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A reminiscência no Fédon1
The reminiscence in Phaedo
Revista Archai, núm. 18, pp. 17-73, 2016
Universidade de Brasília



Recepção: 01 Agosto 2015

Aprovação: 01 Setembro 2015

DOI: https://doi.org/10.14195/1984-249X_18_1

Resumo: No Fédon a teoria da reminiscência mostra-se funcional à demonstração da imortalidade da alma, mas é muito mais do que isso: esconde uma autêntica teoria da aprendizagem, do conhecimento e do saber. esta aparece em dois lugares, nas páginas 72e-77a e na página 91e-92e. a sua funcionalidade parece clara nesta segunda passagem, em que não há caracterizações diversas das que foram dadas em 72e segs., mas onde, pelo contrário, é chamada em causa para refutar a doutrina da alma/harmonia exposta por Símias: se se aceitar a teoria da anamnese – e Símias e Cebes declaram-se ambos persuadidos por ela (91e-92b) –, não se pode aceitar a da alma/harmonia, razão pela qual é refutada (92c-95a). examino sobretudo as páginas 72-77. Portanto, do exame destas páginas obtém-se que o saber é o quadro ordenado e significativo dos conhecimentos e está ligado à perspetiva indispensável do “diálogo”, isto é, da refutação recíproca, da construção em comum dos conhecimentos e do horizonte de conhecimentos, um horizonte que vai além da pequena vida individual: pequena, mas que adquire um grande valor, “torna-se imortal”, se conseguir compreender e elevar-se a essa perspetiva de construção em comum de conhecimentos e de vidas melhores.

Palavras-chave: Platão, Fédon, anamnese (reminiscência), conhecimento.

Abstract: In the Phaedo, the theory of reminiscence seems to have a functional relation with the demonstration of the immortality of the soul, but it is not all: this theory also hides in itself a genuine theory of learning, knowledge and knowing. This appears in two places, in the pages 72e-77a and 91e-92e. Its functionality seems to be clear in the second mentioned passage: this passage does not add different features from those already given in 72e sqq, but it aims to refute the doctrine of soul/harmony presented by Simmias: if one accepts the theory of anamnesis – and Simmias and Cebes declare themselves to be both persuaded (91e and 92b) – then the theory of soul/ harmony cannot be accepted (92c-95a). I will be examining the 72-77 pages specially. Thus, the aim of this analysis is to show that knowledge is the ordered and meaningful picture of what is known and it is connected to the indispensable idea of “dia- logue”, i.e. of mutual refutation, shared construction of knowledge, and common horizon of knowledge. The perspective of this horizon of knowledge, however, goes beyond the limitations of an individual life. In other words, if an individual life is able to overcome its own limitation and to become part of the construction of knowledge and better lives, it will acquire great value and indeed “become immortal”.

Keywords: Plato, Phaedo, anamnesis (reminiscence), knowledge.

A reminiscência (ἀνάμνησις) e o recordar (μιμνήσκω, ἀναμιμνῄσκω), embora sejam conceitos e lexemas presentes em toda a produção platónica, da Apologia às Leis, têm uma conotação teórica especialmente no Ménon, no Fédon, no Filebo, no Fedro, no Teeteto e no Timeu2. em cada um destes diálogos reminiscência e recordar adquirem uma conotação particular que está intimamente ligada ao conteúdo e às finalidades próprias de cada um; mas, por outro lado, apresentam também algumas características comuns que permitem delinear uma teoria unitária. Neste ensaio limito-me a examinar, após uma breve menção ao Ménon, que me parece o diálogo mais próximo do Fédon quanto a esta problemática, a noção de reminiscência no Fédon, indicando por alto as linhas de uma interpretação unitária da teoria que necessitariam, como é óbvio, de outros discursos hermenêuticos e justificatórios.

Com efeito, o Ménon apresenta algumas definições de reminiscência (ἀνάμνησις) muito próximas, para não dizer idênticas, às do Fédon. Como acontece no Fédon, aqui se encontra presente a ligação desta teoria ao mito da imortalidade da alma. Depois das críticas às primeiras definições de virtude dadas por Ménon, ele compara Sócrates com a tremelga marinha (80a); Sócrates aceita a comparação (a imagem: εἰκόνες, 80c6), mas só se se disser que a tremelga entorpece os outros porque também ela está entorpecida, e esclarece logo qual o sentido da imagem: Sócrates não cria dúvidas nos outros porque ele é imune a elas, cria-as porque também se acha na mesma situação (80c-d). Não sabendo o que é a virtude, quer investigar com Ménon o que ela é (80 d). então, Ménon enuncia o famoso “paradoxo do conhecimento”: como vais procurar o que não sabes? em que se vai basear a tua escolha? e se te embateres nele, como farás para saber que é o que procuravas, se não o conheces? (80d). Sócrates qualifica logo este argumento como erístico, porque o seu efeito mais imediato é precisamente bloquear a investigação (80e). e apresenta então o horizonte do mito, propondo um discurso “verdadeiro e belo” (81a8) de sacerdotes e sacerdotisas que têm como objetivo dar razão (81a12-b1: λόγον διδόναι) daquilo de que se ocupam; mas também Píndaro e outros poetas com divina inspiração (81a-b): eles defendem que a alma do homem é imortal, ora tem um fim (τελευτᾶν), que os homens chamam morrer (ἀποθνῄσκειν), ora nasce de novo (γίγνεσθαι)3, e por isso é preciso viver a vida o mais piedosamente possível (81b). Como se vê, no Ménon o discurso sobre a imortalidade da alma está intimamente ligado à sua finalidade ética, em que mito e raciocínio se misturam para realçar essa mesma finalidade. Portanto, dado que a alma é imortal e renasceu várias vezes (ἡ ψυχὴ ἀθάναθός τε οὖσα καὶ πολλάκις γεγονυῖα) e não há nada que não tenha aprendido, é capaz de se lembrar do que conhecia antes (81c). Visto que a natureza é toda congénere e a alma aprendeu tudo, ao recordar uma coisa, descobre todas as outras, basta que não se canse de procurar. Porque procurar e aprender (ζητεῖν καὶ μανθάνειν ἀνάμνησις) são grosso modo reminiscência (81c-d). e Sócrates repete o que dissera no início deste discurso: acreditar naquele discurso erístico tornar-nos-ia preguiçosos, de facto, só os homens moles é que o apreciam (81d8). Portanto, não há ensino, só reminiscência (82a1-2: οὐ διδαχὴν ἀλλ᾽ἀνάμνησις). então, para “demonstrar” o que disseram sacerdotes e poetas, chama-se o escravo, com a condição de que fale grego (82b), e dá-se o famoso exemplo geométrico da duplicação da área do quadrado dado (82b-85b). em toda a passagem, Sócrates frisa constantemente que faz perguntas ao escravo mas não lhe “ensina” nada (82e, 84c-d), e que o primeiro progresso para a reminiscência consiste no facto de ele, que antes pensava que sabia e não procurava saber, agora aceitar que tem dúvidas e, não sabendo, já não pensa sequer que sabe: por conseguinte, acha-se na melhor condição sobre o πράγμα que não sabia (84a-b). realça também que todas as opiniões (85b10: δόξαν) que o escravo exprime, à medida que as perguntas de Sócrates o fazem avan- çar no conhecimento, são suas. Portanto, em quem não sabe, sobre as coisas que não sabe, há opiniões verdadeiras (85c7: ἀληθεῖς δόξαι): estas opiniões foram postas em movimento, como num sonho, e se o interrogarmos várias vezes e de várias maneiras sobre estas coisas, terá um conhecimento preciso (85c-d: ἀκριβῶς ἐπιστήσεται), pois recuperar o conhecimento em nós mesmos é recordar (85d: ἀναλαμβάνειν... ἐπιστήμην... ἀναμιμνῄσκεσθαι). esta ἐπιστήμη não a pode ter adquirido no passado, porque ninguém lhe ensinou a geometria (85d-e), por conseguinte, nele havia opiniões verdadeiras que, despertadas pela interrogação, se tornam conhecimentos (86a8: ἐπιστῆμαι γίγνονται), logo, se a verdade está sempre na nossa alma, a alma será imortal (86b). também no Ménon, como no Fédon, há uma “reserva” acerca dos discursos que se fazem, uma espécie de marca do discurso socrático: a Sócrates parece-lhe ter falado bem, e embora não se empenhasse muito na defesa do discurso (86b8-9: ὑπὲρ τοῦ λόγου διισχυρισαίμην), estaria disposto a combater com palavras e ações que se deve, todavia, ir à procura daquilo que não se sabe para sermos melhores, mais viris e menos preguiçosos (86b-c). Com efeito, logo depois (87a-c) se diz que a virtude, sendo semelhante ao conhecimento (ἐπιστήμη), pode ser ensinada (contra 82a1-2 – οὐ διδαχὴν – aqui é διδακτόν, 87b6-8), “ou, como dizíamos há pouco, pode ser recordada (ἀναμνηστόν) – não deve fazer nenhuma diferença que termo usamos –, em suma, pode ser ensinada” (87b-c), porque o objeto do ensino outra coisa não é senão o conhecimento (87c2-3: οὐδὲν ἄλλο διδάσκεται ἢ ἐπιστήμην).

Em 97a-b, dá-se o famoso exemplo da estrada para Larissa: quem tem opinião verdadeira, e não autêntico conhecimento, é todavia capaz de chegar lá; a opinião verdadeira, no que diz respeito à correção da ação (πρὸς ὀρθότητα πράξεως), não é guia pior do que a sabedoria (φρονήσεως); a opinião correta não é menos útil do que a ἐπιστήμη (97c4-5). então porque é que o saber certo tem mais valor do que a opinião verdadeira? De facto, também as opiniões verdadeiras, por todo o tempo que permanecerem na nossa alma, são uma bela posse e produzem qualquer bem, só que não ficam paradas por muito tempo, como as estátuas de Dédalo, e fogem da alma humana, a menos que alguém não as ligue com um raciocínio causal (αἰτίας λογισμός): e este é precisamente a reminiscência (97e-98a). a diferença entre opinião verdadeira e saber certo não é uma diferença qualitativa, mas é questão de posse estável ou não: quando se ligam as opiniões verdadeiras com um raciocínio causal, que me parece ser precisamente aquele “dar razão” das coisas de que se falou ao início, primeiro tornam-se saberes certos (ἐπιστῆμαι), depois saberes estáveis (μόνιμοι), e é por isso que a ἐπιστήμη vale mais do que a opinião correta. também aqui, como desfecho desta argumentação, há a consciência, plenamente socrático-platónica, da provisoriedade e relatividade de cada discurso humano e, ao mesmo tempo, a reafirmação da aspiração tipicamente do filósofo a um saber certo: «eu falo não porque sei, mas por imagens(98b1-2: οὐκ εἰδὼς... ἀλλὰ εἰκάζων): que opinião correta e saber certo são diversos, não é algo que imagine; aliás, se há algo que posso dizer que sei – e são poucas as coisas que afirmo saber –, esta é uma das que posso colocar entre as que sei». estas passagens do Ménon mostram a característica mais importante do discurso sobre a reminiscência, tal como aparece também no nosso diálogo, isto é, fazer coexistir duas perspetivas que para nós seria impensável reunir num só discurso filosófico: a perspetiva mítica, que se baseia na imortalidade da alma e se funda, como se diz de forma clara, em discursos de sacerdotes e poetas, e a gnosiológica, que vê na posse de “opiniões verdadeiras” por parte da alma de quem investiga (o que Platão chama de reminiscência) o postulado fundamental para se poder construir o conhecimento. Há outros dois pontos que também são importantes: por um lado, a condição fundamental de “abertura” da nossa consciência, que se manifesta quando quem investiga se coloca na condição de “saber que não sabe”, o que significa não presumir que sabe e ser capaz de abandonar as próprias opiniões quando estas se demonstram erróneas durante o exame de “dar razão” de algo; por outro lado, sublinhar que este processo de aquisição do saber – a reminiscência – é um processo dialético e dialógico, porque se dá só durante uma discussão entre pessoas, feita de “perguntas e respostas”, isto é, num discurso que seja diálogo. a conclusão, fundamental para Platão, e defendida em vários diálogos, é que «o conhecimento não é objeto de transmissão passiva, mas sim o resultado de um percurso interior: é dentro da alma que se verifica o processo de aprendizagem»4, e este processo de aquisição não consiste numa simples “passagem” de noções, como se passássemos água de um vaso cheio para outro vazio servindo-nos de um fio de lã, como se diz na bela imagem do Banquete (175c-d).

Também no Fédon a teoria da reminiscência mostra-se funcional à demonstração da imortalidade da alma, mas é muito mais do que isso: esconde uma autêntica teoria da aprendizagem, do conhecimento e do saber. esta aparece em dois lugares, nas páginas 72e-77a e na página 91e-92e. a sua funcionalidade parece clara nesta segunda passagem, em que não há caracterizações diversas das que foram dadas em 72e segs., mas onde, pelo contrário, é chamada em causa para refutar a doutrina da alma/harmonia exposta por Símias: se se aceitar a teoria da anamnese – e Símias e Cebes declaram-se ambos persuadidos por ela (91e-92b) –, não se pode aceitar a da alma/harmonia, razão pela qual é refutada (92c-95a). Examino sobretudo as páginas 72-77 e divido-as em 5 partes:

  • o que é e quando se dá a anamnese: 72e-73c;

  • origem do saber e da anamnese: 73c-74a;

  • exemplo do igual: 74a-75a;

  • relação sensação-ideia: 75b-e;

  • aprendizagem é anamnese: 76a-77a5.

i.O que é e quando se dá a anamnese. Introduz-se a teoria da anamnese na cenografia do diálogo logo depois do argumento dos contrários (60b-c; 69e-72d): se admitirmos que existem os contrários vida-morte e os dois processos que de um levam ao outro e vice-versa, temos de admitir que o que morre, depois de morrer, revive6. Cebes, que é o interlocutor de Sócrates neste momento, declara-se convencido pela absoluta verdade (72d5: παντάπασιν ἀληθῆ) do que disse Sócrates; aliás, é Cebes que introduz a discussão sobre a anamnese. ele intervém depois de ter notado que a verdade da conclusão a que se chegou obtém-se também do outro discurso – admitindo que seja verdade (72e2: εἰ ἀληθής ἐστιν) – que Sócrates costuma repetir, isto é, o discurso segundo o qual a aprendizagem é anamnese (72e3: ἡ μάθησις οὐκ ἄλλο τι ἢ ἀνάμνησις). Deste discurso segue necessariamente que aprendemos (72e5: μεμαθηκέναι) num tempo anterior aquilo que agora recordamos (72e5: ἀναμιμνῃσκόμεθα). Isto seria impossível se a alma não existisse de alguma maneira (73a1: που) antes de nascer nesta forma humana (73a1-2: ἐν τῷδε τῷ ἀνθρωπίνῳ εἴδει); portanto, mesmo nesta vida, a alma parece ser imortal. Por ora, deixo de parte este aspecto da vida da alma que existe num tempo anterior às suas muitas encarnações em corpos humanos, frisando apenas que a expressão «esta forma humana» indica evidentemente o indivíduo: cada homem, Sócrates, por exemplo, é composto de alma e corpo, mas enquanto que o corpo de Sócrates pertence a ele somente, nasceu e morre, destrói-se, a alma de Sócrates existia antes dele e existirá depois dele, portanto, não pertence só a Sócrates. estabeleçamos, por ora, esta primeira definição:

P1: aprendizagem é anamnese.

Esta proposição implica uma consequência necessária que pode parecer à primeira vista óbvia, mas que es- conde uma perspetiva inquietante:

P2: aprendemos num tempo anterior aquilo que recordamos

Óbvio: só podemos recordar o que aprendemos num tempo anterior. Mas se pusermos em interação P2 e P1, teremos um círculo vicioso, ou, se se quiser, um processo ad infinitum: aprender é recordar, recordamos só o que aprendemos, mas o que aprendemos foi por sua vez adquirido por uma recordação, etc.7

A intervenção de Símias (73a-b) transforma-se em “jogo”: quais são as demonstrações (73a5: ἀποδείξεις) disso? recorda-mas (73a5: ὑπόμνησόν με), porque agora não me lembro delas (73a6: οὐ... μέμνημαι); e quando Sócrates lhe pergunta explicitamente se acredita ou não na definição dada (P1), responde: «Não que eu não acredite nisso, mas preciso de experimentar precisamente isso de que fala o discurso (73b7: δέομαι παθεῖν περὶ οὗ λόγος), isto é, preciso de recordar (73b7: ἀναμνησθήναι)». Um jogo, como sempre, que esconde uma conotação importante: aqui realça-se o facto de a anamnese nascer sempre numa deter- minada situação e não ter um valor autónomo. Por outras palavras, dado que Símias recorda o tema, mas não as demonstrações, isso significa que não é suficiente que a recordação venha à mente para garantir a “verdade”: cada recordação, cada tese, e a tese mesma da anamnese, deve ser justificada por “demonstrações”, ou seja, por um discurso que se mostre convincente, como se verá em breve.

À pergunta de Símias, Cebes responde que só há um discurso, muito belo, que justifica P1: os homens, quando são interrogados, se forem bem (73a8: καλῶς) interrogados, sozinhos dizem como é cada coisa (73a8-9: πάντα ἧ ἔχει). Isso não aconteceria se neles não houvesse o saber (73a9: μὴ... αὐτοῖς ἐπιστήμη ἐνοῦσα) e a capacidade de raciocinar corretamente (73a10: ὀρθὸς λόγος). e se alguém os põe face a figuras (73b1: διαγράμματα)8, pode afirmar-se da maneira mais clara (73b2: σαφέστατα κατηγορεῖ) que é assim. em rigor, a resposta de Cebes não é uma ἀπόδειξις de P1: por um lado, ela esclarece um efeito da anamnese:

P3: quando são bem interrogados, dizem cada coisa como é,

por outro lado, institui uma conexão entre a anamnese, o saber e o discurso correto: também “o saber” está em nós (ἐνοῦσα), como o discurso correto, e é esse saber que está em nós, que evidentemente “aprendemos” num tempo anterior, que nos permite dizer as coisas como são. razão pela qual podemos estabelecer esta proposição:

P4: o saber é aprendizagem e é anamnese.

Convém realçar que a capacidade detetada em P3 não pode manifestar-se fora do diálogo, isto é, da possi- bilidade de bem responder quando a interrogação é bem feita; e que o ὀρθὸς λόγος de 73a10 deve ser entendido não como um discurso correto qualquer mas como uma capacidade, isto é, a de raciocinar corretamente, de construir discursos corretos, precisamente porque esse ὀρθὸς λόγος é mencionado junto com o saber que “está em nós”.

Neste momento do diálogo Sócrates intervém:

«Mas Símias, se não te convences (73b3: μὴ... πείθῃ) por esta via, vê se consegues partilhar da minha opinião (73b4: συνδόξῃ) por esta outra via. ainda não estás seguro sobre como (73b4-5: ἀπιστεῖς... πῶς) pode ser anamnese (73b5: ἀνάμνησις) o que se chama de aprendizagem (73b5: ἡ καλουμένη μάθησις)?». e Símias responde: «Não que eu não acredite (73b6: ἀπιστῶ) nisso tudo, mas preciso de experimentar precisamente isso de que fala o discurso, (73b7: δέομαι παθεῖν περὶ οὗ λόγος), isto é, preciso de recordar (73b7: ἀναμνησθήναι). em parte, pelo que disse Cebes (73b8: σχεδόν), já me estou a lembrar e a convencer (73b8-9: μέμνημαι καὶ πείθομαι), todavia, ouvirei de muito bom grado de que modo pretendes explicá-lo (73b9-10: ἐπεχείρησας λέγειν)». esta passagem amplia ainda mais o horizonte que forçosamente se deve ter presente para compreender o fenómeno da anamnese: todos os novos termos introduzidos abrem perspetivas diversas, cujo entrelaçamento é necessário para focalizar a anamnese. a) a perspetiva do discurso, isto é, do diálogo, única fonte de onde pode nascer o progresso na investigação (cf. σχέψαι, 73b4), que consiste evidentemente em chegar a acordo sobre a mesma opinião (συνδοκεῖν), fruto do que se diz e se ouve (cf. 73b9-10: ἀκούοιμι... λέγειν); ligada a esta, B) a perspetiva da convicção, que é necessária ao progresso da demonstração, em que cada etapa deve obter o consenso dos interlocutores9; C) a perspetiva da condição:

P5: recordar é “padecer”,

Ou seja, é uma atitude, uma disposição, é “colocar-se na condição de”: Símias em parte foi induzido por Cebes, mas precisa de outros discursos para poder lembrar-se plenamente desta doutrina e, por conseguinte, poder convencer-se10.

Tendo chegado a um acordo (73c1: ὁμολογοῦμεν) sobre o pressuposto da nossa demonstração, isto é, sobre o facto de que «se alguém se recorda (73c2: ἀναμνησθήσεται) de algo, já o sabia antes disso (73c2-3: ἐπίστασθαι)», agora temos de dar um passo em diante, ou seja, chegar a acordo também sobre outro ponto (73c4: καὶ τόδε ὁμολογοῦμεν), isto é, que o saber (73c4: ἐπιστήμη), quando aparece de certa maneira (73c5-6: παραγίγνηται τρόπῳ τοιούτῳ), é anamnese (ἀνάμνησιν). aqui estabelece-se uma dupla ligação: entre saber e aprendizagem e entre saber e anamnese; a primeira, com base no que se chegou a acordo, ou seja, P4 e P2, diz-nos que

P6: aprendemos anteriormente o que recorda- mos,

a segunda aparece, ao invés, como uma correção de P4, ou melhor, uma sua limitação, uma determinação de sentido. É claro que nem todo o saber é anamnese, mas só um certo tipo de saber, portanto, teremos

P7: o saber que se gera de certa maneira é anam- nese,

de onde se deduz que o campo semântico do saber é mais amplo do que o da anamnese, podendo haver saberes que não são anamnese.

ii. Origem do saber e da anamnese. Mas quando e como se dá aquela maneira (cf. 73c6-7: λέγω δὲ τίνα τρόπον) de saber que podemos definir por anamnese? assim (73c7: τόνδε): se alguém, tendo visto ou ouvido algo ou tendo agarrado outra sensação (73c7-8: τινα ἄλλην αἴσθησιν λαβών), não só o conhece (73c8: γνῷ), como também pensa (73c9: ἐννοήσῃ) outra coisa, da qual não tem o mesmo saber, mas um diverso (73c9: οὗ μὴ ἡ αὐτὴ ἐπιστήμη ἀλλ᾿ἄλλη), é justo dizer que se lembrou (73c10: ἀνεμνήσθη) da noção que tinha agarrado (73c10-11: ἔννοιαν ἔλαβεν)11. Aqui aparecem outros quatro lexemas: o sentir, no sentido de “experimentar sensações”, o agarrar, o conhecer e o pensar. Vejamos: quando se vê uma coisa, ou se ouve alguma coisa, em geral quando se experimenta uma sensação, “agarramo-la”: agarrar uma sensação significa evidentemente não experimentar uma sensação de forma indistinta, mas ter uma sensação com a plena consciência daquilo que se sente. Metodologicamente pode distinguir-se a visão “distraída” de algo – no sentido que o nosso órgão da vista é impressionado, por exemplo, por uma certa luz e uma certa cor, por certas formas geométricas, etc. – da visão “atenta” de algo – isto é, a plena consciência daquilo que se vê, por exemplo, um cubo vermelho. Quando se vê um cubo vermelho, “agarrou-se” uma sensação e isso significa que se “conhece” o cubo vermelho: o ato de conhecer está ligado a uma sensação e podemos até dizer que reconhecer aquilo que sentimos é “ver” numa sensação algo que nos permite enunciá-lo. razão pela qual não só «sentir é conhecer», como afirmavam os sofistas na interpretação platónica, como também

P8: agarrar uma sensação é conhecer.

Portanto, o ato de conhecer, embora esteja intimamente ligado aos sentidos, não se esfuma na mera sensação, mas em coerência com a perspetiva platónica habitual, é algo mais do que isso: não só é a capacidade de re-conhecer o objeto da nossa sensação (o cubo, ou, no exemplo platónico, a lira, um homem), isto é, de o definir, como também é o que “põe em movimento” algo, o que inicia um processo: o processo de “pensar”:

P9: conhecer induz a pensar.

Quando se conhece uma coisa, pensa-se. aparece imediatamente o horizonte da diversidade, da alteridade, ou, por outras palavras, da necessidade da relação. Pensar significa estabelecer conexões, pôr em relação. antes de mais, sabemos que pensar significa pôr feixes de impressões sensíveis em relação com uma ideia, e só esta relação é que nos permite definir o objeto, ou seja, reconhecê-lo, poder falar dele, poder torná-lo um objeto de conhecimento. todavia, tudo isso não existe ainda neste discurso, que parece abrir gradualmente portas para horizontes sempre mais amplos e englobantes: só existirá depois. Por ora sabemos que conhecer uma coisa induz a pensar outra coisa. Contudo, aparece aqui outra condição: quando se pensa numa coisa diversa, a partir do conhecimento de uma coisa que reconhecemos na nossa sensação, para que a possamos pensar, é preciso ter dela um saber:

P10: pensar requer um saber.

O pressuposto do pensar é o saber. Mas dado que se pensa uma coisa diversa da que se conhece, e Platão diz de forma clara que para pensar uma coisa diversa da que se conhece é preciso um saber diverso, não o mesmo (73c9: μὴ ἡ αὐτὴ ἐπιστήμη), e esse “mesmo” é evidentemente o saber que faz com que nós conheçamos a coisa que conhecemos, então o saber é também a condição do conhecer:

P11: conhecer requer um saber.

Tudo isso, afirma Platão, é recordar. Portanto,

P12: recordar é, ao conhecer uma coisa, pensar outra.

Mas “o que” se recorda, exatamente? Sabemos por P2 e por P6 que o objeto da recordação não pode ser algo “desestruturado”, mas sim algo que se aprendeu e de que se teve saber: não uma sensação indistinta, mas (P8) uma sensação já estruturada no ato de conhecer. Portanto, dado que se recorda algo que já foi pensado, o que significa, no campo semântico que estamos a definir, que já se teve um processo de reconhecimento de um conjunto de sensações estruturado em conhecimento e pensamento, teremos que

P13: agarrar um pensado é recordar.

Símias parece não perceber esta passagem e pede esclarecimentos (73d2: πῶς λέγεις·). Por um lado, o esclarecimento de Sócrates explica e confirma tudo o que já foi dito, por outro, torna explícita a relação, o «ser relativo a» que é próprio do conhecer, do pensar e do recordar. De facto: «o saber (73d3: ἐπιστήμη) relativo ao homem e à lira são diferentes (73d3: ἄλλη)». Isso significa, como notámos, que conhecer e, por conseguinte, pensar um objeto qualquer requer sempre um saber (P10, P11). Por exemplo, acontece isto (73d8: πάσχουσι τοῦτο) com os apaixonados: se veem uma lira ou uma veste, «conhecem (73d8: ἔγνωσαν) a lira e no pensamento agarram a ideia (73d8-9: ἐν τῇ διανοίᾳ ἔλαβον τὸ εἶδος) do rapaz a quem pertence a lira: isso é anamnese (73d10: ἀνάμνησις)». esta afirmação não muda o quadro das conexões já estabelecidas, enriquece-o, no sentido que amplia o campo semântico do «agarrar»: não se agarra só uma sensação, o que equivale a conhecer (P8), e não se agarra só um pensado, que é recordar (P13), mas agarra-se também uma ideia, que é também recordar, razão pela qual:

P14: agarrar uma ideia é anamnese.

Em boa verdade, há aqui um problema. Nesta definição, Platão usa o termo εἶδος, que é um termo que no seu léxico tem um significado técnico: a ideia, como aquilo que está além do sensível e não pode confundir-se com ele. ora, dado que se está a falar das associações entre o que se vê e o que se recorda, e que aquilo que se vê e que se recorda estão ligados às sensações que temos ou que tivemos, e dado ainda que quando se recorda de uma pessoa, recordamo-nos do seu aspecto, da sua figura, poderia parecer natural entender o εἶδος desta passagem como aspecto ou figura. Na realidade não é tão simples assim: Platão disse-nos claramente – e a questão reaparecerá em seguida – que no próprio ato da sensação que chamámos de “estruturada” há algo mais do que um mero feixe de dados sensoriais: há precisamente um conhecer (P8) e o conhecer pressupõe sempre um saber (P11): por outras palavras, a ideia, no sentido técnico de Platão. Isso será afirmado ainda mais claramente em seguida. Logo, dado que estou convencido de que no “estilo” platónico quase nada é deixado ao acaso, penso que o uso do termo εἶδος é intencional e pretende preparar o campo para o que se dirá mais adiante. Se é assim, e acho que é, o problema é descomunal: se eu, ao olhar para um objeto usado pela pessoa que amo, tenho anamnese da ideia da pessoa que amo, isso significa que há ideias de indivíduos, ou seja, de objetos individuais? Somos todos levados a responder que não, mas permanece o problema, que no fundo é o de saber como, e de que forma, se pode falar de “conhecimento”, “pensamento” e “saber” de coisas individuais, de indivíduos, sem fazer recurso às “ideias”.

Anamnese é algo do género (73e1: τὸ τοιοῦτον ἀνάμνησίς τίς ἐστιν), replica Sócrates: isto é, «quando alguém tem esse tipo de experiência (73e2: πάθῃ), precisamente desse tipo (73e2: τοῦτο), a propósito de coisas que, ou pelo tempo que passou ou por as não ter revisto (73e3: μὴ ἐπισκοπεῖν), já tinha esquecido (73e3: ἐπελέληστο)». Portanto, «vendo (73e5: ἰδόντα) um cavalo pintado ou uma lira pintada, recorda-se (73e6: ἀναμνησθῆναι) de um homem, ou vendo Símias pintado, recorda-se (73e7: ἀναμνησθῆναι) de Cebes; ou ainda, vendo o retrato de Símias, recorda-se de Símias». Frisa-se um fator importante que necessariamente distingue a recordação: a distância temporal. Com efeito, quer a sensação atual, quer a recordação, podem acontecer ao mesmo tempo: vejo uma coisa e lembro-me de outra, e isto pode acontecer ao mesmo tempo. Portanto, não há uma distância temporal entre uma sensação e uma recordação. a distância temporal, pelo contrário, é o que distingue os dois tipos de “afeção”, de πάθος: há um πάσχειν que é a minha sensação atual e há um πάσχειν que é a recordação que atualmente tenho. Só que o πάσχειν da recordação é ambíguo, poderíamos dizer: dá-se no presente, mas é de algo que não está no presente: é portanto dentro da recordação, não fora dela, ou entre ela e a sensação, que se coloca a distância temporal. a menção ao “tempo que passou” e ao “não ter revisto” certas coisas prepara, a meu ver, a próxima ambiguidade, a da semelhança-dissemelhança.

«Disso tudo segue (74a2: κατὰ πάντα ταῦτα συμβαίνει), conclui Sócrates, que a anamnese se dá (74a3: εἶναι) quer a partir de coisas semelhantes (74a3: ἀφ᾽ὁμοίων), quer de coisas dissemelhantes (74a3: ἀπὸ ἀνομοίων)». Vejamos a partir de que exemplos, se re- tira esta nova proposição

P15: anamnese é partir de semelhantes e de dis- semelhantes.

Os exemplos são: 1. da lira à ideia da pessoa a quem pertence a lira; 2. de Símias a Cebes; 3. de um cavalo pintado ou de uma lira pintada a um certo homem; 4. de Símias pintado a Cebes; 5. de Símias pintado a Símias (73d-e). os extremos desta espécie de “percurso” da recordação são sempre a sensação atual, o primeiro extremo, e o objeto da anamnese, o segundo extremo. Interpretando simplistamente o semelhante e o dissemelhante de P15, podemos concluir que os exemplos de 1. a 4. exprimem o caso em que nos recordamos de uma coisa que é dissemelhante da que é objeto da sensação atual, enquanto que só o caso 5. exprime o exemplo de uma recordação de algo semelhante à que é objeto da sensação atual: são certamente dissemelhantes os termos presentes de 1. a 4., a lira e o homem, Símias e Cebes, um cavalo pintado e um homem, Símias pintado e Cebes, e são claramente semelhantes, em 5., Símias pintado e Símias. Mas não é assim tão simples. Há uma disposição sapiente na ordem destes exemplos, sendo a introdução da variável “pintado” não inocente. Como se verá também no Sofista (231a, 234b-236d, 240a-b), esta deixa entrever a relação inquietante parecer/ser que se esconde por trás da inocente semelhante/dissemelhante. Por outras palavras, foi preparada de forma sapiente outra acepção para o ser semelhante e dissemelhante, que se manifestará já de seguida.

iii. Exemplo do igual. a necessidade de P15 é reconhecida por Símias, por conseguinte, passa-se logo à deteção de algumas características da semelhança, da ὁμοιότης. De facto, é esta que causa problemas, «Mas quando alguém se recorda de algo a partir de coisas semelhantes (74a5: ἀπὸ τῶν ὁμοίων ἀναμιμνῄσκηταί τίς τι), é necessário que também isto lhe suceda (74a6: ἀναγκαῖον τόδε προσπάσχειν), isto é, pensar (74a6: ἐννοεῖν) se a semelhança (74a7: ὁμοιότητα) dessas coisas com o que recorda (74a7: ἀνεμνήσθη) é defeituosa (74a6: τι ἐλλείπει) ou não (74a7: εἴτε μή)». eis outra peça na via da identificação de que tipo de semelhança interessa a Platão: a ὁμοιότης diz respeito, como lemos, à diferença entre o que experienciamos na sensação e aquilo a que se reenvia na recordação:

P16: recordar induz a pensar se a semelhança é defeituosa ou não.

Todavia, nos primeiros quatro exemplos transcritos, colocar a pergunta sobre a semelhança não faz sentido: não há, nem pode haver, nenhuma semelhança entre a lira – ou o cavalo – e o homem, ou entre Símias e Cebes: ou segundo P14, entre a lira ou o cavalo e a ideia de homem, ou entre Símias e a ideia de Cebes. Platão afirma que quando alguém se recorda, acontece‑lhe sempre também pensar se a semelhança é defeituosa ou não: o verbo é ἐλλείπω, à letra, “faltar”, “deixar de lado”. Porém, não falta nada à lira ou ao cavalo para serem uma semelhança não defeituosa da ideia de homem: com efeito, trata-se de duas realidades completamente diferentes que se não podem comparar em termos de falta12. em boa verdade, os exemplos de 73d-e e as duas perguntas de 74a o que fizeram foi preparar a mudança de registo que agora se explicita. Vejamos.

«Dizemos de certa forma que o igual é alguma coisa (74a9-10: φαμέν πού τι εἶναι ἴσον)? Não me refiro a um pedaço de madeira igual a outro pedaço, nem a uma pedra igual a outra pedra, nem a nenhuma dessas coisas, mas a algo diferente de tudo isso (74a11: παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερον τι), ao igual em si (74a12: αὐτὸ τὸ ἴσον). Dizemos que é alguma coisa ou não é nada (74a12: φῶμέν τι εἶναι ἢ μηδέν)?». Dizemos, afirmou Símias, e de forma maravilhosa (74b1: φῶμεν θαυμαστῶς)13. «e sabemos também o que é em si mesmo (74b2: καὶ ἐπιστάμεθα αὐτὸ ὃ ἔστιν)?... De onde obtivemos esse saber sobre ele (74b4: λαβόντες... τὴν ἐπιστήμην)?». Não do que dizíamos há pouco, isto é, vendo (74b5: ἰδόντες) pedras e pedaços de madeira ou outras coisas iguais (74b5: ἄλλα ἄττα... ἴσα), a partir (74b6: ἐκ) destas pensámos o igual (74b6: ἐκεῖνο ἐνενοήσαμεν) que é diferente delas (74b6: ἕτερον ὂν τούτων)? «ou a ti não te parecem diferentes (74b6-7: ἢ οὐχ ἕτερόν σοι φαίνεται)? Considera-os também por outro ponto de vista».

Antes de mais, estabeleçamos as outras duas pro- posições que se deduzem desta passagem:

P17: há um saber do igual em si

P18: agarra-se o saber do igual em si.

O que dá início à passagem em 74a, e que permanecerá bem presente até ao fim das páginas que estamos a comentar, é o horizonte da linguagem, chamado em causa inevitavelmente de cada vez que se fala das ideias. aqui fala-se da ideia de «igual», mas parece-me evidente que se trata só de um exemplo, pois aquilo que se dirá sobre a ideia de igual vale para todas as ideias: como, de resto, se frisará bem em 75d-76d. a afirmação da ideia de igual é, antes de tudo, uma afirmação linguística: o verbo φημί é usado duas vezes na pergunta de Sócrates e retomado por Símias na sua resposta: dizemos que o igual é alguma coisa? Dizemos14. este igual é o «igual em si» (74a12: αὐτὸ τὸ ἴσον): a sua identificação faz-se no nível da linguagem, por meio do qual estabelecemos a sua diversidade das coisas que também chamamos de «iguais», de um modo que é mais “noético” do que “à letra”, precisamente porque a expressão linguística não esclarece, por si mesma, a diferença que estamos a fazer. retomemos a pergunta de Sócrates, pondo em itálico as expressões que aludem ao plano linguístico: «Dizemos de certa forma que o igual é alguma coisa? Não me refiro a um pedaço de madeira igual a outro pedaço..., mas a algo diferente de tudo isso, ao igual em si. Dizemos que é alguma coisa ou não é nada15? Dizemos». o termo “igual” evidentemente é sempre o mesmo, mas não pode ter o mesmo significado nas duas expressões «um pedaço de madeira “igual” a outro pedaço» e «o igual em si»: realça-se de forma clara a diversidade (74a11: παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι) de função quanto ao uso do mesmo fonema na segunda e nas outras expressões usadas anteriormente, tendo sido esta “diversidade na identidade” já pré-anunciada pelo που de 74a9. É esta a coisa verdadeiramente «maravilhosa» a que se refere Símias na sua resposta. agora, é precisamente este “igual” em si, que é idêntico (no som) e diferente (na função) do “igual” de um pedaço de madeira referido a outro, que chamamos de saber (P17).

Onde agarrámos este saber (P18)? Depois desta pergunta Sócrates faz outras duas perguntas, ambíguas, e um convite («Considera-os também por outro ponto de vista») que muda de novo, como é habitual no estilo platónico, a perspetiva a partir da qual analisar a questão: a ambiguidade será desfeita só em 75b-c, e até então ambos os sentidos da ambiguidade permanecerão presentes. a ambiguidade da primeira pergunta acha-se na partícula com a qual ela é introduzida, ἆρ᾽οὐκ (74b4). Sabemos que ἆρα se usa nas interrogativas quando a resposta pode ser afirmativa ou negativa; ἆρα μή quando é implícita uma resposta negativa; ἆρα οὐκ quando é implícita uma resposta afirmativa. em geral é assim, mas aqui Platão usa ἆρα οὐκ sabendo perfeitamente que a resposta será negativa (75b-c). Como se quisesse dizer: de onde agarrámos o saber do igual em si? Talvez da experiência dos pedaços de madeira iguais, etc., como se poderia ser levados a pensar por todas as coisas de que falámos? ou como se poderia ser levados a responder imediatamente com base em todas as coisas ditas? Todavia, em Platão, uma resposta imediata quase nunca é a resposta certa, é precisamente “o que parece”, não “o que é”, e o mesmo acontece neste caso. a ambiguidade da segunda pergunta («ou a ti não parecem diferentes?, ἢ οὐχ ἕτερόν σοι φαίνεται·», 74b6-7) acha-se ao usar ἕτερον logo após ter declarado que o igual em si é ἕτερον relativamente a todas as coisas iguais, ou seja, «ou o igual em si não te parece diferente das coisas iguais?»; ou então, «ou não te parece que agarrámos o igual em si de maneira diferente da da observação das coisas iguais?». ainda sem desfazer estas ambiguidades, Símias é convidado a considerar as coisas de outro ponto de vista e as ambiguidades mantêm-se.

Pedras e pedaços de madeira iguais (74b8: ἴσοι), apesar de serem o mesmo (74b8: ταὐτὰ ὄντα), por vezes (74b8: ἐνίοτε) parecem iguais (74b8: ἴσα φαίνεται) a uma pessoa, e a outra não. Mas não é possível que as mesmas coisas iguais (74c1: αὐτὰ τὰ ἴσα) às vezes te tenham parecido (74c1: ἐφάνη) desiguais (74c1: ἄνισα), nem é possível que a igualdade te tenha parecido desigualdade (74c1-2: ἡ ἰσότης ἀνισότης). Portanto, não são a mesma coisa (74c4: ταὐτόν) as coisas iguais e o igual em si (ταὐτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον). Todavia (ἀλλὰ μήν), a partir das coisas iguais (74c7: ἐκ τούτων... τῶν ἴσων), que são diferentes do igual em si (74c7-8: ἑτέρων ὄντων ἐκείνου τοῦ ἴσου), pensaste e agarraste (74c8-9: ἐννενόηκάς τε καὶ εἴληφας) o saber (ἐπιστήμην) dele.

Estabeleçamos, portanto, estas novas proposições:

P19: pedras e pedaços de madeira parecem iguais a uma pessoa mas não a outra

P20: não é possível que a igualdade pareça desi- gualdade

P21: as coisas iguais e o igual em si não são o mesmo

P22: pensa-se o saber do igual em si P23: agarra-se o saber do igual em si.

Antes de mais, esta passagem instaura a diferença entre dois níveis, o das coisas iguais e do igual em si, e isso é explícito: não são ταὐτόν. Porém, o que funda esta diferença não é só o estatuto ontológico diferente dos dois níveis (P21), mas o estatuto linguístico que é implícito e vigente em P19 e P20. a uma pessoa um pedaço de madeira “parece igual” a outro, a outra pessoa “parece desigual”, embora seja sempre o mesmo pedaço: mas a ninguém a igualdade pode “parecer desigualdade”. evidentemente o φαίνομαι não só é o nível das perceções, como também o da denominação aplicada aos objetos das perceções sensíveis. Com efeito, se “desfizermos” P19 e P20, teremos estes significados: P19 – «isso, o objeto da perceção sensível, é reconhecido primeiramente como pedra, isto é, damos-lhe o nome de pedra e depois parece-nos, reconhecemo-lo e, por isso, dizemos que é “igual” a outra pedra. Mas esta operação não parece, ou seja, não vale para todos e não é feita por todos»; P20 – «isso, que não é objeto da perceção sensível, e que chamamos igualdade, nunca poderá parecer a ninguém e, por conseguinte, ser chamado de desigualdade». o verbo φαίνομαι, nas duas proposições, não indica a mesma coisa, embora indique o mesmo processo: em P19 ele está ligado a uma experiência sensível e não a dispensa, em P20 dispensa a experiência sensível. todavia, o “processo” é o mesmo, porque é o processo da denominação: quando me parece e chamo “igual” uma pedra, ponho em ação o mesmo mecanismo de quando declaro que a igualdade nunca poderá parecer desigualdade: de facto, num caso e no outro, o reconhecimento ou o não reconhecimento do “igual” é algo distinto da experiência sensível, pois implica uma referência ao plano eidético, e “referir”, como se verá de seguida, não é uma atividade dos sentidos.

Pelo contrário, o que causa problema é a pergunta feita em 74c1-2: αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη, ἢ ἡ ἰσότης ἀνιότης·. a resposta, como se sabe, é negativa: não, nunca é possível (74c3: οὐδεπώποτε).

Mas porque é que Platão diz «as mesmas coisas iguais» e não «o igual em si»? a segunda parte da pergunta, introduzida com um «ἤ», parece ser uma especificação de sentido da primeira parte, como se dissesse «é possível que o igual em si alguma vez te tenha parecido desigual, isto é, ou então que a igualdade te tenha parecido desigualdade?». Mas se assim é, porque é que Platão não disse «αὐτὸ τὸ ἴσον», visto que acabara de dizer que as coisas iguais podem parecer, mas podem também não parecer, iguais (74b7-9), enquanto que, como se afirmará depois, só a ideia do igual nunca pode parecer desigual, razão pela qual, αὐτὸ τὸ ἴσον e τὰ ἴσα não são a mesma coisa (74c4-5)? Uma resposta poderia ser que αὐτὰ τὰ ἴσα não indica todas as coisas iguais de que se acabou de falar, isto é, pedaços de madeira e pedras, mas todos os predicados “igual” que foram aplicados às coisas que são objeto da nossa experiência sensível, ou seja, precisamente a ideia de igualdade que nunca poderá parecer desigualdade.

Seja como for, a afirmação seguinte repropõe a perspetiva já avançada em 74b4-5: é «a partir das» (74b4: ἐξ; 74c7: ἐκ) coisas iguais que se pensa e se agarra o saber do igual em si, afirmação com a qual Símias concorda plenamente, declarando-a “muito verdadeira”. Mas este processo não pode ser um simples processo de “derivação”, de tipo indutivo-abstrativo, das coisas particulares à ideia universal. a continuação da passagem acabará por negar decididamente esta perspetiva: não se passa das coisas sensíveis para a ideia. Veremos que o ἐκ desta passagem se transformará em ἀπό em 76a2 e isso dá-nos a ideia de um meio, de um instrumento, em vez da ideia de uma proveniência. Não convém esquecer que «a partir das» coisas iguais “pensamos” e “agarramos” um saber e esta operação não é operação da sensibilidade. Portanto, o sentido de 74c7-9 deve ser outro. Mas isso ver-se-á em seguida.

As linhas seguintes abrem portas para novas ambiguidades que deverão ser desfeitas. Depois de Símias ter declarado que a afirmação era “muito verdadeira”, isto é, que as coisas iguais e o igual em si não são a mesma coisa, mas que a partir de coisas iguais – que são diferentes do igual em si – pensamos e agarramos o saber do igual em si, Sócrates pergunta: «Porque é semelhante ou dissemelhante daquelas coisas (74c11: οὐκοῦν ἢ ὁμοίου ὄντος τούτοις ἢ ἀνομοίου)?». Certamente (74c12: πάνυ γε). «Não faz nenhuma diferença (74c13: διαφέρει οὐδέν): sempre que tu, ao veres uma coisa (74c13: ἄλλο ἰδών), dessa visão (74c13-d1: ἀπὸ ταύτης τῆς ὄψεως) pensares outra coisa (74d1: ἄλλο ἐννοήσῃς), semelhante ou dissemelhante (74d1-2: εἴτε ὅμοιον εἴτε ἀνόμοιον), necessariamente terás reminiscência». Temos aqui uma nova proposição:

P24: reminiscência dá-se quando, ao ver uma coisa, pensamos noutra, semelhante ou dissemelhante.

Mas a pergunta de Sócrates é ambígua, tal como a resposta de Símias e o esclarecimento socrático que lhe segue. o sujeito da pergunta é evidentemente “o igual em si”; ora, agarra-se o saber do igual em si porque ele é semelhante ou é dissemelhante das coisas iguais? Se o «ἤ... ἤ» é uma alternativa, um «aut... aut», a pergunta não faz sentido, porque se disse claramente que o igual em si não é a mesma coisa que as coisas iguais, razão pela qual a pergunta já tem uma resposta: o igual em si é dissemelhante das coisas iguais. Se o «ἤ... ἤ» não é uma alternativa, isto é, indica um «vel...vel», como se pode deduzir pondo-o em relação com o «εἴτε... εἴτε» de 74d1, então o sentido da pergunta não pode ser a interrogação sobre a semelhança do igual em si com as coisas iguais. Por outras palavras, assente que o igual em si não é a mesma coisa que as coisas iguais (74c4: οὐ ταὐτόν), que é diferente de- las (74c7-8: ἑτέρων), a pergunta sobre o ὅμοιον e o ἀνόμοιον não pode ser uma pergunta que diz respeito unicamente à relação ideia-coisa, a qual já tem uma resposta, mas é uma pergunta que deve englobar mais níveis. a resposta de Símias é ambígua, πάνυ γε, por- que é uma resposta simples face a uma dupla interro- gação, ἤ... ἤ. o esclarecimento de Sócrates é sibilino: «Não faz nenhuma diferença (διαφέρει οὐδέν)»: acer- ca do quê? ao facto de o igual em si poder ser semelhante às coisas iguais, ou então ser dissemelhante das coisas iguais? É evidente que não, porque o igual em si é ἕτερον relativamente às coisas iguais. e então, acerca de quê não faz nenhuma diferença?

A chave para desfazer essas ambiguidades encontra-se, a meu ver, na menção à “falta” da sensação relativamente à ideia, em 74a6, e no que se dirá logo depois desta última definição de anamnese. Por outras palavras, embora não sejam claramente a mesma coisa, o igual em si e as coisas iguais, todavia subsiste entre os dois níveis uma relação de ὁμοιότης: portanto, não só as coisas se assemelham à ideia, como também a ideia se assemelha às coisas16, sendo precisamente através desta semelhança que se estabelece, e nós reconhecemo-la, uma dissemelhança. O “semelhante e o dissemelhante” de que se pensa e se agarra o saber em relação ao “ver”, isto é, à sensibilidade, não só é a semelhança das coisas em relação à ideia – portanto, o ser capaz de ver a ideia nas coisas –, como também é a dissemelhança, a diversidade, da ideia de igual em relação às coisas iguais e, por fim e sobretudo, é a diversidade – real e ideal – do pensado em relação às coisas. Usando os exemplos supracitados, é a diversidade real entre uma lira e um homem, entre Símias e Cebes, mas também a diversidade entre Símias pintado e Símias real. Por outras palavras ainda, o que se pensa e se agarra é sempre um saber (P22, P23), no exemplo dado, o saber do igual, em geral, o saber de uma ideia; ainda assim, o saber é sempre a capacidade de estabelecer relações de semelhança-dissemelhança entre coisas e ideias e essa capacidade é o pressuposto e não a consequência da sensação: o “defeito” das coisas relativamente às ideias não poderia verificar-se se não fosse porque nós reconhecemos as coisas, precisamente com base nas ideias. o que se segue confirma tudo isto.

«Não sentimos algo de análogo (74d4: πάσχομέν τι τοιοῦτον) a propósito dos pedaços de madeira e das outras coisas iguais de que falávamos há pouco? Parecem-nos tão iguais como o igual em si (74d5-6: φαίνεται ἡμῖν οὕτως ἴσα εἶναι ὥσπερ αὐτὸ τὸ ὃ ἔστιν), ou falta-lhes algo para poderem ser como o igual (74d6-7: ἐνδεῖ τι ἐκεῖνο ᾧ τοιοῦτον εἶναι οἷον τὸ ἴσον), ou não lhes falta nada?». Falta-lhes muito, confirma Símias. «estamos de acordo que quando alguém olha (74d9: ἰδών) para algo e pensa (ἐννοήσῃ) “aquilo que estou a ver pretende ser como outro ente (74d10-e1: οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων), mas falta-lhe (74e1: ἐνδεῖ) algo, e não podendo ser como o outro, é mais defeituoso (74e2: φαυλότερον)”, necessariamente quem pensa (74e2: ἐννοοῦντα) assim, deve ter tido (74e3: προ-ειδότα), antes, um saber daquele ente ao qual atribui uma semelhança com a coisa vista (προσεοικέναι), embora de forma defeituosa?». Temos então

P25: quem pensa de uma coisa que a sua semelhança é defeituosa em relação à ideia já deve ter um saber/conhecimento da ideia17.

Estas linhas confirmam duas coisas: 1. que a posse plenamente consciente (ἐιδέναι) da ideia é condição indispensável para poder reconhecer a ideia nas coisas, isto é, para poder predicar essa ideia nas coisas que se percecionam sensivelmente; 2. que esse processo de reconhecimento das coisas, que significa quer a possibilidade de predicar nelas uma certa ideia (ou seja, o reconhecimento da semelhança existente entre as coisas e a ideia), quer, ao mesmo tempo, a possibilidade de perceber a diversidade existente entre as coisas e a ideia (ou seja, reconhecer a dissemelhança entre as coisas e a ideia), dizia, este processo é um ato puramente dianoético, é um ato do pensamento que se dá em presença de uma sensação, mas não deriva dela, pelo contrário, é sua condição. Com efeito: «também nós experimentámos algo de semelhante (74e6: τὸ τοιοῦτον πεπόνθαμεν), ou não, a propósito das coisas iguais e do igual em si (74e6-7: περί τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον)?... Logo, é necessário que tenhamos tido um saber do igual (74e9: προειδέναι τὸ ἴσον) num tempo anterior (πρὸ ἐκείνου τοῦ χρόνου) ao que, ao termos visto pela primeira vez as coisas iguais (75a1: πρῶτον ἰδόντες τὰ ἴσα), pensámos (75a1: ἐννενοήσαμην) que todas elas tendem a ser como o igual, embora lhes falte muito para serem como ele».

O saber/conhecer uma ideia é a condição para poder pensar a semelhança-diferença entre as coisas e a ideia; razão pela qual, as duas afirmações seguintes de Sócrates não significam retomar uma hipótese descartada várias vezes, isto é, que as ideias podem surgir das sensações, mas repropor aos dialogantes que junto a, e não contra, o que se chegou a acordo, é preciso ter presente outra condição necessária para compreender o horizonte e o valor da hipótese da anamnese. a primeira afirmação é: «Concordamos também que não o pensamos, nem é possível pensá-lo (75a6: ἐννενοηκέναι... δυνατὸν εἶναι ἐννοῆσαι) de nenhuma outra forma, a não ser partindo da (ἐκ) vi são, do tato ou de qualquer outra sensação: refiro-me a todas como a uma só»: é a mesma coisa, confirma Símias, no que diz respeito ao que o discurso quer esclarecer nesse momento (75a9-10: ταὐτὸν... πρός γε ὃ βούλεται δηλῶσαι ὁ λόγος). Como se vê, o sentido desta afirmação não é retomar uma hipótese já descartada, mas sim: admitimos que não é das sensações que nasce uma ideia, depois admitimos que os objetos da sensação tendem a ser como a ideia de que têm o nome, mas são-lhe inferiores, e esta segunda admissão é o fruto de um ato do pensamento que se dá quando vemos, tocamos ou sentimos em geral. o discurso é o mesmo para todas as sensações. De tudo isso deriva que é sempre o discurso a conseguir esclarecer todos os mecanismos do sentir e do pensar. a segunda afirmação – «É a partir das sensações que se mostra necessário pensar (ἔκ γετῶν αἰσθήσεων δεῖ ἐννοῆσαι) que tudo o que há nelas tende para o que é igual, sendo-lhe todavia inferior» –, que também recebe o consenso de Símias, mais não é senão reafirmar esta relação sentir-pensar, ou sensação-ideia, que agora passará a conhecer uma conotação clara e uma definição que até ao momento se mantiveram subentendidas durante o desenrolar do discurso.

iv. Relação sensação‑ideia. após terem sido dadas muitas das coordenadas que nos permitem compreender o «que é» a anamnese, neste discurso que vai desvelando os sentidos de uma afirmação (a aprendizagem é anamnese) colocada ao início e no fim, desfaz-se claramente aquela ambiguidade que parecia emergir de algumas das afirmações anteriores: a aquisição da ideia não provém dos sentidos, por isso, aquele «a partir das (ἐκ)» sensações não pode indicar uma proveniência. Leia-se: «antes de começar a ver, ouvir e a sentir com os outros sentidos, devemos ter adquirido de certa forma o saber de que há o igual em si (75b5-6: που εἰληφότας ἐπιστήμην αὐτοῦ τοῦ ἴσου ὅτι ἔστιν), se éramos capazes de lhe atribuir (à letra, lá, além, naquele lugar; 75b7: ἐκεῖσε ἀνοίσειν) os iguais que nos provinham das (ἐκ) sensações e [de compreender] que... lhe são inferiores (75b8: αὐτοῦ φαυλότερα). – É necessário, com base no que se disse antes (75b9: ἀνάγκη ἐκ...). – Mas assim que nascemos começámos logo a ver, a ouvir e a experimentar outras sensações... e dizemos (75c1: φαμέν) que antes das sensações adquirimos o saber certo do igual (75c1-2: τὴν τοῦ ἴσου ἐπιστήμην εἰληφέναι); ... então, como parece (75c4: ὡς ἔοικεν) ser, é necessário (75c4: ἀνάγκη) que o tenhamos adquirido (75c4-5: εἰληφέναι) antes de nascer. – Parece». estabeleçamos então outras duas proposições:

P26: antes de ter sensações agarrámos de alguma forma o saber de que há um igual em si

P27: referimos os iguais ao igual em si a partir das sensações e reconhecemos que lhe são inferiores.

O saber do igual, o saber da ideia, deve de alguma forma ser anterior às sensações; reconhecer, a partir das sensações, que há duas pedras iguais, ou, por outras palavras, afirmar que uma pedra “é igual” a outra, pressupõe um saber do igual; ou, por outras palavras ainda, afirmar que uma pedra “é igual” a outra é uma operação linguística que se baseia numa operação noética e esta consiste em «referir (ἀναφέρω)» a igualdade predicada da pedra a outra igualdade, isto é, à ideia de igual. ao mesmo tempo, reconhece-se, como se sabe, a «inferioridade» desta igualdade predicada da pedra em relação à ideia de igual. em todo o caso, a ideia de igual é a causa e não o efeito da possibilidade de predicar o “é igual” de pedras, pedaços de madeira, etc.: é a causa do poder pensar coisas iguais, por conseguinte, de poder dizê-las18. o saber, agarrar um saber, não é uma operação que deriva dos sentidos, mas é o pressuposto para que se possa ter a sensação, porque sentir é reconhecer, e depois conhecer, isto é, transferir para a linguagem as impressões sensíveis que temos, logo, referir-se às ideias. «Portanto, se o [o saber] adquirimos (75c7: λαβόντες) antes de nascer, nascemos possuindo-o (75c7: ἔχοντες) e sabíamos (75c8: ἠπιστάμεθα), antes de nascermos, logo, e assim que nascemos, não só o igual, como também o maior e o menor e todas as realidades deste género? o nosso discurso não diz tanto respeito ao igual quanto ao belo em si, o bom em si, o justo e o santo e, como digo, a todas as coisas às quais aplicamos este sigilo, o “que é” (75d2: περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόμεθα τοῦτο, τὸ “ὃ ἔστι”), interrogando quando se fazem perguntas e respondendo quando se dão respostas. Por conseguinte, é necessário que tenhamos adquirido o saber destas ideias todas antes de nascer».

Esta passagem esclarece de forma explícita que todo o discurso feito até ao momento diz respeito não só ao igual, como também a todas as ideias. Por isso, é bela a expressão

P28: “ideia” é tudo aquilo a que imprimimos o selo “o que é”,

que realça o aspecto linguístico imprescindível da doutrina das ideias19. temos de ter um “saber” delas antes de nascermos. ora, esse “antes de nascermos”, por um lado, serve a Sócrates para demonstrar que a alma que possuímos existia antes de estar em nós, e essa conclusão serve para encerrar a argumentação da «imortalidade da alma» (76e-77c), mas, por outro lado (este é o aspecto que mais interessa deste discurso do Fédon), é a indicação clara precisamente do “postulado” da sensação e do conhecimento. “antes de nascer” termos de ter o saber da ideia do igual e das outras ideias, porque «assim que nascemos, logo(75b10: εὐθύς)» começámos a ver, a ouvir e a ter todas as outras sensações. É o saber das ideias que nos permite experimentar sensações e inseri-las num discurso cognoscitivo: não no sentido, como é óbvio, que saber a ideia causa a nossa sensação, mas no sentido que causa o nosso reconhecimento da sensação, a nossa possibilidade de falar dela, de a inserir num processo cognoscitivo. também é importante o facto de, como acontecia no Ménon e como acontece sempre em Platão, todo este processo de reconhecimento da sensação, de descoberta do saber que já possuímos, se dar e não poder deixar de se dar a não ser «interrogando quando se fazem perguntas e respondendo quando se dão respostas» (75d3-4), que é a maneira platónica de afirmar o aspecto dialético do pensamento: não se pode pensar sem ser dialogando, com os outros ou consigo mesmo20; o mesmo processo de reconhecimento das ideias, deste ponto de vista – isto é, do ponto de vista da sua aquisição de forma consciente, do ponto de vista de um “agarrá-las” de forma consciente, tal como os postulados do nosso pensar e falar –, não se pode dar fora da linguagem, do interrogar e do responder, que é o único instrumento pelo qual é possível «imprimir o selo “o que é”» aos objetos do nosso dizer.

Por fim, se nos interrogarmos sobre a “qualidade” destas ideias mencionadas, veremos que são de dois tipos: em todo o caso, todas são a expressão de uma relação. As ideias de belo, bem, etc., por um lado, são o postulado do nosso ver, do nosso reconhecê-las nas coisas sensíveis, por outro, são aquilo a que referimos as nossas sensações: imprimir o selo “o que é belo em si” significa estabelecer uma relação de semelhança/ dissemelhança entre a coisa bela e a ideia de belo. As ideias de igual, maior e menor implicam, pelo contrário, não só o facto de “serem sabidas” como aquilo a que nos referimos – e que nos permite reconhecer os iguais, os maiores ou menores da nossa experiência sensível –, como também exprimem ainda outra relação, porque só se pode ser igual “a” alguma coisa, ou maior e menor “do” que uma coisa. Com efeito, a ideia de igual, como todas as ideias de relação, é um problema não indiferente da filosofia platónica, pois possibilita a perspetiva inquietante de uma multiplicação ad infinitum do mundo das ideias: não por acaso, parece-me, no decorrer do diálogo que, quando se falar da ideia como causa da cognoscibilidade das coisas (embora cada coisa ganhe o mesmo nome da ideia de que participa; 102b), o “ser maior” ou “ser menor” de algo não se deve à ideia de “maior” ou de “menor”, mas à ideia de grandeza ou de pequenez (100e-102c).

A meu ver, a passagem seguinte (75c-e) pode ser vista como um espião para o facto de a operação anamnéstica enquanto tal ser o que Platão considera a característica fundamental do processo cognoscitivo, da aquisição dos conhecimentos: numa palavra, do processo de aprendizagem; enquanto que a pré-existência e a sobrevivência da alma relativamente ao corpo é apenas um corolário pouco importante. atenção, pouco importante de um ponto de vista lógico: é óbvio que é importante de um ponto de vista ético. Leia-se: «e se, tendo-o [o saber] adquirido (75d7: λαβόντες), não o esquecêssemos em qualquer ocasião (75d7: ἑκάστοτε), nasceríamos sempre sabendo (75d8: εἰδότας) e saberíamos (75d8: εἰδέναι) por toda a vida. De facto, o saber é isto, possuir um saber certo e, depois de o ter adquirido, não o perder (75d8-10: τὸ γὰρ εἰδέναι τοῦτ᾽ἔστιν, λαβόντα του ἐπιστήμην ἔχειν καὶ μὴ ἀπολωλεκέναι). Não é isso, Símias, aquilo a que chamamos esquecimento (75d10: λήθην λέγομεν), perda de um saber (75d11: ἐπιστήμης ἀποβολήν)?... Se, pelo contrário, penso, tendo-o adquirido (75e2: λαβόντες) antes de nascermos, o perdemos (75e3: ἀπωλέσαμεν) ao nascer, e depois, servindo-nos (75e3: χρώμενοι) das sensações, readquirimos os saberes certos daquelas ideias (75e4: ἐκείνας ἀναλαμβάνομεν τὰς ἐπιστήμας) que antes tínhamos, então o que chamamos aprender não será readquirir um saber familiar (75e5-6: ὃ καλοῦμεν μανθάνειν οἰκείαν... ἐπιστήμην ἀναλαμβάνειν)? e não estaremos a falar corretamente (75e7: ὀρθῶς ἂν λέγοιμεν), se dissermos que isto é reminiscência? – Certamente». estabeleçamos ainda

P29: saber/conhecer é possuir o saber de algo, depois de o ter agarrado, e não perdê-lo

P30: aquilo a que chamamos aprender é agarrar de novo um saber que já nos pertence.

O ἑκάστοτε desta passagem é importante. o sujeito destas proposições é obviamente o ser humano, cada um de nós. ora, o «cada vez» poderia ser simplesmente entendido como o momento em que o ser humano nasce e perde a recordação das ideias que vira quando, mera alma, vagava pelo mundo das ideias (Fedro, 245c-250c); portanto, «cada vez» que se reincarna, a alma perde o saber que adquirira: explicação que se funda numa doutrina da reincarnação da alma cada dez mil, ou dois mil anos, ou seja o que for. Mas tudo isto é mito e como tal, segundo as indicações de Platão21, não deve ser levado à letra: o seu valor é ético, e não lógico, embora possa servir para a demonstração lógica. Pelo contrário, parece-me que aqui o ἑκάστοτε indica a distinção importante entre o saber como pura condição do conhecimento, o pressuposto do conhecimento (que mitologicamente ligamos à pré-existência da alma), e o conhecimento quando atua concretamente, o que Platão chama εἰδέναι, saber/conhecer. «Cada vez» não indica a passagem da morte à vida, da alma que existe separadamente à alma incar- nada no corpo de um ser humano, isto é, não indica os momentos que distinguem as várias incarnações da mesma alma nos corpos de vários seres humanos, mas refere-se apenas à vida do ser humano, e caracteriza precisamente o momento em que na sua única vida o ser humano consegue realizar o seu saber/conhe- cer. o ser humano agarrou o saber das ideias, isto é, as ideias constituem o postulado do seu conhecer, da sua capacidade de estruturar as impressões sensíveis imediatas. Construir o conhecimento é aprender, ou seja, ao servir-se das sensações, é agarrar o saber que lhe é “próprio” (οἰκείαν ἐπιστήμην): portanto, «cada vez» que o ser humano aprende, «recorda-se», isto é, põe em relação coisas com as ideias. «Cada vez» não exprime uma indicação temporal, mas a estrutura típica do conhecer/saber, que se funda num contínuo esquecer-agarrar novamente. Se não esquecêssemos vez após vez o nosso saber, não seríamos homens mas deuses: saberíamos/conheceríamos por toda a vida, sempre. Pelo contrário, como somos humanos e temos de construir os nossos vários conhecimentos, vez após vez “esquecemos” e vez após vez temos de “agarrar novamente” o nosso “saber”, para que este se transforme num “saber/conhecer”22: portanto, a isso se chama (P28, P29) transformar em posse consciente, atuar num saber concreto a condição e a possibilidade do saber que já estava em nós. Por essa razão, esse processo, que outra coisa não é senão o processo da nossa “aprendizagem”, pode ser chamado corretamente de “recordar”.

v. Aprendizagem é anamnese. aprendizagem é anamnese, que era a hipótese usada por Cebes para suportar a tese de que alma existe em algum lugar antes de nascer em forma humana, é agora a conclusão da ἀπόδειξις socrática. «Parece agora ser possível que, após ter percebido (76a2: λαβόντα) algo, com a vista, com o ouvido ou com outro sentido qualquer, a par- tir dele pensamos no que tínhamos esquecido (76a2-3: ἕτερόν τι ἀπὸ τούτου ἐννοῆσαι ὃ ἐπελέληστο), naquilo que a ele se aproxima (76a3: ἐπλησίαζεν), sendo-lhe semelhante ou dissemelhante (76a3-4: ἀνόμοιον... ἢ... ὅμοιον). Por conseguinte, como costumo dizer (76a4: ὅπερ λέγω), das duas uma, ou sabemos (76a5: ἐπιστάμενοι) essas ideias desde que nascemos e sabemo-las todas por toda a vida, ou, posteriormente, aqueles que dizemos que aprendem o que fazem é recordar e a aprendizagem é reminiscência (76a6-7: οὕς φαμεν μανθάνειν, οὐδὲν ἀλλ᾽ἣ ἀναμιμνῄσκον ταιοὗτοι, καὶ μάθησις ἀνάμνησις)... qual das duas escolhes, Símias? Nascemos com este saber ou em seguida recordamo-nos que o tínhamos adquirido (76b2: ἐπιστήμην εἰληφότες) antes? – agora assim (76b3: ἐν τῷ παρόντι), Sócrates, não sei escolher».

Esta passagem tira muito simplesmente as conclusões de todo o raciocínio feito até aqui: apropriar-se cognoscitivamente de uma sensação (cf. P8), que significa – como vimos e como se reconfirma aqui – que a sensação é o instrumento através do qual (ἀπὸ τούτου) podemos pensar a ideia23, essencialmente diversa dela (ἕτερόν τι... ἐννοῆσαι), relativamente à qual a coisa é semelhante e dissemelhante (cf. P9-12, P24), é a consolidação, pela posse, da potencialidade de um “saber” que trazemos dentro de nós e que se vai atuando no concretismo dos nossos “saberes”: este é o sentido claro de

P31 (cf. P1): aprender é recordar, aprendizagem é anamnese.

Anamnese é pois o termo técnico que Platão usa para indicar o processo da aprendizagem. Não possuímos a ἐπιστήμη, o saber no sentido do conhecimento efetivo de todas as coisas, mas possuímos a ἐπιστήμη no sentido da possibilidade estrutural própria da nossa natureza humana de poder conquistar o conhecimento de todas as coisas. também deste ponto de vista, a perspetiva platónica coincide com o “programa de saber” esculpido por Parménides nos últimos dois versos do seu Proémio. e esse conhecimento está entrelaçado de esquecimentos e recordações: só deus sabe/conhece tudo por toda a vida e por isso é sapiente; o ser humano, pelo contrário, esquece e recorda continuamente, «cada vez», na construção humana dos seus conhecimentos e dos seus saberes e por isso não é sapiente, mas é filósofo. Nós não conhecemos tudo por toda a vida, mas ao aprendermos o que fazemos é recordar, à medida que vamos aprendendo.

A passagem que segue parece-me que confirma o que se disse, mas antes de a examinar, creio que tenho de frisar a singularidade da resposta de Símias à pergunta de Sócrates: nascemos todos sabendo tudo por toda a vida, ou só os que aprendem é que recordam? Como vimos, face à alternativa Símias declara que não sabe o que escolher, no momento24. O que significa esta indecisão? Fora precisamente Símias, quando Cebes recordou a teoria da aprendizagem como anamnese, em jeito de brincadeira ao afirmar que não negava a teoria em linha de máxima, mas que precisava de uma demonstração para poder recordar-se dela. Não será todo este discurso, que se conclui precisamente com a reafirmação da aprendizagem como anamnese, uma demonstração? É que Símias concordou com todas as etapas da ἀπόδειξις de Sócrates: porquê esta reticência? Sem querer arriscar respostas, noto que a indecisão de Símias oferece a Sócrates a possibilidade de mudar o registo das suas perguntas, para chegar à conclusão ética do seu discurso. Leia-se: «então? acerca disto sabes escolher e dizer o que te parece? Um homem que sabe (76b5: ἐπιστάμενος) é capaz ou não de dar razão das coisas que sabe? – De modo absolutamente necessário, Sócrates... – e parece-te que todos sabem dar razão (76b5: δοῦναι λόγον) das realidades de que falávamos há pouco? – Bem que gostaria, disse Símias, mas receio muito que amanhã, por esta hora, não haja ninguém capaz de o fazer dignamente».

Esta passagem demonstra finalmente que o saber humano, por um lado, é ἐπιστήμη como fundamento do conhecimento, o saber anteposto ao pensar e ao conhecer, por outro lado, é ἐπιστήμη como resultado do processo anamnéstico, isto é, como aprendizagem; demonstra também que esta aprendizagem não é uma aquisição que se adquire de uma vez por todas, mas que precisa constantemente de ser reavivada, reforçada, retomada, reconquistada. todavia, aqui emerge também a outra característica fundamental da ἐπιστήμη:

P32: quem tem saber sabe dar razão das coisas que sabe.

Quem sabe, no segundo sentido do que dizíamos antes, isto é, o ἐπιστάμενος, é capaz de “dar razão (δοῦναι λόγον, διδόναι λόγον)” das coisas que sabe. Para Platão isso é fundamental, porque, possibilitando a abertura da perspetiva do λόγος, esclarece que a verdade pertence ao discurso que demonstra e só dentro dele se pode alcançar; por fim, que o discurso, cada discurso, tem sempre necessidade de ser retomado e justificado novamente num διά-λογος que seja capaz de o fazer “dignamente”.

O que se seguirá serve para inserir esta demonstração da aprendizagem como anamnese na “finalidade” que Sócrates tinha pensado, isto é, a demonstração que a nossa alma existia antes de nascermos; em seguida se deverá ainda demonstrar que ela existirá depois da nossa morte. tudo isso, porém, já não diz respeito ao assunto que queria tratar, razão pela qual, podemos passar rapidamente para o final da argumentação da reminiscência (77a). «então, Símias, não pensas que todos sabem estas coisas? – De modo algum – recordam o que aprenderam anteriormente (76c4: ἀναμιμνῄσκονται ἄρα ἅ ποτε ἔμαθον)? – Necessariamente – Quando é que as nossas almas adquiriram o saber (76c6: πότε λαβοῦσαι... ἐπιστήμην)? Certamente não quando nascemos como homens – Não, é certo – então, foi antes – Sim – então, Símias, as almas existiam antes, antes de ganharem forma humana (76c11-12: ἦσαν... πρὶν εἶναι ἐν ἀνθρώπου εἴδει), separadamente do corpo e possuíam inteligência (φρόνησιν)»25. eis a ligação da hipótese da anamnese com a da pré-existência da alma, unida, por sua vez, à hipótese das ideias:

«Se existem (76d7: εἰ μὲν ἔστιν), como costumamos repetir, as realidades como o belo, o bom e todas as outras semelhantes (76d8-9: πᾶσα ἡ τοιαύτε οὐσία) e a elas referimos (76d9-e1: ἀναφέρομεν) tudo o que deriva das (ἐκ) sensações – descobrindo (76e1: ἀνευρίσκοντες) que já as possuíamos – comparando-lhes (76e2: ἀπεικάζομεν) as nossas sensações, então é necessário que, assim como existem estas realidades, também exista a nossa alma, antes de nascermos26. Se, pelo contrário, não existirem, teremos feito todo este discurso em vão? Portanto, é pela mesma necessidade (76e5: ἴση ἀνάγκη) que elas existem e que existem também as nossas almas antes de nascermos, e que se aquelas não existem, não existem também as nossas almas?». Desta forma, as duas hipóteses estão intimamente ligadas uma à outra: negar uma significa negar também a outra. Mas a conexão é forçosa: o valor epistemológico da teoria da anamnese é independente da “demonstração” da imortalidade da alma; talvez um “espião” disso possa ser encontrado na réplica de Símias, apesar de ser estilisticamente redundante ao mostrar a sua plena convicção27, quando, daí a não muito, as suas objeções e perplexidades renascerão, junto com as de Cebes, e serão aplacadas, em parte, só com o discurso ético que “cura” o medo da morte específico dos homens.

Tentemos tirar as conclusões da nossa análise. Antes de mais, as páginas que examinámos estabelecem uma equivalência forte entre aprendizagem e anamnese: a aprendizagem é sempre anamnese, readquirir um saber que já nos pertence, e quem aprende recorda (P1-2, P29-30). Já notámos que esta equivalência é perigosa, podendo espoletar um processo ad infinitum: quem recorda aprende, mas aprender é recordar; o mito da reincarnação da alma elimina este perigo, mas é um mito. Pelo contrário, notamos que, se a aprendizagem é sempre anamnese, anamnese não é só aprendizagem: também o saber é aprendizagem e é anamnese (P4). Portanto, temos de deslocar o “foco” da nossa análise e fazer estas três perguntas: em que consiste este processo de aprendizagem que, por um lado, está ligado à anamnese, por outro, ao saber? Há, nestas páginas do Fédon, elementos que nos permitam reconstruir este processo? em que relação se encontra este processo com a teoria das ideias, como aparece no Fédon, relativamente a como aparece noutros diálogos? Não responderemos à última pergunta, a não ser em poucas e rápidas linhas, remetendo-nos às notas do texto28.

Tentemos reconstruir, com base nos exemplos do Fédon, o processo da aprendizagem. É claramente algo noético e não um “prolongamento” da sensibilidade, como nas doutrinas dos sofistas, em especial na de Protágoras, naturalmente segundo a reconstrução platónica. Mas está também, para Platão, ligado imprescindivelmente à sensibilidade. ao mundo das sensações: mesmo nestas páginas do Fédon, o “dualismo” platónico de sensação e pensamento parece uma lenda historiográfica. Ver, ouvir, sentir em geral, são o campo imprescindível do exercício do nosso pensamento, o instrumento indispensável de que este se serve. Mas isso não significa que “da” sensação se chegue “ao” pensamento. Por um lado, as coisas vistas, ouvidas ou sentidas põem em ato o mecanismo do pensamento e constituem, por assim dizer, o “instrumento” (73c-e, 74c-d, mas especialmente 75e: χρώμενοι); por outro lado, porém, elas não se podem separar do pensamento: por outras palavras, a distinção sensação/ pensamento é fundamental, se quisermos adquirir uma doutrina correta da aprendizagem, mas coloca-se num nível unicamente metodológico, porque não podemos sentir sem pensar ao mesmo tempo, e não podemos pensar sem sentir, mesmo que sentir seja diverso de pensar. o requinte desta posição platónica sobressai, se a pusermos em relação com todas as críticas que Platão faz à equivalência sentir/pensar que ele atribui aos sofistas.

Mas vejamos mais em detalhe. Tenho uma sensação visual. «o que agora vejo» é já uma primeira tradução linguística de uma impressão sensível, é agarrar uma sensação e exprimi-la numa afirmação linguística, ou seja, é já um primeiro nível de conhecimento; então, eu já não digo «o que agora vejo» mas sim «o que agora vejo é uma pedra»: aqui há o reconhecimento de que a impressão sensível tem uma sua estrutura, diversa das outras, e essa afirmação é o conhecimento da pedra (73c; P8). Mas dizer «esta é uma pedra» já não significa ter só uma impressão da pedra, e sim “pensar” a pedra, fazê-lo significa “saber” a pedra (P9-P11). Por outras palavras, não é possível conhecer/reconhecer uma pedra a não ser pensando-a, se não tivermos já em nós um saber que nos permite pensá-la. Pensar uma coisa significa reconduzi-la a uma ideia, e então «esta é uma pedra» é um λόγος, é um discurso que reconduz um feixe de impressões sensíveis, estruturando-o mentalmente, a uma ideia: poderíamos dizer que a ideia é a estruturada possibilidade de pensar uma nossa sensação, por conseguinte, o que nos permite reconhecer aquela sensação e percebê-la como tal: deste ponto de vista, pensar não está e não pode estar separado de sentir, mas é uma estrutura do sentir29. Tudo isso implicaria que «pedra» é a ideia a que referimos um feixe de impressões sensíveis: com efeito, chamamos «pedra» não só a esta que vemos agora, grande, porosa e vermelha, mas também a outra que pomos junto dela, pequena, compacta e verde. Por outras palavras, é o “nome” pedra que aplico a estes dois objetos diversos que indica a mesma ideia: usando termos platónicos da participação, a “coisa” ganha o nome da ideia de que participa (102b), pois todas as coisas têm sempre o mesmo nome daquelas realidades ideais (οὐσίαι) de que participam (78e). Como é sabido, tudo isso é perfeitamente lógico e consequencial, mas constitui um dos grandes problemas da doutrina platónica: Platão nunca o afirma abertamente. também no Parménides, Platão fará com que Sócrates confesse que não se sente à vontade para defender explicitamente30 a hipótese de ideias de classes de objetos sensíveis, apesar de, ao mesmo tempo, fazer com que Parménides defenda que se alguém não permitir que existam ideias dos entes (εἴδη τῶν ὄντων), ou melhor, não distinguir cada εἶδος para cada ente (μηδέ τι ὁριεῖται εἶδος ἑνὸς ἑκάστου) e não permitir que haja uma ideia sempre idêntica (ἰδέαν αὐτὴν ἀεί) de cada um dos entes (τῶν ὄντων ἑκάστου), destruirá completamente todo e qualquer poder da dialética e, por conseguinte, toda e qualquer possibilidade de discurso (τοῦ διαλέγεσθαι δύναμιν)31. Com efeito, voltando ao Fédon, 73c-d, se conhecer uma coisa leva a pensar outra, e pensar uma coisa significa possuir um saber da ideia, um saber «diverso» porém, não o mesmo saber que me permite conhecer aquilo que estou a “conhecer” (no exemplo platónico, pensar não uma pessoa, a ideia de pessoa em si, mas pensar a pessoa por quem estou apaixonado, a partir não da ideia de lira em si, mas do saber da lira que estou a ver), o exemplo platónico poderia induzir a pensar que existe um saber para cada coisa e, por conseguinte, uma ideia para cada coisa. Mas defender que existe uma ideia para cada coisa é outra perspetiva desastrosa para a teoria das ideias, pois leva a uma simples duplicação do mundo das “coisas”, em termos linguísticos: para cada “coisa” corresponde uma só “ideia”. Seja como for, poder estabelecer um “pensado” significa recordar, significa agarrar uma ideia, significa anamnese (P13-P15). e a ideia é necessária não só para pensar, mas também para sentir. Sejamos mais precisos: para ter consciência da sensação, para poder traduzi-la linguisticamente no nosso discurso; deste ponto de vista, a ideia é a “causa” da cognoscibilidade e, portanto, da expressão verbal das coisas, como se dirá mais adiante no nosso diálogo (97b segs.).

Se digo «esta pedra é igual a essa», estou a “usar” não só a ideia de pedra, se a houver, mas certamente a ideia de igual, que há32. Também esta ideia requer um saber (P17-18). Vimos antes que esse saber não pode derivar das experiências sensíveis, constituindo, pelo contrário, o seu postulado. Dizer «esta pedra é igual a essa», por um lado, constitui um discurso que só poderia ser feito “usando” uma ideia do igual (na linguagem platónica deste diálogo: recordando), na situação concreta em que me coloco face às duas pedras, ou seja, que tenho um saber do igual em si que nesse momento agarro novamente (P17-P18); mas também, por outro lado, um discurso em que estabelecemos, explicitamente, uma diferença entre a ideia de igual e as coisas iguais em que nos embatemos, que não são absolutamente a mesma coisa (P19-21). São precisamente esses dois aspectos – intimamente ligados – do discurso cognoscitivo que Platão chama aprendizagem e anamnese. a capacidade de realizar esta distinção metodológica entre o nível da estrutura mental que nos permite “ver” as coisas (o nosso “saber”) e a construção concreta de um discurso sobre elas (o nosso “conhecer”), e ao mesmo tempo a necessidade de ter sempre presente esta distinção, constitui o processo de aprendizagem, «cada vez» que efetivamente o construímos. este é o sentido em que aprendizagem é anamnese.

Contudo, vimos que não só a aprendizagem é anamnese, como também o saber (P4). Portanto, parece-me que dessas páginas do Fédon obtemos pelo menos dois significados de “saber”. Por um lado, este é a posse da ideia, o postulado fundamental que nos permite não só “ver” a igualdade entre as duas pedras, isto é, perceber sensivelmente as características que têm em comum, como também “dizer” «esta pedra é igual a essa», isto é, construir um discurso cognoscitivo sobre as pedras. Por outro lado, porém, o saber é algo mais: é o horizonte global de todos os nossos discursos cognoscitivos sobre a realidade, é a capacidade de enquadrar o nosso discurso cognoscitivo, por exemplo, o das pedras iguais, num “sistema” organizado de conhecimentos. Por outras palavras, “saber” é a capacidade de relacionar os nossos saberes numa rede lógica e significativa que dê um sentido ao mundo em que vivemos. Deste ponto de vista, a teoria platónica do saber/anamnese, como se obtém do Fédon, está ligada fortemente à teoria delineada em outros diálogos. em especial, o Ménon, e por outro lado, o Fedro. No nosso diálogo, de P3 e de P31, deduz-se claramente que quem possui o saber sabe “dar razão” (76b5: δοῦναι λόγον; 76b8: διδόναι λόγον) das coisas que sabe, sabe dizer “cada coisa como é” (73a8-9: πάντα ᾗ), sabe inseri-la num “discurso correto” (73a10: ὀρθὸς λόγος). em suma, o saber é o quadro ordenado e significativo dos conhecimentos. Deste ponto de vista, Platão acha-se na esteira dos “sapientes” que o precederam, como Parménides33 e empédocles, para citar só dois nomes. Mas aquilo que o distingue deles é a consciência “dialética” desse saber. este, por um lado, não é um sistema fixo e imutável de conhecimentos34, mas está ligado ao horizonte de uma inves- tigação sempre aberta: o mesmo acontece no Ménon, onde, como no Fédon, a «imortalidade da alma» é a veste mitológica, ou, se se quiser, é o postulado para a construção de um saber meta-pessoal, cuja caracterização fundamental é a de ser uma investigação contínua, infinita: o que não deve faltar aos homens é o desejo de participar nesta investigação, e nesse horizonte insere-se também a luta de Sócrates, com o discurso e com a ação (86c2), à procura de um saber que nos torne melhores35. Por outro lado, o saber está ligado à perspetiva indispensável do “diálogo”36, isto é, da refutação recíproca, da construção em comum dos conhecimentos e do mesmo horizonte de conhecimentos, num horizonte que vai além da pequena vida individual: pequena, mas que adquire um grande valor, “torna-se imortal”, se conseguir compreender e elevar-se a essa perspetiva de construção em comum de conhecimentos e de vidas melhores.

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Notas

1. Este ensaio reproduz parcialmente o “apêndice II” do volume: Platone, Fedone o dell’anima. Dramma etico in tre Atti, Paolo Loffredo. Iniziative editoriali. Napoli, 2015.
2. Um conjunto de estudos sobre a anamnese nos vários diálogos encontra-se em Trindade Santos (1999, org. e introd.). Anamnese e saber. Lisboa. Nesse volume acha-se também o meu ensaio Anamnesi, idea e nome, que recupero na íntegra, por vezes com algumas modificações importantes, e que foi publicado no livro supracitado em italiano.
3. Quando dizemos que algo imortal, como a alma, nasce e morre, isso deve ser entendido exatamente em sentido “présocrático”, de Parménides a Demócrito: os homens chamam nascer e morrer ao compor-se e decompor-se dos elementos que são eternos, e como tais, eles não nascem nem morrem.
4. Bonazzi (2010, n. 111 p. 137).
5. Para outro tipo de divisão desta passagem, veja-se Scott (1995, p. 57-72).
6. Sobre as ambiguidades e a contradição deste discurso que faz derivar a imortalidade da alma do argumento dos contrários no Fédon, cf. G. Casertano, Il senso dell’argomentazione socratica dei «contrari» nel Fedone, in Atti dell’Accademia di Scienze Morali e Politiche della Società Nazionale di Scienze, Lettere ed Arti in Napoli 80 (1969), p. 375-395.
7. Isto não permite afirmar que a teoria da anamnese não seja levada a sério por Platão, como faz W. Wieland, Platon und die Formen des Wissens, Göttingen 19992 (= 1982), p. 249: o círculo vicioso espoletado pela coincidência aprender/recordar é tal apenas se realçarmos o aspecto “mitológico” da doutrina, mas desaparece se olharmos para o aspecto gnosiológico e epistemológico. também P. Friedländer, Platone. Eidos, paideia, dialogos, trad. it. Firenze 1979 (= 1954), p. 208, falou da anamnese como «um caminho semi-mítico para o eidos pré-existente».
8. Aqui é claro o reenvio a Men. 82a segs.
9. Os verbos πείθομαι e πἀιστῶ aparecem quatro vezes nestas sete linhas.
10. Platão realça várias vezes nesta passagem que anamnese e recordar são “padecer”: cf., além de 73b7, 73d8 (πάσχουσι), 74a6 (προσπάσχειν), 74d4 (πάσχομεν) e 74e6 (πεπόνθαμεν).
11. Ἔννοια é precisamente o que se agarrou com o pensamento, algo pensado; poder-se-ia dizer que corresponde ao nosso conceito, diverso da ideia, no sentido em que Platão geralmente usa esse termo, mesmo no nosso diálogo.
12. Poder-se-ia defender que a pergunta diz respeito só ao quinto exemplo: falta alguma coisa à perceção do Símias pintado para ser o Símias real? Mas mesmo neste caso a pergunta não faz sentido: aqui não se pergunta se falta alguma coisa à pintura de Símias para ser semelhante, isto é, parecido com o Símias real recordado, mas se falta alguma coisa à sensação do Símias pintado para ser semelhante ao Símias real recordado. Por outras palavras, como se verá, a pergunta não diz respeito à relação entre uma sensação e uma recordação, mas entre a sensação e a recordação de outra coisa qualquer.
13. A maravilha que sempre despertou a hipótese das ideias: por exemplo, Parm. 129a-130a, e que é o sentimento típico do filósofo, em Theaet. 155d.
14. Quer na pergunta, quer na resposta, se deve manter, na minha opinião, o sentido de «ser» e não de «existir» de εἶναι: o igual «é alguma coisa» (τι): ainda não sabemos o quê; ou melhor, sabemos, com base em todas as dicas dadas, e depois com base no que se dirá explicitamente, que é uma ideia. Mas sou do parecer que é sempre melhor não antecipar o “sentido” de uma expressão na tradução, ou desfazer a sua ambiguidade, deixando-a como é. em G. Casertano, Discorso logico ed esigenza etica in Phaed. 96‑100, in G. Casertano Il nome della cosa. Linguaggio e realtà negli ultimi dialoghi di Platone, Napoli 1996, p. 405 segs., defendi que o sentido da expressão platónica era «existe realmente algo que chamamos de igual», e que portanto não se podia traduzir «o igual é alguma coisa». embora seja provavelmente esse o sentido da expressão platónica, parece-me todavia mais correto deixá-la na sua ambiguidade. Naturalmente a ideia não é uma afirmação linguística, é também algo que Platão declara existir por si mesmo: o que pretendo frisar aqui é o sentido que se obtém desta passagem (como de resto, de outras) sobre as ideias, isto é, que a consciência platónica da diferença entre plano ontológico e noético e plano linguístico está sempre acompanhada pela consciência de que é só no segundo que os primeiros dois se podem expressar, com todos os riscos que isso implica. algo que espero ter demonstrado aqui, além de noutros ensaios.
15. Este μηδέν de 74a12, por sua vez, pode ser entendido ou como «nada»: dizemos que é alguma coisa ou [dizemos que não é] nada? ou, adverbialmente, pode ser entendido como «por nada, de modo nenhum»: dizemos que é alguma coisa ou [dizemos que não é] de modo nenhum? Neste segundo caso, o μηδέν poderia estar ligado ao που de 74a9.
16. Parece-me que isso se diz de forma muito clara em Parm. 132d.
17. Ebert chama a minha atenção, a propósito de 74d-e e de P25 (que, na sua opinião, não exprime uma convicção platóni- ca), para o facto de se dever distinguir explicitamente «between the concession which (if any) are made in asking a question and what is conceded in an answer in these dialectical arguments». Naturalmente concordo com este princípio em geral, mas precisamente porque se trata de uma argumentação dialética, esta passagem me parece importante quanto à finalidade de toda a argumentação, isto é, quanto à tese de que a ideia não deriva da experiência, mas é a condição para poder ser pensada e dita. em geral, penso que é «não muito difícil de indicar, mas dificílima de praticar» (cf. Phil. 16b-c), a distinção, durante o diálogo platónico, entre 1) o que, embora pareça alheio ou acessório, está igualmente finalizado às conclusões explicitadas no final das várias discussões, e 2) o que é possível (e quando é, tendo sempre em conta a ficção dramática de Platão) atribuir como doutrina autêntica a cada personagem de um diálogo.
18. Como se demonstrará nas páginas 96-104 do nosso diálogo.
19. Cf. Dixsaut (1991, p. 348 n. 142); rowe (1993, p. 174-5).
20. Mesmo quando não se dialoga com os outros, o nosso pensar é sempre um diálogo, um διαλέγεσθαι, isto é, o proceder dialeticamente instaurando relações: cf. Theaet. 189e-190a; Soph. 263e; Pol. 277e-278e; Phil. 38c-e.
21. Cf. por exemplo o Político: o mito é uma παιδιά (268d8), de que nos servimos (268d9: προσχρήσασθαι), embora seja preciso usá-lo como um logos e, portanto analisá-lo e refutá-lo: numa palavra, retirar dele algum lucro (cf. 274e2: χρήσιμον δὲ αὐὐτὸν ποιησόμηθα) para a finalidade do discurso demonstrativo.
22. Não podemos deixar de lembrar a belíssima conotação do “saber” humano que se transforma continuamente – dos “saberes” (ἐπιστῆμαι) que vão morrendo e renascendo, que nunca são os mesmos, mas se renovam sempre, graças ao “cuidado” (μελέτη) que devemos ter com eles – no Banquete, 207d-208b.
23. Poderíamos dizer, parafraseando uma famosa distinção do Teeteto, 184c-d, que os sentidos não são aquilo a partir do qual chegamos à ideia, mas a ocasião em que pensamos na ideia.
24. Símias não sabe responder, defende Th. ebert, Sokrates als Pythagoreer und die anamnesis in Platons Phaidon, Mainz-Stuttgart 1994, p. 72 e p. 78, porque ambas as alternativas não são plausíveis. Para ebert, coerentemente com a sua leitura do diálogo, toda a passagem mostra que Platão não nos deu uma prova da anamnese nem da pré-existência das almas, mas quis apenas mostrar que estas teses são o resultado paradoxal de uma discussão dialética, e isso explica também as contradições de Símias (p.79). ebert esclarece-me o “princípio metodológico” que o guia, isto é, «the distinction between what is conceded in a question and what one commits oneself to in an answer».
25. Neste momento Símias avança uma hipótese interessante, que poderia também fazer parte do horizonte da teoria como foi exposta até aqui: «a menos que, Sócrates, não tenhamos adquirido esses saberes no exato momento em que nascemos: há ainda esse lapso de tempo»: isto é, poderíamos ter adquirido a nossa capacidade de construir o conhecimento, os nossos saberes, no exato momento em que nascemos, dotados e estruturados pelo nosso intelecto (φρόνησις). a resposta de Sócrates é despachada, limitando-se a colocar a hipótese em contradição formal com o que já fora concordado: «Mas em que outro tempo os perdemos (76d1: ἀπόλλυμεν)? De facto, não nascemos possuindo-os, como concordámos há pouco (76d2-3: ἄρτι ὡμολογήσαμεν). ou os perdemos precisamente quando os agarramos (76d3-4: ἀπόλλυμεν ἐν ᾧπερ καὶ λαμβάνομεν)?». admitimos que agarrar o saber das ideias é o postulado indispensavel para haver anamnese e construcao do saber (P22-P25); para haver anamnese é indispensável que tenha havido um esquecimento (75d); e dado que admitimos que nos esquecemos assim que nascemos (75e), a hipótese de Símias diz que as agarramos precisamente quando nos esquecemos delas. e de forma muito despachada Símias admite não ter notado que não disse nada (76d5-6: οὐδὲν εἰπών). ebert (1994, p.75), nota que a hipótese de Símias não contradiz a conclusão de Sócrates, mas sim as premissas que ele aceitou em 76c10 e 75c6. Com efeito, também a hipótese de Símias podia concordar com o que já foi admitido: agarramos este saber precisamente quando nascemos humanos, com a nossa disposição natural para conhecer e pensar; o facto é que dessa forma se sai da moldura ética e mitológica de toda a argumentação socrática, que quer fazer admitir a imortalidade da alma: esta não é útil para a demonstração, por isso, é descartada.
26. Também esta frase, segundo ebert (1994, p.81), é uma pergunta, ligada à anterior e à sucessiva: de facto, só pela pré-existência da alma e pela existência das ideias não resulta necessariamente a reminiscência (p. 83).
27. «Parece‑me extraordinário (76e8: ὑπερ φυῶς... δοκεῖ μοι) que haja a mesma necessidade (76e9: αὐτὴ ἀνάγκη): o discurso achou um belo refúgio (76e9: εἰς καλόν γε καταφεύγει) ao estabelecer a existência das nossas almas antes do nosso nascimento analogamente à outra existência de que agora falas. Para mim não há nada de tão evidente (77a2-3: οὐ γὰρ ἔχω ἔγωγε οὐδὲν οὕτω μοι ἐναρές ὄν) como isso: que existem em grau máximo todas as coisas desse género: o belo e o bom e todas as outras coisas de que falavas. e parece-me que foi demonstrado suficientemente (77a5: ἱκανῶς ἀποδέδεικται)». também ebert (1994, p. 85), nota a ênfase desta resposta, realçada pelo δοκεῖ μοι do início e pelo ἔμοιγεδοκεῖ do fim.
28. Em especial a 65d13, 72e2-3, 74c1, 74d6, 75d2, 76b5, 78d5, 78e2, 79b14, 79b16-17, 96a8-9, 98a2, 99d1, 100d6, 101d3-4, 102b2-3, 102d7, 104a4, 104b9.
29. Dizemos “uma” estrutura, porque poderia haver também outras, ou nenhuma: se calhar é o que acontece quando uma impressão sensível não “alcança” a nossa alma, segundo o exemplo do Filebo, 33d, ou o que acontece nos sonhos. Sobre os sonhos em Platão, cf. rotondaro (1998).
30. Cf. Parm. 130c: talvez porque é ainda demasiado jovem, como pontualiza ironicamente Parménides, e ainda não foi apanhado pela filosofia, isto é, pela convicção de ter de examinar qualquer tese, até às suas consequências aporéticas (130e).
31. Cf. Parm. 135b5-c3.
32. Para sermos mais precisos: que nós dizemos que há (74a-b); isto é, que constitui a nossa hipótese fundamental para po- der explicar, pensar, conhecer e dizer as coisas.
33. Recentemente, Scott [1995] pôs a anamnese platónica em relação com a filosofia eleática: a anamnese seria uma versão epistemológica da negação eleática de que algo provém do nada: incapaz de encontrar um conhecimento pré-existente num tempo anterior da nossa vida presente, Platão olha para trás na história da alma (p. 215). algo de parecido foi defendido por r. Burger, The Phaedo: a platonic labyrinth, New Haven and London 1984, p. 69: a negação que a vida venha a ser, strictu sensu, do nada, leva Platão à negação de que o conhecimento venha a ser, strictu sensu, da absoluta ignorância.
34. Recorde-se também o Banquete, 207d-208b.
35. Penso que esta é a substância da mensagem platónica como se deduz da construção da personagem Sócrates: a confiança num saber que é para sempre, e do qual cada um de nós pode participar, enquanto vive como ser humano. É claro que este saber é independente da vida do indivíduo, e não termina com a morte do indivíduo. É «a alma imortal» que detém este saber e nós, humanos, “reapropriamo-nos” dele durante a nossa vida mortal. esta poderá também ser uma “pura teoria”, mas é fundamental para nos tornarmos e sermos melhores.
36. «Com efeito, a investigação em comum feita com um diálogo bem orientado é um fator capital da reminiscência»: L. robin, Platon, Paris 1935 (trad. it. Milano 1971, p. 51); a anamnese é um «processus de découverte mené à l’aide d’une interrogation pertinente»: Y. Lafrance, La théorie platonicienne de la doxa, Montreal-Paris 1981, p. 399.


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