Artigo Original
Liberdade e Democracia em Tocqueville: Um Contraste entre a Descentralização Espontânea da Democracia Americana e a Centralização Racionalista da Revolução Francesa
Liberty and Democracy in Tocqueville: A Contrast Between the Spontaneous Decentralization of American Democracy and the Rationalized Centralization of the French Revolution
Libertad y Democracia en Tocqueville: Un Contraste entre la Descentralización Espontánea de la Democracia Americana y la Centralización Racionalizada de la Revolución Francesa Resumen:
Liberdade e Democracia em Tocqueville: Um Contraste entre a Descentralização Espontânea da Democracia Americana e a Centralização Racionalista da Revolução Francesa
MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy, Law and Economics, vol. 9, e202191405, 2021
Instituto Ludwig von Mises - Brasil
Recepção: 13 Abril 2021
Aprovação: 19 Abril 2021
Resumo: O objetivo do presente artigo é identificar, na leitura de Alexis de Tocqueville, o contraste entre a descentralização espontânea da democracia americana e a centralização racionalista da Revolução Francesa. A partir da leitura das obras de Tocqueville, analisaremos a hipótese de que a particularidade da tradição empirista e consuetudinária dos Estados Unidos evitou que essa nação sofresse as consequências de um modelo de república centralizador nascente na Revolução Francesa, fundado na tradição racionalista continental. A abordagem do presente trabalho é qualitativa e a metodologia é exploratória por meio de revisão bibliográfica das duas principais obras de Tocqueville, Da democracia na América (1835 e 1840) e O Antigo Regime e a Revolução (1856). Conclui-se que, na leitura de Tocqueville, há um contraste entre a descentralização espontânea da democracia norte-americana, que busca conciliar igualdade de condições e liberdade individual, e a centralização racionalista da Revolução Francesa.
Palavras-chave: Democracia, Estados Unidos, França, Liberdade, Tocqueville.
Abstract: The purpose of this article is to identify, in Alexis de Tocqueville's reading, the contrast between the spontaneous decentralization of American democracy and the rationalist centralization of the French Revolution. From reading Tocqueville, we will analyze the hypothesis that the particularity of the empiricist and customary tradition of the United States prevented it from suffering the consequences of a centralizing republic model born in the French Revolution, based on the continental rationalist tradition. The approach of this work is qualitative, and the methodology is exploratory through a bibliographic review of Tocqueville's two main works, Democracy in America (1835 and 1840) and The Old Regime and the Revolution (1856). In Tocqueville's reading, we conclude that there is a contrast between the spontaneous decentralization of American democracy that seeks to reconcile equality of conditions and individual freedom and the rationalist centralization of the French Revolution.
Keywords: Democracy, United States, France, Liberty, Tocqueville.
Resumen: El propósito de este artículo es identificar, en la lectura de Alexis de Tocqueville, el contraste entre la descentralización espontánea de la democracia estadounidense y la centralización racionalista de la Revolución Francesa. A partir de la lectura de las obras de Tocqueville se analizará la hipótesis de que la particularidad de la tradición empirista y consuetudinaria de los Estados Unidos impidió que este país sufriera las consecuencias de un modelo de república centralizador que nació en la Revolución Francesa, basada en la tradición racionalista continental. El enfoque de este trabajo es cualitativo, y la metodología es exploratoria a través de una revisión bibliográfica de las obras principales de Tocqueville, Democracy in America (1835 y 1840) y El Antiguo Régimen y la Revolución (1856). Se concluye que, en la lectura de Tocqueville, existe un contraste entre la descentralización espontánea de la democracia estadounidense que busca conciliar la igualdad de condiciones y la libertad individual y la centralización racionalista de la Revolución Francesa.
Palabras clave: Democracia, Estados Unidos, Francia, Libertad, Tocqueville.
INTRODUÇÃO
Alexis de Tocqueville (1805-1859) foi um aristocrata francês e um importante pensador político dedicado a temas como democracia e liberdade no século XIX. Suas análises sobre as democracias americana e francesa são até hoje objeto de debate. O objetivo do presente artigo é identificar, na leitura de Tocqueville, o contraste entre a descentralização espontânea da democracia americana e a centralização racionalista da Revolução Francesa. O autor francês antecipou vários temas e consequências sobre a relação democracia, liberdade e igualdade ao analisar a democracia americana e o período revolucionário francês. Enquanto Tocqueville percebeu uma tradição empírica e de ordem espontânea na democracia norte-americana que levou a uma descentralização do poder democrático, o autor encontrou uma tradição racionalista na França que resultou em um modelo de república de poder centralizado no período revolucionário. Em Tocqueville, o contraste entre igualdade de condições e liberdade da democracia americana e a centralização racionalista da Revolução Francesa é evidenciado.
A abordagem do presente trabalho é qualitativa e a metodologia é exploratória por meio de revisão bibliográfica das duas principais obras de Tocqueville, A Democracia na América (1835 e 1840) e O Antigo Regime e a Revolução (1856), e de textos de alguns comentaristas. A obra, A Democracia na América, resultado das observações de uma viagem do autor francês aos Estados Unidos para investigar o sistema penitenciário americano, contém quatro tomos, divididos em dois volumes na edição original, a saber, o primeiro volume trata das leis e costumes do Estados Unidos da América (1835) e o segundo volume aborda os sentimentos e opiniões do povo americano identificados pelo autor (1840). Já em sua obra, O Antigo Regime e a Revolução, de 1856, Tocqueville analisa o contexto institucional, cultural e político do Antigo Regime francês que possibilitou a Revolução Francesa, em 1789, e a centralização do poder governamental republicano. Na primeira obra, o autor francês se preocupa em responder a questão do porquê nos Estados Unidos a democracia se tornou liberal, ao passo que no segundo livro questiona o porquê de a Revolução Francesa não ter levado a um modelo de república liberal.
A partir da leitura das obras de Tocqueville, analisar-se-á a hipótese de que a particularidade da tradição empirista e consuetudinária dos Estados Unidos evitou que esse país sofresse as consequências de um modelo de república centralizador nascente na Revolução Francesa, que se fundava na tradição racionalista continental. Enquanto no contexto americano, a concepção de uma ordem espontânea de transformação social e surgimento de instituições e associações de modo orgânico levou a uma descentralização administrativa e à conciliação entre igualdade de condições e liberdade individual, no contexto francês, o ódio às elites e o racionalismo filosófico levaram à centralização administrativa e a um modelo de república não-liberal no seio da Revolução Francesa. Para tanto, o texto está dividido da seguinte forma: em primeiro lugar, buscar-se-á identificar as características da democracia americana, a partir das observações de Tocqueville; em segundo lugar, analisar-se-ão os elementos que levaram à Revolução Francesa e a sua centralização de poder republicano conforme a percepção tocquevilliana; e, em terceiro lugar, discutir-se-á a análise de Tocqueville em relação à descentralização espontânea da democracia americana e à centralização administrativa do modelo republicano resultante da Revolução Francesa.
1. A DEMOCRACIA NA AMÉRICA
No tomo um do primeiro volume de A Democracia na América, Tocqueville trata das instituições, dos bens e dos males da incipiente democracia americana. Para o autor, a democracia é uma tendência irresistível e universal na história. A democracia americana representa um progresso revolucionário da humanidade ao sair do jugo do despotismo aristocrático inglês e conciliar a liberdade individual com igualdade de condições. Já na introdução, Tocqueville se mostra surpreso com o elemento caracterizador da democracia americana, a igualdade de condições, de educação, de direitos políticos e de semelhante grau de riqueza . E identifica o caráter espontâneo da formação dessa igualdade ao dizer que “o desenvolvimento gradual da igualdade das condições é um fato providencial, possui as principais características de um: é universal, duradouro, escapa cada dia ao poder humano; todos os acontecimentos, como todos os homens, servem a seu desenvolvimento” (TOCQUEVILLE, 2019, p. 15). Na América, portanto, a democracia se move no sentido de mais igualdade de condições, de modo orgânico e espontâneo, preservando a liberdade individual.
Dessa forma, para o autor francês, a democracia americana era uma marcha espontânea da história. Era um movimento orgânico, não dirigido e espontâneo. Esse desenvolvimento orgânico é contrastado pela transformação racionalista francesa. Na França, segundo Tocqueville, o Antigo Regime foi abandonado sem que um espírito liberal permeasse a sociedade. Nesse sentido, o autor declara que “a democracia na França derrubou tudo o que ficava em sua passagem, abalando o que não destruía. Não a vimos apoderar-se aos poucos da sociedade, a fim de nela estabelecer tranquilamente seu império; ela não cessou de marchar no meio das desordens e da agitação do combate” (TOCQUEVILLE, 2019, p. 20).
A partir dessa leitura inicial, Tocqueville começa a reconstituir a história da formação dos Estados Unidos da América. O autor entende que a chegada dos Pais Peregrinos já trazia à América um espírito de cultivo da religião e da liberdade. O “espírito de religião e espírito de liberdade” (TOCQUEVILLE, 2019, p. 47) não eram antepostos entre si, pelo contrário, reforçavam-se mutuamente. Em consequência, para Tocqueville, o povo americano passou a cultivar um espírito de independência e liberdade, despertando os instintos democráticos face ao domínio inglês. O desejo por independência era um desejo por democracia e o espírito de autonomia individual, os hábitos e as leis começaram a marchar no mesmo sentido de alcançar a liberdade. A independência da Inglaterra possibilitou à Nova Inglaterra consolidar o princípio da soberania do povo. E esse princípio passou a permear os costumes, as leis e o governo dos estados. No federalismo americano, o governo centralizador da União passou a ser a exceção e o governo dos estados a regra (TOCQUEVILLE, 2019, p. 61).
Na Nova Inglaterra, observa Tocqueville, os indivíduos formavam uma cultura de participação de comunidades locais que, por sua vez, cultivavam o princípio da soberania. Nas comunas, o povo exercia sua soberania política, enquanto que as próprias comunas conservavam a soberania em seus interesses particulares ao passo que buscavam o interesse social quando haviam objetivos comuns com outras comunas. Cultivava-se, assim, um espírito espontâneo de liberdade entre e dentro das estruturas comunitárias. A não-centralização do poder implicava que “na América, vemos leis escritas, percebemos sua execução diária, tudo se move a nosso redor e não avistamos em parte alguma o motor. A mão que dirige a máquina social escapa a cada instante” (TOCQUEVILLE, 2019, p. 71).
Dessa forma, a descentralização administrativa se tornou um elemento central para o desenvolvimento orgânico da democracia americana. De acordo com Tocqueville, esse estado de coisas implicava a conciliação entre igualdade de condições e liberdade individual. Um governo centralizador tende a deixar de se preocupar com as questões gerais e se inclina a voltar-se para as questões específicas diminuindo a liberdade individual e impondo, artificialmente, a igualdade. Por isso, o autor divide a centralização governamental que se dedica à proteção de interesses comuns por meio de leis gerais, da centralização administrativa que busca cuidar de interesses específicos a certas partes do país. Dessa forma, conclui o pensador francês que “eu não saberia conceber uma nação que possa viver, e sobretudo prosperar, sem uma forte centralização governamental. Mas penso que a centralização administrativa serve apenas para debilitar os povos que a ela se submetem, porque tende constantemente a diminuir entre eles o espírito de cidadania” (TOCQUEVILLE, 2019, p. 88).
Dessa maneira, a centralização administrativa debilita a democracia ao diminuir, progressivamente, a liberdade individual por meio de normas cada vez mais específicas. A centralização governamental, para Tocqueville, é importante para a manutenção do império da lei (governo de leis gerais), mas a centralização administrativa representa a tendência para a restrição da liberdade e subserviência da vontade individual. Nesse contexto, diz o autor francês, “estou convencido, ao contrário, de que nesse caso a força coletiva dos cidadãos terá sempre mais poder para produzir o bem-estar social do que a autoridade do governo” (TOCQUEVILLE, 2019, p. 91). É a ação dos cidadãos livres, de modo espontâneo e orgânico, que pode produzir mais bem-estar do que a centralização administrativa.
Desta feita, ao passo que a descentralização do governo possibilita o governo de leis gerais e a ação humana espontânea, a centralização administrativa tende a levar à subserviência por meio de leis cada vez mais específicas. A partir disso, Tocqueville faz uma constatação surpreendente, a saber, as nações mais expostas à centralização administrativa são as democráticas por tenderem a concentrar o poder governamental nas mãos daqueles que representam o povo (TOCQUEVILLE, 2019, p. 96-97). O poder tende a se expandir aos elementos específicos de uma nação e levar ao despotismo, à semelhança do que houve no modelo de república que surgiu na Revolução Francesa .
Após analisar as instituições e a cultura política do período inicial da democracia americana, Tocqueville, no tomo dois do primeiro volume, tratará dos hábitos, das ideias e dos costumes da sociedade americana. O autor observa que nos Estados Unidos é a maioria que governa em nome do povo através de representantes eleitos. Ele ressalta que há, na formação da democracia americana, várias associações políticas resultantes da vontade dos indivíduos. Essa liberdade de associação é um instrumento das minorias para resistir à “tirania da maioria”, o despotismo de partidos e a arbitrariedade dos governantes democraticamente eleitos. As associações são instituições intermediárias entre os indivíduos e o poder estatal por meio do qual os cidadãos cooperavam em prol de interesses em comum, de forma livre e espontânea.
Nesse contexto de ampla liberdade individual e associativa, Tocqueville entende ser a democracia superior à aristocracia por ter a principal vantagem de servir ao bem-estar da maioria. Apesar de essa maioria momentaneamente formada poder se tornar uma tirania contra a opinião de grupos minoritários, na democracia americana da época, a maioria formada, na leitura do autor francês, não buscava centralizar as decisões dos indivíduos no poder do governo central. Inclusive, o Poder Judiciário podia atuar declarando a inconstitucionalidade de leis do Parlamento e do Executivo (controle de constitucionalidade difuso). Os costumes, a liberdade religiosa, a educação e o império da lei cooperavam na manutenção da liberdade democrática. Logo, tinha-se um desenvolvimento orgânico da democracia à medida que esta “aos poucos penetrou nos usos, nas opiniões, nas formas; é encontrada em todo o detalhe da vida social, bem como nas leis” (TOCQUEVILLE, 2019, p. 353).
Com efeito, no tomo três do primeiro volume de A Democracia na América, Tocqueville trata da influência da democracia no movimento intelectual americano e nos sentimentos dos americanos. Para o autor francês, a filosofia americana que animou a democracia foi pragmática e individualista. Por outro lado, a religião cristã estabeleceu limites ao pragmatismo americano. A partir disso, os americanos assumiram a igualdade de condições como valor para a democracia sobre a qual poderia ser assentada a liberdade individual. Com base nisso, segundo Tocqueville, os americanos passaram a dar mais primazia a princípios gerais do que ideias particulares. Ideias e princípios gerais possibilitavam mais liberdade para as decisões individuais. Contudo, o cultivo de ideias gerais pelos americanos não era tão elevado quanto era para os franceses. O autor explica que enquanto os americanos formaram uma democracia a partir de experiências práticas, os franceses passaram muito tempo só pensando e construindo ideias sobre a melhor forma de consolidar sua democracia. Nesse sentido, “os americanos formam um povo democrático que sempre dirigiu por si mesmo os assuntos públicos, e nós somos um povo democrático que, por muito tempo, só pôde pensar na melhor maneira de conduzi-los” (TOCQUEVILLE, 2019, p. 479).
Para Tocqueville, a marca singular da democracia moderna é o desejo de alcançar igualdade de condições. Para isso, os indivíduos tendem a se isolar à medida que se tornam mais iguais e menos dependentes uns dos outros. Uma das principais consequências da democracia se torna a disseminação do individualismo em que cada agente se torna autônomo para determinar sua vontade e juízo. Contudo, no contexto da democracia americana, o individualismo era limitado pela moralidade religiosa e pela formação de instituições livres, como o sistema eleitoral que aproximava periodicamente pessoas de diferentes interesses e opiniões. Os americanos passaram a formar organicamente associações civis sem objeto de natureza política. Essas associações serviam para gerar cooperação mútua entre indivíduos distintos em prol de interesses comuns. Por isso, “para que homens permaneçam ou se tornem civilizados, é preciso que entre eles a arte de se associar se desenvolva e se aperfeiçoe na mesma proporção que a igualdade de condições cresce” (TOCQUEVILLE, 2019, p. 555).
A arte de se associar, cultivada por meio de instituições políticas e civis, possibilitava a “doutrina do interesse bem compreendido” (TOCQUEVILLE, 2019, p. 565). Com essa doutrina, Tocqueville indica a crença disseminada na democracia americana de ser preciso sacrificar parte do interesse pessoal em prol de interesses comuns. Essa doutrina permeava a sociedade americana de forma orgânica e não racionalmente construída. Apesar do gosto pelo próprio bem-estar e pelo apego aos bens materiais privados, a democracia americana promovia a valorização da liberdade e o zelo por assuntos públicos. A religiosidade operava no sentido de moralizar a democracia e comunicava o valor de transcender os próprios interesses espontaneamente em prol de interesses comuns.
No segundo volume da obra em análise, que data de 1840, Tocqueville discute a influência da democracia sobre os costumes americanos e a influência das ideias e sentimentos democráticos sobre a sociedade política. A democracia americana tornava os costumes mais brandos, as relações interpessoais mais fáceis, ao passo que flexibilizava o espírito da relação patrão/trabalhador e modificava as relações familiares devido ao princípio da igualdade de condições. A ampliação da sociedade democrática americana resultava na criação de mais sociedades privadas com costumes, hábitos e condições similares. Os costumes, em regra, eram adquiridos pela experiência e, só às vezes, eram fruto de uma convenção entre os indivíduos. Nesse cenário, o autor francês entende que, na democracia americana, o indivíduo resistia ao ímpeto revolucionário, especialmente, devido à ameaça revolucionária à propriedade privada. A prioridade era dada a reformas paulatinas e institucionais.
Segundo Tocqueville, a igualdade de condições dava aos indivíduos mais apego às instituições livres e à liberdade individual. Paradoxalmente, percebe o autor francês, à medida que as condições do povo se igualam, os indivíduos tendem a desejar um governo mais centralizado, providencial e criador de direitos. Essa valorização do governo faz com que a democracia leve a mais centralização de poder no governo. Tende-se a concentrar no governo os interesses coletivos, posto que “a vida privada é tão ativa nos tempos democráticos, tão agitada, tão cheia de desejos e trabalhos que quase não resta aos homens energia ou tempo para a vida política” (TOCQUEVILLE, 2019, p. 711). Essa constatação leva ao paradoxo de os povos democráticos, a rigor, desejarem a expansão do poder central, enquanto não simpatizam com os representantes desse poder.
Por isso, Tocqueville termina com uma previsão pessimista, a saber, “nos séculos democráticos que vão se abrir, a independência individual e as liberdades locais sempre serão um produto da arte. A centralização será o governo natural” (TOCQUEVILLE, 2019, p. 713). A centralização administrativa e a servidão da vontade individual serão, para o autor francês, a regra nos regimes democráticos, tanto pelo desejo por mais igualdade, quanto pela ignorância do custo da imposição dessa igualdade pelo poder central. Esse custo é a centralização administrativa que pode se estender para as várias esferas da vida social e tornar-se, na expressão hayekiana, um caminho da servidão. Isso se dá porque “a primeira e, de certo modo, a única condição necessária para se chegar à centralização do poder público numa sociedade democrática é amar a igualdade ou fazer com que se acredite nesse amor” (TOCQUEVILLE, 2019, p. 718-719).
Na leitura do autor francês, mais igualdade e mais direitos levam a mais centralização estatal e a um consequente despotismo burocrático. Esse despotismo, para Tocqueville, seria mais extenso e mais sutil ao degradar, progressivamente, a liberdade individual. Sendo assim,
O soberano estende seus braços sobre a sociedade inteira; cobre a superfície dela com uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, por meio das quais os espíritos mais originais e as almas mais vigorosas não poderiam vir à tona para ultrapassar a multidão; ele não quebra as vontades, mas as amolece, dobra e dirige. (TOCQUEVILLE, 2019, p. 732)
O aumento do despotismo burocrático na esfera administrativa se tornaria o maior dos desafios, segundo Tocqueville, para as sociedades democráticas. Ainda assim, uma maior igualdade de condições é importante para o autor francês, desde que o poder social e estatal não sacrifiquem a liberdade e os direitos individuais para execução de seus projetos. Isto é, o poder governamental pode promover igualdade de condições ou liberdade de oportunidades em sentido geral, mas não pode determinar as particularidades dessas condições sem restringir e sacrificar a liberdade dos indivíduos. A análise de Tocqueville antecipou, dessa forma, vários temas e debates das democracias modernas.
Das várias observações feitas por Tocqueville sobre a democracia na América, é possível destacar que a revolução democrática americana foi orgânica e espontânea, e não resultado de um poder centralizador racionalista. Os costumes democráticos e as instituições democráticas surgiram espontaneamente no seio da sociedade americana. Não resultaram de um projeto racionalista de poder alimentado por ódio às elites. O espírito independente dos peregrinos, a resistência ao despotismo inglês e o funcionamento de instituições e comunidades intermediárias fruto da vontade de indivíduos livres possibilitaram e deram forma a um regime democrático descentralizado. Na democracia americana, os espíritos livres descobriram normas institucionais que funcionavam para a sociedade consolidando uma sabedoria prática democrática. A análise de Tocqueville não deixa de apontar os erros e desvios da democracia americana, mas o faz reconhecendo que a liberdade se desenvolve melhor de modo espontâneo.
2. O ANTIGO REGIME E A REVOLUÇÃO
Após dezesseis anos da publicação do segundo volume de sua obra A Democracia na América, Tocqueville publicou seu livro O Antigo Regime e a Revolução, em 1856. Essa obra é uma importante análise da formatação do Antigo Regime francês e as causas que levaram à Revolução Francesa. Ao passo que havia, no Antigo Regime, um governo absoluto que tornava seu povo subserviente ao governo central precipitando uma efervescência revolucionária, durante a Revolução Francesa e no novo Regime de modelo republicano, os indivíduos continuaram a ser submetidos a uma administração centralizadora.
A obra é dividida em três livros. No primeiro livro, Tocqueville trata da natureza e das características da Revolução Francesa de 1789. No segundo livro, o autor destaca os fatos gerais que levaram à Revolução e mostra como o fenômeno não mudou substancialmente o que já existia no Antigo Regime. E, no terceiro livro, Tocqueville destaca os fatos particulares que determinaram o lugar e o caráter da Revolução. No prefácio da obra, o autor francês apresenta seu objetivo de desenvolver um estudo sobre as causas que levaram à Revolução Francesa. Para isso, dedicou-se a analisar as atas das assembleias dos Estados-gerais e das assembleias provinciais. E identifica que, na França do século XVIII, a administração central do governo já era muito centralizada e poderosa. O caráter da Revolução já se mostrava nos documentos das assembleias, a saber, o desejo de abolir tudo do passado.
No livro um, Tocqueville explica que ninguém previu a natureza da Revolução que viria. A precipitação da Revolução se deu em meio a paixões e a um sentimento de revolta contra a aristocracia monárquica do Antigo Regime e contra a Igreja. A princípio, o objetivo da Revolução não era abolir o poder religioso e o poder político, mas no curso dos acontecimentos a natureza irreligiosa da Revolução assumiu um papel fundamental. O autor entende que o objetivo da revolução era uma renovação total da estrutura social, a fim de abolir a forma antiga da sociedade. Para tanto,
Teve de atacar simultaneamente todos os poderes estabelecidos, arruinar todas as influências reconhecidas, apagar as tradições, renovar os costumes e os usos e, por assim dizer, esvaziar o espírito humano de todas as ideias nas quais se haviam baseado até então o respeito e a obediência. Daí seu caráter tão singularmente anárquico. (TOCQUEVILLE, 2017, p. 55)
Contudo, Tocqueville, apesar de reconhecer o caráter anárquico da Revolução, entende que a característica singular do fenômeno foi estabelecer “um poder central imenso que atraiu e engoliu em sua unidade todas as parcelas de autoridade e influência que estavam anteriormente dispersas em uma infinidade de poderes secundários” (TOCQUEVILLE, 2017, p. 55). Ou seja, na sociedade francesa do Antigo Regime era possível encontrar ordens, profissões, famílias, disseminadas pelo corpo social. Contudo, a Revolução criou um novo poder que engoliu todas as esferas sociais e as submeteu a um poder central extenso.
A Revolução Francesa foi, para o autor francês, uma revolta política que procedeu à semelhança das revoluções religiosas. Porém, seu elemento particular foi considerar “o cidadão de forma abstrata, fora de todas as sociedades particulares” (TOCQUEVILLE, 2017, p. 58). Isto é, considerou o cidadão como homem geral, independentemente de seu país e época, passando a conjecturar quais seriam seus direitos e deveres gerais enquanto homens. Ao formular uma concepção de homem geral foi possível aos revolucionários franceses estabelecer regramentos, direitos e deveres para todos. Como o objetivo era a transformação social e política da estrutura feudal, a Revolução foi essencialmente social e política e, para isso, aumentou o poder e os direitos da autoridade governamental para garantir a todos os cidadãos em abstrato igualdade de condições.
No início do livro dois, de doze capítulos, Tocqueville explica o porquê de na França os direitos feudais terem se tornado mais odiosos do que em outros lugares. Enquanto na Europa os direitos feudais permaneciam os mesmos, na contexto francês, eles tinham sido abrandados mas não superados. O camponês francês era o proprietário da terra, mas não era o senhor a governá-la em todos os aspectos. O poder central governava amplamente no Antigo Regime por meio de centralização administrativa. Suas regras eram rígidas, mas sua execução era frouxa, de modo que leis e interpretações estavam em constante mudança. Cada um buscava usar a lei discricionariamente para benefício próprio e para conseguir o favor do Estado. O feudalismo não havia sido superado de todo e os poderes locais eram submetidos ao governo central, fossem nos assuntos gerais, fossem nas decisões específicas.
Com a Revolução Francesa, Tocqueville explica que o edifício administrativo centralizador do Antigo Regime continuou a servir de base para as novas instituições do período revolucionário. As ideias revolucionárias só poderiam ser implementadas pelo governo central, de forma que, para o autor francês, antes de destruir o poder do Antigo Regime, a Revolução Francesa o desenvolveu ainda mais. No Antigo Regime, o governo expandia a administração ao passo que surgiam novas demandas da população. A Revolução manteve essa centralização e construiu novas instituições sobre ela a partir de um modelo centralizador de república. Dessa forma, “os homens de 1789 haviam demolido o edifício, mas seus alicerces permaneceram na própria alma de seus demolidores; e sobre essas fundações foi possível reergue-lo novamente de uma só vez e construí-lo mais sólido do que jamais o fora” (TOCQUEVILLE, 2017, p. 102).
Com efeito, segundo Tocqueville, a centralização administrativa em Paris desenvolveu mais a cidade face ao restante da França, possibilitando uma revolução a partir dela mesma. De Paris, a França era administrada de modo relativamente uniforme, ainda que a sociedade estivesse dividida devido à falta de liberdade política. A nobreza até se parecia entre si, mas o povo estava todo esfacelado em grupos que só buscavam o próprio interesse. Era um “individualismo coletivo” em que cada grupo agia de modo individualista (TOCQUEVILLE, 2017, p. 120).
Nesse contexto, o Antigo Regime suprimia a liberdade política e separava a sociedade em classes. O rico desfrutava de privilégio tributário, enquanto sobre o pobre pesavam altos impostos, proporcionalmente. O Antigo Regime redistribuía para as camadas sociais de cima e criava funções inúteis para distribuir empregos. Nesse cenário, o espírito de resistência brotava no seio da sociedade francesa. Para Tocqueville, o período do Antigo Regime não foi um tempo de subserviência e dependência irrestrita. Havia uma liberdade irregular e intermitente dentro dos limites de cada classe, de acordo com a possibilidade de desafiar a lei. Contudo, não havia estabilidade e previsibilidade sob o governo do império da lei.
No terceiro livro, Tocqueville sublinha que na ausência de liderança política, intelectuais franceses influenciaram o povo com suas críticas e sarcasmos contra a nobreza e contra as instituições religiosas. Propunham a substituição de regras e costumes complicados por regras simples e elementares, “extraídas da razão e da lei natural” (TOCQUEVILLE, 2017, p. 152). Os intelectuais à época admiravam as teorias gerais e abstratas sobre o governo e, de forma racionalista, confiavam nelas cegamente . Nesse sentido,
No afastamento quase infinito da prática em que viviam, nenhuma experiência vinha moderar os ardores de sua natureza. Nada lhes advertia sobre os obstáculos que os fatos concretos podiam opor mesmo às reformas mais desejáveis e não faziam a menor ideia dos perigos que sempre acompanham as revoluções mais necessárias. (...) Tornaram-se assim muito mais ousados em suas inovações, mais apaixonados por ideias gerais e por sistemas, mais detratores da sabedoria antiga e mais confiantes ainda em sua razão individual. (TOCQUEVILLE, 2017, p. 153)
Apesar desse racionalismo, os intelectuais franceses não discutiam uma revolução violenta. A preocupação, de acordo com Tocqueville, era estabelecer princípios abstratos sobre os quais o novo Regime deveria se assentar. Eram racionalistas que propunham um novo mundo que seria marcado pela irreligiosidade. A religião cristã, nesse contexto, foi atacada e as massas cederam a um tipo de incredulidade absoluta. A Igreja foi encarada como parte do mecanismo aristocrático do Antigo Regime.
Contudo, na leitura do autor francês, esse sentimento antirreligioso substituiu a religião cristã por novos sentimentos e ideias, a dizer, a crença na perfectibilidade e poderio humano e a paixão pela glória humana e fé na própria virtude. Dessa forma, “tinham plena certeza de que estavam destinados a transformar a sociedade e a regenerar nossa espécie. Esses sentimentos e essas paixões tornaram-se para eles como uma espécie de religião nova” (TOCQUEVILLE, 2017, p. 165). Esse sentimento irreligioso, para o escritor francês, produziu um imenso mal para a esfera pública, pois, na Revolução Francesa, o ímpeto humano não tinha mais limites religiosos e cíveis a respeitar.
Nesse contexto, a liberdade pública, que se ampara no governo das leis gerais para todos os indivíduos, foi a última ideia a se conceber, mas a primeira a desaparecer. Na observação de Tocqueville, os franceses queriam, no século XVIII, resolver direta e racionalmente as questões da sociedade. Para isso, desejavam uma aristocracia de funcionários públicos e um governo central que fossem compatíveis com a noção de liberdade individual. Em consequência, buscaram amalgamar ou sintetizar “uma centralização administrativa ilimitada e um corpo legislativo preponderante: a administração da burocracia e o governo dos eleitores” (TOCQUEVILLE, 2017, p. 174). Logo, os cidadãos foram reduzidos à dependência da burocracia estatal do modelo republicano criado. Assim, a liberdade política foi a primeira a desaparecer na Revolução Francesa, pois, para o autor francês, os franceses “pareciam amar a liberdade, mas na verdade só odiavam o senhor. O que os povos feitos para serem livres odeiam é o próprio mal da dependência” (TOCQUEVILLE, 2017, p. 174).
Portanto, o desejo por liberdade política sem passar por reformas de instituições e ideias contrárias a ela produziu, de acordo com Tocqueville, ensaios inúteis sobre governos livres que, em sequência, foram seguidos por revoluções funestas. Muitos franceses entenderam que viver iguais sob um só senhor tinha algum encanto. Contudo,
O que, em todas as épocas, ligou tão fortemente o coração de certos homens à liberdade são seus próprios atrativos, seu próprio encanto, independentemente de seus benefícios: é o prazer de poder falar, agir, respirar sem constrangimento, sob o único governo de Deus e das leis. Quem procura na liberdade outra coisa além dela foi feito para servir. (TOCQUEVILLE, 2017, p. 174-175)
Os franceses queriam reformas, mas resguardando o forte poder central da administração pública em um novo modelo de república. Na verdade, não queriam a liberdade da dependência, mas sim reagir contra o senhor governante do Antigo Regime. Tocqueville reconhece que o reinado de Luís XVI, precedente à Revolução, foi o momento mais próspero da monarquia. O governo central buscava desenvolver a prosperidade pública distribuindo auxílios e incentivos, como também implementando obras públicas. Contudo, isso aumentava a despesa pública ao passo que não elevava as receitas, proporcionalmente.
O governo central se tornou o maior consumidor dos bens industriais e o maior empreiteiro de obras do país. A má gestão das finanças públicas, explica o autor francês, tornou-se um problema privado. Os credores do Estado tornaram-se irritados e impacientes com os atrasos de pagamento e passaram a exigir uma revolução completa das finanças do Estado. A situação era, portanto, a “de um lado, uma nação em cujo seio o desejo de enriquecer vai se generalizando dia a dia; do outro, um governo que excita continuamente esta nova paixão e a perturba sem cessar, que a inflama e a desespera, impelindo assim os dois lados para sua própria ruína” (TOCQUEVILLE, 2017, p. 183).
A elite aristocrata passa a discutir a situação do povo sem considerar a opinião deste. Cada vez mais cientes das injustiças e privilégios do Antigo Regime, o povo se enfurece progressivamente. O Antigo Regime havia comunicado ao povo, por muitos anos, ideias hostis ao indivíduo e contrárias aos direitos adquiridos, como também pensamentos simpáticos à violência e ao desprezo às instituições mais antigas. Ademais, uma reforma administrativa de 1787 trouxe desordem aos assuntos públicos e à vida privada dos cidadãos, minando ainda mais a relação entre cidadão e aristocracia.
Do que precedeu, Tocqueville entende que a Revolução Francesa foi uma consequência natural. O individualismo dos grupos e o ódio pelas elites fomentaram a Revolução. Para o autor francês, as teorias racionalistas dos intelectuais franceses e a violência dos atos não pareciam corresponder-se mutuamente, mas essa relação se deu na prática porque a Revolução foi pensada pelas classes civilizadas e executada pelas classes mais rudes do país. Duas paixões moveram a Revolução Francesa, o ódio violento à desigualdade entre a aristocracia e o povo e o desejo por mais liberdade. Contudo, na tentativa de abater o poder absoluto, colocou-se a liberdade sobre um corpo servil, um poder centralizador republicano, e, quando a geração que iniciou a Revolução foi destruída pelo próprio fenômeno revolucionário, o amor à liberdade esmoreceu face ao Reino de Terror.
3. DESCENTRALIZAÇÃO ESPONTÂNEA DA DEMOCRACIA AMERICANA E CENTRALIZAÇÃO RACIONALISTA DA REVOLUÇÃO FRANCESA
Tocqueville foi um importante liberal-democrata de sua época. Suas observações sobre o porquê de a revolução democrática americana ter resultado em um regime de liberdade, enquanto que a Revolução Francesa levou ao despotismo do poder central continuam fundamentais para a compreensão da relação entre democracia e liberdade. Para Tocqueville, a democracia deve conciliar igualdade de condições com liberdade, alertando para o constante perigo de uma expansão desmedida do governo burocrático no sentido de restringir a liberdade. Ao comparar os cenários da democracia americana e francesa, o autor se inclina a um governo descentralizado, como encontrado na América, e receia a centralização administrativa do Antigo e Novo Regimes franceses. Em sua análise, a centralização administrativa racionalista francesa criou um indivíduo abstrato e universal para submetê-lo a um sistema centralizado de poder e burocracia. O custo disso foi a violência revolucionária francesa da administração central. Por outro lado, a organicidade e a não-centralização administrativa americana possibilitaram transformações paulatinas e orgânicas desde o seio da sociedade, ainda que preservassem problemas democráticos, como as relações entre brancos e índios e entre brancos e negros.
É possível observar que Tocqueville se antecipou à leitura de F. A. Hayek sobre o desenvolvimento do pensamento das democracias modernas entre construtivistas-racionalistas e liberais-empíricos. Em sua obra Os Fundamentos da Liberdade, Hayek (1983) explica que existem duas tradições de liberdade na história moderna: uma é empírica e não-racionalista, outra, construtivista e racionalista. A primeira, de tradição anglo-americana, baseia-se nas tradições e instituições que surgiram espontaneamente ao longo da história e a segunda, de tradição francesa, busca construir uma teoria social a partir do exercício racional construtivista de instituições e normas . Na tradição anglo-americana, a liberdade é espontânea e experimental evoluindo organicamente e parcialmente consciente de seu progresso, por outro lado, na tradição francesa, a liberdade é racionalizada e submetida a um propósito coletivo, doutrinário e intencionalmente construído. Para Hayek (1983, p. 231-35), o liberalismo anglo-saxão perdeu espaço para o construtivismo francês. Este último, após a Revolução Francesa, levou a uma centralização administrativa do poder, influenciando à concepção de Estado de Direito e democracia na Europa.
Hayek desenvolve de forma mais ampla o conteúdo e implicações dessas duas tradições em sua obra Direito, Legislação e Liberdade. Para Hayek (1985), há dois modos de considerar a estrutura das atividades humanas: uma forma racionalista, que se ampara no construtivismo cartesiano, e uma forma evolucionista que fundamenta a ação humana em normas que, por um processo de seleção histórico, evoluíram por meio da experiência de gerações passadas. Para Hayek, o conhecimento racional humano é sempre limitado, posto que a mente se adapta na interação com as instituições e com os indivíduos de modo paulatino ao longo da história. Enquanto o racionalismo construtivista que amparou a filosofia da Revolução Francesa não aceitou a limitação da mente humana em compreender e determinar as estruturas sociais a partir de uma centralização administrativa, a tradição anglo-americana se amparou em um evolucionismo normativo que reconheceu a limitação da mente em determinar de forma coletivista as estruturas sociais. Ou seja, enquanto a tradição francesa levou ao estabelecimento de uma taxis, termo que, em Hayek, significa uma ordem criada intencionalmente com propósitos específicos, a tradição anglo-americana levou a um kósmos, a saber, uma ordem espontânea, abstrata (construída apenas na mente) e sem propósito específico.
Dessa forma, as observações hayekianas sobre as tradições francesa e anglo-americana já haviam sido antecipadas por Tocqueville. No mesmo sentido, Himmelfarb (2011) explica que houve, na modernidade, três projetos de Iluminismo, a saber, o da tradição francesa (racionalista), o da tradição britânica (virtudes sociais) e o da tradição norte-americana (liberdade política). A tradição iluminista anglo-americana tem um fundamento não racionalista que busca preservar a liberdade política por meio do cultivo de virtudes. Tanto na tradição britânica, quanto na norte-americana, há um ceticismo quanto ao poder da razão em determinar as ações dos indivíduos, ao passo que valorizam as virtudes morais na determinação das relações sociais. As liberdades política e religiosa possibilitam o cultivo orgânico de uma moralidade não-racionalista. Já no iluminismo francês, a razão e a igualdade foram elevadas no sentido de se consolidar o governo de uma aristocracia sobre as massas, a fim de que a vontade geral se sobreponha à vontade individual.
Nesse sentido, de acordo com Penna (2019, p. 116), o contraste passível de ser encontrado nas observações de Tocqueville diz respeito a duas importantes escolas de pensamento: o Empirismo Britânico que influenciou a filosofia prática americana e o Romantismo que influenciou o racionalismo francês. O Romantismo de Rousseau influenciou o Idealismo Alemão de Hegel na construção de uma filosofia política universalista e, consequentemente, racionalista que submete o indivíduo ou a uma vontade geral ou a uma comunidade nacional. Logo, o racionalismo e o romantismo levaram a generalizações sobre a sociedade e sobre o indivíduo em abstrato. Enquanto o pensamento inglês e norte-americano se baseava na experiência e no bom senso, o pensamento francês dirigia-se no sentido de racionalizar as estruturas sociais. Os americanos assumiram um caráter não-sistemático e empírico diante do fenômeno político, ao passo que os franceses seguiram uma “paixão por generalizações”, isto é, uma confiança ilimitada no poder da razão no sentido de compreender e instituir leis e costumes adequados para uma sociedade.
Por isso, como explica Penna, Tocqueville percebeu que o racionalismo francês tendeu a apoiar unidades totalizantes de autoridade, a dizer, governos centralizadores fortes, fossem monarquias absolutistas, fossem repúblicas centralizadoras. A administração central era uma forma superior de governo. O racionalismo conduziria à generalização e à centralização administrativa. Logo, a liberdade individual seria diluída em meio a um todo universal. Nesse sentido,
Os philosophes preferiam forçar seus projetos e suas opiniões sobre as massas, como fizeram durante a Revolução Francesa, em vez de deixar que as pessoas fossem aos poucos adquirindo os hábitos mentais lentamente inculcados pela filosofia. A crítica de Tocqueville nesse particular se antecipa à de Hayek e dos modernos liberais ao ‘construtivismo’ obsessivo dos social-estatizantes, à ‘engenharia social’ dos racionalistas e à mania de ‘mudar a sociedade por decreto’ de todos os intelectuais de esquerda. (PENNA, 2019, p. 118)
A partir da identificação dessas diferentes tradições que influenciaram a democracia americana e o movimento revolucionário francês, Tocqueville indica que enquanto no contexto americano a democracia se constituiu como um estado social caracterizado por igualdade de condições e pela recusa à aristocracia, no cenário francês, buscou-se criar instituições políticas democráticas racionalmente . Como destaca Manent, nos Estados Unidos da América, a democracia não tolerava a aristocracia por se caracterizar como um processo de crescente igualdade de condições que se fundamentava no “dogma da soberania do povo” . A partir disso, Tocqueville identificará a estrutura e cultura de uma democracia em que o indivíduo é mais ou menos livre.
A democracia implica, na leitura tocquevilliana, indivíduos iguais que não se comandam e até não se influenciam mutuamente. O individualismo presente no seio da democracia pode levar à perda do horizonte de sociedade e de comunidade. A democracia possibilita que cada um se coloque ao lado do outro e se encerre em sua privacidade. Contudo, como vivem em uma sociedade, os homens precisam tomar decisões sobre interesses comuns. De acordo com Manent, nesse momento, para Tocqueville, tem-se a decisão do povo em construir instituições e uma cultura democrática mais ou menos livre. A saber, ou o Estado vai gerir de forma ampla os interesses comuns e proteger os interesses privados enquanto os indivíduos se tornam mais dóceis e fracos diante do poder estatal, ou os próprios indivíduos iguais procurarão tratar de seus assuntos comuns construindo instituições livres, como associações, de forma espontânea (MANENT, 2018, p. 197-198).
Enquanto na primeira opção, os indivíduos se conformam a uma liberdade formal em que as instituições governam em seu nome, na segunda opção, os indivíduos buscarão construir uma liberdade descentralizada com equidade de condições. Como explica Manent, Tocqueville identifica a primeira opção com a escolha dos franceses que construíram uma democracia com centralização administrativa (algo comum entre o Antigo e o Novo Regimes) e liberdade formal, enquanto percebe a segunda opção como escolha dos americanos que passaram espontaneamente a construir instituições intermediárias para cuidar dos interesses comuns dos indivíduos. O contraste se dá entre uma liberdade formal, racionalizada pela intenção construtivista de um poder administrativo, e uma liberdade de oportunidades ou equidade de condições que possibilita o florescimento gradual e espontâneo de instituições descentralizadas.
Em consequência, a igualdade de condições da democracia americana e o igualitarismo da república francesa levarão a diferentes resultados. Segundo Manent, enquanto os americanos passarão a cultivar o gosto pela concorrência, os franceses recusarão a concorrência e confiarão suas decisões à administração central . Para Tocqueville, a tendência francesa é a mais forte em um estado social democrático (MANENT, 2018, p. 202). Por isso, em Tocqueville, o liberalismo passa a ser a luta do gosto pela liberdade contra a paixão da igualdade, isto é, a luta por uma democracia de instituições políticas livres e não por uma democracia como estado social igual. É a luta entre a arte da democracia que busca consolidar a liberdade e a natureza da democracia que visa a consolidar a igualdade (MANENT, 2018, p. 207).
O contraste, então, é evidente nas observações de Tocqueville. O autor francês demonstra confiança sobre a potencial expansão do poder do Estado nas democracias modernas. Contudo, essa expansão poderia ser descentralizada, como no modelo americano, ou centralizada, como no formato republicano francês. A primeira poderia manter a liberdade individual e a autonomia das estruturas sociais face ao poder estatal, ao passo que a segunda implicaria a supressão da liberdade face ao racionalismo do poder central. Nesse sentido, Merquior explica que:
Conforme bem viu Tocqueville, desde o início da civilização industrial o que houve foi uma tendência irresistível à expansão do poder social, do poder de regulamentação da sociedade pelo estado que, em princípio, a exprime. O decisivo passa a ser a forma que toma essa expansão: benigna, porque descentralizada, no modelo ‘democracia na América’; virtualmente despótica, no modelo centralista do estado europeu. (MERQUIOR, 1983, p. 127)
Segundo Zetterbaum, a descentralização que caracteriza a democracia na América e que concilia liberdade e igualdade de condições dispõe de uma não-concentração de poder na estrutura da própria sociedade. Alguns elementos descentralizadores são a autonomia para o autogoverno local (decisões municipais) e para as comunidades e instituições locais, uma imprensa livre, eleições indiretas, independência do Judiciário, disseminação de associações e, principalmente, o princípio do auto interesse individual. Por esse princípio, os indivíduos em busca do próprio bem-estar cooperam para o bem comum de modo orgânico e espontâneo (ZETTERBAUM, 1987, p. 773). Os elementos referidos, para Tocqueville, permitem diminuir a tendência individualista da democracia e geram mais cooperação entre os indivíduos de modo espontâneo, e não em obediência a uma administração central. Por isso, as associações para propósitos políticos, educacionais, científicos, dentre outros, são fundamentais para a preservação da democracia e para ampliar o exercício da liberdade, como também para diminuir a força da maioria e a concentração de poder central.
Outro elemento de destaque, em Tocqueville, para descentralizar o poder da administração central é a conciliação do espírito de religião e o espírito de liberdade. Como Penna (2019, p. 121) ressalta, enquanto que, no contexto norte-americano, a democracia e a liberdade foram consolidadas paulatinamente com a criação de associações, instituições e normas sob forte influência religiosa e moral, na Revolução Francesa, motivada pelo ódio às elites e à Igreja, opôs-se a religião à democracia, uma moral social religiosa à liberdade. No contexto americano, a religião protegia e orientava a moralidade e dava base às leis e instituições nascentes. Na sociedade francesa, a destruição da moral religiosa abriu as portas do arbítrio da Revolução Francesa. Tocqueville, então, entende haver um papel público para a religião, a saber, fundamentar e preservar a moralidade do país.
Portanto, a democracia, para Tocqueville, era igualdade de condições. Na democracia americana, o pensador francês pode encontrar certa equidade de condições ou de oportunidades entre os cidadãos, de modo que cada indivíduo tinha a possibilidade de buscar o próprio bem-estar. A partir disso, Tocqueville entende que a democracia americana conseguiu conciliar a igualdade de condições com a liberdade individual, enquanto a república revolucionária francesa, não. De acordo com Aron (1999, p. 215), Tocqueville entendeu que a democracia tende à centralização e ao despotismo de uma maioria. A maioria tanto pode subjugar minorias como pode querer a expansão do poder central em benefício próprio, ampliando o espírito de corte ao bajular governantes demagógicos. A própria democracia, dessa maneira, poderia estabelecer um despotismo do governo central sobre o indivíduo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tocqueville era um francês a serviço de seu governo, quando chegou aos Estados Unidos para observar sua cultura democrática. Ao chegar a esse país, deparou-se com uma cultura e construção democrática significativamente diferente da de seu país de origem, a França. Enquanto em A Democracia na América, Tocqueville identificou uma consolidação espontânea de instituições democráticas e uma não-centralização do poder governamental, em O Antigo Regime e a Revolução, o autor francês percebeu que a centralização de poder do Antigo Regime, o ódio popular contra as elites e a construção racionalista de um Novo Regime de caráter republicano levaram a uma violenta Revolução, caracterizada por centralização administrativa republicana.
O presente artigo buscou testar uma hipótese geral, a saber, a particularidade da tradição empirista e consuetudinária dos Estados Unidos evitou que esse país sofresse as consequências de uma república centralizadora nascente na Revolução Francesa, que se fundava na tradição racionalista continental. A democracia americana funcionou a partir de uma ordem espontânea de erros e acertos à medida que consolidava direitos e liberdades políticas, ao passo que a Revolução Francesa se caracterizou por ser um projeto intelectual construtivista de instituições e normas sociais. O primeiro modelo levou à descentralização administrativa e à conciliação entre igualdade de condições e liberdade individual, o segundo, à centralização administrativa e a uma república igualitarista resultante da Revolução Francesa.
Dessa maneira, apesar da generalização do presente texto sobre a formação democrática americana e sobre a configuração racionalista do Antigo e Novo Regimes da França, é possível concluir que, na leitura de Tocqueville, há um contraste entre a descentralização espontânea da democracia norte-americana que busca conciliar igualdade de condições e liberdade individual e a centralização racionalista da república nascida no seio Revolução Francesa. Assim, a tradição empirista da democracia americana evitou projetos racionalistas centralizadores e a sobreposição da igualdade sobre a liberdade individual. Por outro lado, a tradição racionalista francesa, com seu peculiar ódio às elites e à tradição religiosa, levou à manutenção da centralização do poder governamental do Antigo Regime e a um projeto revolucionário republicano que se revelou autoritário.
Tocqueville antecipou muitos temas da relação democracia, liberdade e igualdade. Em geral, quanto mais um país busca igualdade, mais tende a centralizar o poder administrativo no aparato burocrático governamental. Por outro lado, uma ordem espontânea que permite o cultivo de valores morais e religiosos pode levar a mais descentralização administrativa e a uma conciliação orgânica entre igualdade de condições e liberdade individual. Esta, por sua vez, possibilita o desenvolvimento de potencialidades individuais e intercomunitárias através do florescimento de associações espontâneas. Se um governo central busca de forma racionalista impor igualdade às estruturas sociais, o florescimento das potencialidades individuais tende a diminuir. Igualdade de condições e liberdade podem florescer conjuntamente em uma ordem democrática de modo orgânico e espontâneo, ainda que governos locais possam, pontualmente, dar alguns incentivos para essa conciliação.
A centralização administrativa parece ser, em alguma medida, a crise brasileira. Ainda que seja preciso a ação do Estado, no sentido de dar mais oportunidades aos indivíduos mais desassistidos, a centralização racionalista dessas decisões em Brasília tende a diminuir o desenvolvimento de potencialidades dos indivíduos e das estruturas sociais intermediárias, como associações e comunidades. O poder central deve ser descentralizado para as estruturas locais de maneira que estas possam contribuir na conciliação entre igualdade de condições e liberdade individual sem impor um planejamento racionalista à ordem democrática.
REFERÊNCIAS
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1999.
HAYEK, F. A. Os fundamentos da liberdade. São Paulo: Visão, 1983.
HAYEK, F. A. Direito, legislação e liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. Normas e Ordem. São Paulo: Visão , 1985.
HIMMELFARB, Gertrude. Os caminhos para a modernidade: os iluminismos britânico, francês e americano. São Paulo: É Realizações, 2011.
MANENT, Pierre. História Intelectual do Liberalismo. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2018.
MERQUIOR, José Guilherme. O Argumento Liberal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
PENNA, José Osvaldo de Meira. O pensamento de Tocqueville. In: PAIM, Antonio (org.). Evolução Histórica do Liberalismo. São Paulo: LVM Editora, 2019.
TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. São Paulo: Edipro, 2017.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. São Paulo: Edipro , 2019.
ZETTERBAUM, Marvin. Alexis de Tocqueville. In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph. History of Political Philosophy. Third Edition. Chicago: The University of Chicago Press, 1987.
Autor notes
E-mail: andersonbarbosapaz@gmail.com