Ensaios & Insights
Uma interpretação liberal de Moby Dick
A liberal interpretation of Moby Dick
Una interpretación liberal de Moby Dick
Uma interpretação liberal de Moby Dick
MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy, Law and Economics, vol. 9, e202191389, 2021
Instituto Ludwig von Mises - Brasil
Recepção: 10 Fevereiro 2021
Aprovação: 23 Abril 2021
RESUMO: O ensaio oferece uma intepretação econômica da obra Moby Dick de Herman Melville. Sua tese central é a de que o cetáceo representa, de forma emblemática, os valores que condicionaram o nascimento dos Estados Unidos como nação. A fim de levar a cabo a empreitada, o artigo situa a obra no contexto histórico, descreve a revolução literária que assombrou essa nação e o lugar de Moby Dick no movimento. Exploram-se algumas passagens chave da estória de aventura, que fundamentam a interpretação oferecida, em especial os capítulos 42 e 54 da obra. Procura-se desvendar as principais mensagens subliminares do livro. Identifica-se o cerne do livro em termos dos valores que ele afirma, oferecendo-se interpretação de cunho liberal da mensagem da obra, associando-se a criatura, protagonista da obra, à justiça.
Palavras-chave: Revolução americana, valores liberais, Herman Melville, Moby Dick.
ABSTRACT: The essay offers an economic interpretation of Herman Melville's Moby Dick. Its central thesis is that the cetacean represents, in an emblematic way, the values that conditioned the birth of the United States as a nation. To carry out the endeavor, the paper places the book in the historical context, describes the literary revolution that haunted this nation, and Moby Dick's place in the movement. This essay examines some key passages in the adventure story that support the interpretation, especially chapters 42 and 54 of the work. We seek to unravel the main subliminal messages of the book. The heart of the book is identified in terms of the values it affirms, offering a liberal interpretation of the message of the book, associating the creature protagonist of the work with justice.
Keywords: American revolution, liberal values, Herman Melville, Moby Dick.
RESUMEN: El ensayo ofrece una interpretación económica de Moby Dick de Herman Melville. Su tesis central es que el cetáceo representa, de manera emblemática, los valores que condicionaron el nacimiento de Estados Unidos como nación. Para llevar a cabo el emprendimiento, el artículo ubica la obra en el contexto histórico, describe la revolución literaria que acechaba a esa nación y el lugar de Moby Dick en el movimiento. Se exploran algunos pasajes clave de la historia de aventuras que fundamentan la interpretación ofrecida, especialmente los capítulos 42 y 54 de la obra. Se busca desvelar los principales mensajes subliminales del libro. El núcleo del libro se identifica en función de los valores que afirma, ofreciendo una interpretación liberal del mensaje de la obra, se asociando el monstruo, protagonista de la obra, con la justicia.
Palabras clave: Revolución Americana, Valores liberales, Herman Melville, Moby Dick.
INTRODUÇÃO
O conhecido épico de aventura de Hermann Melville, escrito há 167 anos, trata-se de um clássico da literatura universal. Talvez a maior expressão da literatura norte-americana no gênero de aventura de ficção1. Como bem conhecido, é a história da caça ao cachalote branco Moby Dick. O livro oferece na narrativa central, a obsessão do capitão Acab (Ahab) em perseguir o cetáceo, permeada de grandes trechos informativos e reflexivos (de não-ficção?). A obra de Melville, além de narrativa empolgante, versa sobre variegados temas relacionados à arte de navegação e o negócio com baleias. Discorre, de modo quase enciclopédico, sobre cetáceos, arpões, cordas, velas, mastros, detalhes da embarcação, extração do óleo da baleia, história da arte relacionada ao animal, literatura, mitologia, e diversos outros verbetes associados. Também representa um texto impressionante que, de modo incisivo mas sutil, amiúde quase cifrado, enaltece os valores iluministas que constituíram os Estados Unidos em sua revolução libertadora.
Este ensaio2 oferece uma interpretação econômica da grandiosa obra. Sua tese central é a de que o cetáceo representa de forma emblemática os valores que condicionaram o nascimento da nação. Argumenta-se que essa é uma das razões de o livro de Melville ter sido alçado a um lugar de destaque na literatura norte-americana3.
A fim de levar a cabo a empreitada, o artigo afigura-se nas seguintes partes: a primeira situa a obra no contexto histórico, descreve a revolução literária que assombrou essa nação e o lugar do romance Moby Dick ou a baleia no movimento. Na segunda parte, exploram-se algumas passagens chave da estória de aventura que irão respaldar a interpretação oferecida, em especial os capítulos 42 e 54 da obra. Procura-se desvendar as principais mensagens subliminares do livro. Identifica-se o seu cerne em termos dos valores que afirma. Na terceira seção, oferece-se uma interpretação de cunho liberal da mensagem da obra, associando-se o cetáceo, protagonista da estória, à justiça. Outra seção relaciona a tônica do livro com eventos histórico subsequentes na história dos Estados Unidos. Conclui-se discorrendo sobre o problema da interpretação da obra.
1. A REVOLUÇÃO NA LITERATURA ESTADUNIDENSE
A magna obra de Melville foi publicada em 1851, simultaneamente em Nova York e Londres. É preciso situá-la no contexto histórico em âmbito social, político e cultural. O mundo ocidental ainda se contorcia sob o impacto dos tumultuosos eventos associados às duas revoluções iluministas, a francesa e a americana. A França enfrentava dificuldade com a implementação dos valores que enalteciam os direitos do homem e a liberdade. A sociedade fortemente estamental do período pré-revolucionário, configurada em três estados, iria ceder aos ideais de uma sociedade formalmente igualitária apenas à custa de muito derramamento de sangue, e seguidas reviravoltas políticas associadas às revoluções secundárias que se derivam da revolução principal e fundadora de 1789, e que lhe seguiram em movimentos espaçados no tempo ao longo do século XIX. Em especial, na época em que Melville escreve sua obra, o mundo civilizado mal havia digerido a convulsão violenta na Paris de 1848. Os Estados Unidos tinham sido fundados há algumas décadas baseados em ideais iluministas e sob a liderança de homens de grande estatura intelectual e moral, sendo os principais Thomas Jefferson e Benjamin Franklin, na construção de ideias, e George Washington no âmbito político e militar.4 No entanto, os valores fundamentais que nortearam a criação do país estavam sendo, na primeira metade do século XIX, testados e desafiados pela agressiva disputa em campo de batalha com os nativos do continente, na conquista de terras pelos caucasianos descendentes de europeus, e no enfrentamento bélico com os vizinhos mexicanos na busca de redefinição das fronteiras. Além disso, o sul do país empregava mão de obra escrava de origem africana como fator de produção essencial do sistema agrícola local.5
A consciência norte-americana deparava-se, ao mesmo tempo, com o mundo europeu de lutas reivindicatórias e revolucionárias, especialmente na França, que se apoiavam nos mesmos pensadores que tinham servido de inspiração ao projeto de país na América, e com os conflitos intestinos entre sua população de origem europeia e a constelação de povos etnicamente distintos que estavam sendo integrados ao país de uma forma desumana, quando não exterminados nas lutas. Muitos viam na agressividade expansionista, na sede de conquistas econômicas sem precedentes e nos maus tratos a uma parte de sua própria população um modo de existência da nação incompatível com os altos valores que a fundaram.
As angústias próprias de um país vigoroso, mas atormentado, refletiram-se na fabulosa expressão literária que marcaria o período em que Moby Dick fora apresentado ao público culto. Com efeito, identifica-se entre 1845 e 1855 uma década de consolidação da alta literatura norte-americana, que espelhou os valores e os dilemas da América. O período da Revolução Literária inicia-se com o aparecimento do poema O corvo, de Edgar Allan Poe, atinge a máxima estatura com a publicação de A letra escarlate, de Nathaniel Hawthorne, em 1850, e o lançamento da obra principal de Melville no ano seguinte. Impressionante a qualidade dessas duas publicações quase simultâneas. A letra escarlate é considerada, pela maioria dos críticos literários, o maior romance da literatura norte-americana de todos os tempos e Moby Dick ou a baleia, além se ser tido por muitos como o maior livro da literatura americana, considerando-se todos os gêneros, está, sem dúvida, no panteão dos grandes livros da literatura universal. Se Hawthorne é o maior contista norte-americano, Melville, o maior no gênero aventura de ficção. Ambos eram amigos entre si.6 O marco que delimita o fim da revolução literária em 1855 coincide com o lançamento do livro de poemas Folhas na relva, de Walt Whitman7.
Portanto, no período que inicialmente coincide com a guerra contra o México e que testemunha, ao longo dele, fortes críticas ao sistema escravocrata, aflorara-se a mais elevada literatura dos Estados Unidos. Nesse âmbito, Poe foi o maior autor no gênero policial, seu personagem Dupin inspiraria depois o detetive Sherlock Holmes na obra de Conan Doyle; Hawthorne introduz o romance psicológico que retrata a moral puritana como tema, no qual se afigura inigualável; Whitman traduz a época em poesias da mais alta sensibilidade e Herman Melville, com seu magistral livro de aventura, transmite e reforça, de modo metafórico e cifrado, em uma estória fictícia com muitas camadas de interpretação, os valores dos Estados Unidos, dos pais fundadores, valores iluministas e liberais.
Todos os escritores revolucionários do período viam problemas com a expansão territorial a oeste, na luta contra indígenas e mexicanos, e na situação dos escravos. Eram todos antiescravistas.8 A alta literatura representa então a expressão artística a motivar o acerto de contas da sociedade americana, que culmina efetivamente na sangrenta guerra civil de 1861, exatamente uma década depois do lançamento de Moby Dick.
Melville é de família americana tradicional. Inclusive ligada pessoalmente, por relações de amizade, aos pais fundadores da nação. Atuava no comércio de importação. No entanto, quando nasce Melville os negócios da família “Melvill” tinham ido à falência. Dizem que o “e” de “Melville” foi para ele não se associar ao nome original da família que estava em apuros com os credores. Como legado da família, Herman torna-se bastante culto e erudito, em que pese ter de trabalhar desde muito jovem. A experiência profissional, por sua vez, não apenas não afetara seu talento literário como contribuiu muito no enriquecimento de sua obra, pois a vida de aventura como marujo da marinha mercante e depois empregado em baleeiras serviu de tema e de conteúdo para seus livros.
Melville, de fato, é o escritor que melhor descreve os valores dos Estados Unidos, assim como Cervantes o faz com a Espanha e Camões com Portugal9.
2. PASSAGENS DO LIVRO MOBY DICK
Moby Dick ou a baleia afigura-se uma obra-prima10. Livro genial, inigualável, grande clássico da literatura universal, ombreando até com gigantes como Don Quijote de la Mancha. Contudo, não é um livro fácil. Como toda obra dessa envergadura, requer um esforço. Não é prazer fácil e imediato. De início, a leitura parece árida. Contudo, é para se lutar com o livro, como se fosse o cachalote do leitor obstinado. Melville disse ao amigo Hawthorne que tinha escrito um livro perverso, malvado, miserável (“evil book ”). De fato, trata-se de um livro vivo. A obra possui uma mensagem profunda e universal. Naturalmente admite muitas interpretações com muitas camadas em cada qual. Mas há sempre a melhor delas, ou que mais se coaduna com as passagens na obra. Nesse sentido, há uma disputa de interpretação11. Este ensaio assevera que a interpretação liberal é a mais apropriada e permite corretamente apreender o papel da obra em reafirmar os valores fundantes da nação americana12.
O livro de Melville não obteve sucesso imediato. O sucesso só aconteceria anos depois com uma edição repleta de ilustrações a nanquim de Rockwell Kent (MELVILLE, 1930). Explora-se aqui a razão do estrondoso sucesso da obra em público e crítica. Outras histórias como a do livro, de pesca de cachalote, já eram bem conhecidas. O próprio autor, no capítulo 45 da obra, levanta fatos históricos e descrições em livro sobre a perseguição ao cetáceo. Dentre eles, cita o caso do navio Essex do capitão Pollard, que em 1819 deparou-se com um bando de cachalotes. O navio foi a pique com a cabeçada de um deles no casco. Não cremos que o livro de Melville seja baseado neste único caso13. Alguns críticos veem relação entre a obra de Melville e o livro de J. N. Reynolds de 1839, que narra a história do cachalote Mocha Dick, que fora caçado e morto na ilha de Mocha, na costa do Chile (REYNOLDS, 1870). A baleia em questão era albina, e portanto branca. Então o Moby Dick tem muitas influências, segue uma tradição literária sobre caça a cetáceos que já existia na primeira metade do século XIX. Contudo, a contribuição de Melville é muito especial e particular.
O livro tem um fundo religioso na forma de personagens com nomes bíblicos. Começa com o famoso “chamai-me Ismael” (“call me Ismael”). A aventura é narrada em primeira pessoa. E como se sabe é sempre difícil construir-se obra literária em primeira pessoa, porque perde-se o reforço do próprio autor escrevente, que poderia emitir avaliações próprias que não se remetam a nenhum dos personagens. Com exceção do revelador capítulo 54, “A história de Town-Ho como foi narrada na Estalagem de Outro”, Ismael (vamos chamá-lo assim) dirige-se diretamente ao leitor. Apenas nesse capítulo 54 em vez de dirigir-se ao leitor conta como fora o diálogo sobre Moby Dick entre ele e uns peruanos em Lima. Voltaremos a falar desse capítulo logo adiante14.
Nota-se que Ismael é um personagem misterioso. Em muitas passagens ele narra detalhes no interior do Pequot, o navio baleeiro da aventura, que ele enquanto passageiro não teria possibilidade de presenciar, como detalhes do jantar entre o capitão e seus três imediatos no interior do camarote exclusivo dele. De fato, Ismael parece onipresente e foi o único dos tripulantes que sobreviveu à aventura para escrever o livro. Ismael, na Bíblia, é o primeiro filho de Abraão que o teve com uma serva para ser reconhecido como filho de Sara, sua legítima mulher que era estéril. Depois, Deus permite que Sara conceba um filho para Abraão, que foi Isaac. Isaac é o pai dos judeus e Ismael, dos árabes. Este viveria em um vale distante e sem contato com familiares. Como ele, o Ismael do livro de Melville também é um solitário. E gosta da água, do mar como retiro, uma fuga.
Antes de embarcar no navio baleeiro Pequot, Ismael hospeda-se numa pousada em New Bedford antes de seguir a Nantucket, a cidade portuária, onde é forçado pelas circunstâncias a dividir o quarto e a cama. Conhece então o polinésio Quiqueg, de estranha aparência, cor indefinida, hábitos supostamente canibais, e mesmo assim sela com ele um pacto de amizade. O estranho tipo trata-se de hábil arpoador e embarca com Ismael no mesmo baleeiro. O Pequot é uma microssociedade (como o é todo navio)15. Em terra, Ismael conhece dois capitães que cuidam de todos os preparativos e apetrechamento da embarcação. Ambos os capitães acabam não embarcando na viagem. Inclusive foram eles quem recrutaram os amigos Ismael e Quiqueg e negociaram o pagamento do trabalho na forma de participação nos lucros da viagem de três anos.
A atividade baleeira era uma espécie de sociedade anônima, com famílias investindo no negócio rentável. O navio tinha vários sócios e a missão, diversos associados. Tudo era um mero negócio de produção de óleo de baleia e espermacete, líquido branco semelhante ao óleo de jojoba, usado em velas, lubrificantes de máquinas etc. Dava uma ótima vela que não exala cheiro de queimado. Em suma, produto muito valorizado. Os Estados Unidos eram a maior nação baleeira do mundo. Dominam os mares nesse negócio e seus baleeiros se espalham por todos os oceanos em muitos lugares do planeta.
Depois do início da viagem, decorrido certo tempo, Ismael conhece finalmente o capitão do navio. Chama-se Acab (Ahab), também um nome bíblico16. Nas escrituras hebraicas, Ahab leva a nação de Israel à idolatria. Desobedecera a Deus. O capital Acab, por seu turno, tem uma obsessão, é monomaníaco, quer matar o cachalote branco Moby Dick, que enfrentara em outra viagem e que lhe arrancou uma das pernas. Acab usa prótese de marfim de baleia no lugar da perna. Ele só aparece no capítulo 28 da obra. Antes Ismael tinha descrito os três oficiais, os imediatos Starbuck, protestante branco, membro da seita quacre, depois apresenta Stubb, o segundo imediato, um tipo também branco e meio indiferente a tudo, que vê a baleia como mero rato de água. O terceiro imediato era Flask, baixinho de costa larga. Descreve também os arpoadores principais, que também eram pilotos dos botes, escaleres presos ao navio, um tipo de barco a remo com uma pequena vela, que saia do navio para arpoar a baleia avistada. Além de Quiqueg, já conhecido do leitor, Ismael apresenta certo Tachtego, um índio, e um preto alto e forte chamado Dagu. No capítulo em questão, ele descreve Acab. Aparece no convés apoiando a perna de marfim num orifício especialmente cravado na madeira do assoalho.
No navio, havia gente de todas as partes e todas as etnias, havia holandês, francês, islandês, maltês, siciliano, açoriano, indiano, um marinheiro português e até chinês. No capítulo 36 do livro, o capitão revela a todos no barco que ele pretende caçar a baleia Moby Dick, e que premiaria com uma moeda de outro espanhola a quem o acompanhasse na empreitada. O primeiro imediato não se conforma com a obsessão louca de Acab. Afinal, estavam ali para um negócio lucrativo, produção de óleo de baleia e espermacete, e não para se vingar de um animal.
Qual o motivo do desejo obstinado do capitão do baleeiro em aniquilar o cachalote branco? Acab deseja matar o bicho não apenas para se vingar da perna amputada. Moby Dick, de fato, representa para ele o mal do mundo, “um cachalote de tamanho e malignidade invulgares [...] que tem inesgotável sede de sangue humano”. Até as criaturas do mar se apavoram com ele, “ao verem o cachalote, todos os peixes (inclusive os tubarões) ‘tomam-se dos mais vivos terrores’ e ‘frequentemente, na precipitação de sua fuga, arremessam-se contra os rochedos com tal violência que morrem instantaneamente’” (MELVILLE, 2005(a), p. 179).
Reflete Ismael no capítulo 26 do livro, intitulado Moby Dick:
[...] nem era sua grandeza incomum, nem sua notável cor, nem sua maxila inferior deformada, que cercavam assim o cachalote de terror instintivo; era aquela malignidade inteligente e sem paralelo que, segundo relatos precisos, ele cada vez mais demonstrava em seus ataques. Mais do que tudo, suas traiçoeiras retiradas infundiam mais pavor do que o semeado por qualquer outra coisa. (MELVILLE, 2005(a), p. 181)
Que ser é esse cuja ausência produz mais terror que tudo o mais? Seria realmente maligno? Escreve Melville: “Acab nutria feroz sede de vingança contra o cachalote, tanto mais terrível quanto, em sua frenética morbidez, chegara ultimamente a identificar com ele não só todas as suas desditas terrenas, como também todas as suas iras intelectuais ou religiosas.” Conclui reforçando que “todo o mal, para o doido Acab, personificava-se visivelmente e podia praticamente ser atingido em Moby Dick” (MELVILLE, 2005(a), p. 181).
Tais passagens do livro, que associam o cachalote à pura malignidade, encobrem, na verdade, o verdadeiro significado de Moby Dick e a natureza precisa da loucura do capitão Acab. A respeito disso, vicejam pistas por todo o livro. Vejamos, em especial, o capítulo 42, “o mais belo capítulo em um livro de língua inglesa”, reconhece mais de um comentador,17 intitulado “A brancura do cachalote”, também o já aludido capítulo 54, “A história de ‘Town-Ho’ ”. Qual o significado da cor branca de Moby Dick? Melville especula que o branco historicamente tem sido usado como a cor do poder. Lembra que o elefante branco era símbolo de reis orientais do Sião, a cor do império austríaco, e que o próprio homem branco é o que domina o mundo: “essa preeminência se aplica à própria humanidade, concedendo ao homem branco ideal domínio sobre todas as tribos fuscas...” (MELVILLE, 2005(a), p. 185).
O branco é honorável, é puro e suave, mas é também horror, pois, “esconde-se algo de enganador na mais secreta ideia dessa cor, a qual traz mais pânico à alma do que a vermelhidão que assusta no sangue” (MELVILLE, 2005(a), p. 186).
Em suma, nesse magnifico capítulo Ismael reflete amplamente sobre o significado da cor do cetáceo alvo da monomania do capitão do navio. Numa passagem emblemática, repleta de significados, associa a brancura a um fantasma: “simbolizando tudo o que seja importante ou grandioso, nenhum homem pode negar que em seu mais profundo significado imaginário o branco lhe recorde um fantasma característico” (MELVILLE, 2005(a), p. 188).
Que fantasma é esse que se associa ao branco? Vejamos a última frase do “mais belo capítulo escrito em língua inglesa”: “De todas as coisas, o cachalote albino era o símbolo. Admirais-vos, pois, da furiosa caçada?” (MELVILLE, 2005(a), p. 191).
Vamos, agora, ao famoso capítulo 54 da Estalagem de Ouro. Antes, oferece-se aqui um relato da viagem do navio até esse capítulo. O navio Pequot descera o Atlântico, acompanhando a costa do Brasil e avançando até o estuário do Rio da Prata. Depois, ruma em direção à África, passa ao sul da ilha inglesa de Santa Helena e alcança o Cabo da Boa Esperança, no extremo sul deste continente, em direção ao oceano Índico. Tal cabo é rota bem povoada de baleeiros indo e vindo de todas as partes do mundo. Passa pelo baleeiro chamado Albatroz. O capitão desse navio tenta dizer algo a Acab, mas perde para o mar o megafone. O navio se afasta. Logo adiante, o Pequot depara-se com o baleeiro Town-Ho, tripulado de polinésios que dão notícia de Moby Dick. Contam ainda uma estória “que parecia envolver obscuramente o cetáceo em determinado castigo, espantoso e inverso, de um dos chamados julgamento de Deus, que, segundo se diz, por vezes alcançam alguns homens.” (MELVILLE, 2005(a), p. 234)
Antes de explorá-la neste ensaio, cabe uma exposição rápida do momento histórico na época em que Moby Dick foi escrito. O mundo ocidental passava por um cenário social conturbado. Em 1848, ocorrera a revolta em Paris, que reforça em Karl Marx a doutrina do comunismo, da qual havia se convencido em 1844, quatro anos antes18. Tal evento afigura-se mais um dos produtos trágicos da mal resolvida Revolução Francesa de décadas atrás. Outra revolução, de mesmo significado doutrinário, tivera impacto e avaliação distintos nos Estados Unidos, nação fruto do mesmo projeto iluminista, bem melhor sucedido nesse âmbito em relação à tentativa de se aplicar os direitos do homem numa sociedade de estamentos, de estados, como a França pré-revolucionária da realeza.
No navio Town-Ho ocorre uma “comuna”, rebelião liderada pelo marujo Steelkilt. O fato desencadeador dela é que o oficial imediato Radney insultara e humilhara o marujo. O navio estava vasando água pelo tombadilho, um fio escoava pelas madeiras do casco. O barco estava a toda vela e os marujos atarefados nas bombas de sucção controlando o volume de água infiltrada e acumulada no porão. O imediato ordena ao marujo que abandone o nobre serviço, próprio de suas funções, para a humilhante tarefa de remover sujeira e lixo do convés, tarefa de rapazes, marujos rasos encarregados da limpeza. Ordenando obediência, o oficial quase encosta um martelo no rosto do marinheiro insubordinado, que o prevê das consequências caso toque sua face com o instrumento ameaçador. Indo em frente com a ferramenta, o oficial recebe um soco que parte o maxilar dele. Começa então a revolta no navio.
O capítulo é longo, o marujo e dois dos revoltosos são dominados, após erguerem barricada no navio como se estivessem nas ruas de Paris, e então ficam dependurados no mastaréu do navio19. O marujo líder Steelkilt e dois companheiros são açoitados. O próprio capitão do Town-Ho não teve coragem de bater em Steelkilt, após o marujo dependurado ter cochichado algo no ouvido dele. No entanto, o imediato Radney aproveita-se da retirada subsequente do capitão para surrar o marujo rebelde.
Steelkilt planeja vingança. Combina com os marujos das gáveas para não avisarem o capitão da aproximação de cetáceos, como forma de boicotar o negócio principal do navio. Além disso, Steelkilt pretende matar o malvado imediato, confeccionando um saco de pano e metendo nele uma bola de ferro para, uma vez aprisionado o imediato, fazê-lo afundar no oceano. No momento em que se aproxima do imediato, o cachalote Moby Dick mostra sua enorme cabeça próxima ao navio. Soa o alarme e todos os responsáveis correm aos escaleres. Radney lidera um dos botes. Na luta contra o leviatã marinho, ele, somente ele o injusto imediato, é devorado pelo monstro marinho.
Essa pavorosa história é contada aos peruanos por Ismael na Estalagem do Ouro em Lima. Após narrá-la, mesmo sendo um protestante, Ismael solicita a bíblia trazida por um padre. Com a mão nela, o contador da história faz juras, e assim encerra-se o capítulo: “Valham-me céus, por minha honra a história que vos contei é verdadeira, senhores, em substância e em seus pontos principais. Sei que é verdadeira; aconteceu neste mundo; estive no navio; conheci a tripulação; vi Steelkilt e conversei com ele depois da morte de Radney”.
Conforme veremos adiante, a análise dos dois capítulos de Moby Dick destacados nesta seção oferece pistas suficientes para desvendar-se a mensagem central do livro, embora ele tenha muitas outras mensagens, extraídas de outras partes da obra, e cada qual seja passível de mais de uma interpretação, associada a diferentes aspectos20. O caráter profundo e enigmático dessas mensagens, amiúde transmitidas de modo sutil e quase cifrado, é a razão principal de qualificar-se a obra de magnífica, o grande livro dos valores e da doutrina social da América iluminista.
3. UMA INTERPRETAÇÃO DE CUNHO LIBERAL
Mesmo enaltecendo o papel do negócio baleeiro na prosperidade da nação, mesmo que, na atividade, tenha de haver disciplina na microssociedade do navio, no entanto, com base em valores iluministas, os direitos do homem devem ser respeitados, conforme ensinara, dentre outros expoentes do evento revolucionário, o pai fundador George Washington, fazendo eco aos filósofos iluministas. Sobre ele, escreve Melville: “O grande Washington, também, posta-se ao alto, no vértice do seu sobranceiro mastro grande, em Baltimore; como uma das colunas de Hércules, sua coluna assinala aquele ponto da grandeza humana além do qual irão poucos mortais” (MELVILLE, 2005(a), p. 156).
O infeliz imediato do Town-Ho, Radney, desrespeitara os direitos do marujo Steelkilt, ele não estava à altura do posto superior que ocupava. Nas palavras de Melville:
Pois, seja qual for a superioridade de um homem, jamais poderá ela assumir o domínio prático e útil dos outros homens sem a ajuda de certa espécie de truques e entrincheiramentos exteriores, em si mesmos sempre desprezíveis e ignóbeis. É isso que afasta para sempre os verdadeiros e divinos príncipes imperiais dos palanques de comício do mundo; e deixa as mais altas honras que essa publicidade pode conferir àqueles homens que se tornam famosos mais por causa de sua infinita inferioridade perto do seleto e oculto pugilo do Celestial Inerte, do que por causa de sua indubitável superioridade com relação ao nível médio das massas. (MELVILLE, 2005(a), p. 148)
Onde reside a grandeza humana, a verdadeira superioridade do comandante? Ismael aconselha Acab em pensamento: “Oh, Acab! O que houver de ser grandioso, em ti, deverá forçosamente ser arrancado ao céu, e procurado na profundeza das águas, e esboçado no ar incorpóreo!” (MELVILLE, 2005(a), p. 149).
O grandioso e sublime, portanto, deve ser procurado nas profundezas das águas. Ora, pergunta-se então:
Ismael já respondera a esta última questão: o cachalote albino21. Ao mesmo tempo, nas religiões o próprio Deus é tido como o símbolo de tudo. Portanto, Moby Dick representa metaforicamente, e de modo espantosamente genial, a justiça divina aplicada aos homens vis22.
Voltemos ao doido capitão Acab e aos valores da grande nação do norte. Por que ele persegue o cachalote branco? Uma intepretação possível é a de que Acab não aceita o destino que levou sua perna. Não entende por que Moby Dick lhe roubara o membro. Qual teria sido a razão profunda desse acidente? O cetáceo teria agido, no caso, por um senso de justiça ou em punição a uma iniquidade que o capitão cometera? Talvez tenha sido por isso ou por mero acaso sem relação com a justiça. Não sabemos.
O monomaníaco Acab pensa provavelmente que o cachalote tenha cometido com ele uma injustiça, e que ao vingar-se dele estaria combatendo todo o mal do mundo. Ora, como bem explica o economista e pensador liberal F. A. Hayek, não se pode em sã consciência imputar injustiça a um animal, pois “a justiça é um tributo da conduta humana que aprendemos a exigir porque é necessário um certo tipo de conduta a fim de assegurar a formação e a manutenção de uma ordem benéfica de ações” (HAYEK, 1985, p. 89).
Um terremoto que elimina uma população inteira é um fato deveras lamentável, mas não se pode imputar injustiça a um fato natural. É injusto permitir que se construam casas em lugares sujeito a cataclismos. Mas o evento sísmico em si mesmo não se afigura um mal. A injustiça remete sempre a um ser inteligente e racional que a comete.
Então Acab, em sua sede de vingança, interpreta Moby Dick como uma criatura capaz de discernimento ético. Na medida em que Acab imagina não ter cometido nenhuma iniquidade, ele não merecera ser punido. Melville, no personagem Ismael, não tece nenhuma crítica à atividade baleeira em si. Portanto, não é por envolver-se nesse negócio rentável que o capitão fora punido. Não foi por isso, mas por mero acaso, sem relação com a justiça, que perdera a perna ao confrontar o poderoso animal. Definitivamente senso de justiça não se aplica a um cetáceo.
Contudo, para o capitão do navio o cachalote albino afigura-se mais do que um cetáceo. Se cometera Acab grave injustiça, então por que, em nome da justiça, Moby Dick não lhe tomara a vida, como fê-lo com o imediato Radney, em vez de apenas uma perna? Não teria Acab perdido a perna injustamente como provação divina? Ele poderia simplesmente ter-se conformado com o ocorrido e resignar-se. Moby Dick é indubitavelmente apresentado como um cachalote justiceiro. Ou talvez, numa intepretação religiosa, como o próprio Deus bíblico. Ao contrário do que descrevera no capítulo 41, intitulado com o próprio nome do cetáceo, não se trata efetivamente de criatura de “malignidade invulgar” com “inesgotável sede de sangue humano”.
Que tipo de injustiça combate o cachalote protagonista da estória? O trágico destino final que se confere ao capitão Acab por conta de sua loucura, de sua arrogância de depositar nele todo o mal, é um tipo de justiça. Por conta de sua monomania, Acab e todos que se associaram à sua sandice são devorados pelo animal. Sobra apenas Ismael, o renegado, o solitário bíblico, para transmitir o ocorrido aos leitores do livro que escrevera. Essa punição, no entanto, admite mais de uma interpretação e não se pode caracterizar de modo simples o “pecado” que teria cometido o capitão. A estória do baleeiro Town-Ho, no entanto, permite identificar um tipo de injustiça muito particular.
V. Ruggiero descreve a injustiça cometida pelo imediato Radney, do Town-Ho, como um “crime da economia” (RUGGIERO, 2002, p. 96-108). Tal crime refere-se a qualquer tipo de ofensa profissional, tal como assédio moral no trabalho. Afinal, fora nisso em que incorrera o imediato em relação a Steelkilt. Navios baleiros, no entanto, são descritos no livro de aventura de Melville como metáforas da sociedade. Nesse sentido, o crime de Radney ultrapassa o sentido estrito de ofensa profissional. De modo cifrado, mas de interpretação inquestionável, o autor denuncia o desrespeito humano nas relações sociais em geral. Ele ensina metaforicamente que a escravidão (Melville e todos os grandes escritores de sua geração eram antiescravistas), bem como o preconceito, o desrespeito e a subjugação de raças não devem ser admitidos, pois tudo isso é injusto. O melhor amigo de Ismael é um polinésio canibal, com o qual ele selara um pacto de amizade e de aceitação. Talvez ele tenha sido salvo do cachalote por esse pacto.
4. RELAÇÃO DE MOBY DICK COM A HISTÓRIA DOS ESTADOS UNIDOS
Os Estados Unidos, na origem, são essencialmente uma terra de liberdade, de livre-mercado, livre empresa e capitalismo23. Contudo, tinham dois problemas em seu caminho: guerras expansionistas e escravidão dos afrodescendentes. O navio baleeiro era um ótimo negócio produtor e comercial. Os investidores arriscam-se no negócio, e principalmente os marujos arriscam suas vidas. Escreve Melville: “Pelo amor de Deus, sede econômicos com vossa lamparinas e velas! Não queimais sequer um galão pelo qual não haja sido derramando ao menos uma gota de sangue humano.” (MELVILLE, 2005(a), p. 200)
Os negócios devem sempre continuar, mesmo que se tenha também a obsessão, a louca monomania do capitão. Afinal, mesmo perseguindo Moby Dick o navio Pequot continua com a produção, narra-se, inclusive, a captura de cachalote preto. A atividade baleeira é digna na visão de Melville. Trata-se de bom negócio econômico, que alimenta, ilumina os ambientes, ampara as pessoas. Que enriquece comunidades inteiras como a própria Nantucket. O negócio em si é bom, é desejável, Melville não faz uma crítica ao capitalismo, ao contrário da distorcida e sem fundamento interpretação de cunho marxista. Mas nos negócios, como na política e em todas as atividades práticas da vida, é preciso grandeza. Lutar contra índios e mexicanos, mesmo que eficaz de um ponto de vista estritamente econômico, não é atividade digna. Escravizar outro homem pela cor ou por ser um selvagem não é digno, não é correto.
Da mesma maneira que Moby Dick, os Estados Unidos, com seus valores fundantes, deveriam enfrentar as injustiças em sua sociedade, por exemplo, combatendo a escravidão e reconhecendo os direitos dos índios. O escritor e poeta inglês D. H. Lawrence suspeita que o nome Ismael fora escolhido porque é um nome muito comum entre os escravos americanos - Lawrence (2003). O branco da baleia representaria, nessa interpretação, entre outros aspectos, o homem branco, o caucasoide norte-americano das ondas de imigração oriundas do norte da Europa. É possível, mas não propriamente o branco escravocrata. Em nossa ótica, é errado associar esse branco ao escravocrata, pois Moby Dick não é o mal, pelo contrário, representa simbolicamente o bem e a justiça.
Então seriam os brancos americanos que, impulsionados pelos valores firmemente plantados pelos pais fundadores da nação, seguem o senso de justiça do cetáceo e, como um cachalote mortífero, deveriam ir à luta para fazer prevalecer a justiça contra todas as iniquidades dessa sociedade, resgatando-se assim os valores da nação24. Nota-se que, em exatos dez anos depois da publicação do maior livro jamais escrito na literatura estadunidense, os americanos desencadearão a mais sangrenta das guerras, a Guerra da Secessão, empunhando a bandeira de justiça do cachalote branco. O profundo senso de justiça permaneceu para sempre na alma americana25.
CONCLUSÃO: O PRBLEMA DA INTERPRETAÇÃO DA OBRA
Este ensaio defende a tese de que a mensagem fundamental do livro de aventura Moby Dick é a de que a nação norte-americana não deveria perder o legado de valores plantados por seus pais fundadores. Que é essencialmente um conjunto de proposições de cunho iluminista. A principal delas é a que sublinha o valor irredutível da individualidade amparado na dignidade da espécie humana. De modo impactante, escreve Melville a esse respeito:
Os homens podem parecer detestáveis, como as sociedades anônimas e as nações; podem ser velhacos, tolos e assassinos; podem ter rostos ignóbeis e macilentos; mas o homem, como ideal, é tão nobre e tão cintilante, uma criatura tão grandiosa e resplendente, que, sobre cada mancha ignominiosa que tenha, os seus semelhantes devem correr e atirar seus mais custosos mantos [...] augusta dignidade de que falo não é a dignidade de reis e mantos, mas aquela rica dignidade que não o cobre de trajes de gala. Podereis vê-la brilhar no braço que empunha uma picareta ou prega um prego; aquela dignidade democrática que, sobre todos os trabalhadores irradia infinitamente de Deus...”. (MELVILLE, 2005(a), p. 123-124)
Com base nesse valor iluminista fundamental a grande nação norte-americana não poderia constituir-se e operar sempre na base da subjugação desrespeitosa de suas minorias étnicas e de outros povos. Assim como o marujo Steelkilt, todos os homens devem ser reconhecidos em sua dignidade essencial na coexistência em sociedade, nas relações de trabalho, na cadeia hierárquica no interior das várias organizações e associações etc.26. Não se condenam as instituições capitalistas, a existência da relação trabalho-capital, a forma de remuneração do trabalho27, o negócio com as baleias e qualquer tipo de empreendimento. Desde, porém, que a dignidade humana, o valor fundamental dos direitos universais do homem, sejam sempre observados. É nesse sentido que se defende aqui uma intepretação liberal do livro de Melville.
Há, de fato, outras interpretações da mensagem fundamental de Moby Dick ou a baleia. A intepretação de cunho marxista, de que Melville estaria fazendo uma crítica ao capitalismo, à “acumulação primitiva”, não se sustenta da exegese do texto28. E levando-se em conta a época, os valores da América e a própria trajetória de Melville e sua família, nenhuma hermenêutica poderia sustentar a ótica marxista.
A intepretação religiosa da obra é a mais comum dentre os comentadores e a crítica literária. Nessa interpretação, a busca de Acab pela baleia não é uma busca justa de Deus, mas a tentativa fútil do homem natural em seu ódio a Deus para destruir a divindade onipotente. Quem pode sobreviver à perseguição de tal ser, se a perseguição for motivada por hostilidade? Conclui a ótica religiosa: somente aqueles que experimentaram a doçura da graça reconciliadora podem olhar para o poder esmagador, a soberania e a imutabilidade de um Deus transcendente e encontrar ali a paz, em vez de um impulso pela vingança29.
Cabe aqui um paralelo entre o livro Moby Dick, e Dom Quixote de Cervantes. O encanto da obra espanhola nasce do descompasso entre o idealismo do protagonista e a realidade na qual ele atua. Mas Quixote luta por uma causa realmente boa, justa. Os críticos literários enquadram ambos os livros como “romance de autoconsciência”, que “sistematicamente ostenta sua própria condição de artifício e que, ao fazê-lo, investiga a problemática relação entre o artifício e a realidade”30.
Dois livros magistrais muito diferentes, Moby Dick e Dom Quixote, oferecem passagens de reflexão como janelas autoconscientes. Como representantes de tal gênero, independentemente de suas diferenças no tempo de produção, forma ou conteúdo, ambos fazem essencialmente o mesmo: eles misturam diferentes níveis de ficção e realidade para questionar seu próprio status como ficção e descrição da realidade. Uma maneira de fazer isso é através de objetos reais e da ideia de linguagem que eles implicam.
O livro, por meio de um narrador em primeira pessoa, transmite uma mensagem humanista estridente, de muitos significados. Moby Dick afigura-se um cachalote justiceiro que pune a injustiça e que também impede que se a cometa31. Ele devora o imediato Radney e parece impedir que o bom garoto Steelkilt cometa assassinato. As analogias com a justiça divina são irrefutáveis. Contudo, além de um fundo quase religioso a obra assenta-se numa base de valores iluministas e, porque não dizer, liberal.
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Notas
Autor notes
I Professor Associado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto, na Universidade de São Paulo. E-mail: riccfeij@usp.br.