Resumo: O texto aborda a estrutura da mentalidade social brasileira, com a intenção de encontrar os princípios aporéticos do sistema político nacional a partir das atitudes legislativas; identificar a natureza dos problemas políticos de maneira ontológica, e como tais problemas afetam o imaginário coletivo dos indivíduos, impossibilitando-os de conceber a existência de princípios éticos e morais fundamentais; por fim, como a perda da consciência de uma realidade transcendental basilar incute na sociedade uma atitude imediatista, superficial e instrumentalista.
Palavras-Chave: CorrupçãoCorrupção,Sistema político nacionalSistema político nacional,Direito naturalDireito natural.
Abstract: This article approaches the structure of Brazilian social mentality and intendts to find the aporetic principles of the national political system from legislative attitudes; to identify the nature of political problems in an ontological manner, and how these problems affect the collective imaginary of individuals, preventing them from conceiving the existence o fundamental ethical and moral principles; finally, how the loss of consciousness concerning a fundamental transcendental reality inserts, in society, an attitude characterized by immediacy, instrumentalism and superficiality.
Keywords: Corruption, National política! system, Natural rights.
Society, Legislation and Politics
As Raízes da Corrupção no Brasil
The Roots of Corruption in Brazil
A crise política no Brasil, nos últimos anos, atingiu dimensões sem precedentes. As denúncias, quase que diárias, se avolumam em nossos meios de comunicação e mídias informativas de forma epidêmica; a consequência imediata de tal aporia é o descrédito político, moral e até mesmo patriótico da população que se encontra volúvel no campo público, onde, constitucionalmente dizendo, deveria ser o regente das situações. Evidenciando, assim, que a crise é também democrática e constitucional. Aquilo que outrora era tido como consequência parva da mentalidade conspiratória de alguns intelectuais - isto é: as denúncias de um esquema corruptor engendrado na espinha dorsal da política nacional -, agora figura como sendo a mais tenra verdade que finda a sociedade num marasmo de decadência social, econômica e desonra pública.
Para combater as chamas de um incêndio, diz a instrução no extintor, devemos apontar o jato para a base do fogo; da mesma maneira, para combater a corrupção sistêmica, partindo do pressuposto de que seus efeitos são deletérios, é preciso localizar o núcleo do problema. A primeira - e mais instintiva - pergunta é: de onde estão vindo os problemas que maculam todo o corpo político brasileiro? Para rastrear tal problema se faz necessário perguntar também sobre onde estão assentados os pilares antigos da política nacional, da mentalidade cultural brasileira e de nossa concepção de justiça. Afinal, se percebemos que a aporia parece estar nas estruturas da mentalidade social, perguntar sobre as bases da sociedade organizada parece-nos lógico e indispensável.
O Brasil tem problemas reais em suas concepções primárias sobre política, justiça, ética e sociedade. Os problemas que estão consumindo as estruturas sociais e políticas da nação brasileira, como já afirmado acima, são de ordem estrutural; de caráter medular. Na busca de localizarmos aquilo que se apresenta como as três principais raízes problemáticas da mentalidade social e política no Brasil, apontamos de forma direta três princípios: 1) A política pela política; 2) O direito positivo pelo direito positivo; 3) O esquecimento do transcendente e o problema dos direitos humanos.
Somos herdeiros de uma sociedade positivista. Desde a fundação da República brasileira, até este exato momento, somos regidos sob uma convicção herdada de uma mistura de positivismo1, iluminismo francês e marxismo. A partir do Iluminismo, passamos a acreditar que não existe uma base transcendental que sustente e mova os princípios etéreos de uma sociedade; não se acredita mais na Lei Natural, que irriga os parâmetros sobre o que é certo e errado, deixando, assim, os conceitos jurídicos sem uma jurisprudência fundante que sustente certas ações legais - o caso da conceituação estatal de família é um exemplo básico disso; o Estado não possui tal prerrogativa, pois a família precede o Estado; entretanto, mesmo assim, por força positiva, o Estado impõe suas conceituações de maneira despótica e inapta.
A ideia de um criador transcendente que mantenha um contato direto com os indivíduos é totalmente descartada como anticientífica e irracional para a sociedade moderna - princípio iluminista que ainda está pulsante na sociedade contemporânea; não se pautam mais as ações sociais segundo uma ética universal que guie a todos com justiça e retidão. Conceitos como essência e substância são abandonados como caducos e mentirosos, ou transformados em uma espécie de "novilíngua" filosófica para conceituar recentes linhas racionalistas e românticas.
Há, dessa maneira, somente o direito positivo, a matéria e os contratos sociais que geram éticas e morais temporárias segundo uma época determinada; éticas e morais essas que mudam e se transformam ao bel prazer de gerações ou princípios filosóficos de determinada era.
Munido desse ateísmo e ceticismo ético, encontramos o instrumentalismo positivista de Augusto Comte. Se não há princípios universais, já que não há o transcendente e nem nada que nos paute numa base comum de direitos e deveres, a sociedade só pode ser ajustada a partir de um tecnocentrismo. A comunidade dos homens passa a ser vista como um grande maquinário que funcionará perfeitamente - em ordem e progresso - se encontrarmos o equilíbrio correto das suas funcionalidades; se obtivermos os conhecimentos técnicos e formais, as peças e os ajustes corretos. A questão, pois, não é existirem bases para uma crença comum, muito menos a existência de uma base social universal que nos sustente numa ordem política estável: a questão passa a ser a obtenção dos instrumentos certos para regular as causas e efeitos dos males políticos. Eu só preciso encontrar alguém apto, os instrumentos jurídicos corretos, e construir a sociedade assim como uma criança constrói um edifício de quebra-cabeças, isto é, encaixando e descobrindo, peça por peça, qual é o melhor ajuste.
Tal crença norteia ainda hoje nossas ações políticas. Quando constatamos uma manta de corrupção no seio de nossa República, a ação que se propõe sempre será uma nova emenda constitucional, uma nova lei anticorrupção, reformas políticas sem a necessária reforma na mentalidade política.
Não que tais ações não sejam importantes, mas o fato é que não se transcende essa etapa, não se ultrapassa a mentalidade instrumental. E nessa concepção de mecânicos da política, trocam-se as peças do carro, mas não se questiona sobre se o problema não está na própria estrutura do veículo.
Nutrimos uma ação contra a corrupção extremamente limitada à casca dos fatos. Mexe-se sempre na superfície dos problemas e não no seu cerne; temos a política pela política; no entanto, nem tudo está na esteira da política, nem tudo está sob a égide de uma eleição ou de uma emenda constitucional.
A crença que sustenta tal mentalidade é uma espécie gnosticismo: acredita-se que ser possível tocar no âmago da corrupção apenas interferindo em suas margens, numa espécie de alquimia política. Acredita-se, também, que pessoas que passaram as suas vidas públicas inteiras agindo por meio de atos os mais torpes, a partir de uma emenda constitucional, ou depois de uma mudança de presidência, irão parar de corromper, e se tornarão homens ilibados.
A política não é capaz de se curar sozinha, pois o seu morbo a transcende.
Através do nominalismo de Guilherme de Ockham (1285-1349), segundo Eric Voegelin (1901-1985), a filosofia ocidental começou a perder a percepção da possibilidade de contato com a natureza ontológica da verdade a partir da mediação da razão humana em relação ao intelecto divino2 - assim como afirmara São Tomás de Aquino (1225-1274) em suas Questões Disputadas Sobre a Verdade. Em suma, para Ockham, a estrutura do mundo não é uma manifestação do intelecto divino, ou da ordem transcendental do cosmos, mas sim a pura manifestação da vontade divina. Ou seja, o mundo não é um emanar da substância divina na realidade, mas apenas a manifestação da vontade de Deus. O que Guilherme Ockham quer afirmar é que não há uma ligação essencial e necessária entre a substância perfeita do criador e a realidade do cosmos, a não ser pela vontade de Deus que pode ou não se manifestar na realidade. Há, dessa forma, uma ruptura entre causa e efeito, entre princípio e razão. No fim, tudo se baseará na questão de como as coisas já estão ordenadas e não de quem as ordenou; tudo será uma questão de compreender e adaptar os instrumentos ordinários à realidade, e não saber se ele está em consonância com o Ser primeiro.
Para Ockham, existe uma ordem empírica hipotética que pode ser racionalmente conhecida pela observação científica de sua repetição ordenada na existência temporal, a potestas ordinata. Todavia, essa ordem não pode ser conhecida em si mesma, pois é uma manifestação direta da vontade de Deus e não de sua substância; vontade essa que pode mudar a qualquer instante, mesmo em sua recorrência mais ordinária. Ou seja, a vontade não é uma ocorrência necessária, mas hipotética. Como manifestação de uma vontade, ela não é uma regere universal.
Em suma, sob a influência do nominalismo, não há ligações necessárias e nem leis universais que possam ser dotadas de um universalismo real, o que existe é apenas a pura vontade de Deus que pode se manifestar de maneiras diferentes na realidade sem aviso prévio. Não é possível, pois, conhecer a verdade em si. A essência das coisas torna-se inacessível à razão, a ciência passa a trabalhar somente com os acidentes- matéria. Esse é o início do cientificismo e da Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant (1724-1804), conforme afirma Voegelin.
Começamos a perceber, então, que a concepção de Lei Natural incutida no homem - o apospasma -, a dita "centelha divina" que nos norteia numa retidão moral em conexão direta com lex aeterna, passa a ser vista como uma realidade ordinária, mas não necessária. Tal estrutura naturalista começa a perder sua força filosófica no Ocidente. Segundo os estoicos, há em cada um de nós uma lei eterna - o que São Tomás de Aquino chama de ratio divina - que age em nós como que por reflexo de uma correspondência natural entre o Eterno em sua essência perfeita e a criatura finita em sua existência imperfeita. É possível sentir o teor platônico em tal inferência. Esta ratio divina age em nós através de uma Lei Natural imperativa e inata ao ser humano; a lex aeterna nos guia instintivamente às ações morais na intenção de podermos distinguir os atos bons dos maus de forma universal. É assim que a lei eterna é impressa nas criaturas racionais e as dota de uma inclinação para as ações e fins corretos. Essa participação da criatura racional na lei eterna é chamada de lei natural. A luz da razão natural pela qual distinguimos entre o bem e o mal é a refração da luz divina em nós. Toda lei, na medida em que participa dessa razão, é, portanto, derivada da lei eterna3.
No campo do direito essa distinção fará uma enorme diferença, ao ponto de revolucionar a maneira como o sentido de justiça passará a ser visto na sociedade organizada. Kant, a partir de sua concepção de "razão pura", infere que não é possível, racionalmente, aceitarmos qualquer ordenamento normativo na essência do cosmos pré-racionalizado. Ou seja, para Kant, é impossível, racionalmente, conceber uma regra ontológica que já era regra antes mesmo da normatização racional desta pelo o intelecto dos indivíduos.
Para Kant, a lei moral tem sua origem na razão própria que a percebe, e não pode ser desvinculada dessa4, enquanto que a lei natural, tal como concebida pela filosofia clássica e escolástica, independe da nossa compreensão racional e da nossa adesão ou não adesão a ela. Ou seja, para os clássicos e escolásticos, o que é errado é errado ainda que futuramente o intelecto coletivo de uma sociedade racionalize e dê bons argumentos para que determinados atos passem a ser vistos como algo certo. Por exemplo: ainda que porventura todos pensem que o infanticídio possa ser algo justificável, isso não mudará a essência da Lei Natural que afirma que a violação da vida de um inocente é algo intrinsecamente mau. A verdade dos fatos independe da racionalização do indivíduo, independe de votos ou de aceitações coletivas.
Sob a perspectiva da Lei Natural há uma segurança fundamental para defesa dos direitos mais básicos dos seres humanos. Ao ponto em que a liberdade individual e a vida, por exemplo, possam ser elevadas ao patamar de direitos universais inalienáveis; garantindo, assim, que tais preceitos não sejam revogados ou alienados em favor de escolhas tirânicas ou gostos políticos - além de dar um firmamento real para as leis positivas que se seguem destas. Sem tais normas invendíveis, o direito e os princípios régios da humanidade passam a ser mero contrato, acertos e convênios facilmente alienáveis em troca de favores, poderes, ou quaisquer coisas semelhantes. Sem tais princípios inegociáveis, os gulags e os campos de concentração poderiam ser algo corriqueiro e não intempéries isoladas de atos tirânicos.
Os defensores do princípio filosófico da lex aeterna creem que já existia uma ordem na realidade antes mesmo que existissem sociedades ou organizações estatais que impusessem algum tipo de regra social a algum ordenamento grupal. Essa é uma certeza basilar para o Direito Natural. Por exemplo, era claro para autores como Platão (427 a.C.-347 a.C.), Marco Aurélio (121-180), Santo Agostinho (354.-430), Santo Anselmo (1033-1109), São Tomás de Aquino, Samuel Pufendorf (1632-1694), John Locke (1632-1704), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), G. K. Chesterton (1874-1936), Eric Voegelin (1901-1985), Jacques Maritain (18821973), entre outros, que alguns princípios já existiam antes mesmo de serem colocados nas mais recônditas tábuas de leis. Antes de existirem os dez mandamentos judaicos, a própria natureza da realidade já mostrava que matar e roubar eram coisas más em si mesmas. Caim, ao matar Abel - considerando-se hipoteticamente suas reais existências - tinha cometido um crime contra a ordem da natureza, e isso já era sabido e assimilado naquela comunidade antes mesmo de leis formais existirem.
Antes de existir uma definição categórica do direito formal sobre o que seria uma “família", por exemplo, a família já era uma realidade existencial no ordenamento natural humano. Em suma: há sociedade organizada porque antes houve famílias, e não o contrário: há famílias porque anteriormente havia sociedade organizada. A lógica de que o Estado é anterior à família é social, biológica e antropologicamente impossível. A família é anterior ao Estado e, como tal, o Estado não pode definir ou positivar algo que é anterior a ele mesmo, sem que seus atos se tornem despóticos. Tal lógica mentirosa foi defendida por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) na obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado.5
Em suma: o princípio arrogado pelo Direito Natural clássico, de que existem instituições e leis anteriores às normatizações jurídicas de um Estado, não é um absurdo, mas sim uma conclusão lógica e científica dos fatos.
Tais leis naturais foram consagradas como princípios universais da realidade humana. Elas passam, assim, a ser princípios cotidianos de uma reta vida, e depois o fundamento principal da organização jurisprudencial do direito que norteará o mundo ocidental. O Direito Positivo, aquele que é criado por um conjunto de legisladores, deveria possuir bases bem-postas no Direito Natural, que, por sua vez, deve estar de acordo com a lex aeterna, transmissora da ratio divina.
O ordenamento orgânico dos conjuntos jurídicos seria assim:
Razão Divina > Leis Eternas > Direito Natural> Direito Positivo
Tal ordenamento jurídico garante ao Direito Positivo uma retidão de conduta que não se desviaria ou falsearia os princípios universais. Sem tais princípios o direito se veria entregue à retórica e aos princípios que podem se tornar - e constantemente se tornam - danosos aos próprios seres humanos.
Ao tratar da possibilidade do Direito Positivo gerir a ele próprio, Eric Voegelin afirma:
Sistematicamente, o fundamento ontológico de uma teoria do direito natural de Tomás de Aquino é provavelmente a única posição defensável para uma filosofia do direito. Caso não recorramos à lex aeterna transcendental, temos de escolher entre duas alternativas: ou não ter qualquer fundamento ontológico para os conteúdos da ordem jurídica e aceitar como válida qualquer ordem jurídica positiva que possa compelir à submissão; ou erigir como absolutos elementos intramundanos, tais como instintos, desejos, carências, razão secular, vontade de poder, sobrevivência dos mais aptos, etc6
A primeira opção que Voegelin destaca acima é a que ocorre atualmente no Brasil. Quase todas as legislações e princípios políticos que regem os partidos e defensores de determinadas ideologias ignoram o Direito Natural. Tentam sanar "doenças" éticas e morais, que são de ordem basilar da Lei Natural, com leis positivas que agem como se não houvesse Lei Natural. Ou seja, colocam "BandAid" em quem tem câncer. Tais juristas agem como construtores de uma realidade paralela que permite a eles ignorar qualquer enfrentamento ético e moral inato à natureza, como se não existissem atos e realidades más em si mesmas.
Vivemos a era da ditadura do Direito Positivo; os legisladores se afirmam deuses que controlam a realidade através de normas formalmente legisladas, que, todavia, são contrassensos lógicos. Inverte-se a lógica jurídica: ao invés de DIREITO NATURAL> DIREITO POSITIVO, passamos a ter DIREITO POSITIVO> DIREITO NATURAL. A lógica do segundo modelo é extremamente falsa e perigosa. Ainda que através de uma legislação interna possa-se inferir ser "legal" abortar fetos nos úteros maternos, isso não significa que tal ato seja decente perante o Direito Natural. Isto ocorre, pois, o Direito Natural não pode se dobrar ante ao Direito Positivo por sua lógica orgânica e posição estrutural anterior a essa.
Com esse segundo modelo (DP>DN) podemos ter uma infinidade de imposições que não levam em conta os princípios e ordens naturais mais inatos dos seres humanos; não à toa arroga-se normalidade em atos que negam direitos basais com a desculpa de ser pelo bem da coletividade. Se o direito legislado por homens está acima do direito arrogado pela ordem natural realidade, então os homens tudo podem fazer.
2.1 - Marxismo e o seu positivismo-determinista
O direito passou, pois, a controlar a realidade segundo o ego dos que possuem o poder de legislar. Curiosamente, esse é o mesmo princípio geral da filosofia do materialismo histórico de Karl Marx. Marx acreditava que sua teoria política e histórica havia desvendado as estruturas da realidade e, em posse desse conhecimento, a solução para os problemas políticos e sociais iriam se dar por meio de uma reorganização instrumental da sociedade, princípio bem semelhante às crenças positivistas de Augusto Comte - estritamente nesse sentido. Karl Marx ainda afirmara que a moral e a ética são instrumentos ilusórios usados pela religião e pela burguesia para manter a desigualdade social e a submissão proletária frente ao sistema capitalista. Afirma Marx: "As leis, morais e a religião são também, para ele [proletário], outros tantos preconceitos burgueses por trás dos quais se ocultam interesses burgueses"7. Ou seja, para Marx, não há princípios morais regentes da sociedade, os princípios morais são parte de uma Superestrutura que tem como objetivo principal manter a exploração proletária e o poderio burguês. A única moral que existe no marxismo é a vontade revolucionária do proletariado; ou, como o bolchevismo iria afirmar mais tarde: a vontade do Partido é a moral regente.
Empossado de tal ideia, os marxistas acreditam que a sociedade é modelável e arquitetável segundo as regras sociais que eles descobriram: a luta de classes como sendo o motor histórico, e a Infraestrutura a e Superestrutura como edifícios factuais da realidade. O marxismo é "um experimento completo de engenharia social". Ou seja, o marxismo tem a pretensão de modificar a realidade de uma maneira quase que gnóstica, buscando alterar a essência dos fatos através de reorganizações da moral tradicional, da remodelação da cultura ocidental baseada na meritocracia, e na mudança dos princípios políticos baseadas no indivíduo. Em suma, o marxismo encara a realidade como peças de Lego, onde tudo que teorizam e buscam como fim desejável, eles podem alcançar apenas encaixando engenhosamente as peças; como se a realidade não apresentasse paradigmas e verdades anteriores às suas ideias arquitetônicas. O marxismo é uma ideologia para mentes infantis.
O direito para os marxistas torna-se, então, uma arma de revolução social; acreditando que são predestinados a mudar a realidade social do mundo, como bem afirma Vladimir Tismaneanu8, eles criam leis e normas que ignoram as realidades inatas de ordem natural que para eles são inexistentes ou são "estratégias diabólicas dos burgueses".
Neste sentido das verdades que nos convêm, a corrupção torna-se um braço desse ato de ignorar o Direito Natural. A consequência de se negar a lei natural é que, cedo ou tarde, iremos relativizar os princípios mais fundamentais do que seja certo e errado na sociedade, ao ponto de não haver nada, absolutamente nada, que possa ser apontado como intrinsecamente mau, até mesmo atos abomináveis como o infanticídio ou o estupro. O que importará será o objetivo final que a ideologia busca, e, por esse fim, tudo será justificado; Sergey Netchaiev, um anarquista do século XIX, nega qualquer lei natural em seu escrito O Catecismo Revolucionário. No ponto IV ele afirma: "O revolucionário despreza a opinião pública. Tem desprezo e ódio pela moral social atual, pelas suas diretivas e suas manifestações. Para ele, o que é moral é o que favorece o triunfo da Revolução, o que é imoral e criminoso é o que a contraria"9.
Nesse pensamento, o que é certo e errado passa a ser definido por ideologias partidárias, por conchavos de grupos ou por vontades anárquicas baseadas em egos revolucionários. O leninismo, por exemplo, é apontado como uma ideologia que baseava suas ações num centralismo escatológico de origem tipicamente religiosa - não à toa o comunismo é comparado a uma religião secular por Voegelin, Russell Kirk (1918-1994), Raymond Aron (1905-1983), Vladimir Tismaneanu e outros. A partir do pensamento revolucionário exposto acima - isto é: os fins justificam os meios -, atos que naturalmente eram considerados inaceitáveis e abomináveis passam a ser toleráveis pelo fim que se espera da teoria política seguida. Através dessa mentalidade, Tisrnãneanu afirma sobre o leninisrno: "[ ...] a divinização do escopo final, o que teve consequência direta na aparição de um universo amoral em que os crimes mais abjetos foram justificados do prisma de um futuro luminoso assintótico".
Afirmará Marx que os princípios mais profundos da realidade revolucionária serão a tornada violenta do poder e a ocupação do espaço político que anteriormente servia ao capital. Isto, aliás, será o motor ideológico de Lênin (1870-1924) e posteriormente de Josef Stalin (1878-1953), Mao Tsé Tung (1893-1976), entre outros ditadores, para suas tiranias sangrentas.
O leninismo, e mais acentuadamente ainda o stalinismo, era de escopo positivodeterminista do marxismo. A lei servia ao partido e não o partido à lei. Assim corno inicialmente o Direito Positivo deveria ser espelhado no Direito Natural, no comunismo soviético o Direito Positivo era espelhado na vontade suprema do partido bolchevique que atuava corno um deus político. Sua vontade era, então, o próprio "Direito Natural" que definia o que era certo ou errado em suas dependências - afirmara Tisrnãneanu em sua obra Do comunismo.
A mentalidade marxista vislumbra um fim desejado e age de maneira lacônica na busca desse fim; a classe revolucionária é aquela "que tem o futuro nas mãos". Ignorando os enfrentamentos factuais da realidade, impondo leis que cedo ou tarde gerarão colapsos morais, políticos e econômicos; e, por fim, abrindo mão da própria consciência individual, alienando a racionalidade pelas verdades dogmáticas do Partido, os indivíduos tornam-se bonecos sem almas nas mãos dos ideólogos. "Quando são revolucionários, eles o são em vista da iminente transição para o proletariado; não defendem, pois, seus interesses presentes, e sim os futuros; abandonam seu ponto de vista para assumir o do proletariado"10.
O que isso tem a ver com o atual Brasil? Ora, a mentalidade que autoriza a negar princípios basilares, autoriza também a ignorar normas que nos impedem de consentir com conchavos corruptos e atos imorais. Se toda a moral e princípios éticos são ilusões criadas pela burguesia, corno afirma Marx, até mesmo a corrupção pode ser aceita, bastando que esse ato imoral seja realizado em busca do fim "sagrado" aspirado pela ideologia. A manutenção do poder presidencial ao custo de propinas e caixa 2, por exemplo, pode ser algo bom em vista do proletariado. E não pensem que esse discurso não seja abertamente usado nas convenções partidárias do Partido dos Trabalhadores, por exemplo.
Em busca de uma amorfa justiça social, transgridem leis de mercado; em busca de uma suposta vitória sobre a homofobia, alimentam uma casta com direitos acima dos demais; em busca de uma utopia social, autorizam crimes e justificam corrupções. Se não há Direito Natural, talvez a corrupção seja, por fim, algo relativo.
Alguns são mais iguais que os outros, afirmava Orwell em A revolução dos bichos.
Cabe lembrar que este aspecto de ignorar a Lei Natural, em favor de uma ideologia política, se dá no comunismo, no nazismo e no fascismo; na esquerda e na direita. Ainda que o fascismo, na teoria, arrogasse defender os princípios gerais da natureza e do senso comum tradicional, na sua práxis ele atuava da mesma maneira corno descrevi acima o comunismo, ou seja, impondo as suas verdades ideológicas através de leis positivas. Novamente, fazendo ressoar a afirmação de Tisrnãneanu: "O comunismo e o fascismo são gênios totalitários, são dois gêmeos totalitários".
Nesta seção, cabem umas elucidações primárias; não se pretende, de maneira alguma, supor que a existência de uma pessoa de moral digna e ilibada está necessariamente ligada à crença em Deus. O que se busca afirmar é que os pilares de um Direito Natural não podem estar firmados, de maneira primária, em contratos humanos ou em referências intelectuais de filósofos, legisladores ou ideólogos. Não há sustentação factual e nem ontológica em leis e princípios que podem ser revogados pelo simples aflorar revolucionário.
Neste aspecto, os protoaustríacos, por exemplo, pautavam seus estudos na filosofia tomista; tomismo esse que foi o pilar original da união filosófica e teológica entre o Direito Natural e a figura de um criador inteligente e relacional. O livro Dos Protoaustríacos a Menger: Uma Breve História das Origens da Escola Austríaca de Economia, do professor Ubiratan Iorio11 poderá aprofundar a temática com muito mais competência. Não muito longe disso, Friedrich Hayek (1899-1992) fará suas conclusões filosóficas baseadas em conclusões muito similares; conclusões essas que, aos seus críticos, chegaram muito próximo de um conservadorismo latente.
Também devemos destacar Murray Rothbard, que expôs a influência das contribuições teóricas do tomismo tardio da Escola de Salamanca na Escola Austríaca de Economia12. Identificamos, portanto, uma conexão imediata entre os princípios da Lei Natural e do Direito Natural e o pensamento da Escola Austríaca, tanto a partir dos autores que estabeleceram as reflexões iniciais que culminaram no desenvolvimento das principais ideias austríacas, quanto nas contribuições teóricas e conceituais de alguns de seus representantes de mais importância.
Para nossos propósitos e, seguindo os passos dos autores citados acima, afirma-se que sem uma fundamentação que ultrapasse o mero acerto humano de legisladores ou contratantes, tudo o que intrinsecamente consideramos mau ou bom passa a ser uma jogatina de teorias que possuem os melhores argumentos. Nesta entoada, até mesmo a corrupção e o roubo - e coisas ainda mais abjetas -passam a ser algo meramente relativo a uma visão determinada de moral, não sendo possível denominá-las como visceralmente más. Sem um fundamento que transcenda as ações relacionais entre os homens, a moral que nos afirma ser mau aceitar propinas torna-se apena uma opinião transitória baseada - temporariamente - numa retórica mais convincente: Um ciclo vicioso que culmina naquilo que afirmamos ser a mentalidade positivo-marxista: o fim justifica os meios.
Com tais explicações podemos perscrutar com maior profundidade as afirmações que fizemos nessa breve introdução.
Filósofos como São Tomás de Aquino, Eric Voegelin, Gilbert Keith Chesterton e Edmund Burke (1729-1797) concordavam com a uma máxima: se não há uma ordem transcendente que informa à realidade os princípios regentes de uma moral social, o que nos restará, então, é o caos da anarquia e a indiferença amoral dos lupanários. Eric Voegelin, ao adentrar os estudos sociais e políticos, e mais tarde analisando a consciência pessoal do indivíduo perante o cosmos - o que chamaria de Anamnese -, notou que toda a realidade percebida através de nossos sentidos e conectada pelas inferências racionais de nosso intelecto só pode fazer sentido se todo o cosmos ossuir uma ordem inteligível. Tal percepção e a mesma adotada pelo filósofo americano Willian Lane Craig, que afirma que o universo possui uma fina sintonia que liga as ocorrên
*Pedro Henrique Alves. E-mail: Pedro-henrique-alves@hotmail.com