Ensaios & Insights
Recepção: 16 Abril 2020
Aprovação: 04 Maio 2020
DOI: 10.30800/mises.2020.v8.1296
Resumo: Com a greve dos caminhoneiros de 2018, tornou-se evidente a necessidade de incrementar o uso do modal ferroviário no Brasil, atualmente insuficiente para as necessidades do país e atualmente voltado quase que completamente para o transporte de commodities. Uma proposta liberal para esse problema é o reaproveitamento dos diversos trechos atualmente ociosos nos moldes das shortlines norte-americanas. Para tal, deve-se buscar a introdução da livre concorrência no setor, à luz da teoria austríaca de mercados como processos, em contraste com a análise mainstream de estruturas de monopólios naturais. O presente artigo tem como objetivo analisar as reformas necessárias e os potenciais benefícios dessa proposta para o setor ferroviário brasileiro, por meio de uma revisão de literatura das experiências brasileira e norte americana.
Palavras-chave: Ferrovias, Políticas Públicas, Shortlines, Brasil, América do Norte.
Abstract: With the truckers’ strike of 2018, it became evident the need to increase the use of the railway modal in Brazil, currently insufficient for the needs of the country and turned almost completely to the transportation of commodities. A liberal proposal is to reuse the several stretches currently idle along the railway network on the lines of the north American shortlines. To this objective, an introduction of competition should be sought in the light of the Austrian theory of markets as processes, in contrast of the mainstream analysis of natural monopoly structures. The present article aims to analyse the necessary reforms through a literature review of the Brazilian and North American experiences.
Keywords: Railways, Public policy, Shortlines, Brazil, North America.
Resumen: Con la huelga de camioneros de 2018, se hizo evidente la necesidad de aumentar el uso del ferrocaril modal em Brasil, actualmente insuficiente para las necesidades del país y actualmente se volvió casi por completo al transporte de mercancias. Una propuesta liberal para este problema es la reutilización de los diversos tramos actualmente inactivos em la línea con las líneas cortas norte-americanas. Con este fin, debe buscarse la introducción de la libre competência en el sector, a la luz de la teoria austriaca de los mercados como procesos, en contraste con el análisis general de las estructuras de monopolio natural. Este artículo tiene como objetivo analizar las reformas necesarias y los beneficios potenciales de esta propuesta para el sector ferroviario brasileño, atraves de una revisión bibiografica de las experiencias brasileñas y norteamericanas.
Palabras clave: Ferrocarriles, políticas públicas, líneas cortas, Brasil, America del Norte.
Introdução
O transporte ferroviário nas teorias mainstream e austríaca
Desde o final do século 20, Durço (2015) aponta o aparente consenso entre os especialistas) no setor de transporte a importância da necessidade de desregulamentação do setor ferroviário, visando o aumento da competição intramodal. Entretanto, ainda predomina, na literatura sobre o assunto, a crença de que as ferrovias precisem ser reguladas por serem uma espécie de monopólio natural. Por um lado, o uso da teoria neoclássica1 do monopólio natural tem fornecido as bases para diversos equívocos na elaboração de políticas públicas e, como demonstrado a seguir, prejudicado o desenvolvimento desse mercado no cenário brasileiro.
Como apontado por Dilorenzo (1996), um monopólio natural ocorre quando os investimentos necessários à produção do serviço apresentam custos altos e relativamente fixos, sendo os custos totais decrescentes à medida que a produção aumenta. Dessa forma, um único produtor seria capaz de produzir a um custo menor do que se houvesse dois ou mais produtores, o que tornaria o mercado em questão um monopólio natural. Ainda, como afirmam Daychoum e Sampaio (2017), a concorrência no setor ferroviário seria impossível ou causaria inconveniências aos consumidores por causa da necessidade de duplicação de instalações, e a monopolização se justifica como forma de evitar tais problemas.
Por outro lado, a Escola Austríaca fornece uma visão completamente diferente do assunto. Neste artigo, serão estudadas as principais divergências entre essas duas correntes de pensamento, com o objetivo de elaborar uma proposta de incremento da competição no setor ferroviário brasileiro através do reaproveitamento dos trechos ociosos nos moldes das shortlines norte-americanas. Segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI, 2020), com cerca de um terço da malha ferroviária atualmente ociosa ou completamente inutilizada, e a proposta das shortlines, surge uma alternativa para viabilizar o reaproveitamento dessas linhas em um regime regulatório mais brando que o atualmente vigente nas concessões, e também a ideia pode servir para facilitar a construção de novas linhas férreas de forma mais simplificada do que o atual processo licitatório de concessões.
1. O que são shortlines?
Na literatura norte americana, uma shortline é, essencialmente, uma ferrovia de abrangência regional, em comparação com uma malha maior de abrangência nacional2. Essa classificação3 é normalmente realizada por associações e órgãos reguladores do setor ferroviário, e segue critérios distintos entre as entidades nos Estados Unidos, Canadá e México, como descrito a seguir.
A primeira classificação de companhias ferroviárias em categorias nos Estados Unidos foi realizada em 1911, pela Interstate Commerce Commission (ICC), utilizando a receita bruta como critério de distinção. As empresas com receita superior a US$ 1 milhão anuais (em valores de 1911, ajustados anualmente pela inflação) eram classificadas como ferrovias Classe I, as que faturassem entre US$ 100.000 e US$ 1 milhão como Classe II, e as que tivessem receita inferior a US$ 100.000 pertenciam à Classe III. Após a dissolução da ICC, em 1996, a classificação das ferrovias passou a ser feita pela STB (Surface Transportation Board) utilizando como base o mesmo critério: segundo valores de 2017, acima de US$ 447.621.226 para Classe I, e acima de US$ 35.809.698 para Classe II).
Já na classificação da Association of American Railroads (AAR), as companhias ferroviárias são enquadradas em três categorias: Classe I, seguindo os mesmos critérios da Surface Transportation Board (STB); Regional Railroad, companhias que operam pelo menos 350 milhas (aproximadamente 560 quilômetros) de linhas e faturam pelo menos US$ 20 milhões (em valores de 1991), ou faturam pelo menos US$ 40 milhões independentemente da extensão das linhas; e Local Railroad, que contempla as ferrovias que não se enquadram nas duas categorias descritas anteriormente.
No Canadá, as ferrovias são classificadas pela Railway Association of Canada (RAC) em apenas duas categorias: Classe I (empresas com receita bruta superior a US$ 250 milhões em valores de 1992) e Classe II (as que tiverem receita bruta inferior à quantia citada anteriormente) sendo uma companhia trocada de classe caso obtenha receitas superiores ou inferiores ao valor especificado por dois anos consecutivos; e na Classe III enquadram-se apenas as empresas que operam apenas pontes, túneis e estações.
Por fim, no México, a classificação é feita pela Associación Mexicana de Ferrocarriles (AMF), segundo sua abrangência no território nacional. É importante salientar que todas as companhias ferroviárias norte-americanas, com atuação em mais de um país, encontram-se enquadradas nas classificações de ambos os países, como é o caso das companhias canadenses Canadian Pacific e Canadian National, que atuam no Canadá e Estados Unidos, e são classificadas na categoria Classe I pelas associações ferroviárias de ambos os países.
Dessas categorias, são classificadas como shortlines as companhias enquadradas nas classes II e III - ou Regional e Local Railroads, segundo a ASLRRA (American Shortline and Regional Railroad Association), principal associação da indústria ferroviária norte americana dedicada a essa categoria de ferrovia. Segundo AAR (2020), as ferrovias que podem ser definidas como shortlines operam segundo três modelos de negócios: (I) realizar operações em sincronia com uma ferrovia Classe I; (II) atender à movimentação interna de mercadorias de uma ou mais indústrias; e (III) operações turísticas de entidades de preservação ferroviária. Em resumo, entende-se como shortline uma ferrovia de pequeno/médio porte que atua com uma abrangência local, em contraste com uma companhia ferroviária de grande porte destinada à integração de territórios nacionais ou internacionais.
No Brasil, a primeira classificação das companhias ferroviárias foi feita em 1940, pelo Ministério da Viação e Obras Públicas (MVOP), seguindo três categorias de acordo com a receita bruta anual: em 1ª Categoria as que tivessem receita anual superior a Rs20:000$000 (vinte mil contos de réis), em segunda categoria as de receita anual entre Rs5:000$000 (cinco mil contos de réis) e Rs20:000$000 (vinte mil contos de réis), e 3ª Categoria as de receita anual inferior a Rs5:000$000 (cinco mil contos de réis).
As empresas também eram classificadas pelo MVOP, de acordo com a natureza da administração: havia as ferrovias administradas pela União (de propriedade federal, de propriedade estadual, e de propriedade particular de concessão federal ou estadual), as administradas pelos Estados (arrendadas pela União, de propriedade estadual, e de propriedade particular de concessão federal ou estadual), e as administradas por particulares (arrendadas pela União, arrendadas pelos Estados, e de propriedade particular de concessão federal ou estadual). Por fim, as ferrovias também eram classificadas de acordo com a área de abrangência: (I) Região Norte; (II) Região Nordeste; (III) Região Leste; (IV) Região Sul; e (V) Região Centro-Oeste.
A classificação de ferrovias por categoria, porém, caiu em desuso com a unificação das estradas de ferro pertencentes à União na RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.) em 1957, e a posterior erradicação de diversas linhas pertencentes às antigas ferrovias de terceira categoria e diversos ramais daquelas que pertenciam à primeira e segunda categorias. Em São Paulo, ocorreu processo similar com a unificação das ferrovias pertencentes ao governo estadual na Fepasa (Ferrovias Paulistas S.A.) em 1971.
As posteriores reestruturações da RFFSA contemplaram a unificação de suas linhas em catorze divisões operacionais no ano de 1969, seguida da criação das doze Superintendências Regionais, reunindo as ferrovias de operações similares em torno de sistemas ferroviários locais em 1975. Em 1992, foram organizadas em seis malhas macrorregionais, organização que prevaleceu até o fim das operações da empresa e que serviu de orientação para o processo de privatização. Já a Fepasa possuía uma organização interna em sete Unidades Regionais, que foram extintas nos últimos anos da empresa, e em 1998, sua malha foi incorporada à RFFSA como Malha Paulista para o processo de privatização.
2. Competição e monopólios no setor ferroviário
Na teoria econômica mainstream, a competição é analisada segundo uma classificação em diferentes modelos, com diferentes premissas e resultados (BASTOS, 2016). Essa parametrização se baseia em quatro critérios: condições de entrada e saída do mercado, número e tamanho dos produtores e consumidores, tipo de produto e informação. As ferrovias são comumente enquadradas na categoria dos monopólios naturais. Segundo Samuelson (1949, s/p):
Sob constantes custos decrescentes para as firmas, uma ou algumas empresas expandirão suas produções de forma que tomarão uma parcela significativa do total do mercado. Nós então terminaríamos com (1) uma única firma monopolista dominando toda a indústria; (2) um pequeno grupo de grandes firmas dominando o mercado... ou (3) alguma forma de competição imperfeita que, ou é estável ou se encontra em uma intermitente guerra de preços, em uma notória ruptura do modelo econômico de competição “perfeita” no qual nenhuma firma tem controle sobre os preços ou o mercado.
Nessa situação, como argumenta Durço (2015), a intervenção estatal é necessária para conter o poder de mercado das firmas monopolistas, seja de forma direta (com a criação de uma empresa pública), seja pela indireta (a criação de uma agência reguladora encarregada de regular a companhia monopolista). Essa teoria, entretanto, tem se mostrado cada vez mais limitada para explicar a realidade do mercado ferroviário, visto que no mundo inteiro as entidades têm sido obrigadas a promover desregulamentações no setor. Apesar do reconhecimento da ineficiência gerada pelos monopólios regulados e da importância de incrementar a competição, a crença na necessidade de regulações permanece inalterada pela teoria econômica convencional.
Há dois pontos principais de divergência entre o mainstream e a Escola Austríaca. O primeiro refere-se ao conceito de competição: Para os austríacos, a concorrência é um processo de rivalidade intrínseco à atividade empresarial, enquanto na teoria neoclássica, a concorrência é associada a um estado de equilíbrio. E a adoção de conceitos distintos de competição traz interpretações distintas do fenômeno do “monopólio natural” e tratamentos distintos sobre esse fenômeno.
Na definição austríaca, um único produtor incorrer nos menores custos de produção em qualquer delimitação espacial ou temporal é um fenômeno irrelevante no processo concorrencial, enquanto que, na teoria neoclássica, essa situação é um caso monopolista a ser regulado. Segundo Barbieri (2012), a causa desse equívoco é a adoção do modelo de competição perfeita como ferramenta de estudo dos fenômenos de mercado: um mercado competitivo passou a ser um arranjo atomizado (com produtores e consumidores infinitamente pequenos) com produtos perfeitamente homogêneos, demanda perfeitamente elástica e preço igual ao custo marginal de produção.Com isso, práticas como a publicidade, economias de escala, e diferenciação de produtos e preços passaram a ser vistas como sinais de atividade anticompetitiva, e diversos mercados, como o ferroviário, passaram a ser vistos como inevitavelmente monopolistas.
O segundo diz respeito à regulação dos monopólios: Enquanto os neoclássicos abordam a questão de alocações eficientes como um problema puramente técnico, os austríacos priorizam a discussão da liberdade de entrada no mercado. O principal argumento para justificar regulações econômicas sobre as ferrovias é que a presença de uma única empresa em um dado local resultaria em preços acima do custo marginal e uma oferta de serviços abaixo do desejado (o que ocorreria em um mercado competitivo). O papel do órgão regulador, então, seria fixar o preço dos serviços para igualá-los ao custo marginal, visando emular o equilíbrio competitivo nesse mercado.
Na visão austríaca, o principal ponto a ser discutido é a questão da liberdade de entrada e a formação dos monopólios, e não a regulação dos mesmos quando já consolidados. Em um mercado não obstruído, a possibilidade de entrada de novas empresas inviabiliza a formação de preços monopolistas, visto que os consumidores passarem a preferir os concorrentes. Como argumenta Armentano (2005), a diferenciação de preços e produtos só agem como uma barreira à entrada se os consumidores preferem as diferenciações, dificultando assim a entrada de novos concorrentes no mercado.
Já a questão de economias de escala falha em explicar a relação causal com os preços monopolistas (DEMSETZ, 1968). Economias de escala explicam que, quanto maior a produção, menor o custo unitário, mas não há nenhuma explicação lógica de quando os produtores passariam a praticas preços de monopólio. Segundo Demsetz (1968), o argumento da teoria convencional não é válido mesmo em um modelo de licitações: em um leilão competitivo e sem conluio entre participantes, os preços obtidos tenderão aos que ocorreriam em um mercado tido como competitivo.
Outra justificativa comumente apresentada para a criação de monopólios nas indústrias de serviços públicos é o da impossibilidade da duplicação de infraestrutura (DAYCHOUM; SAMPAIO, 2017). Segundo a teoria, a livre concorrência em algumas indústrias seria muito custosa ou inconveniente aos consumidores e à sociedade, devido às dificuldades na construção de infraestrutura. Entretanto, esse argumento carece de evidências históricas. Segundo Behling (1938, s/p):
Dificilmente há cidades no país que não tenham presenciado a competição em uma ou mais indústrias de serviços públicos. Seis companhias elétricas estavam organizadas no ano de 1887 em New York. Quarenta e cinco empresas de luz possuíam licença para atuar em Chicago em 1907. Antes de 1895, Duluth, Minnesota, era servida por cinco empresas de iluminação, e Scranton, Pennsylvania, tinha quatro em 1906... No final do Século XIX a competição era comum na indústria de gás em todo o país. Antes de 1884, seis companhias concorrentes operavam em New York... A competição era comum e persistente na indústria de telefonia. De acordo com um relatório especial de 1902, de 1051 cidades nos Estados Unidos com uma população superior a 4.000 habitantes, 1002 contavam com instalações telefônicas. As companhias independentes tinham monopólio em 137 cidades, o grupo Bell tinha controle exclusivo na comunicação telefônica em 414 cidades, enquanto as 451 restantes tinham serviços duplicados. Baltimore, Chicago, Cleveland, Columbus, Detroit, Kansas City, Minneapolis, Philadelphia, Pittsburgh, e St. Louis, dentre as maiores cidades, tinham ao menos duas companhias telefônicas em 1905.
No caso específico da indústria ferroviária, além da histórica presença de rivalidade entre diversas companhias, ainda há a questão da possibilidade do compartilhamento de infraestrutura, que permite o uso dos mesmos trilhos por mais de um operador em serviços compartilhados. A melhor solução para o uso racional da infraestrutura é a liberdade entre os operadores para o uso e construção da mesma, da forma mais eficaz para atender às demandas dos consumidores. Se mesmo havendo liberdade para que mais de uma companhia ferroviária sirva uma localidade e os consumidores desejarem ser servidos por apenas uma delas, a questão do monopólio, recai sobre a preferência dos consumidores, e não em alguma limitação do mercado.
O mercado ferroviário também pode ser classificado, na teoria neoclássica, como um exemplo de competição monopolista - uma situação na qual há diversas empresas concorrendo entre si, mas cada uma fornece produtos ou serviços únicos (MANKIW, 2005). Essa situação também é descrita por Hayek (1948) e Rothbard (1962) como monopólio do produtor único, porém não é vista como um problema à competição, visto que praticamente todo produtor pode ser considerado, em última instância, o monopolista de seus próprios produtos. Em muitos mercados - especialmente o de serviços, como o de transportes - essa afirmação se mostra particularmente difusa e até vazia de significado, pois a função da livre concorrência é exatamente fornecer produtos distintos para necessidades distintas.
A proposta do uso de uma comissão reguladora para a regulação do mercado contém duas contradições. A primeira reside na ideia do regulador estabelecer os preços e quantidades que prevaleceriam em competição: para que isso seja possível, é necessário pressupor que os reguladores e regulados conheçam perfeitamente os custos e demais grandezas envolvidos na produção dos bens, e que seja possível conhecer os preços e custos sem o mecanismo de mercado (já que o processo competitivo foi bloqueado pela regulação). Se preços e custos fossem dados de forma independente da atividade empresarial, seria possível dispensar todo o mecanismo de mercado, cuja principal razão de existir é para que os agentes descubram as grandezas envolvidas no ambiente de mercado.
A segunda reside na ideia de que o governo interferir e regular tais mercados seja uma alternativa capaz de fornecer resultados melhores. Neste ponto, o mainstream faz uso do que Bastos (2016) define como um “semi-individualismo metodológico”: o mercado é visto como imperfeito por ser formado por indivíduos falíveis e auto interessados, mas essas falhas devem ser inexistentes entre os reguladores, que regulam o mercado para torna-lo perfeito. Além dos economistas austríacos, essa questão também é evidenciada por Stigler (1971) e pelos teóricos da Escola Pública4, ao demonstrar (utilizando como principal exemplo a ICC norte americana) que essas regulações frequentemente produzem efeitos opostos daqueles almejados pela teoria.
É evidente, então, o contraste entre as visões austríaca e neoclássica de competição: para os primeiros, o mercado é um processo de descoberta das melhores formas de servir os consumidores, e os monopólios são os bloqueios governamentais à atividade concorrencial. á para os últimos, não há mais nada a ser descoberto - os agentes sempre trabalham com funções conhecidas, com o objetivo de atingir alocações eficientes. Dessa forma, abre-se espaço para uma análise que ignora as reais causas de monopólios no mercado ferroviário, o que inevitavelmente resulta em propostas de políticas públicas equivocadas para o setor.
3. As ferrovias brasileiras
A malha ferroviária brasileira possui cerca de 29,3 mil quilômetros de extensão, e possui sua atual configuração criada no processo de privatização da malha pertencente às antigas estatais RFFSA e Fepasa na década de 1990 (ANTT, 2020). Destes, 28.2 mil quilômetros encontram-se distribuídos em catorze concessões feitas pela União (majoritariamente da malha pertencente às antigas estatais), e 1.085 em ferrovias particulares, Veículos Leves sobre Trilhos (VLTs) e sistemas metroviários. O subsistema ferroviário brasileiro é subordinado ao Ministério dos Transportes, possui como agência reguladora a ANTT, e principais entidades de representação da indústria ferroviária a ANTF (Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários), ANPTrilhos (Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos), ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos), e CNT (Confederação Nacional dos Transportes). O Brasil possui um sistema ferroviário muito aquém do necessário, tanto em extensão como em qualidade dos serviços, e necessita reformas urgentes para o destravamento dos atuais gargalos que restringem o seu crescimento e, consequentemente, o desenvolvimento socioeconômico do País como um todo.
4. História das ferrovias brasileiras
A primeira ferrovia a ser construída no País foi a Estrada de Ferro Petrópolis, com base no Decreto nº 987 de 12 de junho de 1852, inaugurada no dia 30 de abril de 1854 (EDMUNSON, 2016). Pouco tempo depois, já com base na legislação do decreto nº 641 (promulgado duas semanas depois) foram fundadas a E.F. Recife ao Cabo (inaugurada no dia 08 de fevereiro de 1858), E.F. Pedro II (inaugurada em 29 de março de 1858); e E.F. Bahia ao São Francisco (cuja inauguração se deu no dia 28 de junho de 1860). Nos anos seguintes, o florescimento das ferrovias de abrangência local ganhou impulso com as modificações na legislação de 1852 para estimular o crescimento da rede ferroviária no País.
Porém, o progressivo afrouxamento das normas técnicas promoveu um crescimento ineficiente do setor ao longo do tempo, uma vez que as novas medidas passaram a viabilizar diversas estradas de ferro que não seriam rentáveis nas condições normais de mercado (TELLES, 1984). Destas mudanças, a de maior destaque é o Decreto nº 2.450 de 24 de setembro de 1873, por meio do qual a União concedia subsídio de trinta contos de réis por quilômetro de linha. Na prática, criava-se um incentivo à ineficiência, visto que as estradas de ferro de custo inferior a 30 contos por quilômetro seriam construídas praticamente de forma gratuita para as companhias ferroviárias (EDMUNDSON, 2016; GOMIDE, 2011).
Com isso, proliferou-se pelo País um grande número de estradas de ferro de estradas de ferro de pequeno porte, e construídas ao menor custo possível com bitolas estreitas e traçados sinuosos. Na década de 1880, cerca de 43% da rede ferroviária nacional era formada por companhias dependentes dos pagamentos garantidos pelo Estado, por causa da insuficiência na geração de caixa em suas próprias operações (EDMUNDSON, 2016). Com a proclamação da República e as turbulências políticas e econômicas da chamada crise do Encilhamento, essa situação logo se mostrou insustentável, devido à redução da capacidade da União em efetuar os pagamentos dos subsídios necessários para tantas ferrovias.
Como observado por Nunes (2016) e Telles (1984), além da supressão dos subsídios governamentais, a deterioração do sistema ferroviário também se deveu à desvalorização da moeda nacional, que restringiu severamente a capacidade das companhias de adquirir novos equipamentos. Além disso, o crescimento da demanda por serviços de transporte que exigiam maior manuseio de bagagens e mercadorias também prejudicou a situação das companhias, por exigir um aumento expressivo nas despesas com mão de obra. Para reverter essa situação, foi promovida, nos primeiros anos da República, a primeira reestruturação do setor ferroviário, com a fusão de várias linhas férreas pequenas em malhas maiores, visando a promoção de ganhos de escala nas operações.
Dessa forma, mesmo com os notáveis aumentos na demanda pelo transporte ferroviário durante a Primeira República, as empresas ferroviárias brasileiras enfrentavam complicações financeiras cada vez maiores decorrentes do progressivo aumento dos custos operacionais (NUNES, 2016). Sem grandes reformas institucionais de longo prazo para reverter o quadro de declínio do setor, a primeira metade do Século 20 seria marcada pelo gradual avanço da participação estatal, e pelo constante aumento dos déficits que exigiu a elaboração de um novo programa de reestruturação. Na década de 1950, foi proposta pela Comissão Mista Brasil-Estados Unidos uma reorganização da malha ferroviária com a erradicação de uma série de ramais de baixa densidade, apontados como a principal causa dos déficits operacionais.
Nas duas décadas seguintes, o programa de erradicação de ramais deficitários riscou a maioria das ferrovias de pequeno porte e grande parte dos ramais secundários das maiores empresas, que já vinham enfrentando forte concorrência das rodovias desde a década de 1920 (NUNES, 2016). A reforma ganhou força com a unificação de cerca de vinte companhias ferroviárias pertencentes ao Governo Federal na Rede Ferroviária Federal S.A., em 1957, e foi realizada segundo diretrizes bastante controversas, visto que as políticas públicas da época também desejavam priorizar o modal rodoviário por meio da substituição de ferrovias por estradas de rodagem. Mesmo assim, devido à falta de priorização adequada e em razão das crescentes ineficiências da gestão estatal, o transporte sobre trilhos declinou até a beira do colapso na década de 1990, e os investimentos só foram retomados após a privatização de ambas as estatais no Programa Nacional de Desestatização.
5. As ferrovias na América do Norte
O transporte ferroviário na América do Norte é notório por sua alta competitividade e por ser majoritariamente voltado para o transporte de mercadorias. Juntos, os sistemas ferroviários dos Estados Unidos, Canadá e México possuem 396.700 quilômetros de linhas operados majoritariamente por empresas privadas, em um regime regulatório que confere ampla liberdade de atuação para a competição intra e intermodal (LANZA, 2019). Consequentemente, os negócios ferroviários na América do Norte destacam-se pela alta competitividade, diversidade de serviços e baixos preços para os clientes.
Com 293.500 quilômetros de linhas operados por 8 companhias Classe I, 24 ferrovias Classe II e 579 companhias Classe III, os Estados Unidos possuem o mais extenso e movimentado sistema ferroviário do mundo e concentram a maior parte da atividade ferroviária na América do Norte. As ferrovias nos Estados Unidos são reguladas pelo Department of Transportation, cujas agências subordinadas são a FRA (Federal Railroad Administration), responsáveis pelas normas de segurança; e pela STB, que fiscaliza as tarifas, construção e desativação de linhas férreas, fusões, aquisições e vendas entre companhias ferroviárias e direito de passagem entre as empresas. A grande maioria das estradas de ferro nos Estados Unidos é dedicada ao transporte de mercadorias, ao passo que o transporte de passageiros (que outrora representava uma parcela importante do mercado ferroviário) desempenha um papel bastante limitado através da estatal Amtrak e algumas shortlines pertencentes aos governos locais (SANTOS, 2012).
Já o Canadá, com 77.932 quilômetros de linhas operados por sete companhias ferroviárias Classe I e 53 ferrovias Classe II, possui um mercado ferroviário com uma dinâmica similar a dos Estados Unidos, bem como um desenvolvimento histórico próximo o suficiente para que seja possível contar a história ferroviária de ambos os países de forma conjunta. As ferrovias canadenses são subordinadas ao Ministry of Transportation, e reguladas pelo departamento Transport Canada, responsável pela fiscalização de tarifas e normas de segurança. E da mesma forma que nos Estados Unidos, as ferrovias canadenses também são destinadas ao transporte de cargas, sendo os serviços de passageiros uma atividade secundária exercida pela estatal Via Rail e algumas shortlines (SANTOS, 2012).
Dos três países norte-americanos, o México possui o menor sistema ferroviário (com apenas 15.389 quilômetros de extensão), e diverge por ser o único a ter estatizado sua malha ferroviária e não possuir serviços de transporte de passageiros de longa distância. Se por um lado, o mercado ferroviário mexicano é o menos desenvolvido da América do Norte, é o mais desenvolvido dos latino-americanos, no referente à competitividade e à atuação das associações da indústria ferroviária. Por fim, as ferrovias mexicanas são subordinadas à Secretaría de Comunicaciones e Transportes (SCT) e eram reguladas pela mesma até a criação da Agencia Reguladora del Transporte Ferroviario, em 18 de agosto de 2016, como um departamento especializado no setor ferroviário, com o objetivo de resolução de conflitos entre os usuários e as concessionárias e entre as concessionárias, bem como a fiscalização das normas de segurança da rede ferroviária e a construção de novas linhas.
6. História das ferrovias norte-americanas
A história ferroviária estadunidense tem início com a inauguração da Baltimore & Ohio em maio de 1830. Nas primeiras três décadas, o desenvolvimento da malha ferroviária se deu de forma relativamente livre, com claros direitos de propriedade às primeiras companhias ferroviárias para a realização de investimentos nessa indústria nascente (PINHEIRO; RIBEIRO, 2017). Esse processo foi freado durante a Guerra de Secessão (1861-1865), durante a qual foi amplamente promovida a integração e padronização das malhas de diversas companhias, com o intuito de facilitar o deslocamento de tropas e suprimentos pelo território do país.
Após o fim do conflito, teve início a Era da Reconstrução (1863-1877), durante a qual a indústria ferroviária ganhou um caráter simbólico de ferramenta de integração nacional. Nesse período, tiveram início os primeiros programas governamentais de subsídio para a construção das estradas de ferro transcontinentais, cujos resultados práticos foram o incentivo aos maus investimentos no setor. A despeito disso, a indústria ferroviária norte americana se tornou uma das mais competitivas do mundo, e os consumidores presenciaram uma queda das tarifas duas vezes maior que a média dos preços no mercado entre 1865 e 1887.
Entretanto, não demorou a ganhar apoio da imprensa a ideia equivocada de que a riqueza de um grupo de empreendedores bem sucedidos (os chamados “barões ladrões”) era oriunda da exploração de trabalhadores e extorsão dos consumidores (DILORENZO, 2004). No dia 04 de fevereiro de 1887, o Congresso dos Estados Unidos promulgou o ICC Act, por meio do qual foi criada a primeira agência reguladora do mundo e a indústria ferroviária foi a primeira a ser regulada pelo governo. Posteriormente, essa tendência regulatória se refletiu em todo o mundo, através da criação de agências reguladoras e da estatização de ferrovias durante a maior parte do século 20.
O avanço da competição com o modal rodoviário, na década de 1920, levou a ICC a incentivar a fusão de companhias ferroviárias deficitárias com empresas lucrativas, com o intuito de manter a operacionalidade do sistema ferroviário através de subsídios cruzados (KEELER, 1983). Entretanto, esse planejamento não logrou êxito, em decorrência dos protestos dos executivos de diversas companhias a respeito da obrigatoriedade de arcar com operações deficitárias. A concorrência das empresas de transporte rodoviário foi finalmente barrada com a promulgação do Motor Carrier Act, em 09 de agosto de 1935, por meio do qual o transporte de ônibus e caminhões passou a ser regulado pela ICC, da mesma forma que as companhias ferroviárias, e cinco anos depois, foi aprovado o Transportation Act de 1940, estendendo a regulação sobre o transporte aquaviário.
O processo de cartelização do mercado de transportes atingiu seu auge com a aprovação do Reed-Bulwinkle Act em 1948, por meio do qual foi aprovada a criação de escritórios de representação de transportadoras rodoviárias para o estabelecimento de tarifas (KEELER, 1983). Apesar desse arranjo regulatório ter mantido o setor de transportes nos Estados Unidos relativamente próspero, a indústria ferroviária começou a mostrar sinais de declínio cada vez maiores. O modal rodoviário vinha se mostrando um formidável concorrente das ferrovias, e a concorrência que a ICC e Transport Canada mantinham sob controle até 1940, começou a se acentuar após o fim da Segunda Guerra e a comprometer a rentabilidade das companhias ferroviárias.
O processo de desregulação do mercado de transportes teve início nos Estados Unidos com a promulgação do Transportation Act de 1958, e no Canadá, com o National Transportation Act de 1967, estabelecendo os primeiros mecanismos de aumento da livre concorrência para a fixação de tarifas e entre os modais de transporte, respectivamente. A maior liberdade concorrencial, entretanto, acentuou os déficits dos serviços ferroviários de passageiros e em diversos ramais secundários, o que levou ao aumento da pressão da indústria ferroviária pela descontinuidade dos trens de passageiros e pela liberdade de erradicação de ramais deficitários. A questão dos serviços de passageiros foi solucionada com a criação das estatais Amtrak e VIA Rail, que assumiram a maior parte dos serviços de passageiros das companhias privadas, embora a prestação de tais serviços tenha continuado livre para qualquer interessado capaz de cumprir os requisitos necessários de segurança operacional.
Já a parte mais crítica dessas reformas foi a reestruturação da malha ferroviária do nordeste dos EUA, devido ao enorme impacto da falência da companhia Penn Central e os enormes prejuízos operacionais acumulados pela empresa. Com a promulgação do 3R5 act, em 1976, teve início a gradual redução dos poderes da ICC, acompanhada da criação da United States Railway Association (USRA) para a elaboração do plano de reestruturação e da companhia ferroviária estatal Conrail, incumbida da execução do mesmo. Quatro anos depois, Staggers Rail Act desregulou a indústria em larga escala, substituindo grande parte da estrutura regulatória vigente até então.
Nos anos seguintes à promulgação do Staggers Act, ocorreu nos Estados Unidos uma ampla onda de fusões e aquisições entre as companhias ferroviárias Classe I (KEELER, 1983). Das cerca de 40 companhias presentes em 1980, restaram apenas 32 em 1982; posteriormente nove foram rebaixadas para Classe II ou III, devido às mudanças nos critérios de classificação, duas foram à falência e as outras 19 fundiram-se em sete companhias na década de 1990. A onda de fusões entre companhias intensificou o processo de venda e desativação de ramais, visto que diversas linhas se tornaram redundantes com a união de malhas que, muitas vezes, possuíam diversos ramais para as mesmas localidades (ALLEN et al., 2002). Com as companhias Classe I direcionando seus negócios para as operações de alta densidade, surgiu um amplo leque de oportunidades para pequenos e médios empreendedores entrarem no mercado ferroviário prestando serviços regionais, que vinham sendo descontinuados por serem considerados pouco lucrativos para as empresas maiores.
7. A experiência mexicana
A primeira tentativa de desenvolvimento de uma ferrovia no México data de 1837, quando o governo criou uma concessão para a construção de uma linha que ligasse a Cidade do México à Veracruz, porém nenhuma obra foi construída sob tal contrato. Duas décadas depois, o empresário Antonio Escandón obteve autorização governamental para a construção de uma estrada de ferro ligando as mesmas duas cidades, porém devido às agitações políticas da época, o empreendimento foi assumido pelo governo, em 1864, e foi inaugurado apenas em 1º de janeiro de 1873. Da mesma forma que nos Estados Unidos e Canadá, o governo mexicano também incentivou a expansão ferroviária através de subsídios, o que fez a malha ferroviária do país saltar dos 691 quilômetros de 1876 para cerca de 24.000 quilômetros de linhas em 1911 (HARDY, 1934).
Em meio a uma série de turbulências políticas, principalmente após o fim do Porfiriato (1876-1911), as condições das ferrovias mexicanas se deterioraram gradativamente, e a malha ferroviária foi progressivamente encampada pelo governo. Em 1987, as seis companhias ferroviárias existentes foram unificadas na estatal Ferrocarriles Nacionales de Mexico, mas a ineficiência crônica da gestão estatal pouco contribuiu para a melhoria de qualidade nos serviços (PERKINS, 2016). Em 1995, o governo mexicano anunciou a privatização da FNM, que contemplaria uma divisão da malha da estatal em quatro sistemas principais: três troncos regionais com conexões às ferrovias estadunidenses e a malha da região da Cidade do México.
O processo de reestruturação ferroviária contemplou a absorção do passivo da companhia, visando a transferência das operações às concessionárias sem dívidas, a supressão dos serviços de passageiros de longo percurso, e finalmente, a etapa dos leilões das linhas a serem concessionadas. A divisão foi estruturada visando tanto competição intermodal como intramodal, permitindo que pelo menos duas concessionárias tivessem acesso tanto aos portos do Oceano Atlântico, como do Pacífico, bem como as integrações ferroviárias com os Estados Unidos. Por fim, as ferrovias regionais foram concessionadas de forma separada e com prazos de concessão de 30 anos, em contraste com os 50 anos das malhas principais (PINHEIRO; RIBEIRO, 2017).
Dentre as shortlines, a de maior destaque é a Ferrovalle (Ferrocarril y Terminal del Valle de Mexico), responsável pela movimentação de mercadorias na região da Cidade do México e operada conjuntamente pelas três maiores concessionárias e pelo governo mexicano, sendo cada um proprietário de 25% das ações. Já as demais (Línea Corta, Baja California, CG Railway, Ferrocarril Transistmico, e Ferrocarril Chiapas-Mayab) foram adquiridas por outras indústrias e possuem uma dinâmica similar à dos Estados Unidos e Canadá, baseada em movimentação de mercadorias de particulares e alimentação do tráfego das linhas tronco das companhias Classe I. O processo de reestruturação ferroviária no México resultou na desativação de cerca de 9.000 quilômetros de linhas, e embora a privatização tenha trazido melhorias significativas nas operações dos principais corredores ferroviários do país, a participação das ferrovias de pequena abrangência e baixa densidade ainda mostra-se bastante limitada, em decorrência da forte concorrência com o modal rodoviário e da limitação à entrada de novas empresas por meio da aquisição de ramais desativados pelas concessionárias.
8. Entraves ao desenvolvimento das shortlines no Brasil
O principal obstáculo ao desenvolvimento das shortlines no Brasil é a forma de exploração do transporte ferroviário. Como essa atividade vem sendo desenvolvida desde 1934 pela União, embora passível de ser transferida à iniciativa privada através da licitação de concessões de prazo determinado, o modelo de negócios predominante no setor é o da concessão de serviços públicos, baseada na garantia de privilégios de monopólio dos mesmos. Esse modelo restringe severamente o principal incentivo para a melhoria de qualidade e redução de preços aos consumidores: a entrada de novas empresas no mercado. E a qualidade dos serviços prestados aos clientes é inevitavelmente comprometida, a despeito da constante imposição de metas de produtividade e investimentos impostas pela agência reguladora.
Além da limitação da concorrência, o modelo de concessões também limita o horizonte temporal dos negócios. Como os contratos são de tempo limitado, o planejamento das empresas fica restrito ao período estabelecido nos contratos e, consequentemente, os investimentos nas concessões tendem a ser concentrados no início dos períodos contratuais e apenas se o retorno puder ser embolsado dentro dos mesmos. Tal limitação se deve ao fato de as empresas não serem proprietárias, mas apenas operadoras dos negócios, que podem ser encerrados mediante cassação ou vencimento dos contratos.
Por causa dessa falta de incentivos à produtividade, as empresas tendem a realizar rigorosamente o mínimo que seus contratos permitem, resultando em uma crônica deficiência de investimentos no mercado. Com isso, muitos ramais secundários cujos investimentos em modernização apresentaram payback mais prolongado que os prazos das concessões deixaram de receber atenção das concessionárias, que voltaram os recursos para os corredores de exportação, de operações mais simples e retorno mais seguro no médio prazo (CNI, 2020). Apesar disso, esses ramais permanecem ociosos ou subutilizados devido à ausência de mecanismos de transferência para outros operadores e regras claras de compartilhamento de infraestrutura que viabilizem o uso dos mesmos nos moldes das shortlines norte-americanas.
O regime de autorizações, embora existente no atual arcabouço regulatório e adequado para a operação desses ramais, permanece subutilizado por ser limitado à estradas de ferro enquadradas como particulares, em um cenário no qual virtualmente todo projeto ferroviário se enquadra como público - e portanto, devendo ser operado no regime de concessões. A situação também é agravada pela discrepância no tratamento dado ao transporte de mercadorias próprias (atividade particular) e de terceiros (serviço público), que incentiva a priorização da movimentação de cargas dos acionistas em detrimento dos demais clientes. Essas regulamentações, se não revistas, permanecerão inibindo o crescimento da oferta de serviços de transporte por parte dos operadores, perpetuando o problema entre as eventuais shortlines caso não seja revista no novo regime regulatório.
Considerações finais
Nos Estados Unidos e Canadá, o mercado ferroviário sempre foi pautado na propriedade privada dos ativos, sendo o principal papel dos atuais órgãos fiscalizadores, a vigilância de normas de segurança. Apesar da existência de duas companhias ferroviárias estatais, responsáveis pelo transporte de passageiros de longo percurso, essas atividades podem ser prestadas por qualquer operador interessado nas mesmas e que capaz de cumprir as normas técnicas requeridas pelos órgãos fiscalizadores. Como exemplo, podem ser citadas as diversas shortlines pertencentes aos governos locais, que prestam esses serviços em âmbito regional/local, como a Alaska Railroad e Long Island Railroad.
Tanto no Brasil, como no México, ocorreu um gradativo processo de estatização das ferrovias no século 20 e um posterior retorno das ferrovias à iniciativa privada por meio de concessões. Em ambos os países, a falta de mecanismos de transferência de linhas que não interessam às concessionárias para outros operadores representa um entrave significativo à entrada de novas empresas no setor, bem como na ociosidade de porções consideráveis da malha ferroviária. No caso mexicano, a divisão da malha e dos trechos compartilhados foram feitos visando o aumento da competição intramodal, enquanto que, no Brasil, a falta de clareza de tais mecanismos inibe o desenvolvimento de operações compartilhadas e a concorrência entre as concessionárias.
Visando esclarecer o que pode ser feito e modificado no atual cenário nacional, serão apresentadas a seguir as seguintes propostas para o fomento de novas iniciativas ferroviárias no mercado ferroviário:
Criação de um mecanismo de transferência de linhas férreas entre empresas;
Ampliação do uso do regime de autorizações;
Ampliação dos mecanismos de compartilhamento de infraestrutura;
Revisão do modelo de exploração do transporte como atividade comercial;
Criação de um ambiente regulatório diferenciado para as shortlines;
Revisão do planejamento do setor de transportes.
A falta de incentivos concorrenciais entre as concessionárias se deve, essencialmente, a três fatores: (I) Restrição de entrada de novas empresas; e (II) incentivo ao transporte de mercadorias próprias; e (III) poucos incentivos ao compartilhamento de infraestrutura. A limitação à entrada de novas empresas no mercado ferroviário pode ser solucionada com uma revisão da jurisdição atual para permitir o uso de autorizações em projetos de caráter público, seja para viabilizar o resgate de ramais ociosos como para a construção de novos empreendimentos. Dessa forma, pode-se utilizar um regime regulatório mais flexível que o das atuais concessões, como maior liberdade e prazos indeterminados para investimentos e maior priorização em normas de segurança.
Já a criação de incentivos para o aumento da oferta de serviços de transporte pode ser feita com uma revisão do atual tratamento dado ao transporte de cargas próprias e de terceiros, e pelo aumento do uso do direito de passagem além do tráfego mútuo. No compartilhamento por tráfego mútuo, é necessário que uma companhia, ao adentrar na área de outra empresa, desengate suas locomotivas e entregue a composição para a outra companhia, que traciona o material até o destino final. Já pelo mecanismo de direito de passagem, a companhia visitante pode utilizar suas locomotivas livremente na malha da outra e entregar as mercadorias diretamente ao destinatário, de forma muito mais eficiente que pela operação anterior.
Como o uso de capacidade de tráfego disponível é um bem escasso, é essencial a criação de incentivos para investimentos em aumento da capacidade, em detrimento do atual regime de imposição de metas operacionais às empresas. Outra medida de grande impacto é a criação de um mecanismo de fiscalização pelo poder público como ocorre nos Estados Unidos e Canadá, onde um embarcador não pode assinar com uma companhia ferroviária um contrato no qual a empresa em questão seja impedida de prestar serviços de transporte para outros clientes. Também é essencial a criação de uma classificação de companhias ferroviárias por porte, visando uma diferenciação regulatória (fiscal e trabalhista, por exemplo) para as shortlines em relação às ferrovias principais.
Com tais medidas, a redução das barreiras de entrada ao mercado ferroviário promoverá a médio e longo prazo uma diversificação de serviços, propiciando que novas empresas, além dos grandes embarcadores de minérios e grãos, possam prestar serviços de transporte ferroviário. Entretanto, esse planejamento depende de outras alterações significativas no ambiente de negócios no País para a sua viabilização, tendo em vista as particularidades da indústria ferroviária. A mais importante diz respeito ao planejamento logístico do País no médio e longo prazo, visto que o desenvolvimento das ferrovias de pequeno porte depende fortemente das condições do frete rodoviário. Muitos fluxos de mercadorias não cativas do modal ferroviário deixaram de ser transportadas pelas ferrovias na década de 2000, quando o governo forneceu amplos programas de crédito para a renovação da frota de caminhões.
A viabilidade de iniciativas por parte dos governos estaduais e municipais também depende de uma revisão do pacto federativo, visto que a atual distribuição de recursos no setor público concentra mais recursos no governo federal do que nos estaduais e municipais. O exemplo mais notório no setor ferroviário é a Companhia Brasileira de Trens Urbanos, empresa federal criada em 1984, com a finalidade de reestruturar os caóticos sistemas de trens de subúrbio da RFFSA e transferi-los aos governos estaduais. Entretanto, como muitos sistemas de subúrbio não foram estadualizados ou municipalizados devido à incapacidade dos estados em assumir as ferrovias, esse tema pode ser retomado com o eventual tratamento de tais ferrovias da mesma forma que as shortlines a serem desenvolvidas dentro do marco iniciado com o PL 261.
Em resumo, a viabilização de shortlines no Brasil dependerá da criação de um ambiente de negócios mais orientado à livre concorrência e menos no protagonismo estatal. Caso os próximos governos consigam realizar as reformas apontadas, a proposta certamente será de grande contribuição para a revitalização de grande parte da malha ferroviária e uma expansão e diversificação do mercado ferroviário para além do transporte de minérios e grãos, e a consequente redução dos custos logísticos para muitas outras indústrias no País.
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Notas
Autor notes
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