A figura de Sócrates segundo Pierre Hadot
The figure of Socrates according to Pierre Hadot
A figura de Sócrates segundo Pierre Hadot
Revista Archai, núm. 18, pp. 317-346, 2016
Universidade de Brasília
Recepção: 01 Julho 2015
Aprovação: 01 Agosto 2015
Resumo: Este artigo enseja mostrar como a figura de Sócrates, tal como analisada por Hadot, é peça fundamental para a sua tese da filosofia como modo de vida. Sócrates é aqui estudado do ponto de vista de duas de suas máscaras, a do sileno e a de Eros. Hadot serve-se da ideia de máscara para delinear a figura de Sócrates. A máscara do sileno permite compreender a atopia socrática, essa estranheza do filósofo que pica o interlocutor, colocando-em na rota dialética. Na máscara do sileno, esconde-se a ironia socrática, mas o coração da ironia se nota no encontro do sileno e de Eros. A máscara de Eros permite ao filósofo definir-se como tal, e auxiliar o interlocutor a parir na beleza.
Palavras-chave: Sileno, eros, ironia, maiêutica, modo de vida.
Abstract: This article aims to show how the figure of Socrates was anilised by Hadot as a fundamental piece of his thesis about philosophy as a way of life. Here Socrates is studying from the point of view of two of his masks, that of Silenus and Eros. Hadot utilised the idea of the masks to trace the figure of Socrates. The mask of Silenus enables us to understand the atopia of Socrates. This strangeness of philosophy, goads the interlucutor into the path of dialectics. The mask of Silenus hides the socratical irony, but the heart of irony observes the meeting between Silenus and Eros. The mask of Eros permits the philosopher to define himself as a philosopher, assisting the interlocutor to discover the truth of beauty and bring it forth.
Keywords: Silenus, eros, irony, maieutics, way of life.
Pois foi aí, no coração, na alma ou como deva chamar-se, que me sacudiram e morderam as palavras da filosofia; e essas provocam uma dor mais lancinante que a mordedura da víbora quando tomam de assalto uma alma jovem, não desprovida de dons, e a levam a agir e a dizer seja o que for ! (Platão, Banquete 218 a)
A figura de Sócrates estudada por Pierre Hadot é aquela desenhada por Platão, especialmente nos chamados “diálogos socráticos”. Não se trata, pois, da figura histórica de Sócrates, inapreensível, mas daque- la que Platão construiu e que lhe serviu de máscara. Com efeito, para Hadot, o jogo de ocultar-se atrás da máscara socrática revela a ironia platônica. Todavia, algo que chama muito a atenção de Hadot é o fato de Sócrates também se mascarar nos diálogos platônicos. Assim, no texto originalmente chamado A figura de Sócrates, Hadot apresenta o filósofo sob três máscaras, das quais duas são apresentadas aqui: a do Sileno e a de Eros. Através da primeira, Hadot analisa a ironia discursiva. Como se enseja mostrar, a ironia discursiva assume a função de um exercício espiritual. Já a máscara de Eros constitui o coração da ironia socrática; apresenta a dimensão vivida e viva da atividade filosófica. Enfim, as duas dimensões, discursiva e afetiva, são indissociáveis para a compreensão da tese da filosofia como modo de vida, pela qual Hadot tornou-se amplamente conhecido e estudado nos últimos dois decênios.
Em 1974, Pierre Hadot faz uma conferência chamada La Figure de Socrate, na qual analisa a figura idealizada de Sócrates, tal como foi desenhada no Banquete, e como Kierkegaard e Nietzsche a perceberam. A conferência foi publicada com este título, no mesmo ano, em Annales d’Eranos, vol. 43, p. 51-90. Integrado com pequenas modificações a Exercices Spirituels et Philosophie Antique, cuja primeira edição data de 1993, o texto da conferência La figure de Socrate também foi publicado, em 1998, em opúsculo, sob o título Éloge de Socrate (EE)1. Se entre as diversas edições o texto não recebe mudanças significativas, ganha algumas nuanças diferentes no capítulo 3 de O que é a filosofia antiga?, publicado originalmente em francês, em 1995, intitulado justamente “A figura de Sócrates”. As ideias centrais são, contudo, as mesmas. Posto isso, pode-se agora comentar a figura de Sócrates, tal como Hadot a traça. Primeiro através da máscara de Sileno, e depois, através da de Eros. Com tal escopo, é mister aludir à noção de máscara e, sobretudo, ver como se articulam as inversões da ironia dialógica e da ironia erótica platônico-socrática, com a noção de exercícios espirituais, central para a tese de Pierre Hadot segundo a qual a filosofia antiga é um modo de vida.
O PARADOXO SOCRÁTICO: EXERCÍCIO ESPIRITUAL?
Escrever diálogos onde Sócrates desempenha o papel principal é característico do gênero literário chamado lógos sōkratikós, gênero este surgido após a morte de Sócrates, no qual o filósofo de pés descalços torna-se uma máscara, um personagem. Nas palavras de Dorion (2006, p.24 ss.), a originalidade de Platão não consiste em fazer de Sócrates o personagem central dos seus diálogos, mas em pintá-lo de um modo que lhe é particular: “um dos numerosos paradoxos do personagem Sócrates, tal como é representado por Platão, é que ele é ao mesmo tempo e simultaneamente virtuoso e desencorajador, benevolente e incompreensível, amigável e astucioso”. Por um lado, Sócrates representa o modelo da virtude. Assim, a título de exemplo, no Fédon 116a, Sócrates é considerado, dentre todos os homens do seu tempo, o mais sábio e o mais justo. No Banquete, Alcibíades elogia sua moderação (217a – 219e), sua resistência ao frio, à fome e mesmo ao excesso de bebida (219e – 220b), e sua coragem no campo de batalha (220c-221c). Por outro lado, como se sabe, Sócrates é inapreensível, é imprevisível, é estranho, feio, dissimulado.
Para usar uma palavra que alguns dos seus interlocutores se servem nos diálogos, Sócrates é átopos. “A palavra significa etimologicamente ‘fora de lugar’, logo estranho, extravagante, absurdo, inclassificável, desconcertante”, diz Hadot (ES, p. 27)2. Como mostra Dorion (2006, p. 26), a atopía de Sócrates manifesta-se claramente na sua ironia, mais precisamente no duplo fingimento posto em jogo aí: ele simula a ignorância, e ao mesmo tempo finge reconhecer o saber que seu interlocutor supõe ter. Outro aspecto da atopía consiste na prática da refutação (élenkhos), pela qual Sócrates coloca seus interlocutores em xeque consigo mesmos, ou melhor, na própria atopía3. Donde, na Apologia de Sócrates, surge a comparação com o tavão, certo tipo de mosca. Como o tavão, Sócrates persegue os homens por toda parte, os pica, os perturba, os tira da indolência4. Na analogia, os homens são representados por cavalos nobres e grandes, enquanto Sócrates se compara à mosquinha irritante. Nada de surpreendente nisso: aqui, novamente, Sócrates se coloca em uma posição de inferioridade; é como um simples inseto rondando. Desta vez, todavia, a mosca põe em movimento o garboso equino. Quanta ironia!
Note-se, contudo, que a mosca não pode acompanhar o cavalo: ela só o põe a caminho. Como diz Hadot:
Trata-se bem menos de questionar o saber aparente que se acredita possuir do que de se questionar a si mesmo e os valores que dirigem nossa própria vida. No fim das contas, após ter dialogado com Sócrates, seu interlocutor já não sabe muito bem porque age. Ele toma consciência das contradições do seu discurso e das suas próprias contradições internas. E vem a saber, como Sócrates, que nada sabe (FA, p. 55).
Com efeito, na forma elaborada por Platão, os diálogos socráticos tendem a provocar no leitor uma perturbação semelhante àquela provocada nos interlocutores dramáticos. O leitor se encontra na situação do interlocutor que recebeu a ferroada, sem saber onde as questões de Sócrates o levarão. Então há uma inversão de papéis, uma troca de máscaras:
Em quase todos os diálogos socráticos de Platão, sobrevém um momento de crise no qual o desencorajamento toma os interlocutores. Eles não têm mais confiança na possibilidade de continuar a discussão, o diálogo corre o risco de se romper. Então Sócrates intervém: ele toma para si a perturbação, a dúvida, a angústia dos outros, os riscos da aventura dialética; ele inverte assim os papéis. Se há um revés, isso será sua própria dificuldade. Ele apresenta assim aos interlocutores uma projeção do próprio eu deles; os interlocutores podem assim transferir a Sócrates sua perturbação pessoal e reencontrar a confiança na pesquisa dialética, no próprio lógos (ES, p. 11-12; EE, p. 95-96).
Não significa, como é consabido, que ao fim do diálogo encontrem-se respostas. Culminando em aporia, isto é, na impossibilidade de concluir e de formular um saber, o diálogo socrático põe em jogo não isso do que se fala, mas aquele que fala .FA, p.54). Saber e não saber conduzem a valores, não a conceitos5. O saber não se apresenta como um conjunto de fórmulas ou de proposições; trata-se de saber que é necessário escolher, decidir, tomar a iniciativa; neste sentido, é um saber-viver (FA, 62). Sócrates repete que nada sabe, e que nada pode ensinar. Lembre-se então de que ele se apresenta como parteiro (Teeteto, 150a), isto é, alguém cujo papel consiste em fazer com que seus interlocutores descubram suas possibilidades interiores (FA, p.62). Pode-se então aludir à definição do filósofo no Banquete, alguém que nada sabe, mas é consciente do seu não saber.
Pode-se ainda indagar se a relação entre a maiêutica no Teeteto 150 b-d, ou seja, o parto das almas e a erótica apresentada por Sócrates rememorando as palavras de Diotima no Banquete não é fortuita, porquanto em ambos os casos trata-se de um parto na beleza, devendo esta ser amada na alma, e não nos corpos. Com efeito, extrapolando um pouco o pensamento de Hadot, parece que também há uma certa “feminilização” do método de Sócrates sob dois aspectos: assim como a beleza da mulher permite ao homem dar à luz conforme o corpo, a beleza da alma de Sócrates permite ao seu interlocutor dar à luz conforme a alma. E não é um belo discurso feminino, o de Diotima, que ensinou a Sócrates o que era o amor? Este deslocamento – da beleza do corpo feminino, para a beleza do discurso de uma mulher – apenas reforça a relação entre o parto psíquico e a mulher. Ademais, Sócrates assume uma tarefa feminina, a de fazer partos. Palavras ditas outrra por uma mulher, profissão feminina: a erótica de Diotima e a maiêutica socrática parecem ser uma mesma coisa. Diotima, mais uma face da atopia socrática, agora homem travestido pelo discurso de mulher, parece ser igualmente uma máscara de Platão, anunciando o ocaso da pederastia grega como forma de exercício erótico para o filósofo. A esse respeito, Calame (p. 211) pode vir em auxílio. Diz ele que no discurso de Diotima, Eros não é mais adolescente; perde sua aparência de amado para tornar-se amante. Torna-se um guia iniciático privilegiado, e com esta nova função, atesta-se o ideal moral do amor, levando ao ideal que dá acesso ao seu aspecto cósmico. Uma mulher intervindo indiretamente no banquete dos homens inverte o papel pedagógico constitutivo da homofilia institucional: Eros se torna o guia do amante adulto, deixando ao adolescente sua beleza externa e imatura. E aqui, pode-se remeter, também, ao fundamento dos exercícios espirituais, que constituem o estofo do modo de vida filosófico.
O conceito de exercício espiritual, em suma, pode ser definido como “uma prática voluntária, pessoal, destinada a operar uma transformação do indivíduo, uma transformação de si” (PhMV, p.144)6. O discurso filosófico é uma das formas de exercício espiritual da filosofia antiga. No caso específico dos diálogos socráticos de Platão, Hadot considera que as questões e as respostas são destinadas a provocar uma dúvida, ou mesmo uma emoção, uma mordida no interlocutor. Este tipo de diálogo é uma ascese, porquanto é necessário submeter-se às leis do debate. Isto é, primeiro, reconhecer que o outro tem o direito de se expressar. A seguir, reconhecer que havendo uma evidência, é preciso aceitá-la, ainda que isso seja difícil quando significa que não se tinha inicialmente razão. Por fim, reconhecer acima dos interlocutores a norma do lógos: um discurso objetivo, que busca ser objetivo (PhMV, p. 146).
O diálogo socrático aparece então como um exercício espiritual que é praticado em conjunto, mas que convida ao exercício espiritual individual, consignado no exame de consciência e na atenção a si mesmo. É um exercício modelo, diz Hadot. Modelo, por tratar-se de uma composição literária que imagina um di- álogo ideal. Exercício precisamente porque é diálogo, ou seja, um itinerário de pensamento cujo caminho é traçado pelo acordo mantido entre os interlocutores. E a dimensão do interlocutor é então fundamental, pois impede que o diálogo se converta em uma exposição dogmática e teórica, obrigando-o a ser sempre um exercício concreto e prático, precisamente por conduzir o interlocutor a uma atitude determinada. É um combate amigável, mas real, conclui Hadot (EE, p. 41).
A MÁSCARA DE SILENO
O Elogio de Sócrates começa por apontar o paradoxo entre a ideia do elogio e a do desconcerto causado pela figura socrática; em Exercícios Espirituais, o paradoxo surge entre o personagem que representa o mediador entre a norma ideal e o humano, e novamente, o desconcertante aspecto de Sócrates. Nas palavras de Hadot,
Habitualmente, fazer o elogio de um personagem é enumerar qualidades umas mais admiráveis do que outras, é apresentar uma figura harmoniosa, atingindo a perfeição em todos os domínios. Todavia, quando se trata de Sócrates, mesmo do Sócrates idealizado, criado por Platão e Xenofonte, este não é o caso. Bem ao contrário, e aqui reside o paradoxo socrático, a figura de Sócrates aparece imediatamente, a quem a descobre, como desconcertante, ambígua, inquietante. O primeiro choque que ela nos reserva é a feiura física que é bem atestada pelos testemunhos de Platão, de Xenofonte e de Aristófanes7 (ES, p. 8).
Ou, na versão seguinte, dos Exercícios Espirituais, introduzida pela assertiva de que Sócrates aparece como mediador, Hadot opõe a ideia de mediação, que evoca a do justo meio e do equilíbrio, e por consequência, a de uma figura harmoniosa, na qual se mesclam traços divinos e humanos, à figura feia, desconcertante, ambígua e inquietante de Sócrates (EE, p.93). Mudança no ponto de partida, permanência dos adjetivos: o que interessa a Hadot é, desde o início, reconstruir essa imagem estranha que é, finalmente, modelar. Imagem cujo estofo é o paradoxo entre o parecer e o ser. Imagem que se revela exatamente onde se disfarça: no jogo de máscaras que a constitui.
A máscara (prósōpon) é aquilo que vem antes (prósō); em grego antigo, prósōpon é a face, o rosto, mas é também a frente de um exército, a frente ou a fronteira de um país ou uma cidade; é ainda uma figura artificial, donde a máscara teatral. Hadot explora o termo prósōpon com o sentido de máscara, mas não se pode deixar de pensar nas noções de frente de batalha e de fronteira. Prósōpon é a vanguarda da artilharia discursiva platônica; mas é também a fronteira entre o que Sócrates mostra, sua aparência, e o que ele oculta: o que ele é. Sócrates no Banquete (215 b) aparece revestido da máscara do Sileno, pequena estátua que serve de invólucro a figuras divinas. Um dos aspectos importantes dessa máscara reside no contraste entre a aparência feia dos Silenos esculpidos, e a divindade guardada em seu interior. Os míticos Silenos eram seres híbridos, metade animais, metade humanos. Platão, no modo de ler de Hadot, parece jogar com os dois tipos de Sileno, o esculpido e o mítico. Isso porque o interior do Sileno esculpido remete ao mítico.
Impudentes, bufões, lascivos, eles constituíam o coro dos dramas satíricos (...). Os Silenos representam, então, o ser puramente natural, a negação da cultura e da civilização, a bufonaria grotesca, a licenciosidade dos instintos. É verdade que esta figura de Sileno é apenas uma aparência, tal como Platão nos permite entendê-la, uma aparência que esconde outra coisa (...). Assim, o aspecto exterior de Sócrates, a aparência quase monstruosa, feia, bufona, impudente, é apenas uma fachada e uma máscara. Isso nos conduz a um novo paradoxo: depois da feiura, a dissimulação” (ES, p. 9-10; EE, p. 93-94).
Antes, contudo, de seguir o raciocínio de Hadot, cabe observar que a representação de Sócrates como Sileno não parece remontar a Platão. Com efeito, como mostra Paul Zanker (1995, p. 32-39), o primeiro retrato esculpido do filósofo, surgido entre 10 e 20 anos após sua morte, o mostra como Sileno8. Em um período no qual o ideal de beleza era tão considerado, esta imagem deve ter perturbado os contemporâneos de Sócrates, não menos que suas questões penetrantes9. A esse respeito, Lissarague (2013, p. 244-245) observa que a figura do sátiro se presta a uma infinidade de variantes, sendo uma delas a do universo do conviva bebendo nos banquetes. Nas pinturas em vasos e nos dramas satíricos, muito embora se verifique uma enorme variedade na representação dos sátiros, aparece constantemente a imagem do bebedor espantado com o comportamento dos sátiros. Nesse caso, confrontado com o sátiro, o bebedor é conduzido a evitar os excessos que o distanciariam do modelo do equilíbrio, que os atenienses chamam de kalós kagathós. Donde, segue Lissarague, a brincadeira de Alcibíades no Banquete assume um valor notável.
De fato, Alcibíades não parece ter exagerado na feiúra de Sócrates. O personagem histórico, como atesta o repertório de fontes antigas, deve ter sido impressionantemente feio, afirma Zanker. Mas ele não era certamente o único feio entre os atenienses. Que a sua infeliz aparência tenha se tornado um foco de atenção possivelmente deriva da natureza considerada ofensiva, de suas atividades intelectuais. Donde, prossegue o estudioso, comparar Sócrates com Silenos, Sátiros e Mársias, tem sua origem provável em seus detratores. Os traços físicos mais marcantemente mencionados são a pança, o rosto largo com olhos esbugalhados, a boca grande com lábios salientes, e a cabeça careca. O conjunto foi considerado não só feio, mas símbolo de uma natureza básica (Cícero, Tusc. 4,81), que aliás, remonta ao hibridismo animal-humano dos Silenos. E, conclui Zanker:
A decisão de adaptar a comparação com Sileno para uma estátua retrato destinado a celebrar o assunto, no entanto, pressupõe uma interpretação positiva da comparação, como nós de fato encontramos, em particular, no discurso de Alcibíades no Banquete, de Platão. Talvez o próprio Sócrates já tenha colocado as bases para essa nova interpretação, aceitando a comparação com a sua característica ironia (ZANKER, 1995, p.34).
Da possível ironia do personagem histórico, à marcada ironia do platônico, vê-se que Sócrates, transfigurado em Sileno, é dissimulado: finge a ignorância e a impudência10. A máscara que Sócrates usa é sua famosa ironia, diz finalmente Hadot11. À pele dos impudicos Silenos, correspondem as palavras de Sócrates (ES, p. 10; EE, p. 94)12. Daqui Hadot tira o significado profundo da máscara irônica de Sócrates, que aparece na situação dialógica. Sob a forma sutil e refinada que Platão conferiu a estes diálogos, o leitor vê-se como o interlocutor que não sabe onde as questões socráticas o levarão. A máscara de Sócrates é desconcertante; introduz uma perturbação na alma do leitor e a conduz a uma tomada de consciência que pode ir até à conversão filosófica (ES, p. 11; EE, p. 95).
A estátua do Sileno é uma aparência que oculta outra coisa. Assim são as palavras de Sócrates. Partindo da linguagem comum, de assuntos comuns, ele traça caminhos pelos quais seu interlocutor entra em choque consigo mesmo. À banalidade dos assuntos corresponde a banalidade dos interlocutores; Sócrates é um homem da rua e seus interlocutores são encontrados na rua. Mais que isso, a autodepreciação é componente essencial da máscara irônica. Examinando textos de Aristóteles e Teofrasto nos quais aparece a palavra ironia (eironeía), Hadot explica que a ironia é uma atitude psicológica na qual o indivíduo parece inferior ao que ele é. No uso do discurso, tal disposição consiste em fingir dar razão ao interlocutor. “Trata-se então de uma autodepreciação fingida que consiste, de início, em se fazer passar exteriormente por alguém completamente comum e superficial” (ES, p. 17; EE, p. 100). Mas se o revestimento exterior é feio, desconcertante, se as questões são banais, o que se oculta no interior? Onde, afinal, Sócrates quer levar seus interlocutores? Talvez a máscara de Eros possa fornecer algumas pistas.
A MÁSCARA DE EROS
Retornando às representações visuais, Zanker (1995, p. 38) considera que comparado a uma criatura mitológica, Sócrates é apresentado como um ser humano extraordinário, transcendendo as normas convencionais. Além disso, o velho Sileno é considerado o repositório da sabedoria antiga e da bondade e por isso aparece na mitologia como o professor de crianças divinas e heroicas. A conotação como o sábio professor é, assim, um exemplo óbvio para o retrato da Sócrates-Sileno. Mas Sócrates, o personagem platônico, não se recusa, ao declarar nada saber, a assumir o papel de mestre, no sentido daquele que ensina uma doutrina? Aqui, observa Hadot, toca-se no coração da ironia socrática13. O ponto capital deste método irônico é o caminho percorrido em conjunto por Sócrates e seu interlocutor. E este é, finalmente, o sentido profundo da maiêutica socrática, inverter totalmente as relações entre mestre e discípulo. Hadot explica, servindo-se das palavras de Kierkegaard:
Ser mestre não é martelar afirmações, nem dar lições para aprender, etc; ser mestre é verdadeiramente ser discípulo. O ensino começa quando, tu, mestre, tu aprendes com o discípulo, quando tu te instalas naquilo que ele compreendeu, na maneira como ele compreendeu (KIERKEGAARD, Ponto de vista explicativo da minha obra como escritor, trad. Tisseau, p. 28 e cf. OC, t. XVI, p. 22, apud HADOT, ES, p. 21; EE, p. 103).
Há uma passagem do Banquete 175 c-d em que Sócrates atesta o fato de não possuir qualquer saber transmissível. Após ter estaqueado diante da porta, a refletir, Sócrates entra na casa de Agaton e é por este convidado a se acomodar ao seu lado: “(...) Instala-te aqui ao meu lado, a ver se em contato contigo tiro proveito desse achado de sabedoria que fizeste aí pelos pátios (...)”. A que Sócrates, sentando-se junto ao anfitrião, replica: “Bom era, Agaton, que a sabedoria fosse qualquer coisa assim, capaz de deslizar do mais cheio para o mais vazio quando estamos em contato uns com os outros”. Ele ainda diz que se fosse assim, se beneficiaria em estar ao lado do belo Agaton, de cuja sabedoria está convicto. Já a dele, Sócrates, “é insignificante e discutível, como se de um sonho se tratasse”. Para Hadot esta máscara da ignorância socrática reveste o problema dos limites da linguagem. Nunca se poderá compreender a justiça ou o amor se não se vive cada um, pois toda realidade autêntica é indefinível. É isso que Sócrates anseia por fazer seu interlocutor compreender, a fim de convidá-lo a viver a justiça, por exemplo. O questionamento sobre o discurso é, portanto, o questionamento sobre a decisão individual de viver conforme a consciência e o lógos (ES, p. 22; EE, p. 104).
Dito de outro modo, influenciado por sua leitura do Tractatus de Wittgenstein, Hadot pode afirmar que os limites da linguagem são os limites do mundo de cada um, da sua vida. O reconhecimento da sua própria forma de vida na linguagem equivale a reconhecer sua finitude. Por conseguinte, o exercício espiritual de compreender sua situação na linguagem consiste em uma aprendizagem da morte e da vida, cujos limites são aqueles do seu próprio mundo. Assim, a conversão filosófica consiste em um retorno a um cotidiano transformado, onde nunca se teria ido antes. As coisas estão diante de cada um; basta aprender a ver (LAUGIER, 2010, p. 67). Conforme Hadot, a consciência individual de Sócrates irrompe deste sentimento de imperfeição e inacabamento: ele sabe que não é sábio, então ele deseja imensamente a sabedoria. “Eis por que Sócrates, o filósofo, revestirá, para a consciência ocidental, os traços de Eros, o eterno vagabundo em busca da verdadeira beleza” (ES, p. 26; EE, p. 108).
Assim, é na máscara de Eros no Banquete, que Hadot encontra o elemento não discursivo necessário a toda a filosofia. “A démarche filosófica tem então por motor o desejo e implica um elemento não discursivo. A dimensão do amor confere à filosofia o caráter de uma experiência vivida, viva, de uma presença” (PhMV, p. 203). Para tanto, Hadot recusa-se a compreender o amor apenas como um elemento fundador da comunidade psíquica que permite o diálogo, mas exterior ao percurso filosófico. Ele precisa mostrar que “ligada à ironia do diálogo, há em Sócrates uma ironia do amor que conduz a inversões de situação totalmente análogas àquelas da ironia do discurso” (ES, p. 28; EE, p. 109).
Por isso ele trata de mostrar o liame entre a ironia discursiva e a erótica. A ironia amorosa de Sócrates consiste em fingir que está enamorado, até que aquele por ele perseguido nas suas aventuras, pela inversão da ironia, torne-se ele próprio enamorado (ES, p. 28; EE, p. 111)14. Na máscara socrática de Eros encontra-se então a mesma estrutura fundamental da ironia: trata-se de uma consciência desdobrada, que percebendo que não é o que deveria ser, experimenta um sentimento de separação e de privação do qual nasce o amor (ES, p. 35; EE, p. 116). Assim como o interlocutor dos diálogos descobria não possuir sabedoria alguma para dar a Sócrates, na ironia amorosa, o suposto amado descobre que é incapaz de satisfazer o amor de Sócrates, por não possuir a verdadeira beleza. O amado então se converte em amante de Sócrates, o que representa uma inversão na estrutura tradicional da pederastia grega15. Mais que isso: significa que tendo descoberto o que lhe falta, a verdadeira beleza, o amado busca em Sócrates não a beleza, da qual ele é desprovido, mas o desejo pela beleza. Sócrates e Eros então se confundem em um jogo de máscaras, de tal modo que amar a Sócrates equivale a amar o amor. Este é o sentido do Banquete de Platão, diálogo construído de modo a fazer adivinhar a identidade entre a figura de Eros e aquela de Sócrates, declara Hadot (ES, p. 30; EE, p. 111). São bem conhecidas todas as semelhanças entre o retrato de Eros traçado por Diotima, e aquele de Sócrates, por Alcibíades, de modo que não é necessário aqui insistir em todas elas. Mas há um ponto importante a ser mencionado: Sócrates, assim como Eros, é um mediador. Como foi visto, o amado, convertido em amante, ama o desejo pela beleza que descobre em Sócrates. Neste caso, Sócrates assume o papel de mediador entre aquele homem que o ama, e a beleza transcendente.
Ora, é consabido que o discurso de Diotima é narrado por Sócrates, em uma requintada ironia, na qual ele se apresenta como um jovem inexperiente que aprende com aquela mulher o que sabe sobre o amor. Coloca-se assim na posição de Agaton, que acabara de entrar em choque consigo mesmo, ao ser conduzido por uma série de evidências apresentadas no jogo de perguntas e respostas16. Neste breve diálogo com Sócrates, o belo e supostamente sábio Agaton é compelido a admitir que se Eros é desejo pela beleza, ele não é belo, porque não se possui aquilo que se deseja. Sendo assim, diferente do que se afirmou praticamente ao longo de todos os discursos do Banquete, Eros não é um deus, mas um daímon, isto é, um ser intermediário entre os deuses e os homens17. A situação de intermediário é desconfortável; Eros é definido por Diotima como inclassificável, indefinível, do mesmo modo que Sócrates por Alcibíades. Essa atopia de Sócrates leva Alcibíades a recorrer a imagens para descrevê-lo, e ele escolhe duas imagens, a do Sileno, e a do Sátiro Mársias (Banquete, 215 a-b). Toda atopia de Sócrates encontra-se na contradição entre o interior e o exterior, tal como a máscara do Sileno revelou há pouco. E justamente aqui, com efeito, as máscaras de Eros e do Sileno se confundem. Hadot mostra que na descrição de Diotima, Eros é desejo da sua própria perfeição, do seu próprio eu. “Ele sofre por ser privado da plenitude do ser e aspira atingi-la” (ES, p. 34; EE, p. 115). Como o Sileno esculpido, Eros-Sócrates é uma possibilidade que se abre. Porém agora, confundindo-se com a estátua, o Sileno mítico se abre para ser atingido, e não para mostrar a imagem do deus que ele oculta. Em suma, Sócrates abre-se para algo além dele. Tal é o filósofo, conclui Hadot, um chamado à existência (ES, p. 35; EE, p. 128).
O último aspecto da máscara de Eros a ser considerado é o do mediador. Sócrates é sempre pobre, está sempre na aporia, e sempre a caminho, vagando pelas ruas de Atenas. Mas ele também é forte, tal como Eros é robusto; Sócrates é resistente ao frio e à fome, aos encantos sedutores e à embriaguez. Como Eros é filósofo, porquanto está a meio-caminho entre a sabedoria e a ignorância. Esse é o caráter intermediário de Eros-Sócrates, o de um ser desprovido de beleza e de sabedoria, mas que possui os recursos necessários buscar aquilo que deseja ardorosamente. Parece não haver nada de mais natural que essa posição intermediária do filósofo, nota Hadot. Bastaria praticar sua atividade de filósofo para superar a ignorância. Mas não é assim: o filósofo jamais atingirá a sabedoria. Na leitura de Hadot, “a filosofia, segundo o Banquete, não é sabedoria, mas um modo de vida e um discurso determinado pela ideia de sabedoria” (FA, p. 79). Ele assegura que Platão instaura uma distância insuperável entre sabedoria e filosofia, uma vez que a filosofia define-se por aquilo que lhe escapa (id., ibid). E com isso, ele insere a figura de Sócrates idealizada dos diálogos platônicos, no centro da sua tese sobre a filosofia antiga entendida como modo vida. Todavia, Hadot introduz uma sutileza: Sócrates não é um mero intermediário, e sim um mediador. E tal nuance é tecida a partir da noção de daímon:
Não se trata apenas de uma posição mediana entre duas ordens de realidade opostas, mas de uma situação de mediador: o daímon está em relação com os deuses e os homens, desempenha um papel nas iniciações aos mistérios, nos encantos que curam os males da alma e do corpo, nas comunicações que vêm dos deuses aos homens, tanto na vigília como no sono (FA, p. 73).
Entendido como um daímon mediador, o filósofo revela aos homens algo do mundo dos deuses, tal como Diotima – outra máscara de Sócrates? – revelou a Sócrates, a Agaton e os demais convivas, e aos leitores18. Para além disso, Hadot encontra na definição de daímon a plena significação da máscara erótica de Sócrates. A dimensão do amor é também aquela do irracional, do “demoníaco”. “O daímon de Sócrates era a inspiração que se impunha por vezes a ele de uma maneira completamente irracional (...). Era, de algum modo, seu “caráter” próprio, seu verdadeiro eu”. Mas, precisamente esta dimensão ambígua e indecisa é inseparável da existência humana. É “a força motriz indispensável a toda realização, é a dinâmica cega, mas inexorável, que é preciso saber utilizar”.
Elemento ambíguo, ambivalente, indeciso, o demoníaco não é nem bom, nem mau. Somente a decisão moral do homem lhe dará seu valor definitivo. Mas este elemento, irracional e inexplicável, é inseparável da existência. Não se pode eludir o encontro com o demoníaco, o jogo perigoso com Eros (ES, p. 39; EE, p. 132).
E esses jogos, tanto com o elemento erótico, como com a linguagem, que Hadot desenvolve na sua palestra A figura de Sócrates, encontram-se no coração da sua grande tese, a de que a filosofia antiga é um modo de vida.
A FILOSOFIA COMO MODO DE VIDA E O MODELO SOCRÁTICO
Embora a figura de Sócrates não tenha ocupado Hadot com a mesma frequência, nem a mesma intensidade que Mario Vitorino, Plotino, Epicteto ou Marco Aurélio, ela é um dos componentes fundamentais da sua tese maior sobre a filosofia antiga. Com efeito, a figura de Sócrates representa ao mesmo tempo a atitude filosófica e o marco histórico fundadores desta concepção de filosofia.
Em uma entrevista publicada em 200119, Hadot declara que “a maneira de viver filosoficamente é simplesmente o comportamento do filósofo na vida quotidiana” (PhMV, p. 159). Em outros termos, trata-se, diz ele, do comportamento característico de cada escola. A atitude filosófica dos platônicos na época de Platão, por exemplo, caracteriza-se por um triplo aspecto. Tem-se a preocupação em exercer uma influência política, dirigida segundo os ideais platônicos; tem-se a vontade de discutir, apresentando o ensino segundo o método de questões e respostas socrático; tem-se, finalmente, o que Hadot considera o essencial do platonismo, o movimento de separação da alma e do corpo, e que culmina, com os neoplatônicos do final da antiguidade, em uma tendência a desligar-se do corpo e também a ultrapassar o raciocínio (PhMV, p. 160).
Esta reflexão sobre a essência da filosofia antiga é apresentada em um artigo publicado originalmente em 1975-76, “La philosophie comme manière de vivre”20, e desenvolvido posteriormente em O que é a filosofia antiga?, de 1995. Neste livro, o texto “A figura de Sócrates” situa-se na primeira parte do livro, chamada: “A definição platônica do filósofo e seus antecedentes”. É somente a segunda parte do livro, chamada precisamente “A filosofia como modo de vida”, que se dedica à apresentação da tese, no âmbito das escolas platônica e aristotélica, das diversas escolas e correntes filosóficas do período helenístico, e daquelas do período imperial. Hadot conclui esta parte do livro com um capítulo sobre a filosofia e o discurso filosófico, onde fala notadamente dos exercícios espirituais, situando neste campo o discurso.
O que a estrutura do livro revela? Excluídos os chamados pré-socráticos, inicia sua investigação sobre a filosofia antiga com Sócrates. Vê em Sócrates a figura emblemática a que, de um modo ou de outro, todas as escolas fazem referência na escolha de vida. De fato, praticamente todos os filósofos e escolas filosóficas que se seguiram a Sócrates cronologicamente, são incluídos na grande tese de Hadot. Quase todos são filósofos impregnados em alguma medida pelo “espírito socrático”. Isso é evidente no que tange a Platão, um dos construtores da figura idealizada de Sócrates, e por extensão, nos platônicos posteriores, considerando até os últimos neoplatônicos. E também vale para a filosofia do período helenístico em geral, que é descrita como um desenvolvimento natural do movimento intelectual que a precedeu, defrontando-se muitas vezes com temas pré-socráticos; porém, diz Hadot, ela é profundamente marcada pelo espírito socrático (FA, p. 147). A filosofia, para Pierre Hadot, é fundamentalmente uma mudança radical em nossa concepção de mundo, em nosso eu. Por isso ela é, antes de tudo, um modo de vida. Irredutível aos sistemas teóricos, como observa Hoffmann (2010-2011, p. xxxvi), a filosofia como modo de vida não deixa de ter com os discursos uma relação ineludível que deve ser considerada mais de perto. Para Hadot, “a reflexão teórica vai em um certo sentido graças a uma orientação fundamental da vida interior, e esta tendência da vida interior se precisa e toma forma graças à reflexão teórica” (PhMV, p. 168). Filosofia e discurso filosófico são então inseparáveis e incomensuráveis.
[Hadot] trouxe a lume, sem nunca minimizar a importância das doutrinas, a natureza fundamentalmente prática e ‘existencial’ da filosofia antiga: pôr em prática uma escolha de vida radical e inaugural que é, ao mesmo tempo, decisão ética e modificação da percepção do Mundo, ‘maneira de viver’ e ‘exercício espiritual’, a filosofia é irredutível aos sistemas teóricos dos discursos que produz, que a acompanham (discurso interior que regra a conduta, discurso de ensino doutrinal ad extra), e a própria busca científica, enquanto vida teorética (por exemplo, em Aristóteles). (HOFFMANN, 2010-2011, p. xxxvi – grifos do autor).
Antes de elaborar a sua tese, Hadot tinha dela uma ideia, que ilustrava com a imagem do farol de uma bicicleta. Esta imagem permite perceber, primeiro, não ser lícito pensar que Hadot tenha proposto uma espécie de “antifilosofia”, no sentido de uma destituição da teoria, em beneficio do ato21. Mas, sobretudo, permite vislumbrar em linhas gerais que a noção de filosofia como modo de vida afigura-se como um fenômeno extremamente complexo, no qual discurso e vida quotidiana se entrelaçam e completam, dando sentido um ao outro. Deste fenômeno se podem distinguir três traços constitutivos, encontrados nas grandes escolas antigas: 1. A filosofia antiga era uma escolha de vida que constituía uma opção existencial entre outras; 2. Esta escolha de vida é formada por exercícios espirituais, isto é, práticas que visam a transformação interior; 3. O uso do discurso é um prolongamento do modo de vida e um exercício espiritual22. Eis o que ele conta:
Quando eu era jovem, já tinha essa ideia e a ilustrava com a luz do farol das bicicletas, que era assegurada pelo movimento. À noite, é preciso uma luz que ilumine e permita nos guiarmos (esta é a reflexão teórica). Mas para ter luz, era necessário que o dínamo girasse pela movimento da roda, é a escolha de vida. Então se podia avançar. Mas era preciso começar por andar um momentinho no escuro. Dito de outro modo, a reflexão teórica supõe já uma certa escolha de vida, mas esta escolha de vida só pode progredir e se precisar graças à reflexão teórica (PhMV, p. 168).
Não é precisamente esta a função da figura de Sócrates? Fazer girar a roda do pensamento dos interlocutores, os auxiliando, sem que percebam, a que eles mesmos ponham a roda em movimento, iluminando o caminho na noite escura da aporia? É assim que ele, além de marco histórico, surge como marco conceitual da filosofia como modo de vida. Cindido o interlocutor pela incerteza do não saber, Sócrates se junta a ele para recomeçar o percurso. Algo instigante na figura de Sócrates é que não há doutrina para atualizar. Há um ideal filosófico, uma vida e uma morte dedicadas inteiramente a fazer os outros tornarem-se melhores, cuidarem de si (PhMV, p. 197). Somente o quotidiano de Sócrates permite entender sua filosofia, e aí se revela sua exigência moral, seu estar fora do mundo e no mundo ao mesmo tempo. Sócrates, indubitavelmente, representa o modelo ideal do filósofo por toda a antiguidade depois dele.
(...) É a filosofia ininterrupta que se vê exercer a cada dia de uma maneira perfeitamente igual a si mesma (...). Ele foi o primeiro a mostrar que, em todos os lugares, em tudo o que nos chega e em tudo o que fazemos, a vida quotidiana dá a possibilidade de filosofar”.
(Plutarco, Se a filosofia é ofício dos velhos, 26, 796d, apud HADOT, FA, p. 68).
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Notas