Original Research Articles

Os Atos Regulatórios Protecionistas Aplicados à Indústria Armamentista e Suas Consequências

The Protective Regulatory Acts Applied to the Arms Industry and Its Consequences

Los Actos Regulatorios Proteccionistas Aplicados a la Industria Armamentista y Sus Consecuencias

Gabriela Bratz Lamb
Bratz Advogados Associados, Brasil

Os Atos Regulatórios Protecionistas Aplicados à Indústria Armamentista e Suas Consequências

MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy Law and Economics, vol. 6, núm. 2, 05, 2018

Instituto Ludwig von Mises - Brasil

Recepção: 01 Maio 2018

Aprovação: 30 Maio 2018

RESUMO: Este trabalho tem como finalidade identificar as origens e as consequências dos atos regulatórios do Estado brasileiro para a aquisição de materiais bélicos, focando-se naqueles promovidos pelo Exército Brasileiro, através de decisão discricionária, e pelas forças auxiliares de segurança, ao momento do processo licitatório. Para tal, será necessário demonstrar a evolução legislativa que gerou o cenário do comércio armamentista atualmente evidenciado no país, e os princípios administrativos em conflito, em especial aqueles vinculados ao processo de licitação, previstos na Lei 8.666, de 21 de junho de 1993. Através da análise econômica, evidenciar-se-á os meios e os fins pretendidos pela legislação, avaliando se estes são atingidos, e se são benéficos.

Palavras-chave: Comércio Armamentista, Licitação, Princípios Administrativos, Segurança Nacional, Análise Econômica do Direito.

ABSTRACT: The purpose of this paper is to identify the origins and consequences of Brazilian state regulatory acts for the acquisition of arms and related materials, focusing on those promoted by the Brazilian Army through a discretionary decision and by auxiliary security forces at the time of the bidding process. To do so, it will be necessary to demonstrate the legislative evolution that generated the current scenario of the arms trade in the country, and the conflicting administrative principles, especially those related to the bidding process, provided for in Law 8,666 of June 21, 1993. Through the economic analysis, therefore, the way and the ends intended by the legislation will be evidenced, evidencing if they are reached, and if beneficial.

Keywords: Arms Industry, Bidding, Administrative Principles, National Security, Law and Economics.

RESUMEN: Este trabajo tiene como finalidad identificar los orígenes y las consecuencias de los actos regulatorios del Estado brasileño para la adquisición de materiales bélicos, centrándose en aquellos promovidos por el Ejército Brasileño, a través de decisión discrecional, y por las fuerzas auxiliares de seguridad, al momento del proceso licitatorio. Para ello, será necesario demostrar la evolución legislativa que generó el escenario del comercio armamentista actualmente evidenciado en el país, y los principios administrativos en conflicto, especialmente aquellos vinculados al proceso de licitación, previstos en la Ley 8.666, de 21 de junio de 1993. Mediante el análisis económico, pues, quedarán en evidencia los medios y los fines pretendidos por la legislación, evualuando si éstos son alcanzados, y si son beneficiosos.

Palabras clave: Comercio armamentista, Licitación, Principios Administrativos, Seguridad Nacional, Análisis Económico del Derecho.

INTRODUÇÃO

Conforme se evidencia do Ranking Doing Business de 2018 (BANCO MUNDIAL, 2018), o Brasil atualmente se encontra na 125º colocação, de 190 avaliados, no que tange à facilidade de realização de negócios. No quesito “Comércio Internacional” do referido estudo figuramos atrás de 138 países. Tais dados demonstram a tendência regulatória e protecionista do país, não sendo diferente o tratamento à indústria e ao comércio de produtos bélicos.

A indústria de armas, a qual é tratada no presente trabalho, é regulada de forma tipicamente mais severa, alegadamente em prol da segurança e soberania nacional. Neste sentido, diversas operações comerciais necessitam também de aval do Exército Brasileiro para se efetivarem, seja no momento de importação e comercialização de produtos ou operação das indústrias. Através de atos discricionários, observa-se, o Estado atua como barreira para a entrada de produtos estrangeiros ou operação de novas indústrias em solo brasileiro.

Esse trabalho propõe-se a analisar, diante de tal cenário, as origens, causas e, principalmente, as consequências dos atos regulatórios do Estado na área de indústria bélica, em especial de armas leves, de cano curto, e que podem ser operadas com uma mão, com ciclos manuais ou automáticos1, utilizadas pelas forças auxiliares, tais como polícia civil e militar, em prol da segurança pública.

Considerando-se a necessidade de observância dos princípios licitatórios para aquisição de armamento para as polícias, analisar-se-á, ainda, as consequências do emprego das restrições comerciais para as finanças públicas e segurança nacional, identificando-se, assim, se tais condutas restritivas vão ao encontro dos princípios de “seleção da proposta mais vantajosa para a administração” (BRASIL, Lei 8.666, de 1993) e eficiência. A análise dos referidos princípios é motivada, em especial, pela constatação de inúmeros casos divulgados na imprensa nos últimos dois anos referentes a problemas apresentados pelas armas fornecidas pelo Estado aos seus agentes de segurança pública.

Nesse sentido, faz-se necessário também o diagnóstico das consequências das restrições impostas pelo artigo 3º da Lei 8.666 de 21 de junho de 1993, o qual expõe a predileção nos processos licitatórios por produtos nacionais ao garantir “promoção do desenvolvimento nacional sustentável” e, como critério de desempate a compra pelo poder público de bens “produzidos no país”2 ou “produzidos ou prestados por empresas brasileiras”, o que se caracteriza como ato de proteção à indústria nacional. Pergunta-se: a que preço protegemos a indústria nacional?

Por fim, pretende-se confirmar a hipótese de que as restrições à contratação de produtos bélicos pela administração pública atualmente aplicadas resultam em desvantagem ao interesse público, e que a flexibilização na contratação tende a melhorar o serviço prestado e os produtos fornecidos ao Estado.

Para a efetivação do estudo, utilizou-se método qualitativo, evidenciado no levantamento de dados concretos e percepções sobre o comércio e indústria de armas de fogo, operação e risco da operação do armamento disponibilizado pelo Estado, assim como pela análise da legislação, ações judiciais e, sobretudo, análise da teoria econômica regulatória.

1. CONTEXTO HISTÓRICO - NACIONALISMO E INCENTIVO À INDÚSTRIA NACIONAL

Limitando-se à fase republicana da história brasileira, é possível identificar diversos períodos de estímulo à indústria armamentista, esses protagonizados por governos de característica nacionalista, sejam conhecidos por serem ortodoxos ou heterodoxos. Foi em 1933, inclusive, durante o primeiro mandato de Getúlio Vargas como presidente do Brasil que a empresa Forjas Taurus foi fundada, no Rio Grande do Sul, coincidindo com a década de início da Segunda Guerra Mundial, momento em que se viu “desenvolvimento econômico, industrialização, e a criação de uma indústria bélica nacional como uma faceta de um projeto nacional” (DREYFUS et. al., 2010a, p. 33-4, tradução nossa)3.

Com o fim de se colocar em prática o projeto de desenvolvimento, centralizando-se decisões econômicas no Estado, em 1934, através do Decreto 24.602, ainda à Era Vargas, delegou-se ao então Ministério da Guerra a competência para licenciar as operações das indústrias armamentistas (artigo 3ª, parágrafo 4º)4. Por sua vez, o Decreto 1.246, de 11 de Dezembro de 1936, o qual regulamentava as competências deferidas ao Ministério da Guerra pelo Decreto 24.602, de 1934, também deferia a esse a competência para autorizar as importações e desembaraços alfandegários (artigo 75)5.

Apesar do controle e fomento da indústria nacional de armamento terem sido evidenciados já à Era Vargas, “foi a política agressiva de proteção econômica do Regime Militar Brasileiro (1964-85) que verdadeiramente estabeleceu as bases para a indústria diversificada e orientada para a exportação que existe hoje” (DREYFUS et. al., 2010b, p. 34, tradução nossa)6, o que ocorreu em especial através da nova redação do Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados (número 105 do Decreto 55.649 de 28 de janeiro de 1965), o qual, por exemplo, delega ao então Ministério da Guerra o poder de “fixar os tipos e calibres de armas, munições, petrechos e os tipos de pólvoras, explosivos e seus elementos e acessórios que poderão ser importados e respectivas quotas anuais”7 (BRASIL, Decreto 55.649, de 1965a), assim como “fixar as quotas anuais de importação de produtos controlados por empresas, levando em consideração a produção nacional”8.

Ainda, através da alteração de 1965 do referido Regulamento, deu-se ao Ministério da Guerra o poder de veto à importação de produtos que encontrassem similares produzidos no país, como se evidencia do artigo 117 da legislação:

Art. 117. O Ministro da Guerra poderá autorizar a importação de armas, munições e acessórios de uso industrial (como canhões destinados a pesca de baleias, indústrias de cimento e outras), desde que não haja similar nacional e seja verificada a necessidade e constatado o real emprêgo de tais equipamentos e implementos. [Grifo nosso] (BRASIL, Decreto 55.649, 1965b).

O veto sob pretexto de similaridade evidenciado não foi ao acaso e encontra sua justificativa no artigo 113 da referida legislação que expressa: “Tendo em vista que a indústria nacional está em condições de abastecer o mercado interno, em princípio não será concedida autorização para importação de: [..]” (BRASIL, Decreto 55.649 de 1965). Inicia-se, definitivamente, um período de protecionismo ao setor estudado, sejam por motivos econômicos ou estratégico- militares.

À década seguinte ao fortalecimento da indústria nacional, conseguido através de sua proteção por meio de barreiras alfandegárias controladas pelo Ministério da Guerra, “ciente da necessidade de alcançar economias de escala em processos de produção tecnologicamente complexos com altos custos de pesquisa e desenvolvimento, o regime procurou as exportações para compensar a diminuição da demanda” (DREYFUS et. al., 2010, p. 36, tradução nossa)9, e o Estado passou a ter maior participação na produção de material bélico, tendo essa sido concentrada à Indústria de Materiais Bélicos do Brasil, criada em 1975.

A proteção à indústria brasileira - em especial armamentista -, contudo, não se encerrou no período do regime militar, mas foi fortalecida ao longo da década de 1990 e 2000 por extensa legislação que passamos a tratar.

1.1. Protecionismo recente

O protecionismo e a intervenção governamental podem ocorrer de diversas formas. Para Rothbard, por exemplo “interventor ou invasor [é] aquele que se intromete, de maneira violenta, nas relações sociais voluntárias ou no mercado” sendo que “o termo se aplica a qualquer pessoa ou grupo que desencadeia uma intervenção violenta nas ações livres de indivíduos ou de proprietários” (ROTHBARD, 2012a, p. 32). Desta forma, ocorre a intervenção não apenas pela proibição de um produto específico, mas pela autorização de apenas algumas operações “especialmente privilegiadas pelo governo para se encarregarem de uma linha de produção; assim, este tipo de proibição [a outras] é uma concessão de privilégios especiais” (ROTHBARD, 2012b, p. 58).

As restrições aplicadas ao setor estudado, evidenciadas anteriormente, que vão desde a necessidade de permissão de importação e produção de produtos pelo Exército Brasileiro, assim como pela restrição de compra de produtos estrangeiros pela administração pública em razão do critério de similaridade, são classificadas como exemplos de “protecionismo”, já que são resultado de uma “concessão de privilégios especiais”. Sob ponto de vista do autor, o protecionismo, ainda que possam trazer vantagem à indústria nacional, tem um custo já que:

O que se pode afirmar com certeza é que quase toda medida restritiva traz vantagens para um limitado grupo de pessoas, enquanto afeta negativamente todas as outras ou, pelo menos, a grande maioria. A intervenção, portanto, pode ser considerada como um privilégio concedido a alguns em detrimento dos demais. (MISES, 2010a, p. 39)

O poder discricionário concedido ao Exército para autorizar ou não produtos com seus ditos “similares” nacionais, coloca-nos diante da seguinte questão:

Sem dúvida o governo tem o poder de emitir comandos e interdições, e também o poder de implementá-los através de seu poder de polícia. Mas, as questões que nos interessam neste ensaio são: podem essas medidas fazer com que o governo consiga atingir os objetivos que deseja? ou será que essas intervenções produzirão resultados que, do próprio ponto de vista do governo, são ainda menos desejáveis do que os que seriam obtidos pelo livre funcionamento do mercado que ele está tentando modificar? (MISES, 2010b, p. 29)

Para a análise realizada no presente trabalho, é necessário que se observe que não apenas a restrição de importação se caracteriza como intervenção ou restrição, mas que:

O mercado, por mais complexo que seja, consiste numa série de trocas entre pares de indivíduos. Não obstante a abrangência das intervenções, estas podem ser segregadas e classificadas por seus impactos unitários tanto em sujeitos individuais quanto em pares de indivíduos (ROTHBARD, 2012c, p. 32).

As mais diversas formas de intervenção estão explícitas em legislação recentes, datadas da década de 1990 em diante, e que são ora tratadas de forma individualizada, assim como o impacto dessas à economia.

1.2. Lei 8.666, de 21 de junho de 1993 e sua alteração pela lei 12.349, de 15 de dezembro de 2010

A Lei 8.666, de 21 de junho 1993 é responsável pela instituição de normas para realização de licitações pela administração pública, tendo sofrido, contudo, diversas modificações desde sua promulgação. Dessas, vê-se a realizada pela Lei 12.349, de 15 de dezembro 2010, como uma das mais significativas quando tratamos de intervenções, já que modifica, com poucas palavras, mas de forma profunda, os princípios basilares das licitações. Isso ocorre quando se altera a redação do caput do artigo 3º daquela, acrescentando como finalidade da licitação a busca da “promoção do desenvolvimento nacional sustentável”10, “entendida como a busca do desenvolvimento econômico e do fortalecimento de cadeias produtivas de bens e serviços domésticos, usando-se, para esse fim o poder de compra governamental” (MEIRELLES, 2012a, p. 288). É nesse sentido que a Exposição de Motivos da alteração segue, conforme evidencia Meirelles:

Essa terceira finalidade [promoção do desenvolvimento nacional sustentável], segundo a “Exposição de Motivos” da medida provisória, fundamenta-se nos seguintes comandos da Constituição Federal: (i) inciso II do art. 3º, que inclui o desenvolvimento nacional como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil; (ii) incisos I e VIII do art. 170, atinentes às organizações da ordem econômica nacional, que deve observar, entre outros princípios, a soberania nacional e a busca do pleno emprego; (iii) art. 174, que dispõe sobre as funções a serem exercidas pelo Estado, como agente normativa e regulador da atividade econômica; e (iv) art. 219, que trata de incentivos ao mercado interno, de forma a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País. [Grifo nosso] (MEIRELLES, 2012b, p. 288)

Necessário destacar as intenções resumidas em promoção do desenvolvimento nacional, soberania nacional e desenvolvimento socioeconômico, para que se possa analisar se na prática as consequências geradas pela alteração convergem ou divergem do pretendido. Diante do objetivo do presente trabalho, entretanto, deixa-se a análise quanto à constitucionalidade da referida alteração para se ater nas consequências dessa, em especial no setor armamentista, já que a aplicação do princípio exposto é fato, uma vez que, ainda que não de forma expressa, é também fonte legitimadora da Lei 12.598, de 21 de março de 2012, a qual estabelece “normas especiais para as compras, as contratações e o desenvolvimento de produtos e de sistemas de defesa; dispõe sobre regras de incentivo à área estratégica de defesa” (BRASIL, Lei 12.598, 2012a).

1.3. A lei 12.598, de 21 de março de 2012, e suas justificativas

A Lei 12.598 é resultado da conversão da Medida Provisória de número 544, de 2011, a qual tem como “exposição de motivos” documento de redação de Celso Luiz Nunes Amorim, Fernando Damata Pimentel, Aloízio Mercadante, Guido Mantega e Paulo Bernardo Silva. Nesse, deixa-se claro que “desenvolvimento” é a intenção do legislador, como se evidencia das seguintes passagens, a título de exemplo:

Sem perder de vista a possibilidade de vendas para o exterior, o poder público tem o dever de fomentar a indústria de defesa brasileira, da qual as Forças Armadas são as principais - se não as únicas - clientes do mercado interno, especialmente no que concerne ao desenvolvimento de tecnologias nacionais capazes de proporcionar que o exercício da soberania seja fortalecido a partir da independência nas escolhas por produtos que atendam aos interesses estratégicos da nação brasileira, com reflexos positivos na sociedade e na economia. (AMORIM et. al., 2011a, p. 4)

Ou, então:

Além destes fatos, há de reconhecer que a medida ora proposta proporcionará ao governo a fixação de metas de aquisição de bens de interesse da defesa nacional, determinando os incentivos e o desenvolvimento da indústria nacional por meio de processo de competição que associe o crescimento e o desenvolvimento de tecnologias nacionais, de tal ordem que permitirá a melhor definição de prioridades e, por via de conseqüência, uma aplicação mais adequada de recursos públicos, com forte impacto na área social, seja pela capacitação da mão de obra e pela ampliação de postos de trabalho, com a consequente melhoria da remuneração (AMORIM et. al., 2011b, p. 5)

Diante dessas justificativas, a legislação possibilitou a realização de licitações destinadas às empresas brasileiras exclusivamente, expondo que “o poder público poderá realizar procedimento licitatório: I - destinado exclusivamente à participação de EED [Empresa Estratégica de Defesa] quando envolver fornecimento ou desenvolvimento de PED [Produto Estratégico de Defesa]” (BRASIL, Lei 12.598, 2012b)11 [Grifo nosso].

Diz-se que as licitações são direcionadas a empresas brasileiras uma vez que no artigo segundo da Lei se define “Empresa Estratégica de Defesa" como sendo:

Art. 2º [...] V - Empresa Estratégica de Defesa - EED - toda pessoa jurídica credenciada pelo Ministério da Defesa mediante o atendimento cumulativo das seguintes condições: ter como finalidade, em seu objeto social, a realização ou condução de atividades de pesquisa, projeto, desenvolvimento, industrialização, prestação dos serviços referidos no art. 10, produção, reparo, conservação, revisão, conversão, modernização ou manutenção de PED no País, incluídas a venda e a revenda somente quando integradas às atividades industriais supracitadas; ter no País a sede, a sua administração e o estabelecimento industrial, equiparado a industrial ou prestador de serviço; dispor, no País, de comprovado conhecimento científico ou tecnológico próprio ou complementado por acordos de parceria com Instituição Científica e Tecnológica para realização de atividades conjuntas de pesquisa científica e tecnológica e desenvolvimento de tecnologia, produto ou processo, relacionado à atividade desenvolvida, observado o disposto no inciso X do caput; assegurar, em seus atos constitutivos ou nos atos de seu controlador direto ou indireto, que o conjunto de sócios ou acionistas e grupos de sócios ou acionistas estrangeiros não possam exercer em cada assembleia geral número de votos superior a 2/3 (dois terços) do total de votos que puderem ser exercidos pelos acionistas brasileiros presentes; e assegurar a continuidade produtiva no País. (BRASIL, Lei 12.598, 2012c) [Grifo nosso].

Da redação, observa-se, pois, que os requisitos para se tornar uma Empresa Estratégica de Defesa, e, consequentemente participar de licitações “exclusivas” (artigo 3º, supracitado), passam principalmente pelo critério de localidade da produção, excluindo-se, portanto, a presença de licitantes estrangeiros. Ademais, ainda que eventual órgão da administração pública deseje proceder com uma licitação aberta a empresas estrangeiras, esta deverá ser autorizada pelo Comando do Exército, conforme se evidencia aos artigos 5º e 6ª da Portaria Normativa Nº 620 do Ministério da Defesa, os quais ressaltam critérios de similaridade como barreira de entrada de produtos, como se lê:

Art. 5º A importação de produtos controlados poderá ser negada, quando existirem similares fabricados por indústria brasileira do setor de defesa. Parágrafo único. Os critérios de similaridade serão definidos em Portaria do Comando do Exército. Art. 6º A importação de armas, munições e acessórios de uso restrito e demais produtos controlados poderá ser autorizada, de forma restrita e em caráter excepcional, nos seguintes casos específicos: [...] Parágrafo único.O exame das características e dos requisitos técnicos e operacionais deverá ser feito, necessariamente, antes da fase de abertura do procedimento licitatório correspondente. (MINISTÉRIO DA DEFESA, Portaria 620, 2006a,) [Grifo nosso]

O poder conferido ao Ministério da Defesa advém do Decreto 3.665 de 2000, o qual dá nova redação ao Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados (R-105), como se observa do artigo 27:

Art. 27. São atribuições privativas do Exército: I - fiscalizar a fabricação, a recuperação, a manutenção, a utilização industrial, o manuseio, a exportação, a importação, o desembaraço alfandegário, o armazenamento, o comércio e o tráfego de produtos controlados (BRASIL, Decreto 3.665, 2000a).

Ratificado pelo artigo 195:

Art. 195. A importação de produtos controlados para venda no comércio registrado só será autorizada se o país fabricante permitir a venda de produtos brasileiros similares em seu mercado interno. Parágrafo único. Os procedimentos para tais importações serão regulamentados pelo Exército. (BRASIL, Decreto 3.665, 2000b) [Grifo nosso]

Utilizando-se do poder conferido ao órgão, o Exército, de maneira discricionária, regula e protege a indústria nacional do setor bélico, impedindo a entrada de produtos estrangeiros sob a alegação de similaridade. Entretanto, de acordo com o presidente da Confederação de Tiro e Caça do Brasil, Fernando Humberto Fernandes, em entrevista concedida ao Jornal Estado de Minas, a proibição é uma questão de interpretação, alegando que “é pura interpretação subjetiva do Exército, que não deixa claro quais são os critérios para se definir o que é ‘similar’” (JORNAL ESTADO DE MINAS, 2017). Tem-se, portanto, uma insegurança jurídica, embasada, inclusive, em fórmulas econômicas equivocadas, pois, conforme Piketty:

[...] o protecionismo, se aplicado de maneira maciça e permanente, não é em si uma fonte de prosperidade e criação de riqueza. A experiência histórica sugere que um país que se lança cegamente nessa via e anuncia à população um vigoroso progresso de seus salários e de seus níveis de vida provavelmente se expõe a grandes decepções. Além disso, o protecionismo não resolve em nada a desigualdade r>g, nem a tendência à acumulação e à concentração dos patrimônios nas mãos de alguns poucos dentro de um país. (PIKETTY, 2014, p. 520) [Grifo nosso]

Diante do exposto, nota-se que o protecionismo não é fonte de riqueza, além do que o Brasil evidenciou no setor estudado sérias consequências quanto à segurança dos produtos disponibilizados no mercado e também utilizados pelas polícias, como destacaremos a seguir.

2. CENÁRIO ATUAL BRASILEIRO

Em decorrência do protecionismo evidenciado no setor armamentista, pudemos observar um crescimento expressivo das exportações de small arms12 pela indústria brasileira. Em 2014, evidencia-se que esta tenha chegado, pela primeira vez, a ser classificada como top exporter no segmento, ultrapassando 500 milhões de dólares em transações (HOLTOM; PAVESI, 2017, p. 17). Além de o país figurar como significativo exportador de armas de fogo, as atividades ligadas à indústria geram 60 mil postos de trabalhos formais diretos e 240 mil indiretos (ABIMDE, 2016, p. 8). A despeito da quantia exportada, é necessário que observemos as externalidades da proteção à indústria, e os custos dessa para a administração pública e para a sociedade.

2.1 O caso Taurus

Recentemente a empresa Forjas Taurus S.A, que domina o mercado interno de armas leves e de cano curto - em decorrência do protecionismo exposto - vem sofrendo acusações de fornecimento aos agentes de segurança pública de equipamentos com mau funcionamento, havendo relatos da incidência de disparos acidentais por pistolas modelo 24/7. Em reportagem exibida pelo Fantástico em fevereiro de 2017, expõem-se que ao menos 99 pessoas passaram por essa situação, sendo que 7 morreram nos últimos 13 anos (GLOBO, 2017).

Em razão dos reiterados casos anunciados na mídia, em 2017 o Ministério Público Federal, através da Procuradoria da República em Sergipe, ingressou com Ação Civil Pública em face da empresa tratada, e da União, questionando a segurança do armamento, expondo como pretensão

[...] a quebra do monopólio e retirada de inconstitucionais obstáculos à importação de armamentos e munições adequados ao uso dos órgãos de segurança pública, às autoridades públicas com porte legal de arma, e cidadãos em geral, no Brasil, o recolhimento de armamento de baixa qualidade, produzidos pela empresa nacional Forja Taurus S.A e fornecidas à administração pública e à população, para reparo, substituição desses equipamentos e/ou indenização pelo valor pago (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2017a, p. 2).

A ação, por sua vez, é embasada por ampla coleta de dados junto às Secretarias Públicas de Segurança de diversos Estados da Federação, as quais expuseram o cenário do armamento fornecido, como, por exemplo, destaca-se:

A Polícia Civil do Estado do Amapá, por meio do Memo n 089/16-SAME-DPA/DGP, fls. 278/279, vol II, informa que 98% do seu armamento é da fábrica TAURUS SA e outros 2% estão divididos entre as fábricas CBC e IMBEL, tendo sido observado nos últimos 08 anos inúmeros casos de armas Taurus com problemas em seu funcionamento. (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2017b, p. 8)

Além do mau funcionamento dos equipamentos, do que se originam ações em decorrência de acidentes, e, consequentemente, trazem danos ao erário - ainda que na possibilidade de ação regressiva - também se evidenciou outra forma de dano, como elucidado pela Coordenadoria de Apoio Logístico e Patrimônio da Polícia Militar do Estado do Mato Grosso:

O prejuízo mais significativo ao erário se dá justamente pelo absoluto monopólio de mercado das indústrias de armas e munições de uso letal e menos letal TAURUS, IMBEL, CONDOR e CBC Cia Brasileiro de Cartuchos. Não se faz necessário muito esforço para identificar uma eventual prática de preços, no mínimo incompreensíveis, principalmente para as vendas realizadas às Instituições que são isentas da maior parte dos impostos. (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2017c, p. 9)

E complementa:

A proteção da Indústria Nacional feita pelo exército Brasileiro ao impedir a compra de armas e munições de fabricação estrangeira pelas Forças de Segurança Pública e pelos Agentes de Segurança Pública vem dissecando os cofres municipais, estaduais e federal, já que esta proteção permite que as fabricantes de armas e munições cheguem a praticar no Brasil os preços sem concorrência alguma (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2017, p. 11).

A conclusão a que chegou o órgão, e também o Ministério Público, autor da ação, deixa explícita a ausência de mercado concorrencial no Brasil, esse entendido “não como uma situação em que nenhum participante ou potencial participante tem o poder de fazer qualquer diferença, mas como um mercado em que nenhum participante em potencial se depara com barreiras à entrada externas ao mercado” (KIRZNER, 2013) o que, ao fim, como evidenciado, trouxe prejuízo ao erário.

3. PRINCÍPIOS DO DIREITO ADMINISTRATIVO APLICADOS À AQUISIÇÃO DE MATERIAIS BÉLICOS

3.1 Eficiência e eficácia

De acordo com von Mises “se uma nação pacífica for atacada e tiver que se defender, só uma coisa importa: a defesa deve ser organizada da forma mais rápida e mais eficiente possível; os soldados devem ser equipados com as melhores armas (MISES, 2010c, p. 98). Para o autor, entretanto, “isso só pode ser conseguido se o funcionamento da economia de mercado não for obstruído” (MISES, 2010, p. 98). Mises ainda assevera que “quando as nações capitalistas, em tempos de guerra, deixam de utilizar a superioridade industrial que seu sistema econômico lhes proporciona, sua capacidade de resistir e suas chances de vitória ficam consideravelmente reduzidas” (MISES, 2010, p. 98).

Tem-se, pois, que a prática protecionista, que resulta no fornecimento de produtos de má qualidade, não é eficaz, já que as garantias constitucionais de segurança pública e soberania não se efetivam. Assim, Magno Antônio da Silva expõe que, se o resultado alcançado não produz o efeito desejado, ele é ineficaz, ainda que se tenha praticado o menor preço à licitação, e nessa se tenha sido eficiente, uma vez demonstrada economicidade (SILVA, 2008).

O princípio da eficiência, ao qual o autor se refere, foi incorporado à legislação brasileira através da Emenda Constitucional 19/98, que o acrescentou ao caput do art. 37 da CF, que passou a ter a seguinte redação:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte. (BRASIL, Constituição Federal, 1988) [Grifo nosso]

A eficiência, entretanto, também pode ser entendida como sinônimo de eficácia, confundindo-se, como assim é utilizada por Lima :

O segundo objetivo do Estado Social é o da eficiência da Ação (Handlungsffizieru), que significa a eficácia das medidas a serem tomadas para a realização do primeiro objetivo, no que concerne ao tempo, à sua abrangência e ao seu conteúdo. A Administração Pública deve ser eficiente no campo das prestações devidas pelo serviço público.No âmbito da prestações administrativas, esse princípio significa eficiência dos serviços prestados. (LIMA, 2017, p. 49) [Grifo nosso]

Considerando-se a conceituação, tem-se que há necessidade de observância de eficiência e eficácia em duas fases do processo de aquisição de produtos controlados. A primeira, no ato discricionário do Exército quando da autorização de participação de empresas estrangeiras no processo licitatório13; e a segunda, na própria licitação, desde a redação de seu edital à escolha do fornecedor, analisando-se, além de preço, qualidade do material ofertado, buscando por “resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros” (MEIRELLES, 2003c, p. 101). A satisfação das necessidades da comunidade, necessária para que o processo esteja de em consonância com os ditames de eficiência e eficácia, por sua vez, só é encontrada quando segurança pública e soberania estão garantidas, pela aquisição de bens de qualidade, ao menor preço entre parâmetros idênticos de funcionalidade. O preço, entretanto, deve ser aquele não manipulado por monopólios, ou seja, ainda que se contrate materiais bélicos ao menor preço disponível, se não existe mercado concorrencial para balizá-lo, não se está realizando uma compra eficiente, pois:

Considerando os recursos orçamentário-financeiros sob a ótica de um bem econômico rival, o princípio econômico da escassez e a noção de custos de oportunidade, não se pode cogitar licitação eficiente quando se contrata ou se adquiri por um preço de referência distorcido pelo ágio o qual não reflete verdadeiramente o preço vigente no mercado para o objeto licitado. (MEIRELLES, 1999, p. 91).

Para Murray Weidenbaum, entretanto, o processo licitatório como um todo é ineficiente, sugerindo que, para a aquisição de armas:

A seleção não deve ser feita com base em uma tonelada de papelada, mas por um método mais antigo e muito mais eficaz: exigir que as empresas concorrentes produzam protótipos, permitindo que aqueles que usarão o equipamento verifiquem cada alternativa e vejam por si próprio o que é a melhor compra. "Fly before you buy" evita as falhas repetidas resultantes de sistemas de armas precipitadas para produção prematura, antes de serem realmente testados. Reduzir a quantidade esmagadora de regulamentação detalhada da produção de defesa economizará aos contribuintes quantias substanciais de dinheiro de muitas maneiras, especialmente diminuindo a grande quantidade de papelada. (WEIDENBAUM, 1992a) [tradução nossa]14

Em 2018, em processo licitatório para aquisição de pistolas “.40” pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, evidenciou-se a ineficiência do processo pela razão exposta por Weidenbaum. Em 31 de janeiro, após meses do início processo licitatório, tendo vencido a empresa Glock por menor preço, o processo foi interrompido em razão de ter sido identificado que o trilho do equipamento fornecido para inspeção continha especificação supostamente diferente da informada ao edital, como expôs nota oficial:

As 17h45min foi finalizada a inspeção sendo verificado não conformidades entre as medidas aferidas na medição e as estabelecidas nas normas de referência. Em virtude dessa discrepância a sessão foi suspensa para a realização de diligências junta a órgãos (sic) de metrologia nacionais e internacionais. (DEFESANET, 2018)

Considerando-se a tese de Weidenbaum, se a checagem dos equipamentos tivesse sido realizada por aqueles que os utilizarão, em momento anterior à seleção, o processo licitatório demandaria menos tempo e, consequentemente, menos dinheiro dos cofres públicos. Garantir-se- ia, pois, maior eficiência e eficácia ao processo e também à segurança pública, uma vez que os agentes estariam munidos de equipamentos de qualidade em menor tempo.

3.2 Seleção da proposta mais vantajosa e promoção do desenvolvimento nacional sustentável

Ao artigo 3º da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, evidenciamos que o processo licitatório deve observar os princípios da proposta mais vantajosa e de promoção do desenvolvimento nacional sustentável15. Ambos os princípios, entretanto, na prática, resultam em avaliações bastante subjetivas, em especial quando tratamos de efeitos a longo prazo.

A licitação, conforme Di Pietro (2007, p.335) “é decorrência do princípio da indisponibilidade do interesse público e que se constitui em uma restrição à liberdade administrativa na escolha do contratante”, assim sendo, “a administração terá que escolher aquele cuja proposta melhor atenda ao interesse público”. Destarte, questiona-se: como, no caso concreto de aquisição de materiais bélicos, a administração pública deveria proceder para garantir de ambos os princípios?

A ideia de desenvolvimento nacional, introduzida na Lei 8.666, de 1993 (através da Lei 12.349 de 2010, deu fundamentação aos parâmetros diferenciados para contratação de produtos nacionais, como evidenciado no parágrafo 5º da lei16, assim como foi base para a contratação preferencial de micro e pequenas empresas, previsão essa na Lei Complementar 123, de 14 de dezembro de 2006, como exposto por Crislayne Moraes:

Apesar das diferenças de aplicação, a disposição legal do Artigo 48, parágrafo 3º, e o caput do Artigo 47 trazem uma nova perspectiva para a licitação. Com isso, o poder de compra da Administração poderia ser usado no contexto de políticas públicas de desenvolvimento local, incluindo a abertura de uma gama hermenêutica para permitir licitações restritas exclusivamente a empresas da mesma cidade ou região. (MORAES, 2016a, p. 136) [tradução nossa]17

As modificações trazidas pela Lei 12.349, de 2010, e pela Lei Complementar 123, de 2006, funcionam como intervenção, buscando o Estado uma alteração da realidade comercial, objetivando o desenvolvimento nacional. Diz-se intervenção uma vez que, conforme Egon Bockmann Moreira, esta ocorre quando o Estado estabelece “limites e parâmetros comportamentais que dantes não existiam, visando a gerar efeitos econômicos naquele mercado, naquele setor ou em toda a economia provada” (2005, p. 5).

Ocorre que, no setor estudado, o processo licitatório não se demonstra como o responsável pela efetivação do princípio de desenvolvimento nacional sustentável, assim como tem pequena parcela de responsabilidade na contratação da proposta mais vantajosa. Como já exposto, a indústria armamentista brasileira - em especial aquela de armas leves, de cano curto - apresenta grande concentração, tendo a empresa Taurus 90% (TAURUS, 2012) do mercado nesse segmento específico, com o que as alternativas de contratação são deveras restritas.

Vê-se, assim, que o órgão interessado em adquirir armas leves tem apenas uma responsabilidade para com o princípio de proposta mais vantajosa: solicitar concorrência internacional. Havendo negativa pelo Exército Brasileiro, não há alternativas, pois os concorrentes nacionais são poucos e os preços praticados decorrem de posição monopolística. Quanto ao princípio de desenvolvimento nacional sustentável, considerando-se a dificuldade de instalação de novas plantas industriais de produtos bélicos, não há o que se falar de contratação de micro e pequenos negócios, já que são inexistentes.

Nesse quesito de autorização de operação de atividades comerciais ligadas a materiais bélicos pelo Exército Brasileiro, evidencia-se uma prática destoante do princípio de desenvolvimento nacional. A dificuldade de obtenção de licenças e os requisitos necessários para se enquadrar como Empresa Estratégica de Defesa (critérios ao artigo 2º da Lei 12.598 de 21 de março de 2012)18 fazem com que pequenos negócios não se consolidem, não cresçam e não sejam competitivos, o que ratifica o (quase) monopólio que hoje observamos no segmento, já anunciado por Rothbard quando dizia que:

As licenças restringem deliberadamente a oferta de trabalho e de empresas nas ocupações licenciadas. Várias regras e requisitos são impostos para trabalhar no ofício ou para entrada em um determinado ramo de negócios. Aqueles que não conseguem preencher os requisitos têm a entrada impedida. Além disso, aqueles que não conseguem pagar o preço da licença têm a entrada barrada. As altas taxas de licenciamento põem grandes obstáculos no caminho dos concorrentes com pouco capital inicial. (ROTHBARD, 2012, p. 63)

Vê-se assim, a ineficácia do Estado em cumprir também com os princípios de promoção de desenvolvimento nacional e proposta mais vantajosa desenvolvidos na Lei 8.666, de 1993. Não se trata de descumprimento de requisitos do processo licitatório, mas de fatores externos, anteriores, que impedem que haja concorrência e preço competitivo para seleção.

CONCLUSÃO

Construiu-se ao longo das últimas décadas diversos mecanismos de proteção à indústria armamentista nacional, iniciados mais fortemente no governo de Getúlio Vargas, consolidados a seguir no Regime Militar e aperfeiçoados nos anos 2000. Em decorrência dos estímulos, empresas do setor tornaram-se referência em armas leves no mundo, tornando o Brasil um dos maiores exportadores do mundo a partir de 2014.

O número de vendas pela indústria brasileira, entretanto, não significou qualidade do produto produzido, tendo como consequência diversos casos de acidentes reportados em razão de disparos acidentais por produtos nacionais adquiridos pelas forças auxiliares de segurança. Em razão disso, a partir de inúmeros relatos e dados disponibilizados por diversos órgãos de segurança, a Procuradoria da República em Sergipe ingressou com ação em face da União e da empresa Forjas Taurus.

Considerou-se, para a referida ação, que o ente público está sendo lesado (i) em decorrência do mau funcionamento dos produtos disponibilizados aos órgãos responsáveis pela defesa e segurança pública, o que gera a necessidade constante de manutenção e reparos do armamento, (ii) pelo dano ao capital humano - em decorrência de afastamentos ou óbito - em razão de acidentes e (iii) indenizações geradas por esses e (iv) e pelo preço distorcido dos produtos adquiridos. Requereu-se à ação promovida, portanto, o fim do monopólio alavancado pela União.

Pelo analisado, evidenciou-se que o modelo protecionista adotado não considera os fatores eficiência e eficácia para assegurar defesa. Ademais, havendo dificuldade na criação de novas empresas do ramo armamentista, em razão das mais diversas exigências a serem cumpridas, assim como impedimento de importação de produtos, tem-se, também, que o Estado é ineficiente no cumprimento dos princípios de promoção do desenvolvimento nacional, e impossibilita a efetivação da seleção de proposta mais vantajosa pelas forças auxiliares de segurança.

Tem-se, pois, que a própria União, através de uma evolução legislativa, fortaleceu alçada de intervenção pelo Exército Brasileiro na indústria armamentista, do que surtiram efeitos indesejados em diversos aspectos, contrariando os princípios da administração pública.

REFERÊNCIAS

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Notas

1 Conceito de handgun: “A gun designed for use by one hand” (DICIONÁRIO OXFORD, 2018).
2 § 2o Em igualdade de condições, como critério de desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços: II - produzidos no País; III - produzidos ou prestados por empresas brasileiras.
3 “Economic development, industrialization, and the creation of a domestic arms industry as facets of a single national project”
4 Art. 3º Nenhuma fábrica de produção de cartuchos, munições e armas de caça ou de explosivos poderá se instalar ou funcionar, se existe, sem que haja[…] 4º, recebido um título de registro expedido pelo Ministério da Guerra que terá o valor de licença dessa autoridade
5 Art. 75. A autorização das importações e dos desembaraços alfandegarios relativos as mesmas, é exclusivamente da alçada do Ministerio da Guerra, através seus orgãos de fiscalização em todo o territorio nacional. E o é tambem em relação aos despachos concedidos para fóra das jurisdicções policiaes locaes. Paragrapho unico. Não serão fiscalizados, a não ser em casos especiaes, o transito e venda dentro de cada cidade, villa ou povoado para attender ás necessidades de commercio e consumo locaes. Essa fiscalização, incumbirá preferencialmente ás policias e respectivas repartições das Prefeituras, quando julgarem de necessidade para a ordem e segurança da população. (redação ipsis literis da lei).
6 “It was the aggressive protectionist economic policies of Brazil’s military government (1964-85) that truly laid the foundations for the diversified, export-oriented industry that exists today”. (DREYFUS et. al., 2010c, p. 34)
7 Artigo 21. São atribuições privativas do Ministério da Guerra: […] j) fixar os tipos e calibres de armas, munições, petrechos e os tipos de pólvoras, explosivos e seus elementos e acessórios que poderão ser importados e respectivas quotas anuais. (BRASIL, Decreto 55.649, 1965c).
8 Idem.
9 “Aware of the need to achieve economies of scale in technologically complex production processes with high research and development costs, the regime looked towards exports to offset the decrease in demand”. (DREYFUS et. al., 2010, p. 36)
10 Lei 8.666, redação pela Lei 12.349.
11 Lei 12.598, de 2012.
12 Small arms are man-portable firearms that shoot kinetic projectiles, including handguns (revolvers and pistols) and individual- operated long guns such as rifles and carbines, shotguns, submachine guns, personal defense weapons, and light machine guns.
13 Art. 6º A importação de armas, munições e acessórios de uso restrito e demais produtos controlados poderá ser autorizada, de forma restrita e em caráter excepcional, nos seguintes casos específicos: [...] Parágrafo único.O exame das características e dos requisitos técnicos e operacionais deverá ser feito, necessariamente, antes da fase de abertura do procedimento licitatório correspondente. (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2006b) [Grifo nosso]
14 “Selection should not be made on the basis of a ton of paperwork, but by an older and far more effective method: requiring competing firms to produce prototypes and letting the service personnel who will use the equipment check each alternative out and see for themselves which is the better buy. “Fly before you buy” avoids the repeated shortcomings resulting from rushing weapons systems to premature production before they are really tested. Reducing the now overwhelming amount of detailed regulation of defense production will save taxpayers substantial amounts of money in many ways, especially by decreasing the vast amount of paperwork.” (WEIDENBAUM, 1992b)
15 Art. 3o: A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
16 Parágrafo 5o Nos processos de licitação, poderá ser estabelecida margem de preferência para: I - produtos manufaturados e para serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras; II - bens e serviços produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação.
17 “In spite of differences in application, the legal provision of Article 48, paragraph 3 and the heading of Article 47 brought a new perspective to bidding. With it, the Administration’s purchasing power could be used in the context of local development public policies, including opening a hermeneutic range to enable bidding restricted exclusively to companies in the same city or region”. (MORAES, 2016b, p. 136)
18 Art. 2º [...] V - Empresa Estratégica de Defesa - EED - toda pessoa jurídica credenciada pelo Ministério da Defesa mediante o atendimento cumulativo das seguintes condições: ter como finalidade, em seu objeto social, a realização ou condução de atividades de pesquisa, projeto, desenvolvimento, industrialização, prestação dos serviços referidos no art. 10, produção, reparo, conservação, revisão, conversão, modernização ou manutenção de PED no País, incluídas a venda e a revenda somente quando integradas às atividades industriais supracitadas; ter no País a sede, a sua administração e o estabelecimento industrial, equiparado a industrial ou prestador de serviço; dispor, no País, de comprovado conhecimento científico ou tecnológico próprio ou complementado por acordos de parceria com Instituição Científica e Tecnológica para realização de atividades conjuntas de pesquisa científica e tecnológica e desenvolvimento de tecnologia, produto ou processo, relacionado à atividade desenvolvida, observado o disposto no inciso X do caput; assegurar, em seus atos constitutivos ou nos atos de seu controlador direto ou indireto, que o conjunto de sócios ou acionistas e grupos de sócios ou acionistas estrangeiros não possam exercer em cada assembleia geral número de votos superior a 2/3 (dois terços) do total de votos que puderem ser exercidos pelos acionistas brasileiros presentes; e assegurar a continuidade produtiva no País.
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