History of Economic and Political Thought
Do Tiranicídio*
On Tyrannicide
Do Tiranicídio*
MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy Law and Economics, vol. 4, núm. 1, pp. 203-207, 2016
Instituto Ludwig von Mises - Brasil
Resumo: O texto corresponde a uma passagem do Livro VI da obra Defensio Fidei Catholicae et apostolicae adversus Anglicanae sectae errores, de Francisco Suárez. Por abordar a questão dos limites do poder monárquico, trata-se de uma das obras mais importantes na fundamentação do pensamento político liberal na modernidade.
Palavras-Chave: Francisco Suárez, Liberalismo político, Tiranicídio.
Abstract: The text is a passage from the Livro VI of Francisco Suárez’s Defensio Fidei Catholicae et apostolicae adversus Anglicanae sectae errores. As it addresses the issue of the limits of monarchical power, it is one of the most important works in the foundations of modern liberal political thought.
Keywords: Francisco Suárez, Political liberalism, Tyrannicide.
I - Comentários Introdutórios
O texto traduzido a seguir é extraído de uma passagem do Livro VI da obra Defensio Fidei Catholicae et apostolicae adversus Anglicanae sectae errores, de Francisco Suárez, S.J. (1548-1617): “Liber VI de Iuramento Fidelitatis Regis Angliae”, onde o filósofo espanhol refuta todas as considerações sobre a legitimidade jurídica do juramento de fidelidade imposto pelo Rei Jaime I da Inglaterra (15661625), documento empregado para chancelar a obrigação de consciência dos súditos da Coroa, especialmente dos fiéis católicos ingleses, coagindo-os a negar a jurisdição espiritual da Igreja de Roma em prol da cumulação do poder eclesiástico e civil. A tese subjacente ao juramento era a da teoria do direito divino dos reis, invocada em favor da soberania real e em oposição à liberdade de consciência e de culto dos fiéis ingleses. De acordo com Jaime I, os reis são instituídos direta e imediatamente por Deus, sem a participação da comunidade civil em sua designação e sem qualquer atinência a autoridade espiritual do Sumo Pontífice. Contrapondo a argumentação aí presente, Suárez refuta o amplexo das colocações expostas na obra The Trew Law of Free Monarchies de autoria do próprio monarca, particularmente na parte relativa à “Apologia pro Iuramento Fidelitatis”. Nesse documento, Jaime I advoga a própria legitimidade para impor aos súditos católicos ingleses a obrigação de consciência acerca de assuntos espirituais, pari passu o devido respeito à sua autoridade temporal. Expõe a validade do juramento de fidelidade imposto aos súditos, obrigando-os à fidelidade moral, espiritual e, em última análise, de consciência. Para tanto, afirma cumular em si próprio o poder temporal e a autoridade espiritual, em desprezo pela soberania espiritual do Papa sobre a cristandade católica. Contra isso, Suárez argui que reis e príncipes possuem única e exclusivamente o poder temporal, cabendo aos Papas a autoridade espiritual direta e imediata sobre o orbe católico. Além disso, lança mão da afirmativa de que o poder temporal dos monarcas é instituído por Deus, mas de forma indireta, por translação - translatio imperii, a saber, por uma intermediação da comunidade civil na constituição do corpo político. É da comunidade civil, portanto, a legitimidade para instituir de modo direto e concreto a autoridade dos reis e príncipes e, assim, dar vazão à formação do corpo político, transferindo parcialmente o poder civil aos reis, príncipes ou assembleias. O ato de transferência ocorre mediante um pacto de sujeição em que a autoridade política reconhece e jura velar pelos direitos naturais da comunidade, o que se configura em um juramento de fidelidade. Por sua vez, a comunidade jura prestar-lhe a devida obediência civil nos termos dispostos no pacto. O juramento de fidelidade, portanto, é um ato bilateral, em que o rei e a comunidade reconhecem direitos e obrigações civis e políticos recíprocos.
Jaime I aduz que o juramento é um ato de mão única, isto é, um atributo exclusivo dos indivíduos da comunidade perante o monarca, que não se vincula a nenhuma obrigação perante o corpo social. Em contraposição a isso, Suárez argumenta que o juramento de fidelidade é um ato bilateral, cuja adesão pressupõe a manifestação da vontade tanto da autoridade política quanto da sociedade. Nesse sentido, a fundação da comunidade política tem assento através do pactum subjectionis, que ratifica a existência legitima e duradoura da ordem civil.
Tema de suma importância dentro do debate em questão é o tiranicídio, prática de matar reis e príncipes considerados usurpadores ou, mesmo quando legítimos por direito ao trono, praticantes de atos de injustiça política para com a sociedade.
No texto a seguir, Suárez mostra por que em princípio e universalmente é condenável pela Igreja, e segundo a lei natural, a prática de tiranicídio. Entretanto, elucida o conjunto das exceções a essa regra, isto é, os casos em que é admissível a morte de reis e príncipes usurpadores, que violem gravemente o direito natural dos súditos e o conteúdo normativo do pacto de sujeição, como por exemplo, o ato de colocar à prova a vida dos súditos, ou em casos ainda mais graves, quando o monarca atua para destruir o corpo político mediante o assassinato público de grande número de cidadãos. Para Suárez, embora possivelmente legítimos em seus assentos, os reis podem dar ocasião para deposição e, em situações excepcionais, para o tiranicídio, como veremos a seguir.
II - Excerto do Livro VI da Defensio Fidei
Os teólogos distinguem dois tipos de tiranos: primeiramente, aqueles que ocuparam o trono não por justo título, senão pela força e contra toda a justiça. Na realidade esse tipo de tirano não é rei nem soberano, senão que simplesmente usurpa o posto de rei e se porta como sua sombra. Há, todavia, outro tipo de tirano que, embora seja legítimo soberano e ocupe o trono por justo título, reina tiranicamente no que se refere ao governo e quanto ao uso do poder, já que o manipula em seu próprio benefício e em desprezo ao bem comum, como também oprime seus súditos injustamente roubando-os, matando-os, pervertendo-os e perpetrando contra eles publica e frequentemente outras injustiças típicas de seu estilo pessoal [...].
Por conseguinte, a questão que agora nos preocupa se centra principalmente no soberano que é legítimo, mas governa tiranicamente. A tais soberanos se refere o rei da Inglaterra e nós o consideramos um tipo enquadrado dentro dessa categoria de reis legítimos. Dizemos, portanto, que ninguém pode, por sua própria e particular autoridade, matar justamente a um soberano por seu governo tirânico ou por qualquer outra classe de crimes.
Admite-se comumente essa afirmação e é certa. Defendeu-a Santo Tomás, que a confirma com excelentes razões de caráter moral. Fazem-na sua, da mesma forma, o Cardeal Cayetano (1469-1534), Domingo de Soto (1494-1560), Luis de Molina (1535-1600), Juan Azor (1535-1603), o Juan Álvarez de Toledo (1488-1557), assim como os moralistas em geral. Coincidem na afirmação dessa verdade os jurisconsultos Bartolo de Sassoferrato (13141357), Alexandre de Imola (1423-1477), Mariano Socino (1482-1556), Francisco Zabarella (1360-1417), Giovanni Antonio Sangiorgio (1439-1509) e outros canonistas a quem cita e segue Hieronymus Gigas (séc. XVI). Sustentam a mesma doutrina Lucas de Penna (13251390), Conrado Bruno (1491-1563), Tomás Azzio (séc. XVI), assim com Restauro Castaldo (1507-1564) [...] e Paride Del Pozzo (14101493) que segue na mesma linha, ainda que se expresse de modo confuso. Também Diego de Covarrúbias (1512-1577). Essa verdade, ademais, está de acordo com os preceitos de São Pedro (1ª Epístola, cap. 2: “Subditi estote omni creaturae propter Deum, sive regi”, etc. E mais adiante: “Servi estote dominis, non tantum bonis, sed etiam dyscolis”).
No Concílio de Constança (1414-1418) a questão foi definida com mais exatidão, corroborando em apoio a essa verdade e condenando a posição contrária. Nessa solução se condena o seguinte artigo: ‘O Tirano lícita e meritoriamente pode e deve ser morto por qualquer de seus vassalos e súditos, inclusive com medidas secretas e sutis adulações, não obstante qualquer juramento que se tenha prestado ou qualquer pacto que se tenha realizado com ele, sem esperar sentença ou mandato de juiz algum’. E declara o Concílio que é herético e deve ser castigado como tal aquele que persistir nessa tese.
Conforme a interpretação geral dos autores modernos essa declaração se refere ao rei que é tirano pelo modo de governar e não desde o ponto de vista do título e usurpação do trono. Cabe deduzi-lo do texto, pois os termos vassalo e súdito são propriamente usados em conexão com o verdadeiro soberano e superior [...].
Pois bem. O Concílio condena o artigo por sua universalidade e precipitada temeridade que imediatamente se descobre em todas as cláusulas e suas glosas, e o condena, sobretudo, por incluir aos verdadeiros reis e aos príncipes que governam tiranicamente. [...].
O fundamento da afirmação do artigo - em linhas gerais - é o seguinte: Ao rei que governa tiranicamente poderia matá-lo qualquer súdito a título de castigo e justa vingança ou bem a título de justa defesa, própria ou da sociedade. O primeiro caso é absolutamente falso e herético, porque o poder de vingar ou castigar delitos não radica nos particulares, senão no superior ou na totalidade da comunidade política perfeita. Em consequência, o simples cidadão que mate a seu soberano por essa razão, está usurpando uma jurisdição e um poder que não possui. Logo, peca contra a justiça [...].
A razão disso está, em primeiro lugar, em que a vingança e o castigo dos delitos estão ordenados ao bem comum da sociedade e, portanto, são confiados somente àquele a quem se confiou o poder público de governar a comunidade. Segundo, porque castigar é ato de um superior que possui jurisdição; portanto, caso um particular o realize incorre em usurpação da jurisdição. Terceiro e finalmente, porque se fosse de outro modo, resultariam confusões e desordens sem fim dentro da comunidade política e se abriria o caminho para discórdias civis e assassinatos. Porque se é homicídio - pela razão dada - um homem qualquer matar a própria autoridade, ainda que seja um homicida, um ladrão ou um assassino, muito mais grave é crime de pôr as mãos - por sua própria autoridade sobre um soberano, ainda que seja injusto e tirano. Por último, em caso contrário, não poderia existir segurança entre reis e príncipes, pois não é difícil que os vassalos se queixem de que são tratados injustamente de parte de seus soberanos.
Enquanto ao segundo título, isto é, de legítima defesa, ainda que possa ter aplicação em algum caso, não incorre na situação seguinte: se um indivíduo particular pode matar ao rei unicamente por seu governo tirânico. Assim, pois, é conveniente distinguir entre os casos de defesa própria e defesa da comunidade. No caso da defesa própria há, ainda, que se diferenciar se o que defende o faz para preservar sua própria vida ou a integridade física de seu corpo contra uma grave mutilação, ou se está unicamente defendendo bens externos e de fortuna. Só para defender os bens externos não será lícito matar ao rei que é agressor. Primeiro, porque a vida do soberano - pela dignidade de seu cargo e pelo fato de que é, em sentido especial, representante de Deus e seu vigário - há de ter preferência sobre os bens externos. Segundo, porque o soberano tem, ademais, uma forma superior de poder administrativo sobre a propriedade de seus súditos e, ainda quando por ventura se exceda em sua gestão, nem por isso é lícito matá-lo. É suficiente que subsista nele a obrigação por justiça de restituir ou compensar posteriormente o que expropriou e que o súdito possa exigir - enquanto lhe seja possível - por justo título e sem recorrer a violência.
Mas se é um ato de defesa de sua própria vida frente a violência empregada pelo rei, então é seguro que ordinariamente é lícito ao súdito defender-se a si mesmo, ainda que resulte na morte do soberano. Porque o direito de proteger a própria vida está acima de todos os demais e, nesse momento, a necessidade em que se encontra o soberano não é tão imperiosa que obrigue o súdito a sacrificar sua própria vida por ele, senão que, muito pelo contrário, o soberano voluntaria e injustamente se põe a si mesmo em tal situação de perigo. E digo ordinariamente porque, se pela morte do rei, a sociedade tenha que cair em grave confusão ou tenha que suportar outros graves prejuízos contra o bem comum, nesse caso o amor à pátria e ao bem comum obrigaria a não matar ao rei, inclusive frente ao risco de morte. Mas esta obrigação reside dentro da ordem da caridade e esse não é nosso objetivo nessa análise.
Se estivermos tratando da defesa da própria comunidade, tal defesa não tem lugar mais que na suposição de que o rei esteja atacando atualmente ao país com a injusta intenção de destruí-lo e matar seus cidadãos ou criar uma situação semelhante a essa. Em tal caso, seria seguramente lícito resistir ao soberano, inclusive matando-o, se não existisse outra possibilidade de defesa. Porque se está justificado esse procedimento quando se trata de defender a própria vida, com maior razão quando se trata de defender ao bem comum. Ademais, porque o próprio povo ou comunidade se encontra então comprometida em uma justa guerra defensiva contra um agressor injusto, ainda que seja seu próprio rei. Assim que qualquer cidadão, atuando como membro da comunidade e impulsionado expressa ou tacitamente por ela, pode defender a pátria nesse conflito da maneira que lhe seja possível. Agora estamos tratando de um caso em que o rei atualmente faz guerra de agressão contra o próprio corpo político com intenção de destruí-lo e matar grande número de seus cidadãos.
Notas
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