que se encontre (105b-e). Portanto, ela exclui completamente a morte e é, então, imortal.
Imediatamente Sócrates evoca as consequências éticas que derivam do fato de que “a alma se revela imortal” (athanatos phainetai ousa, 107c8), o que evidencia o quanto Platão esteja disposto a não deixar dúvidas a respeito de certa eficácia da prova final. Mesmo Cebes, descrito como “aquele que está sempre à procura de novos argumentos e não se deixa convencer de imediato sobre o que se diz” (63a1-3), aprova a demonstração desenvolvida no diálogo. Símias se junta a Cebes neste sentido, mas insiste na dificuldade, justificada pela vastidão do tema, imposta pela própria fragilidade da condição humana.
Sobretudo os primeiros postulados (tas ge hupotheseis tas protas, 107b5), as Ideias e os Princípios, são, como destaca o próprio Sócrates, dignos de fé (107b6), mas devem ser aprofundados para que sejam devidamente compreendidos3.
“tanto pode ser possível a um ser humano. E se resultarão claros, então não se deverá buscar mais nada ulteriormente”. (107b 8-9)
A meu ver, o tratado psicológico do Fédon é um estudo de caso irrenunciável do que se poderia denominar polivalente fé racional de Platão. No âmbito dramático do diálogo ele delineia demonstração de alma imortal com base em um nexo com as Ideias que, aqui, não são devidamente tratadas; deve-se chegar aos textos dialéticos para alcançar novo patamar explicativo: tudo isso, lá e cá, sempre na medida das possibilidades do ser humano.
De fato, ao final do mito, Sócrates afirma que não se pode saber exatamente o que ocorre no Além. Por isso não é prudente sustentar de maneira dogmática que as coisas sejam tal com expostas ali. Não obstante isso, dizer que se encontram em condição semelhante, a partir do momento em que emerge uma noção de alma imortal, é algo correto e em tudo verossímil.
Para Platão, como se vê, também aqui não vale a regra do “aut...aut”. Ela não serve para realidades complexas como as tratadas no diálogo. Impõe-se, de preferência, aquela do “et...et”, segundo a qual vale a pena correr o risco de acreditar que o todo seja assim... porque, diz o filósofo, o risco é belo... e acrescento eu, próprio de quem faz filosofia.
Bibliografia
BURNET, J. (1892-1906) (ed.). Platonis Opera. Oxford, Oxford University Press (com várias edições).
BYWATER, I. (1894) (ed.). Aristotelis Ethica Nichomachea. Oxford, Oxford University Press.
CASERTANO, G. (2015) (ed.). Fedone, o dell’anima. Traduzione, commento e note di Giovanni Casertano. Napoli, PaoloLoffredo.
FERMANI, A. (2012). L’etica di Aristotele: Il mondo della vita umana. Brescia, Editrice Morcelliana.
MIGLIORI, M. (2013). Il Disordine ordinato: La filosofia dialettica di Platone. Brescia, Editrice Morcelliana.
PERINE, M. (2014). Platão não estava doente. Ed. Loyola, São Paulo.
SZLEZÁK, Th. A. (2003). La Repubblica di Platone: I libri centrali. Brescia, Morcelliana, 2003.
XAVIER, D. G. (2007). A República de Platão e as operações henológicas da Idéia de Bem. Síntese: Revista de Filosofia, n.º 34/ 109, pp. 247-260.
Notas
Informação adicional
COMO CITAR: XAVIER, D. G. (2016). O agnosticismo platônico no Fédon de Platão. Archai, n. 17, may-aug., p. 159-172. DOI: http://dx.doi.org/10.14195/1984-249X_17_7