As chamadas doutrinas não‑escritas de Platão: algumas anotações sobre a historiografia do problema desde as origens até nossos dias

THE SO-CALLED “UNWRITTEN DOCTRINES” OF PLATO: SOME NOTES ON THE HISTORIOGRAPHICAL PROBLEM FROM THE BEGINNING UNTIL TODAY

Rodolfo Lopes
Universidade de Brasília, Brasil
Gabriele Cornelli
Universidade de Brasília, Brasil

As chamadas doutrinas não‑escritas de Platão: algumas anotações sobre a historiografia do problema desde as origens até nossos dias

Revista Archai, núm. 18, pp. 259-281, 2016

Universidade de Brasília

Recepção: 01 Março 2016

Aprovação: 01 Junho 2016

Resumo: O presente artigo se propõe reconstruir a história do problema da transmissão oral do pensamento de Platão. Paralelamente à generosa tradição textual do Autor, há fortes indícios pelos quais teria havido uma linha de transmissão oral, cuja reconstituição filológica é procurada já desde o século XViii. o artigo tem como objetivo analisar as passagens e testemunhos mais antigos sobre a questão, assim como a posição de comentadores modernos, desenhando os dois grandes modelos historiográficos em relação às doutrinas não-escritas: de um lado os autores que consideram tanto filologicamente válido atribuir as posições teóricas expressas pelas doutrinas não-escritas a Platão, como também chegam a sugerir que essas constituiriam o autêntico núcleo teórico de sua filosofia, chegando assim necessariamente a relegar os Diálogos para um plano secundário. Do outro lado, outros autores que rejeitam por completo essa pretensão por não reconhecerem validade filológica na tradição textual que referimos. Uma análise resumida das razões da discordância entre as duas interpretações é o objetivo final do presente artigo, que é pensado como a primeira parte, preparatória, de um projeto mais amplo, a ser explorado num segundo artigo, a ser publicado em breve. esta segunda parte será dedicada à exploração de modelos interpretativos da questão que, partindo de posições intermédias entre as duas interpretações, possa dar conta de uma compreensão mais compreensiva e holística das assim chamadas doutrinas não-escritas de Platão.

Palavras-chave: Platão, doutrinas não‑escritas.

Abstract: This article intends to reconstruct the historiographical problem of Plato’s oral teachings: the so-called “unwritten doctrines”. in parallel with the Dialogues, there is strong textual evidence of an oral transmission that many philologists try to track since the end of 18th century. The purpose of this article is, thus, to analyze not only the central passages and testimonia but also the main conjectures held by modern scholars on this subject, in order to sketch out the two resulting historiographical poles. on the one hand, some scholarship argues for the philological validity of Plato’s oral transmission and suggests that the theoretical positions attributed to him by those texts correspond to the authentic platonism (casting the Dialogues to a secondary plan). on the other hand, there are some modern authors that fully reject such claim, holding that there is no philological validity whatsoever in the textual tradition. This article is conceived as the first step of a wider project on Plato’s unwritten doctrines. its main purpose is, thus, to provide a crosschecked reading of those two contrasting historiographical models, from which we may (in a second article) propose a wider position about the problem of Plato’s unwritten doctrines.

Keywords: Plato, unwritten doctrines.

NOTA INTRODUTÓRIA

É facto mais que conhecido que a filosofia de Platão nos chegou registada em cerca de três dezenas de diálogos e treze cartas, das quais apenas duas (Vii e Viii) têm condições de ser consideradas autênticas (Brisson, 2008, p. XiV-XVi). Mas, paralela a esta tradição textual, segue uma linha de transmissão oral, cuja reconstituição filológica os comentadores se esforçam por conseguir já desde o século XViii. A partir de certas passagens de Aristóteles (e também de outros autores mais tardios), que atribuem a Platão um conjunto de posições teóricas, alguns comentadores modernos defendem a existência de um corpo de doutrinas que Platão nunca registara nos diálogos, mas apenas transmitira oralmente aos seus discípulos.

Esta quaestio, que ainda hoje divide a comunidade de platonistas, ficou conhecida pelo rótulo ‘doutrinas não-escritas’ (ἄγραφα δόγματα), cuja formulação original se encontra na Física (iV 2, 209b14-15) de Aristóteles.

FONTES TEXTUAIS

As principais fontes textuais utilizadas para postular as chamadas doutrinas não-escritas de Platão são a passagem supracitada da Física de Aristóteles e uma secção dos Elementos de Harmonia (39.10) de Aristóxeno de Tarento, que referem uma ‘lição’ de Platão Sobre o Bem. As restantes são de autores posteriores, a maioria dos quais comentadores de Aristóteles.

Além das fontes externas, os comentadores modernos convocam também para este debate duas famosas passagens dos Diálogos que versam sobre a problemática relação entre escrita e oralidade no âmbito do filosofar platónico. são as seguintes: Fedro, 274b-278e e Carta VII, 340-345.

TESTIMONIA

Aristóteles e a tradição aristotélica

Aquela passagem da Física constitui o principal testemunho sobre as possíveis doutrinas que Platão expusera apenas oralmente e das quais, por isso mesmo, não existem quaisquer correspondentes textuais nos Diálogos. É o principal não apenas por cunhar a expressão que ficou canónica ao longo de toda a tradição, mas também pelo facto de ancorar todos os testemunhos posteriores. Muito sucintamente, em iV 2, 209b14-15, na famosa interpretação sobre a identificação entre matéria (ὕλη) e espaço (χώρα) no Timeu, Aristóteles acrescenta que Platão teria dito algo diferente ‘nas chamadas doutrinas não-escritas’ (ἐν τοῖς λεγομένοις ἀγράφοις δόγμασιν).

Deixando de lado os problemas que levanta esta interpretação de Aristóteles (vide Ferrari 2007: 3-6), vale a pena notar que o uso de λεγομένοις por Aristóteles permite supor que tais doutrinas seriam objeto de alguma discussão entre os discípulos mais próximos de Platão: ‘nas chamadasdoutrinas não-escritas’ (209b14-15: ἐν τοῖς λεγομένοις ἀγράφοις δόγμασιν). esta ideia é corroborada por vários comentadores que, embora maioritariamente muito posteriores (a única excepção será Teofrasto), são unânimes em atribuir a Platão as posições teóricas que tradicionalmente surgem identificadas com as chamadas doutrinas não-escritas. Mas voltaremos a este ponto mais adiante.

Em todo o caso, interessa-nos sobretudo sublinhar, para o problema aqui em causa, que Aristóteles não esclarece qual seria exatamente a posição defendida oralmente por Platão nem tampouco em que circunstâncias a formulou. se, por um lado, esta passagem refere explicitamente a existência de ‘doutrinas não-escritas’, por outro lado, ela não esclarece qual seria o seu conteúdo.

Perante a esterilidade teórica desta formulação da Física, os comentadores adoptaram uma alternativa metodológica, que consiste em preencher o conteúdo das doutrinas não-escritas com algumas interpretações aristotélicas de Platão que não estão documentadas nos Diálogos. o pressuposto é, pois, o seguinte: quando Aristóteles atribui a Platão uma determinada posição teórica que não está registada na sua obra escrita, isso significa que ela foi defendida apenas oralmente e, por isso, pode ser considerada uma doutrina não-escrita. Como veremos posteriormente, alguns comentadores mais ‘esotéricos’ chegam a sugerir que Platão deixou intencionalmente essas posições fora dos Diálogos.

O locus classicus desse conteúdo teórico que Platão supostamente deixou fora dos Diálogos é o famoso Livro I da Metafísica, em que Aristóteles analisa os seus antecessores. o facto é por demais conhecido, mas não será despropositado relembrar que este texto está longe de constituir uma ‘História da Filosofia’, especialmente porque Aristóteles não é um historiador, mas sim um filósofo que dialoga com a tradição; e, como acontece com todos os filósofos, esse diálogo está subordinado ao seu projeto filosófico e, por conseguinte, ao seu universo conceptual. neste caso em particular, o platonismo segundo Aristóteles resulta especialmente problemático quando submetido ao modelo das quatro causas, sobretudo pela conclusão de que Platão postulou apenas duas: a formal, que corresponde às ideias; e a material, que corresponde aos objetos sensíveis (Met. 988a8-17). Vale notar, a título de curiosidade, que esta interpretação causou estranheza ao próprio Alexandre de Afrodísias (talvez o mais notável de entre os comentadores de Aristóteles), que, ao comentar esta passagem (In Metaph. 59.28-32 Hayduck), refere o Timeu (28c) para descortinar em Platão as outras duas causas: a eficiente (59.28: ποιητικὸν αἴτιον) que associa ao demiurgo; e a final (59.30: τὸ οὗ ἕνεκεν καὶ τέλος) decorrente da criação do universo orientada para o Bem1.

Muito resumidamente, as doutrinas atribuídas a Platão no Livro i da Metafísica (que, convém lembrar, Aristóteles nunca identifica com o conteúdo das chamadas doutrinas não-escritas), especificamente no capítulo 6 (987a29-988a17), são as seguintes: (987b14-16) os entes matemáticos (τὰ μαθηματικά) ocupam um nível ontológico intermédio (μεταξύ) entre as ideias (τὰ εἴδη) e os sensíveis (τὰ αἰσθητά); (987b20-22) o Grande (τὸ μέγα) e o Pequeno (τὸ μικρόν) correspondem à matéria (ὕλη) a partir da qual as ideias são números por participação no Uno (κατὰ μέθεξιν τοῦ ἑνός), que é a substância (οὐσία); (987b24-25) tal como os Pitagóricos (segundo o parecer de Aristóteles), Platão considerava que os números eram as causas do ser (τοὺς ἀριθμοὺς αἰτίους εἶναι); (988a10-14) assim, as ideias são a causa do ser e o Uno é a causa do ser nas ideias, ao passo que a Díade (Grande e Pequeno) constitui o substrato material (ἡ ὕλη ἡ ὑποκειμένη) pelo qual as ideias se designam nos sensíveis (τὰ εἴδη μὲν ἐπὶ τῶν αἰσθητῶν τὸ δ’ ἓν ἐν τοῖς εἴδεσι λέγεται); finalmente (988a14-15), Grande e Pequeno são, respectivamente, a causa do bem e do mal (τὴν τοῦ εὖ καὶ τοῦ κακῶς αἰτίαν).

Entre os comentadores de Aristóteles não existia o pressuposto metodológico de que ambas as passagens (ou seja, da que na Física refere a existência de doutrinas não-escritas em Platão e da que na Metafísicaatribui posições teóricas a Platão que não se encontram documentadas nos Diálogos) deviam ser correlacionadas. no entanto, isso não significa que os conteúdos do capítulo 6 da Metafísica não fossem associados a Platão. Ainda que o nexo entre os dois textos não tenha sido explicitado, alguns comentadores chegaram mesmo a sugerir que tais posições seriam partilhadas inclusivamente entre os protagonistas da Academia Antiga, conferindo assim particular relevância àquela formulação que referimos da Física (‘nas chamadas doutrinas não-escritas’: 209b14-15: ἐν τοῖς λεγομένοις ἀγράφοις δόγμασιν). Ainda muito próximo daquela geração, Teofrasto (Metaph. 6a15-6b17 Usener) refere uma divergência de interpretação na quaestio Uno-Díade entre Xenócrates e espeusipo, o que permite deduzir que esse seria um assunto fulcral nas discussões entre os primeiros discípulos de Platão. Autores posteriores parecem confirmar essa mesma ideia: simplício (in Ph. 9.247.30-sqq. Diels) atribui a Hermodoro um livro dedicado a Platão sobre o Grande o Pequeno e refere também (in Ph. 10.1165.21-39 Diels) que Xenócrates atribuía a Platão uma teoria dos elementos (referida na última linha do capítulo 6 da Metafísica de Aristóteles); sexto empírico, numa longa discussão sobre o estatuto ontológico da matemática (M. 10.248-283 Mutschmann-Mau), retrata um Platão pitagórico que coloca os números aquém das ideias (258-259).

No entanto, a tendência geral entre os comentadores antigos era vincular aquelas informações da Metafísica de Aristóteles a uma intervenção pública de Platão que ficou conhecida por Sobre o Bem. Alexandre de Afrodísias chega a sugerir, no seu comentário àquela passagem da Metafísica .in Metaph. 56.35 Hayduck: ὡς ἐν τοῖς Περὶ τἀγαθοῦ Ἀριστοτέλης λέγει), e também noutros trechos da mesma obra (vide 59.33; 85.17; 250.20; 262.19, 23; 615.14; 643.3; 695.26.), que Aristóteles tinha por base documental um tratado (ou conjunto de anotações?) que ele próprio escrevera sobre essa lição.

A ‘lição’ Sobre o Bem

Usamos o termo genérico ‘lição’, porque os autores que dela dão conta oscilam consideravelmente quanto à sua caracterização, o que, por conseguinte, nos deixa sérias dúvidas quanto à sua natureza e pragmática. A este propósito, citamos apenas o caso de Simplício2, assaz paradigmático da hesitação terminológica que define o Sobre o Bem. Ao longo do seu Comentário à Física, o comentador caracteriza essa lição como ‘discursos sobre o Bem’ (503.13 Diels: ἐν τοῖς λόγοις Περὶ τἀγαθοῦ), mas também como ‘seminários não escritos’ (542.10 Diels: ἐν ταῖς ἀγράφοις συνουσίαις) e, mais adiante, como ‘seminários não-escritos sobre o Bem’ (545.23-24 Diels: ἐν μὲν ταῖς ἀγράφοις ταῖς Περὶ τἀγαθοῦ συνουσίαις).

A avaliar por uma outra passagem do Comentário à Física de simplício, parece lícito supor que a natureza dessa intervenção oral de Platão depende em grande medida do modo como ela foi recebida por quem a presenciou. Referindo-se quer aos conteúdos da mesma passagem da Metafísica, quer ao referido parecer de Alexandre (sobre as anotações de Aristóteles), simplício acrescenta que assistiram também outros discípulos, como espeusipo e Xenócrates, tendo todos eles registado e conservado a sua própria opinião (151.10-11 Diels: συνέγραψαν καὶ διεσώσαντο τὴν δόξαν αὐτοῦ) sobre o que dissera Platão. Parece, pois, justificável supor que o registo de cada um dos discípulos divergisse ligeiramente conforme as suas próprias convicções e orientações e, por conseguinte, que cada uma dessas versões tenha determinado a oscilação terminológica para designar o Sobre o Bem.

Analogamente, a mais antiga referência a tal lição, nos Elementa Harmonica de Aristóxeno de Tarento, considera esta intervenção uma “conferência sobre o Bem” (39.10: ἀκρόασιν περὶ τἀγαθοῦ). o autor diz tê-la ouvido do próprio Aristóteles, que tinha o costume de a contar (39.8-9: καθάπερ Ἀριστοτέλης ἀεὶ διηγεῖτο). Ao que parece, foi mal recebida pelos ouvintes pelo facto de ter versado sobre as ciências matemáticas e concluído com a proposição “o Bem é o Uno” (40.2: ἀγαθόν ἐστιν ἕν), em vez de ter abordado o que comummente se entendia por “Bem”, como por exemplo a riqueza (39.11-12: τῶν νομιζομένων τούτων ἀνθρωπίνων ἀγαθῶν οἷον πλοῦτον). Convém sublinhar que o propósito de Aristóxeno não é abordar a questão das doutrinas não-escritas, nem tampouco discutir as posições filosóficas de Platão, mas apenas usar este exemplo para referir a necessidade de um escritor/orador preparar antecipadamente o seu público sobre os conteúdos e alcance da sua exposição – ao contrário do que fizera Platão3.

FONTES INTERNAS (AS CHAMADAS AUTOTESTIMONIANZE)

Além dos testimonia externos, são também convocadas para esta discussão duas passagens (já clássicas) de Platão sobre a natureza (e sobretudo limitações) da escrita. são as seguintes: Fedro, 274b-278e e Carta VII, 340-345. Ambas são sobejamente conhecidas, pelo que nos limitaremos a resumi-las ao essencial.

No final do Fedro (276a), onde está em causa a condenação da escrita logográfica representada pelo discurso de Lísias, sócrates refere um ‘outro discurso, irmão legítimo daquele’ (ἀδελφὸν γνήσιον), o qual, por ser ‘melhor e mais poderoso’ (ἀμείνων καὶ δυνατώτερος), ‘se escreve na alma daquele que aprende’ (ἐν τῇ τοῦ μανθάνοντος ψυχῇ), ‘é capaz de se defender a si próprio, sabe falar e manter silêncio perante quem é necessário fazê-lo.’ (ἀμῦναι ἑαυτῷ, ἐπιστήμων δὲ λέγειν τε καὶ σιγᾶν πρὸς οὓς δεῖ). A metáfora das duas formas de discursividade irmãs permite inferir com segurança que o tipo de escrita próprio dos logógrafos é inferior a um outro, o qual se define e (distingue do irmão mais fraco) pelos seguintes critérios: dimensão pedagógica (‘se escreve na alma daquele que aprende’), abertura hermenêutica (‘capaz de se defender a si próprio’) e versatilidade pragmática (‘sabe falar e manter silêncio perante quem é necessário fazê-lo’). o aspeto desta passagem que mais releva para a questão das doutrinas não-escritas é saber se este irmão mais forte corresponde ou não aos Diálogos. É exatamente neste ponto que divergem as duas posições historiográficas.

Quanto à Carta VII, admitindo que, sendo autêntica ou não, o seu conteúdo é genericamente compatível com os Diálogos, a passagem em causa censura (344d-e) Dionísio de siracusa qualquer pessoa ‘por ter escrito algo sobre os primeiros e supremos elementos da natureza’ (ἔγραψέν τι τῶν περὶ φύσεως ἄκρων καὶ πρώτων). no entanto, na mesma frase imediatamente seguinte, o sujeito da carta especifica que o erro foi ter abordado esses assuntos de modo ‘desarmonioso e impróprio’ (εἰς ἀναρμοστίαν καὶ ἀπρέπειαν), deixando, assim, em aberto a possibilidade de fazê-lo de modo ‘harmonioso e próprio’. novamente se coloca um dilema hermenêutico relativo ao posicionamento historiográfico em relação às doutrinas não-escritas: será que (1) o modo harmonioso e próprio (em que Dionísio não soube materializar a sua abordagem aos primeiros e supremos princípios da natureza) corresponde à modalidade discursiva mais poderosa de que fala o Fedro (e, por conseguinte, aos próprios Diálogos) ou será que (2) toda e qualquer forma de escrita será necessariamente desarmoniosa e imprópria?

Além destas duas passagens centrais, os comentadores modernos mais empenhados em reconstituir um suposto ensinamento oral de Platão convocam também para a discussão uma série de passagens dos próprios Diálogos que parecem supor a existência de doutrinas não-escritas. são elas de dois tipos: (1) algumas abordam problemas teóricos de um modo compatível com a referida doutrina do Uno e dos números (por exemplo o discurso de Aristófanes no Banquete sobre o Amor como uma certa nostalgia do Uno); (2) outras, se lidas à luz do pressuposto esotérico, permitem supor que certos problemas não puderam ser abordados nos Diálogos enquanto documentos (por exemplo, o Bem em si mesmo, em República 506e, apenas aproximável pela metáfora do sol)4.

HISTORIOGRAFIA DAS DOUTRINAS NÃO‑ESCRITAS

Desde os primeiros trabalhos modernos sobre o texto platónico até à atualidade, estabeleceram-se dois grandes modelos historiográficos em relação às doutrinas não-escritas. Alguns autores não só consideram filologicamente válido atribuir aquelas posições teóricas a Platão, como também chegam a sugerir que esse seria o autêntico núcleo teórico da sua filosofia (especialmente da sua ontologia), relegando os Diálogos para um plano secundário. em sentido contrário, outros rejeitam por completo essa pretensão por não reconhecerem validade filológica na tradição textual que referimos.

Além destes, foram surgindo também algumas posições consideradas intermédias (vide Richard, 2008, p. 50-53). Convém notar, todavia, que nenhuma delas pode constituir uma ‘escola hermenêutica’ stricto sensu, visto que cada autor argumenta de um modo independente, de tal forma que as várias posições e linhas de argumentação proliferam de um modo assaz disperso e desarticulado.

PRIMEIRAS TENTATIVAS DE UMA RECONSTITUIÇÃO DAS DOUTRINAS NÃO‑ESCRITAS

A questão das doutrinas não-escritas integrou o edifício de intuições que definiu os inícios da filologia clássica (na transição entre os séculos XViii e XiX), as quais, por isso mesmo, exigiam mais algumas gerações para se consolidarem como tese. Assim, as propostas de Tennemann (1792) e Trendelenburg (1826), por exemplo, alertaram para alguns testimonia com indícios de uma parte (ou versão?) da filosofia platónica não corroborada por nenhuma passagem dos Diálogos (nomeadamente em Aristóteles). Estas intuições, ainda que inovadoras, só viriam a receber um tratamento mais exaustivo e sistemático no famoso La Théorie platonicienne des Idées et des Nombres d’après Aristote de Léon Robin (1908). o método passou por analisar as referidas passagens da Metafísica de Aristóteles, sem contudo as equacionar com os diálogos. A principal conclusão é que a aproximação pela via aristotélica nos dá a conhecer um “Platão neoplatónico” (Robin, 1908, p. 600). num texto complementar (Robin, 1935), o autor expõe as suas conclusões já em função do cotejo das passagens em causa com os escritos de Platão. A principal tese é que Platão desenvolvera uma outra versão da sua ontologia a partir do Parménides, cujas linhas gerais se encontram no testemunho aristotélico. A esta ‘nova ontologia’ subjaz, pois, o modelo de leitura evolucionista, no âmbito do qual Robin propõe que as doutrinas expostas oralmente correspondem à última fase do pensamento de Platão.

Numa perspectiva um pouco diferente surgiu a versão platónica da famosa tese de Jaeger sobre a distinção entre escritos esotéricos e exotéricos no corpusAristotelicum. o autor chama a atenção para a necessidade de considerar outras fontes que não os Diálogos para aceder a certos aspectos do pensamento de Platão, nomeadamente no que diz respeito às ideias e aos números (Jaeger, 1912, p. 140-141). Sensivelmente perto desta leitura seguiram, por exemplo, Burnet (1914, p. 312-313) e Taylor (1926, p. 503-504). Tomando como certa a historicidade de tais suposições, defenderam que, se os conteúdos das doutrinas não-escritas não estavam contemplados nos diálogos, era necessário ter em conta o testemunho de Aristóteles.

CRÍTICAS CONTRA A POSSIBILIDADE DE UMA RECONSTITUIÇÃO

As primeiras críticas à relevância do testemunho aristotélico para a leitura de Platão surgiram, ainda como esboço inicial, na tão fundacional quanto breve obra de Paul shorey sobre a unidade do pensamento de Platão (Shorey, 1903, p. 82-85). Tais objeções serão retomadas e admiravelmente fundamentadas nos iconoclásticos textos de Harold Cherniss. este autor expõe inicialmente as linhas gerais da sua tese em três conferências proferidas em Berkeley em 1942 (posteriormente publicadas sem alterações: Cherniss, 1945), e também, de modo mais detalhado, no clássico Aristotle’s Criticism of Plato and the Academy (Cherniss, 1944). o autor defende que é totalmente impossível atestar com um mínimo de validade filológica qualquer outra fonte do pensamento de Platão que não os Diálogos. Logo, o testemunho de Aristóteles sobre Platão é manifestamente parcial e condicionado às suas inclinações filosóficas pessoais (tal como acontecera em relação aos chamados pré-socráticos no Livro I da Metafísica). Mais tarde, noutro texto, adiantará ainda que o testemunho aristotélico não pode ter valor documental, porquanto condicionado ideologicamente: Aristóteles é um filósofo e não um doxógrafo (Cherniss, 1966, p. 59-60).

Por outro lado, Cherniss inclui na sua argumentação as passagens platónicas do Fedro (274b-278e) e da Carta VII (340-345), defendendo que, naquele, os Diálogos estão excluídos daquela crítica à escrita e que, no caso da Carta, as dúvidas de autenticidade lhe retiram validade documental para subsidiar as doutrinas não-escritas (esp. Cherniss, 1944).

As radicais teses de Cherniss imediatamente se tornaram leitura obrigatória para os autores que reconheciam fragilidades na valorização das evidências escritas do ensinamento oral de Platão (e.g. Vlastos, 1963; Dönt, 1967; Isnardi Parente, 1984), mas, ao mesmo tempo, reavivaram o debate entre defensores e críticos das doutrinas não-escritas.

A CHAMADA ESCOLA DE TUBINGA‑MILÃO

A primeira autoridade a reagir às provocantes teses de Cherniss foi David Ross, que, num estudo sobre a chamada ‘Teoria das ideias’, tenta lançar as bases de uma doutrina esotérica (na senda de Jaeger, portanto). A partir de uma leitura comparada entre algumas secções dos Diálogos (nomeadamente, as passagens do Fedro e da Carta VII sobre a condenação da escrita) e aqueles textos de Aristóteles, reforça a ideia de uma ‘nova ontologia’ platónica que não tinha sido incorporada nos Diálogos (Ross, 1951, p. 142-153, 206-224). será a partir desta proposta que se estruturarão as pesquisas desenvolvidas no âmbito da chamada escola de Tubinga (convencionalmente fundada em 1959), mais tarde convertida em escola de Tubinga-Milão.

Este movimento hermenêutico teve o seu momentofundacional com a publicação (em 1959) dos resultadosde duas teses de doutorado supervisionadas pelofamoso homerista Wolfgang Schadewaldt: Protreptikund Paränese bei Platon de Konrad Gaiser e Aretebei Platon und Aristoteles de Hans Krämer. O principalpropósito dos dois ‘dioscuros de Tubinga’, pararecuperar a feliz expressão de Franco Ferrari (2012, p. 363), era resolver as aporias filológicas levantadaspor Cherniss contra a possibilidade de reconstituirum suposto ensinamento oral de Platão. Os dois trabalhosdenotam uma clara articulação metodológica:Krämer dedica‑se a demonstrar a validade filológicadas evidências textuais que sugerem a existência dedoutrinas não escritas, enquanto que Gaiser tenta reconstituiros conteúdos dessas doutrinas. A premissade trabalho continua, pois, a ser o mesmo desdeLéon Robin: (1) pressupondo a validade filológica dapassagem da Física de Aristóteles e dos testimonia doSobre o Bem acerca da existência de um ensinamentooral, (2) considera‑se que as posições teóricas atribuídasa Platão (sobretudo por Aristóteles) não documentadasnos Diálogos correspondem ao conteúdodesse ensinamento.

Depois de Gaiser e Krämer, e já a meio da década de 80, o contributo mais significativo para a chamada escola de Tubinga foi a obra Per una nuova interpretazione di Platone5 de Giovanni Reale, professor na Universidade Católica de Milão. A novidade metodológica principal passou por inverter o movimento da leitura das fontes e procurar por indícios da precariedade da escrita nos próprios Diálogos. neste mesmo sentido seguiram as pesquisas de Thomas szlezák (sucessor de Gaiser em Tubinga), que se propõem a reconstituir uma ‘estrutura imanente’ (Ferrari, 2012, p. 365) nos Diálogos que confirma não só a existência de doutrinas não-escritas, como também a sua superioridade teórica em relação à obra escrita6. É da estreita colaboração entre estas duas instituições que nasce então o clássico rótulo historiográfico ‘escola de Tubinga-Milão’, que articula o neues Platonbild de Gaiser, Krämer e szlezák, com o nuovo paradigma (de inspiração confessadamente kuhniana) de Reale.

No entanto, como bem argumenta Ferrari (2012, esp. p. 362-3), a inexistência de uma formulação teórica definitiva e comum a todos os comentadores modernos inseridos no eixo Tubinga-Milão aconselha a não seguir o critério geográfico para descrever esta tendência historiográfica. em vez disso, será mais apropriado classificá-la pelo denominador mínimo comum: o esoterismo. Podemos considerar esotéricos os seguidores do neues Platonbild.nuovo paradigma, na medida em que todos eles partilham da ideia que o autêntico platonismo se encontrava dentro das paredes da Academia, do qual os Diálogos (obras exotéricas) dão uma imagem parcial e incompleta.

Através da distinção entre esotéricos (desde León Robin ao eixo Tubinga-Milão) e anti-esotéricos (sobretudo na linha de Cherniss), torna-se bastante mais simples e claro entender as diferenças entre as duas posições historiográficas que acabámos de passar em revista. De modo genérico, podemos resumir as razões da discordância entre ambas através da reação perante dois pontos fundamentais: (1) para os esotéricos, as críticas de Platão à escrita na passagem do Fedro e na Carta VII incluem os Diálogos, mas para os anti-esotéricos não; (2) para os esotéricos, a dialética platónica só encontra a sua máxima expressão no discurso oral, mas para os anti-esotéricos a escrita de diálogos serviu justamente para dar corpo à dialética.

CONCLUSÃO

A intenção deste ensaio foi aquela de operar uma análise resumida das razões da discordância entre as duas interpretações. na intenção de seus autores, trata-se de uma primeira parte, preparatória, de um projeto mais amplo, a ser explorado num segundo artigo, a ser publicado em breve e que será dedicado à exploração de modelos interpretativos das assim chamadas doutrinas não-escritas de Platão, partindo de posições intermédias já expressas por diversos comentadores nas últimas duas décadas. o objetivo final deste projeto será aquele de reposicionar a questão para dar conta dela de maneira mais compreensiva, jogando uma luz nova sobre a interpretação da obra platônica como tal.

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Notas

1. Sobre os problemas implicados na interpretação de Platão por Aristóteles, vide Cherniss (1944, p. 83-222, 318-375).
2. Para uma relação completa das fontes do Sobre o Bem, vide Richard (2008, p. 277-316).
3. Para uma discussão mais aprofundada da recepção da Lição na historiografia contemporânea da filosofia antiga, cf. Cornelli (2016).
4. Para uma análise detalhada das 40 passagens dos Diálogos tradicionalmente convocadas para esta discussão, vide Reale (2008, p. 325-515).
5. O texto foi publicado, ainda como esboço inicial, em 1984 sob o título Per una rilettura e una nuova interpretazione di Platone. O título que se tornou canónico (Per una nuova interpretazione di Platone. Rilettura della metafisica dei grandi dialoghi alla luce delle «Dottrine non scritte») deve-se à segunda edição, bastante ampliada, de 1986.
6. Em 1985 publica Platon und die Schriftlichkeit der Philosophie, dedicada aos chamados ‘diálogos iniciais’ e, bastante mais tarde (2004), Das Bild des Dialektikers in Platons späten Dialogen, que, como o título indica, lida com esse problema nos textos chamados ‘tardios’.
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