As Origens do Paradigma Desenvolvimentista de Interpretação dos Diálogos de Platão

The Origins of the Developmental Paradigm for the Interpretation of Plato’s Dialogues

Renato Matoso
Pontificia Universidade Catolica do Rio de Janeiro, Brasil

As Origens do Paradigma Desenvolvimentista de Interpretação dos Diálogos de Platão

Revista Archai, núm. 18, pp. 75-111, 2016

Universidade de Brasília

Recepção: 01 Outubro 2015

Aprovação: 01 Novembro 2015

Resumo: O fato de Platão escrever uma obra literária apresenta uma série de desafios para o leitor interessado na compreensão de seu pensamento. O primeiro e mais óbvio desafio está ligado ao fato de Platão não figurar entre os personagens dos diálogos. Caso encontrássemos Platão nas ações ali descritas, estaríamos na condição de, simplesmente, identificar tudo aquilo que um determinado personagem diz como a posição do autor. No entanto, a ausência de Platão nas cenas dramáticas descritas na sua obra nos deixa sem a possibilidade de uma solução direta para este problema interpretativo fundamental: como acessar a posição de Platão acerca das discussões representadas nos diálogos? Como sabemos, ao longo da história, foram criados diferentes métodos de organização e leitura dos diálogos com o objetivo de superar este desafio e permitir ao leitor dos diálogos o acesso ao pensamento de Platão. O presente artigo pretende realizar uma análise crítica do surgimento e estabelecimento do mais recente e ainda mais aceito paradigma de organização e interpretação da obra de Platão. através da análise das teses dos principais comentadores responsáveis pela criação do paradigma atual de leitura dos diálogos, o artigo pretende refletir sobre as qualidades, vícios e defeitos inerentes ao nosso modo de ler Platão.

Palavras-chave: Platão, Diálogos, Cronologia.

Abstract: The fact that Plato adopted a literary form of writing presents a great number of challenges to the reader interested in his philosophy. The greatest of these challenges follows from the fact that Plato himself is not one of his characters. If we could find Plato among the characters of his dialogues, it would be easy for us to identify his positions. However, Plato’s absence of the dramatic scenes he depicted leaves us without an easy solution for this fundamental problem: how to access Plato’s positons and thought about the many themes debated in the dialogues? Throughout history, different methods of reading and organizing Plato’s work were developed in order to deal with this problem and to give to the reader of the dialogues an access to Plato’s thoughts and positions. This paper aims to present an assessment of the development of the latest, and still widely adopted, paradigm of reading Plato’s work. Through the analysis of the major commentators responsible for the establishment of the current paradigm of organization and reading of Plato’s dialogues, the paper aims to reflect on the qualities, vices, and prejudices inherent to our way of reading Plato.

Keywords: Plato, Dialogues, Chronology..

Sabemos que Platão não foi o único a escrever diálogos em que sócrates figura como personagem principal. aristóteles, na sua Poética, refere-se aos “diálogos socráticos” ou “conversas com sócrates” (Λόγοι Σοκρατικοί) como um gênero literário já firmemente estabelecido. (arist. Po. 1447b11). De fato, chegaram até nós diálogos socráticos escritos por outros autores, por exemplo, os diálogos de Xenofonte, que conhecemos na íntegra, além de um grande número de fragmentos de obras de outros autores que se dedicaram a este gênero de composição1.

Com relação à sua forma, os diálogos socráticos são classificados como composições literárias dramáticas, pois descrevem um determinado conjunto de ações, um δρᾶμα. Este caráter literário da obra platônica oferece inúmeros desafios ao leitor interessado na compreensão do pensamento ali exposto. O primeiro e mais óbvio desafio está ligado ao fato de Platão não figurar entre os personagens dos diálogos. Caso encontrássemos Platão nas ações ali descritas, estaríamos na condição de, simplesmente, identificar tudo aquilo que um determinado personagem diz como a posição do autor. No entanto, a ausência de Platão das cenas dramáticas descritas na sua obra nos deixa sem a possibilidade de uma solução direta para este problema interpretativo fundamental: como acessar a posição de Platão acerca das discussões representadas nos diálogos?

a maneira mais comum de solucionar esta dificuldade é identificar o ponto de vista de Platão com o ponto de vista expresso pelo personagem sócrates. Dada a recorrência deste personagem na obra e sua importância nas discussões ali descritas, esta identificação parece bastante natural. Contudo, esta solução se torna cada vez mais desafiadora, na medida em que diferentes posições vão sendo atribuídas a este personagem. Nos diálogos Górgias e Filébo, por exemplo, sócrates ataca a tese hedonista que identifica o bem viver com a busca pelo parazer. No Protágoras, entretanto, a tese hedonista é defendida pelo mesmo sócrates!2. Como podemos entender tamanha flutuação de posições? Para mantermos a identificação entre a posição de Platão (autor) e sócrates (personagem) somos obrigados a pensar que, nestes casos, Platão mudou de ideia, ou devemos explicar porque sócrates defende, em pelo menos um destes diálogos, uma teoria considerada falsa por Platão.

Um intérprete da obra platônica precisa, portanto, adotar um determinado esquema de compreensão dos diálogos, que forneça sentido ao conjunto da obra e, desta maneira, estabeleça linhas gerais de leitura. afinal, somente de posse deste arcabouço interpretativo, torna-se possível realizar uma leitura dos diálogos platônicos que se proponha a extrair desta grande obra literária um conjunto coerente de concepções filosóficas.

Na história do estudo da obra e do pensamento de Platão, diversos modelos de leitura foram propostos. Uma posição tentadora é admitir que cada diálogo deve ser lido como uma obra autônoma, acabada em si mesma e sem conexão com os outros diálogos. a mais clara apresentação desta tese pode ser encontrada nas obras de Grote, para quem “cada diálogo possui seu próprio ponto de vista, desenvolvido naquela ocasião particular” (Grote, 1875, p.178). segundo Grote, os diálogos são dramas que não pretendem fornecer uma exposição sistemática da doutrina platônica ou sequer apresentar posições mutuamente consistentes. sendo assim, do mesmo modo que não buscamos unificar o pensamento de shakespear, a partir das diversas obras dramáticas compostas por este autor, tampouco deveríamos almejar fazê-lo com relação a Platão3.

Contudo, os comentadores que não compartilham dos pressupostos de Grote e pretendem relacionar o conteúdo dos diversos diálogos precisam se ater às diferenças existentes entre estas obras e levantar hipóteses de leitura que ofereçam sentido a suas incongruências. De maneira geral, duas posições podem ser encontradas entre aqueles que pretendem organizar os diversos diálogos de modo a identificar, no conjunto da obra platônica, a apresentação de um sistema filosófico coerente.

Um grupo de comentadores interpreta as diferentes posições expressas nos diálogos como fases distintas da apresentação de uma só doutrina filosófica, preconcebida desde o início e subjacente a toda obra. Para estes intérpretes, as diferentes teses encontradas nos diálogos seriam apenas o resultado de uma exposição progressiva da doutrina platônica e não representariam uma mudança fundamental no posicionamento de Platão. Estes comentadores são chamados unitaristas e um claro exemplo deste tipo de interpretação pode ser encontrado na seguinte afirmação de Jaeger:

“Quando se pôs a escrever o primeiro de seus diálogos ‘socráticos’, Platão já havia fixado seu objetivo e as linhas gerais de todo o projeto já eram visíveis para ele. a intelecção da República pode ser traçada com clareza nos diálogos iniciais.” (JAEGER, 1944, p.96)

A outra proposta de leitura consiste em abraçar a ideia de que os diálogos apresentam doutrinas distintas e, até mesmo, contraditórias. O trabalho do intérprete consistiria, então, em organizar os diálogos, de modo a identificar o posicionamento final de Platão acerca destes temas e os momentos em que uma tese é abandonada e substituída por outra. Podemos chamar este grupo de comentadores de desenvolvimentistas, na medida em que adotam a hipótese de que Platão modifica suas concepções no decorrer dos diálogos, superando teses e desenvolvendo seu ponto de vista acerca das questões ali tratadas4.

Este segundo tipo de interpretação tornou-se preponderante no fim do século XIX e praticamente uma unanimidade durante o século XX. Formou-se, neste período, um modelo de leitura de acordo com o qual os diálogos estão agrupados por data de composição. De posse desta organização cronológica da obra é possível, segundo os adeptos desta linha interpretativa, reconhecermos fases distintas do pensamento de Platão. Em especial, é possível identificar o surgimento e desenvolvimento da Teoria das Ideias.

Ficou estabelecido, assim, um paradigma de leitura, ainda hoje adotado pela maior parte dos comentadores, de acordo com o qual podemos distinguir três grupos de diálogos, correspondentes a três fases distintas do amadurecimento filosófico de Platão.

No primeiro grupo de diálogos, escrito durante a sua juventude, Platão estaria “imaginativamente recordando, em forma e conteúdo, as conversas de seu mestre (sócrates), contudo sem adicionar a estes diálogos nenhuma doutrina distinta, propriamente sua.” (GUTHRIE, 1975, p.67). Os diálogos pertencentes a este grupo se caracterizariam pela investigação de temas éticos e não conteriam qualquer teoria metafísica acerca dos constituintes últimos da realidade.

Após a composição destes diálogos, ditos “socráticos”, Platão teria se distanciado gradativamente da influência de sócrates e desenvolvido seu próprio pensamento. O ápice deste processo aconteceria com o surgimento da hipótese das Formas e o desenvolvimento de uma Teoria das Ideias de caráter fortemente metafísico, apresentada nos diálogos Banquete, Fédon e República. Estas obras formariam, portanto, a base para um segundo grupo de diálogos, nos quais Platão, agora um pensador maduro e independente, apresentaria suas próprias descobertas e não apenas reproduziria o pensamento de seu mestre.

Os intérpretes desenvolvimentistas identificam, ainda, um terceiro grupo de diálogos, nos quais a Teoria das Ideias seria vigorosamente criticada e modificada. a apresentação das dificuldades decorrentes da postulação das Formas aconteceria sobretudo no Parmênides, diálogo no qual, em um momento de honesta perplexidade, Platão estaria reconhecendo os problemas inerentes à postulação das Formas inteligíveis. após a autocrítica do Parmênides, Platão, já nos últimos anos de sua vida, teria expandido seu campo de interesse e proposto uma revisão da sua teoria, apresentando estes resultados nos diálogos Sofista, Político, Filébo, Timeu, Crítias e Leis.

Ora, como toda hipótese científica, o paradigma de leitura segundo o qual podemos distinguir três fases da obra de Platão, correspondentes a três fases de seu pensamento, possui uma história. E o surgimento e desenvolvimento deste paradigma interpretativo está ligado às diversas opiniões filosóficas e hipóteses teóricas daquelas pessoas que o propuseram. sendo assim, uma análise histórica do seu surgimento e a compreensão dos motivos que levaram estas pessoas a propor tal modelo de leitura dos diálogos representa a maneira correta de realizarmos uma investigação acerca da validade deste modelo de interpretação da filosofia platônica. No presente artigo, analisarei o surgimento deste modelo de interpretação que tem como característica principal o reconhecimento de três grupos de diálogos que, ordenados cronologicamente, corresponderiam a três fases distintas do pensamento de Platão.

SCHLEIERMACHER: A NOÇÃO DE EVOLUÇÃO EXPOSITIVA

A ideia de que a filosofia platônica poderia ser acessada por meio de uma organização dos diálogos que revelasse a evolução no tratamento das questões surge apenas no século XIX, através de schleiermacher. Em sua “Introdução aos Diálogos de Platão” (1836), Schleiermacher apresenta uma interpretação para obra platônica segundo a qual cada diálogo avança sobre pontos estabelecidos por diálogos compostos anteriormente. Fortemente inspirado pelo hegelianismo da época, schleiermacher irá supor a existência de uma sequência natural e uma ordenação necessária entre os diálogos. Esta organização dos diálogos seria capaz de revelar que as diversas questões apresentadas por Platão obedecem uma ordem lógica de desenvolvimento e exposição, avançando, a cada obra, em direção ao completo desvelamento de um sistema preconcebido e presente, de forma latente, desde o inicio.

Criticando as análises anteriores que se baseavam na exegese de cada diálogo em separado, Schleiermacher compara o corpus platônico com o corpo humano que, apesar de poder ter cada uma de suas partes estudada separadamente, só pode ser propriamente compreendido quando considerado em sua totalidade. Portanto, caberia ao intérprete, após analisar cada obra separadamente, restaurar a conexão existente entre elas, de tal modo que “cada diálogo seja tomado, não somente como completo em si mesmo, mas também em suas conexões com o resto dos diálogos” (SCHLEIERMACHER, 1836, p. 14). afinal, argumenta schleiermacher, dada a abrangência e completude do sistema filosófico platônico, deve haver uma sequência natural e uma relação necessária entre os diálogos. Pois, Platão “não poderia ir além (na exposição de sua doutrina) em um diálogo, a não ser que supusesse o efeito produzido por algum diálogo anterior, de tal modo que o mesmo assunto, que é considerado completo ao fim de um diálogo, deve ser considerado como princípio e fundação de outro.” (SCHLEIER-MACHER, 1836, p.18)

Este processo culminaria na trilogia República, Timeu e Crítias, considerados por schleiermacher como os últimos diálogos a serem escritos e, portanto, aqueles em que a doutrina platônica estaria apresentada em sua plenitude. além desta trilogia final, Schleiermacher reconhece mais dois grupos de diálogos: o grupo de diálogos escritos, em sua maioria, antes da morte de sócrates, composto por Fedro, Lísis, Protágoras, Láques, Cármides, Êutifron e Parmênides; e um segundo grupo, intermediário, formado por Teeteto, Sofista, Político, Fédon, Filébo5.

A crença de schleiermacher na unidade de conteúdo da obra platônica é tão grande que ele considera ser possível tomar esta unidade doutrinária como princípio de demarcação entre obras legítimas e espúrias. assim, em conjunto com a análise da linguagem empregada por Platão, schleiermacher pretende que usemos o conteúdo dos diálogos tidos como originalmente platônicos, sobretudo aqueles da trilogia final (República, Timeu e Crítias), como critério para a legitimação das outras obras. Ora, é claro que o uso de tal método de demarcação implicaria em uma petição de princípio, na medida em que o conteúdo dos diálogos tidos como legítimos forneceria o próprio critério para sua legitimação. além disso, tal critério privaria completamente Platão da possibilidade de ter revisto seu pensamento ou mudado de opinião.

A despeito de poucos comentadores atualmente compartilharem deste forte unitarismo presente na interpretação oferecida por schleiermacher, sem dúvida sua “Introdução aos Diálogos de Platão” serviu como base para a formação do relativo consenso observável entre os platonistas do século XX. sobretudo, porque schleiermacher abriu caminho para uma nova maneira de compreender a obra platônica, através da observação das limitações inerentes às propostas de organização do conjunto de diálogos herdadas da antiguidade. schleiermacher critica, por exemplo, a organização das obras de Platão em trilogias, tal como apresentada por aristófanes de Bizâncio (200 a.C.). Também critica as organização temática das diversas listas propostas pelos platonistas da antiguidade e coletadas por Diogenes Laércio (III, 49-62). Outra linha interpretativa rechaçada por schleiermacher é a de que a verdadeira filosofia platônica não está expressa diretamente nos diálogos, mas em uma doutrina esotérica de ensinamento exclusivamente oral, acessível apenas por meio do que está indicado nas entrelinhas dos diálogos (Schleiermacher, 1836, p.7-13). ao fim de sua Introdução, schleiermacher está pronto para oferecer uma nova interpretação para os diálogos platônicos, uma interpretação baseada, exclusivamente, no texto dos diálogos e nos princípios metodológicos desenvolvidos por ele, sem levar em conta, em absoluto, a tradição de comentários neo-platônica e medieval.

Esta ruptura com a tradição de comentários herdada da antiguidade nos permite identificar em Schleiermacher o início da tradição moderna de comentário da obra de Platão. O aspecto mais próprio de sua interpretação é a ideia de uma forte linearidade e coesão interna dos diálogos, de tal maneira que cada obra funda-se nos resultados dos diálogos anteriores, sem nunca haver um momento de crise ou ruptura radical. Outra característica única da interpretação de Schleiermacher é seu internalismo, isto é: a ideia de que o pensamento de Platão deve ser buscado nas relações presentes no interior da sua obra, sem qualquer referência ao contexto histórico, como os eventos políticos da época, ou mesmo aos eventos da vida de Platão.

HERMANN: A NOÇÃO DE HISTORICIDADE NA INTERPRETAÇÃO DA OBRA PLATÔNICA

O próximo autor a contribuir intensamente para a formação do paradigma interpretativo atualmente vigente é Karl Friedrich Hermann. Em “Geschichte und

System der Platonischen Philosophie” (1839), Hermann critica o internalismo da interpretação de Schleiermacher e apresenta uma ordenação para os diálogos fortemente baseada no pouco que sabemos acerca da vida de Platão. Tal como schleiermacher, Hermann divide a obra de Platão em três grupos, mas estabelece uma relação direta entre episódios da vida de Platão e o surgimento de fases distintas de seu pensamento. Os primeiros diálogos, por exemplo, teriam sido escritos ainda durante a vida de sócrates e teriam o objetivo de representar o verdadeiro estilo argumentativo socrático. a primeira grande virada no pensamento de Platão teria ocorrido com a condenação de sócrates. abalado com a morte de seu mestre, Platão teria escrito uma série de diálogos ligados, direta ou indiretamente, aos eventos que cercam o julgamento e a condenação de sócrates. Estes diálogos seriam: Apologia, Crito, Górgias, Êutifron e Mênon. Como algumas fontes antigas citam o fato de que Platão, na companhia de outros discípulos de sócrates, teria procurado refúgio em Mégara, Hermann reconhece, ainda no interior deste grupo intermediário, uma série de diálogos nos quais ficaria evidente o contato de Platão com teorias megárias e eleatas. Este grupo de diálogos representaria o primeiro afastamento de Platão do pensamento socrático e seria composto por: Teeteto, Crátilo, Sofista, Politico e Parmênides. Contudo, estas influências não foram, segundo Hermann, as definitivas para o surgimento do sistema filosófico presente na trilogia final República‑Timeu‑Crítias. E, após seu exílio em Mégara, Platão teria viajado por lugares como Cirene, Egito e, finalmente, quando Platão ja possuiria por volta de 40 anos, sicília e Itália, onde teria entrado em contato com a escola pitagórica, que representaria sua mais definitiva influência.

Com a introdução da ideia de que podemos tratar os desenvolvimentos do pensamento de Platão em paralelo aos eventos de sua vida, Hermann modifica radicalmente o modo de abordagem da obra platônica, que deixa de ser objeto de estudo exclusivo de filósofos e passa a estar mais diretamente ligada aos diversos campos de pesquisa da antiguidade clássica que se desenvolviam naquele momento. De acordo com Taylor (2002, p.78), esta nova abordagem da obra de Platão iniciada por Hermann irá, aos poucos, se firmar como paradigmática entre os helenistas alemães do século XIX e resultará na formação de um aparente consenso acerca dos seguintes pontos:

a identificação de um grupo de diálogos, compostos durante a vida de sócrates, que teriam como objetivo a representação fidedigna do método de argumentação e dos ensinamentos socráticos.

A existência de um grupo de diálogos relacionados à morte de Sócrates.

O surgimento, subsequente à morte de Sócrates, de um grupo de diálogos nos quais Platão desenvolve seu próprio pensamento, afastando-se dos ensinamentos e do método socrático.

A existência de um último grupo de diálogos, de carácter mais sistemático, nos quais é exposto um conjunto de teses que formam um sistema filosófico mais completo e compreensivo.

Existe, ainda nesta época, a crença bastante difundia de que República, Crítias, Timeu e Leis são os diálogos que apresentam o sistema filosófico platônico na sua forma definitiva. Também era comum a ideia de que a composição do Fedro estaria associada à fundação da academia, servindo como uma espécie de programa de estudos ou enunciação inicial da doutrina presente nos últimos diálogos.

O modo de interpretação de Hermann e seus contemporâneos apresenta uma série de características que se mantêm em vigor até hoje e formam parte do paradigma atual de interpretação dos diálogos de Platão. Por exemplo, Hermann divide os diálogos de Platão em três fases cronologicamente distintas, que podemos nomear de “primeira fase”, “fase média” e “última fase”, tal como ainda fazemos. Hermann, além disso, acredita que os diálogos da primeira fase apresentam com fidelidade o carácter, o método e o pensamento do sócrates histórico. Como sabemos, tal forma de interpretação da relação entre sócrates e Platão é um dos traços fundamentais do paradigma de interpretação atual, apesar de sofrer ataques cada vez mais constantes. Por fim, Hermann inaugura a ideia de que, para cada um dos três grupos de diálogos, organizados de maneira cronológica, corresponde uma fase distinta do pensamento de Platão, o que se mostra o caráter mais distintivo do modo de interpretação atualmente vigente.

O MÉTODO ESTILOMÉTRICO

Apesar de um relativo consenso acerca dos parâmetros gerais de interpretação dos diálogos platônicos ter sido formado na virada do século XIX para o século XX, salta à vista do leitor contemporâneo a discrepância com que os comentadores deste período organizavam os diálogos. afinal, não parece haver sombra alguma de acordo no que diz respeito à ordem de composição das obras.

Ritter (1910, p.230-231) apresenta um quadro comparativo das diversas ordenações propostas por seus antecessores mais prestigiados, de Tennemann (1792) a Windelband (1905). Como uma rápida consulta à tabela de Ritter revela, a posição atribuída a cada um dos diálogos é extremamente flutuante. a única exceção, como era de se esperar, cabe a Leis, cuja posição é estabelecida por evidência externa. O diálogo Fédon, por exemplo, recebe as seguintes posições: 9, 17, 7, 24, 11, 21, 22, 16 e 21. Para o Parmênides temos: 16, 6, 15, 14, 12, 1, 22, 21, 19, 20. E o mesmo grau de discrepância mantém-se por toda série de diálogos.

A razão para tamanha divergência está no fato de que tais autores baseavam sua interpretação, sobretudo, no conteúdo doutrinal dos diálogos. afinal, não estavam de posse de nenhum método objetivo para determinação da posição de cada diálogo no interior da série completa. Contavam apenas com aquilo que o conteúdo do texto lhes oferecia, como as referências textuais de um diálogo a outro ou as menções a fatos históricos, além dos escassos e inconfiáveis testemunhos vindos da antiguidade.

Estas indicações, contudo, mesmo quando tomadas em conjunto, não parecem produzir um critério de ordenação objetivo para os diálogos, pois dependem de uma conjunção de fatores, muitas vezes, questionáveis. Tome, por exemplo, o critério de referências textuais entre os diálogos. O estabelecimento da ordem de composição dos diálogos a partir das remissão de uma obra a outra pressupõe que um diálogo que mencione textualmente outro da série tenha sido escrito, necessariamente, após o diálogo mencionado. apenas para apresentar alguns casos: o Mênon cita o encontro de sócrates com Górgias (Men.71c;91c), podendo, portanto, ser considerado posterior ao Górgias. O Teeteto (183d‑184a) e o Sofista (217c) se referem ao encontro entre Parmênides, Zenão e sócrates, narrado no diálogo Parmênides. seguindo o mesmo raciocínio, Teeteto e Sofista só poderiam ter sido escritos após a composição do Parmênides.

No entanto, não parece ser impossível que o autor de uma obra literária faça alusão ao conteúdo dramático de obras ainda não publicadas. Nos primeiros filmes da série Star Wars, por exemplo, George Lucas menciona fatos do passado dos personagens principais, Darth Vader e luke skywalker, que só serão detalhadamente apresentados em filmes lançados mais de dez anos depois. O fato de Platão mencionar um suposto encontro entre sócrates e Parmênides não pode ser tomado como evidência segura da efetiva realização deste encontro, tampouco pode ser tomado como evidência definitiva de que Platão já teria escrito o diálogo em que este encontro é narrado. É plenamente possível que Platão, tal como George lucas, tenha mencionado em algum de seus diálogos um fato dramático sobre o qual só posteriormente escreveria.

Da mesma maneira, alusões a eventos históricos podem apenas fornecer um termo post quem para uma cronologia de composição dos diálogos. a menção da vitória de agatão no concurso de tragédias de 416 a.C., presente no diálogo Banquete, por exemplo, permite afirmar que o diálogo foi escrito após este concurso, mas não permite dizer quanto tempo depois.

Sendo assim, os comentadores da virado do século XIX para o século XX baseavam suas hipóteses cronológicas em critérios, sobretudo, exegéticos e subjetivos, formulando ordenações para o conjunto de diálogos em função daquilo que cada um entendia ser a verdadeira filosofia platônica. Esta falta de um critério objetivo de organização dos diálogos, capaz de oferecer parâmetros de ordenação cronológica completamente independentes das suposições acerca do conteúdo doutrinal da filosofia platônica, será sanada, em parte, pelo surgimento do método estilométrico.

Na acepção mais estrita do termo, a estilometria consiste em uma contagem de ocorrências de um determinado grupo de palavras. a partir dos resultados obtidos por meio desta contagem, é possível formular hipóteses acerca da data de composição relativa de cada diálogo. Ou seja, a contagem de palavras nos permite identificar, dentre o conjunto de diálogos, aqueles que possuem um estilo semelhante entre si, representado pela repetida ocorrência de certos termos ou expressões.

Apesar do método estilométrico só se tornar universalmente conhecido por meio de W. Dittenberger e sua publicação sobre o tema no periódico Hermes (1881), sabemos que seu verdadeiro precursor foi L. Campbell. Em 1867, Campbell publica o livro “The Sophistes and Politicus of Plato”, no qual se vê obrigado a defender a legitimidade de ambos estas obras, tendo em vista que grande parte das publicações da época girava em torno da distinção entre diálogos legítimos e espúrios. Para defender a legitimidade destas duas obras, Campbell realiza um levantamento estilístico destes textos e compara seus resultados com o estilo de outros diálogos platônicos de legitimidade não duvidosa. Como resultado de suas pesquisas, Campbell obtém a seguinte lista de características relativas ao Sofista e Político:

Nestes diálogos, sócrates deixa de ser o interlocutor prin- cipal e, neste respeito, o Sofista e o Político se assemelham aos diálogos Parmênides, Timeu e Crítias.

O Sofista e o Político formam a parte central de um trilogia incompleta, no que novamente se assemelham ao Timeu e Crítias.

Existe um certo tom didático no Sofista e no Político, assim como em Filébo e Leis.

A ordem natural das palavras é mais frequentemente invertida nestes diálogos e as sentenças são mais elaboradas.

É recorrente o uso de uma cadência rítmica monótona.

No Sofista e no Político, há maior uso de palavras incomuns, poéticas e técnicas, quando comparados com os outros diálogos, exceto Fedro, Timeu, República e Leis. (CAMPBELL, 1867, p.XX-XXXIV)

Esta lista de traços estilísticos, contudo, não é suficiente para considerarmos Campbell um estilometrista, no sentido estrito de “contador de palavras”. afinal, apesar de fazerem referência ao estilo dos diálogos, tais características, com exceção do ítem número seis, não podem ter sido obtidas pela mera quantificação de termos e palavras usadas por Platão. No entanto, Campbell também realizou uma contagem de palavras, mesmo que de forma menos sistemática que seus sucessores e sem a adoção de uma metodologia tão rigorosa. Os seus resultados mais relevantes resultam da contagem do número de palavras que cada um dos diálogos tem em comum, exclusivamente, com o grupo: Timeu, Critias e Leis. seguindo o método de comparação entre o vocabulário empregado em cada um dos diálogos e o vocabulário empregado no grupo Timeu‑Critias‑Leis, Campbell chega à seguinte divisão do conjunto da obra de Platão:

Grupo 1: Apologia, Banquete, Cármides, Crito, Eutidemo, Êutífron, Górgias, Híppias Maior, Hí‑ ppias Menor, Íon, Láques, Lísis, Menexeno, Mê‑ non, Fédon, Protágoras.

Grupo 2: Fedro, República, Parmênides, Teeteto.

Grupo 3: Sofista, Político, Filébo, Timeu, Crítias, Leis.

A escolha de Campbell pelo grupo Timeu‑Crítias‑Leis como base de comparação deve-se ao fato de existirem evidências exteriores aos diálogos platônicos que atestam tanto a autênticidade destas obras quanto sua data de composição tardia. Nós sabemos, por exemplo, via testemunho de aristóteles, que o diálogo Leis foi composto depois da República (Pol. 2.6 1264b26), além de ter sido deixado incompleto por Platão, segundo Diogenes laertius (3.37). O Timeu, por sua vez, faz referência à República, fato que, segundo Campbell, também atestaria sua composição tardia. a este grupo, Campbell somou Crítias por sua semelhança estilística e por ser a segunda parte da trilogia incompleta iniciada no Timeu. Com base nestas evidências Campbell estabelece estes diálogos, em conjunto com aqueles que mais se assemelham estilisticamente a eles, como o grupo de diálogos de composição mais tardia. O segundo grupo se define entorno da República e consiste em diálo- gos que apresentam algumas das características que definem o terceiro grupo, porém de maneira menos marcante. O primeiro grupo é formado por todos os diálogos restantes.

Como observa Brandwood (1990, p.5), um dos méritos de Campbell foi não se deixar levar cegamente pela mera contagem de palavras, sobretudo porque seus resultados baseiam-se nos números do Lexicon Platonicum de Ast (1835), que se provou incompleto. Desta maneira, a sensibilidade estilística de Campbell fez com que ele complementasse suas pesquisas com as várias características de estilo descritas na lista acima, fato que lhe levou a atingir mais resultados tidos hoje como certos do que seus números, a princípio, indicariam.

Alguns anos depois, F. Blass, em sua obra Die Attische Beredsamkeit (1874), chegou aos mesmos resultados de Campbell com relação ao terceiro grupo de diálogos. Por meio de uma metodologia completamente diferente, Blass observou que Platão, em algums diálogos específicos, adota a técnica de composição que consiste em evitar sistematicamente a ocorrência de hiatos6. Em Leis, por exemplo, há muito poucos hiatos. apenas 100 hiatos podem ser encontrados nas 34 páginas do livro I desta obra. Em seguida, Filébo possui uma média de 2 por página. Timeu com 87 páginas, possui cerca de 50 ocorrências, Sofista (82 páginas) 20 casos, Politico (83 páginas) 11 casos e, em todo o Crítias, apenas 2 casos de hiatos podem ser encontrados. apesar dos resultados de Blass não terem causado grande impacto na comunidade acadêmica, é digno de nota que, mesmo adotando critérios completamente distintos, Blass e Campbell definem igualmente o grupo dos últimos diálogos.

O reconhecimento da estilometria como técnica segura para o estabelecimento da ordem de composição dos diálogos platônicos só se deu, de fato, com Dittenberger, em seu artigo “Sprachliche Kriterien für die Chronologie des Platonischen Dialoge” (1881). sem conhecimento algum dos trabalhos de Blass e Campbell, Dittenberger irá tomar como critério o uso de determinadas partículas gregas, sobretudo μήν e seus compostos καὶ μήν, ἀλλά μήν, τί μήν, γέ μήν e ἀλλά … μήν. Dittenberger percebeu que, enquanto os dois primeiros compostos de partículas (καὶ μήν, ἀλλά μήν) ocorrem em todos os diálogos, com exceção do menor dos diálogos: Críto; os três compostos restantes (τί μήν, γέ μήν e ἀλλά ... μήν) não ocorrem, em absoluto, nos onze diálogos identificados por Dittenberger como pertecentes à primeira fase de Platão. Estes três compostos, contudo, passam a aparecer, cada vez com mais frequência, nos diálogos identificados por Blass e Campbell como os últimos a serem compostos.

Particularmente interessante é o fato de que, à parte Lísis e Banquete, os três compostos de partículas que definem os últimos diálogos, ou bem não aparecem em absoluto, ou bem aparecem em conjunto, em cada um dos diálogos. Tal uniformidade, segundo Dittenberger, é suficiente para estabelecermos que o fato por ele observado não é obra do acaso.

Portanto, adotando o critério de Dittenberger, podemos distinguir claramente dois grupos de diálogos estilisticamente inconfundíveis: aqueles nos quais os compostos τί μήν, γέ μήν e ἀλλά ... μήν ocorrem e aqueles nos quais tais grupos de partículas não ocorrem. assim como Campbell e Blass, Dittenberger faz uso dos testemunhos de Aristóteles e Diógenes Laertius para considerar o grupo no qual Leis está incluído como representando os últimos diálogos compostos por Platão.

Dittenberger foi além, ao demonstrar que a introdução da partícula μήν na prosa ática se deu no tempo de Platão. segundo as pesquisas de Dittenberger, a partícula μήν não pode ser encontrada na prosa ática mais antiga, como, por exemplo, na prosa dos oligarcas. Em antífon, ocorre apenas 5 vezes, em Tucídides 9 vezes e em aristófanes seu uso continua muito restrito. Coerentemente, no primeiro grupo de diálogos de Platão, o uso de μήν é extremamente limitado. No segundo grupo de diálogos, do qual participa a República, a partícula passa a ser mais usada, mas ainda está longe de possuir um papel preponderante. No último grupo de diálogos, a partícula μήν pode ser encontrada em abundância e em todas as cinco formas listadas por Dittenberger. Já o uso de μήν, na fórmula de resposta “τί μήν;” (Por que não?), é uma inovação introduzida por Platão ao dialeto ático. Dittenberger chega a especular sobre a origem de tal uso idiomático da partícula μήν e conclui que a viagem de Platão pela sicília é a orígem mais provável desta transposição de um uso idiomático dórico para o ático.

Portanto, os resultados obtidos por Campbell, Blass e Dittenberger apontam para a demarcação segura de um grupo de diálogos com estilo semelhante ao estilo de Leis e que representaria o último grupo de diálogos compostos por Platão. É importante notar, contudo, que estes primeiros estilometristas não pretendiam organizar as diversas obras no interior de cada um dos grupos de diálogos. Isto é, apesar de colocarem Sofista e Filébo no grupo dos últimos diálogos, não se arvoravam a determinar qual dos dois foi escrito primeiro. Com a popularização do método estilométrico, alguns autores, como Lutoslawski (1897), pretenderam estabelecer a ordem de composição dos diálogos no interior de cada um dos grupos. No entanto, seus resultados não se mostraram convincentes e a metodologia empregada por estes autores foi intensamente criticada. afinal, a suposição de que cada diálogo pode ter sua posição precisamente determinada por meio da análise estilística depende da hipótese de que Platão mudaria de estilo cada vez que iniciasse a composição de um novo diálogo, o que é, claramente, absurdo.

Com a consolidação do método estilométrico, vemos surgir entre os comentadores da virada do século XX um relativo acordo sobre o tema da cronologia de composição dos diálogos, sobretudo no que toca à posição dos últimos diálogos. Tal consenso está ilustrado em outra tabela de Ritter (1910, p.254), que se inicia com os resultados do próprio Ritter em 1888 e passa pelas obras de lutoslawski, Gomperz, Natorp, Raeder e termina em sua segunda obra de 1909. Estes autores, todos eles partidários do método estilométrico, testemunham uma unanimidade perfeita no que concerne ao lugar dos cinco últimos diálogos: Sofista, Político, Filébo, Timeu‑Crítias e Leis. O Parmênides aparece sempre em vigésimo lugar, salvo para Gomperz que o substitui pelo Teeteto. Os diversos livros da República também aparecem na mesma posição para todos (13-17), com exceção de Natorp (15-19).

Tal consenso vai desaparecendo, gradualmente, conforme vamos nos movendo em direção aos primeiro diálogos. O Fédon é colocado três vezes na posição 12, uma vez na posição 10, uma vez na 11 e uma vez na posição 13. Os postos destinados ao Banquete variam entre o oitavo e o décimo quarto. O Crátilo é situado entre a quinta e a décima oitava posição. E as discrepâncias só aumentam, conforme nos aproximamos do grupo que hoje é definido como representando os primeiros diálogos escritos por Platão. O Crito, por exemplo, não possui um só resultado concordante em relação à sua posição e recebe as colocações 7, 3, 12, 2, 4 e 6.

Os trabalhos listados por Ritter demonstram, portanto, uma grande diferença entre os resultados obtidos para os últimos diálogos e os resultados obtidos para os outros dois grupos. sobretudo, a lista de Ritter evidencia uma grande discordância com relação aos diálogos que hoje consideramos anteriores à República. Tal diferença é facilmente compreendida se tivermos em mente que os critérios adotados pelo método estilométrico são o resultado de observações acerca do grupo formado, exclusivamente, pelos cinco últimos diálogos. Mesmo os resultados obtidos para diálogos como Teeteto, Parmênides, Fédro e República não passam de uma extrapolação da análise do estilo dos últimos diálogos7.

Há, deste modo, uma clara distinção qualitativa entre a demarcação do grupo dos últimos diálogos, caracterizada pela convergência de resultados obtidos por métodos distintos, e a extrapolação destes resultados para a construção de um grupo intermediário. Como observa Charles Kahn: “uma vez que os dois primeiros grupo são definidos apenas pela presença ou ausência de traços característicos do último grupo de diálogos, seria mais preciso dizer que o estilo de escrita de Platão mudou apenas uma vez, em direção ao estilo presente nas últimas obras.” (KAHN, 2002, p.94) De fato, o grupo dos primeiros diálogos é definido, desde Campbell e o início da estilometria, como o grupo de diálogos aos quais os critérios de afinidade estilométrica não se aplicam. Ou seja, o primeiro grupo é formado pelos diálogos que ficaram de fora da contagem, por não apresentarem de maneira relevante as características que unem os outros dois grupos. Como consequência, a relação estilométrica entre os dois primeiros grupos de diálogos nunca ficou estabelecida de maneira precisa, sendo esta a principal limitação do método estilométrico.

A APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS RESULTADOS ESTILOMÉTRICOS

Sob a influência de autores alemães como Schleiermacher e Hermann e sob a influência dos resultados da estilometria, irá se consolidar, a partir da segunda metade do século XX, um relativo consenso acerca dos parâmetros gerais de leitura e interpretação da obra de Platão. Este consenso parece perdurar até os dias de hoje, apesar de sofrer críticas cada vez mais constantes. Como vimos, tal paradigma de interpretação considera a carreira filosófica de Platão dividida em três fases claramente distintas. a cada uma destas fases do pensamento de Platão é atribuído um grupo de diálogos correspondente. O primeiro grupo de diálogos representaria a fase da juventude de Platão, na qual os diálogos apresentariam fielmente as conversas de sócrates na ágora ou, ao menos, o estilo de argumentação socrático e suas ideias acerca de temas como ética, política e dialética, porém sem conter qualquer doutrina de caráter metafísico. após este momento de profunda influência de seu mestre, Platão teria adquirido maturidade filosófica e composto os diálogos pertencentes à fase média. Estes diálogos representariam o primeiro momento de expressão da filosofia propriamente platônica e estariam finalmente impregnados com as concepções metafísicas que tornaram famoso o platonismo. Por fim, após um período de crise de seu pensamento, Platão teria escrito os últimos diálogos, resultantes de uma reformulação de suas ideias anteriores.

Ora, à primeira vista, tal divisão do pensamento de Platão em três fases parece ser corroborada pelos resultados obtidos a partir do método estilométrico, que também distingue três grupos de diálogos, apesar do grau de certeza destas demarcações variar, como já mencionado. Contudo, se olharmos atentamente para as listas de ordenação dos diálogos oferecidas pelos principais comentadores do século XX, veremos que a apropriação que estes autores fizeram dos resultados obtidos pela estilometria é, no mínimo, enganosa.

Guthrie (1975, p.50), em uma seção entitulada “Testes Estilométricos e linguísticos” reproduz uma organização para o conjuto de diálogos proposta por Cornford (1927, p.311) e a descreve como “representativa dos resultados usualmente aceitos”8:

Juventude:Apologia, Crito, Láques, Lísis, Cármides, Êutifron, Híppias Maior e Menor, Protágoras, Górgias, Íon

Maturidade:Mênon, Fédon, República, Banquete, Fédro, Eutidemo, Menexeno, Crátilo

Velhice: Parmênides, Teeteto, Sofista, Político, Timeu, Crítias, Filébo, Leis

Apesar desta lista ser apresentada por Guthrie e Cornford como “representativa dos resultados estilométricos”, uma comparação entre esta ordenação e os resultados obtido por Campbell, Ritter e outros estilometristas revela a existência de notáveis diferenças. De fato, todos os diálogos pertencentes ao último grupo estilométrico (Sofista, Político, Filébo, Timeu‑Crítias e Leis) encontram-se na “fase da velhice” de Platão, conforme descrita por Guthrie. Do mesmo modo, todos os diálogos pertencentes à “fase da juventude” encontram-se no primeiro grupo estilométrico de diálogos, segundo as listas de Ritter e Campbell. Contudo, o grupo de “diálogos da maturidade”, criado entorno da República, foi extremamente modificado. O Teeteto e o Parmênides foram deslocados por Guthrie para o último grupo de diálogos, enquanto várias outras obras do primeiro grupo estilométrico foram incluídas na fase da maturidade. Como observa Kahn, o grupo de “diálogos da maturidade”, tal como estabelecido por Guthrie e Cornford é “um monstro em termos estilísticos, com a cabeça formada a partir do primeiro grupo [estilométrico] de diálogos (Mênon, Fédon, Banquete, Eutidemo, Menexeno, Crátilo) e a cauda formada por diálogos do segundo grupo (República e Fédro)” (KAHN, 2002, p.97).

Fica claro, portanto, que apesar do grupo descrito por Guthrie ilustrar aquilo que o paradigma de interpretação atualmente vigente entende pela expressão “diálogos médios”, tal grupo não representa, de maneira precisa, os resultados obtidos por meio de critérios estilísticos. Pelo contrário, é facilmente constatável que a formação deste grupo de diálogos reflete, na verdade, uma determinada hipótese exegética acerca do desenvolvimento filosófico de Platão. No grupo de diálogos da juventude estão incluídos somente os diálogos que, segundo estes comentadores, representam a fase “socrática” do pensamento de Platão, isto é: aqueles diálogos em que não podemos encontrar a Teoria das Ideias. Por isso, ficam de fora obras como Fédon e Banquete que, apesar de estarem estilisticamente agrupadas entre os primeiros diálogos, apresentam investigações de caráter claramente metafísico.

A fase da maturidade descrita por Guthrie, por sua vez, contém apenas os diálogos nos quais a formulação clássica da Teoria das Ideias está apresentada, incluindo o Mênon como diálogo introdutório desta teoria. Por fim, o Parmênides inaugura a última fase por apresentar uma crítica à Teoria das Ideias, seguido pelo Teeteto, que aparentemente ignora esta teoria. Desta maneira, uma organização do conjunto de diálogos que reflete, na verdade, uma certa interpretação do desenvolvimento filosófico de Platão, incluindo uma hipótese bibliográfica acerca da influência de sócrates na sua carreira filosófica, é apresentada indevidamente por Guthrie e Cornford como representativa dos resultados obtidos pelo método estilométrico.

A organização dos diálogos proposta por autores como Cornford, Guthrie e Vlastos é, portanto, o resultado da sobreposição de dois critérios distintos. Por um lado, esta organização reflete os resultados da estilometria, ao reconhecer o grupo estilisticamente semelhante a Leis como representante dos últimos diálogos escritos por Platão. Por outro lado, a divisão entre diálogos da juventude (socráticos) e diálogos da maturidade, tal como apresentada por estes autores, somente pode ser obtida por meio de critérios interpretativos. Ora, é claro que tais critérios possuem natureza claramente subjetiva, pois refletem uma determinada hipótese exegética acerca do que seria a filosofia originalmente platônica, em oposição à filosofia socrática.

Um intérprete que reconheça uma diferença marcante entre a doutrina expressa nos diálogos chamados “socráticos” ou “da juventude” (Apologia, Crito, Láques, Lísis, Cármides, Êutifron, Híppias Maior e Menor, Potágoras, Górgias, Íon) e a doutrina expressa nos diálogos em que a Teoria das Ideias é mais claramente apresentada deveria, honestamente, admitir que os resultados da estilometria não suportam tal divisão. De fato, estes resultados são irrelevantes para a postulação da distinção doutrinal entre diálogos (socráticos) da juventude e diálogos (platônicos) da maturidade. afinal, nada obriga que uma mudança de estilo represente, também, uma mudança de concepção filosófica ou uma mudança de “visão de mundo”. O fato da estilometria demarcar com precisão o grupo de diálogos da última fase, por exemplo, serve muito mais como um ponto de partida objetivo para o posterior reconhecimento de uma série de características, de cunho textual e doutrinário, compartilhadas por estas obras, do que como uma prova irrefutável do surgimento de uma nova fase do pensamento de Platão9.

Da mesma maneira, a existência de uma fase socrática e uma fase da maturidade no pensamento de Pla- tão não pode ser justificada pela mera constatação de diferenças de estilo, mesmo se adotarmos como segura a divisão, em termos puramente estilísticos, entre o primeiro e o segundo grupos de diálogos. Fica claro, portanto, que a distinção pressuposta pelo paradigma de interpretação desenvolvimentista atualmente vigente, entre um grupo de diálogos “da juventude”, livres de especulações metafísicas e nos quais o pensa- mento de sócrates está fielmente representado, e um grupo de diálogos “da maturidade”, nos quais Platão desenvolve suas próprias teorias, não possui apoio algum nas descobertas realizadas pela estilometria. Tal distinção deve-se, sobretudo, a hipóteses interpretativas e de exegese da obra platônica cujas origens remontam, em última instância, aos helenistas alemães do século XIX.

CONCLUSÃO

Nossa análise nos levou ao reconhecimento da fragilidade de alguns dos pressupostos do paradigma de interpretação desenvolvimentista atualmente vigente. a divisão usualmente aceita da obra de Platão em três fases cronologicamente distintas, por mais que tenha algum apoio nos estudos estilométricos, como vimos, não reflete com fidelidade os resultados destes estu- dos. De fato, podemos afirmar que, sobretudo a divisão entre um grupo de diálogos socráticos, isentos de especulações metafísicas, e um grupo diálogos da maturidade, destinados à exposição da filosofia originalmente platônica, não possui apoio algum nas análises formais de estilo e funda-se em argumentos exegéticos de caráter subjetivo que, em última análise, derivam da interpretação proposta por Hermann10.

Na realidade, a própria noção de que podemos traçar, com segurança, o desenvolvimento do pensamento de Platão parece estar fundada em preceitos duvidosos. Um historiador da filosofia pode identificar, com total segurança, mudanças e desenvolvimentos no pensamento de um autor quando: 1) este autor, explicitamente, se retrata ou repudia uma opinião expressa em uma obra anterior; ou quando 2) estamos de posse de duas obras, com datas de composição distintas, em que o autor, falando em primeira pessoa, defende posições incompatíveis e manifesta, implícita ou explicitamente, sua intenção de substituir a posição expressa na primeira obra por aquela da segunda. Este é o caso de Wittgenstein, que, nas Investigações Filosóficas, apresenta uma concepção da natureza da linguagem claramente incompatível com aquela expressa no Tratactus Philosophicus e dá nítidos sinais de que devemos favorecer a segunda teoria em detrimento da primeira.

No caso de Platão, não estamos de posse de uma obra escrita em primeira pessoa ou sequer de uma datação precisa para os diálogos. Portanto, a afirmação de que podemos identificar, com segurança, fases de seu desenvolvimento deve ser tratada com bastante ceticismo. afinal, o requisito mínimo que se impõe ao intérprete que deseja apontar desenvolvimentos no pensamento de Platão é identificar a posição de Platão nos diálogos. No entanto, a posição de Platão acerca dos argumentos e teorias expostas nos diálogos não nos é dada prima facie. assim, mesmo que possamos identificar uma mudança de posição do personagem sócrates ou de qualquer outro personagem, somos obrigados a manter aberta a possibilidade de que Platão, como autor, nunca se identificou com a opinião superada, mas a colocou na boca de um de seus personagens por motivos de composição dramática.

Portanto, a hipótese desenvolvimentista, em sua forma mais radical, parece estar sujeita a uma crítica de natureza metodológica insuperável. afinal, o caráter literário da obra platônica não nos permite acesso direto ao pensamento de Platão para podermos afirmar, com segurança, quando Platão abre mão de uma teoria ou posição filosófica em nome de outra.

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Notas

1. Estes fragmentos estão reunidos na monumental obra de Giannantoni “Socratis et Socraticorum Reliquiae” (Giannantoni, 1990).
2. Sem mencionar o fato de que sócrates não ocupa o “papel principal” de condutor da argumentação no Sofista, no Político e no Timeu, é criticado na primeira parte do Parmênides, prati- camente desaparece na segunda parte deste diálogo e, por fim, nem ao menos está presente no diálogo Leis.
3. Nos últimos anos, a posição expressa por Grote tem adquirido novos defensores. Dentre eles, podemos destacar Christopher Gill (2002).
4. A nomenclatura “desenvolvimentistas”, proposta, até onde sei, por Kahn (1996), não me agrada. Pelo simples fato de que os adeptos da outra posição descrita, chamados “unitaristas”, também admitem um desenvolvimento no tratamento das questões. Pois, apesar dos unitaristas não identificarem rupturas ou modificações fundamentais na visão de mundo expressa nos diálogos, estes comentadores certamente identificam um desenvolvimento lógico-expositivo no interior da obra platônica, em função do grau de complexidade no tratamento das questões. Em nome da uniformidade terminológica, contudo, seguirei usando a nomenclatura padrão.
5. Ao lado destes, schleiermacher reconhece a série Górgias, Mênon e Eutidemo, que considera ligada à sequência Teeteto‑Político.
6. O hiato consiste na sucessão imediata de duas vogais em palavras separadas. Para evitar este tipo de sucessão, que constantemente surge na formação e inflexão das palavras, diversos recursos podem ser empregados: a crase, a elisão e a aphaeresis, além da escolha vocabular. (cf. smyth, 1920, p.18)
7. A formação de um grupo intermediário é o resultado da constatação da ocorrência de algumas das características que aparecem, em conjunto, no último grupo de diálogos. Segundo Brandwood (1990, p.251), Ritter, incorporando os resultados de seus predecessores, foi quem realmente operou esta extrapolação.
8. Vlastos apresenta uma organização muito semelhante para os diálogos, porém mantém o Parmênides e o Teeteto no grupo de diálogos médios, além de separar o Mênon como diálogo de transição entre a primeira e segunda fase (Vlastos, 1994, p. 135).
9. Vide, por exemplo, a lista de características próprias aos diálogos da terceira fase apontada por Campbell que, sem dúvida, extrapolam o âmbito meramente estilístico.
10. Isto não equivale a dizer que a divisão da obra de Platão em três grupos de diálogos estilisticamente distintos não possui fundamento. De fato, este parece ser o resultado dos estudos estilométricos. Porém, no que toca exclusivamente ao estilo dos diálogos, o Fédon e o Banquete pertencem à mesma fase da Apologia e do Íon.
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