Artigo Original
A Economia Política do Sacro-Império Romano Germânico
The Political Economy of the Holy Roman Empire
La Economía Política del Sacro-Imperio Romano Germánico
A Economia Política do Sacro-Império Romano Germânico
MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy, Law and Economics, vol. 9, e202191374, 2021
Instituto Ludwig von Mises - Brasil
Recepção: 13 Outubro 2020
Aprovação: 03 Fevereiro 2021
Resumo: O Sacro-Império Romano Germânico foi uma unidade política que existiu na Europa Central entre 800 e 1806 D.C. Diferentemente dos estados europeus modernos, o Sacro-Império era uma estrutura política altamente fragmentada em unidades semi-independentes variadas, de principados até cidades-livres. Ao longo do artigo, mostraremos como o caso histórico do I Reich alemão, com seus principados descentralizados, fornece um exemplo prático de sistema federalista radical e de monarquia proprietarista teorizada em Hoppe (2017). Além disso, abordaremos o contexto analisado e justificado pela doutrina administrativa do cameralismo alemão.
Palavras-chaves: Economia Política, Monarquia, Cameralismo, Federalismo, História.
Abstract: The Holy Roman Empire was a political entity that existed in Central Europe between 800 and 1806 A.D. Unlike modern European states, the Holy Roman Empire was a political structure highly fragmented into semi-independent units, from principalities to free cities. This article will explore how the historical case of the I German Reich, with its decentralized principalities, provides a practical example of a radical federalist system and a proprietary monarchy theorized in Hoppe (2017). Besides, we will approach in the context analyzed and justified by the administrative doctrine of German cameralism.
Keywords: Political Economy, Monarchy, Cameralism, Federalism, History.
Resumen: El Sacro-Imperio Romano Germánico fue una unidad política que existió en Europa Central entre 800 y 1806 D.C. Diferentemente de los estados europeos modernos, el Sacro-Imperio era una estructura política altamente fragmentada en unidades semiindependientes variadas, de principados hasta ciudades libres. A lo largo del mostrará como el caso histórico de I Reich alemán, con sus principados descentralizados, provee un ejemplo práctico de sistema federalista radical y de monarquía propietarista teorizado en Hoppe (2017). Además de eso, se realizará un abordaje con el contexto analizado y justificado por la doctrina administrativa del cameralismo alemán.
Palabras clave: Economía Política, Monarquía, Cameralismo, Federalismo, Historia.
INTRODUÇÃO
O presente texto é tanto uma investigação histórica e política, como ideológica. Ao longo dele, será realizada uma investigação sobre o contexto histórico no qual tanto uma ideia se desenvolveu, como a exposição dessa ideia. A ideia em questão é o cameralismo, uma doutrina de administração do Estado que nasceu no que hoje conhecemos como Alemanha.
Ao longo do texto, será mostrado como a essência política do sistema feudal perdurou por um período bem mais amplo do que o definido pela Idade Média. Essa longa persistência da influência de fatores institucionais será explorada tanto no contexto maior do continente europeu, como para explicar o desenvolvimento atípico, traduzido em rápido desenvolvimento econômico, do território alemão.
Em um primeiro momento, deverá ser traçado, para fins de melhor entendimento comparativo, um quadro geral da Europa entre a Idade Média e o século XIX. Essa parte envolverá uma demonstração por vias históricas do sistema internacional moderno ou “vestfaliano” e sua origem em um cenário de anarquia internacional.
Em um segundo momento, será abordado o quadro político interno do Sacro-Império. Essa parte envolverá uma abordagem dos desenvolvimentos pioneiros teóricos do federalismo nos territórios germânicos e a realidade competitiva entre unidades políticas proprietaristas. Em um terceiro momento, será discutido como esses contextos interno e externo influenciaram no desenvolvimento do cameralismo e sobre o que defendia essa doutrina.
Em último ponto, será apresentada uma conclusão com reflexões sobre as lições desse sistema para o mundo contemporâneo.
1. O MUNDO PÓS-ROMANO E A PAZ DE VESTFÁLIA
No ano de 476 d.C., a cidade de Roma atingiu seu ápice de declínio político. O imperador Rômulo Augusto era deposto de seu trono, por força dos invasores hunos e de seu líder, Odoacro. Roma ardia em chamas, suas riquezas foram saqueadas e seu patrimônio cultural depredado pelos chamados “povos bárbaros”.
Roma, outrora a maior cidade do hemisfério ocidental, virou uma ruína. Seus cidadãos e a nobreza local deixaram a cidade durante as primeiras invasões da tribo germânica dos vândalos. Pressionadas pela expansão do Império Mongol ao leste, as tribos germânicas provocaram as fronteiras do Império Romano e, com divisões internas entre as várias facções militares e patrícias, as fronteiras romanas foram gradualmente sendo enfraquecidas e, então, uma série de invasões foi dilapidando a estrutura política de Roma. Os hunos foram apenas os últimos a chegar.
Como que uma série de acidentes vasculares, cada invasão bárbara enfraqueceu ainda mais a ordem imperial. Após a queda de Rômulo Augusto, as várias facções patrícias se dividiram, o povo fugiu para o campo e abandonou os centros urbanos. Os antigos símbolos de poder perderam seu significado e os invasores bárbaros seguiam em suas hordas pelas velhas estradas romanas. O Império Romano Ocidental colapsou perante o ataque dos bárbaros e tudo o que restou foi um cenário de guerras clânicas contínuas, em disputa por terras, e o Império Bizantino ao leste, que era a parte sobrevivente do Império Romano (KANTOROWICZ, 1998).
O que se seguiu foi um conflito entre os diferentes chefes tribais germânicos pelas terras outrora pertencentes à Roma. Cada chefe tribal buscava maximizar seu patrimônio por uma expansão de seus domínios territoriais. Quanto mais terras em seu poder, mais súditos teria para lhe pagar uma oferenda em sua pessoa, um tributum. Para conseguir isso, os líderes germânicos nomeavam guerreiros habilidosos dentre os seus e os recompensavam com a terra que conseguissem conquistar caso batalhassem em seu nome. Assim, com esse sistema de incentivos, os líderes tribais expandiram seus domínios, em uma guerra constante de uns contra os outros e por meio do saque do antigo domínio de patrícios, que haviam fugido de Roma.
Todavia, esse período de conquista não durou para sempre. Com o tempo, conforme líderes eram derrotados e territórios se consolidavam nas mãos de um mesmo chefe tribal, os conflitos iam diminuindo. Os chefes tribais tinham que ter compensações pelo custo da guerra, tinham súditos para governar e terras para gerenciar. Assim, os assim chamados reis passaram de incentivadores das conquistas bárbaras para mantenedores da ordem interna de seus novos domínios. Como coloca David Landes:
Com o passar dos anos, as tribos nórdicas e os invasores húngaros aquietaram-se e acabaram civilizando-se. Reinos substituíram então os acampamentos de guerra nômades e seus governantes passaram a encarar com animosidade esses arrogantes capitães que, com seus exércitos privados e suas histórias de temerárias façanhas, regressavam de suas incursões com butins e fanfarronadas e ameaçavam a paz. Os reis não precisavam de desordeiros profissionais. Uma combinação de ameaças e recompensas conseguiu persuadir os malfeitores e piratas de que tinham mais a ganhar sendo donos de terras e tosquiadores de ovelhas no próprio país do que como senhores da guerra e matadores de ovelhas em terras estranhas. (LANDES, 1998, p. 32)
Assim, surgiram os primeiros reinos europeus e os primeiros senhores feudais, bárbaros civilizados. Todavia, nenhum desses novos reinos era uma Nova Roma. Cada líder tribal consolidou seu território, mas não foi o único a fazer isso. A disputa por terras entre cada uma das tribos e a diversidade de tribos então presente fez com que o território europeu ficasse dividido entre vários reinos comandados por diferentes reis. E cada um desses reis tinha seus respectivos senhores feudais, cada um dos quais era considerado autônomo em relação aos seus monarcas (LANDES, 1998).
A natureza do poder também era diferente. O Imperador Romano exercia seu poder sobre seus generais e súditos por meio do imperium, a força das instituições romanas em impor sua vontade sobre sua área de domínio. Todavia, essa não era a forma do poder feudal. O direito tribal germânico afetou a organização das sociedades europeias após a queda do Império Romano ao ponto de fazer a sociedade feudal estranhamente “democrática”. Nos séculos que se seguiram ao fim de Roma, o braço da autoridade era curto. O poder derivava, em princípio, da fidelidade livremente consentida ao grupo tribal ou a uma dada elite dentro desse grupo, e era um poder correspondentemente limitado. O governante, mesmo quando designado como tal por nascimento, era submetido à aprovação dos seus senhores feudais vassalos. Os lordes, barões e duques julgavam a aptidão e capacidade do novo monarca e julgavam se ele seria digno ou não de sua lealdade. Assim, o rei era nominalmente eleito por seus vassalos (STEPHENSON, 1941).
Todavia, a ideia da ordem romana, da ordem universal, ainda existia na cabeça dos europeus. O Papado, que sobreviveu ao colapso de Roma dilapidando o Patrimônio de São Pedro pagando tributos aos líderes bárbaros, ainda tinha em mente a construção de uma ordem universal dominada pela religião cristã. O sonho das cabeças pensantes da Igreja era um retorno à dualidade outrora existente desde os tempos de Constantino, onde existia uma autoridade eclesiástica representando a palavra de Deus na Terra e uma autoridade secular que imporia a vontade divina sobre os homens (KANTOROWICZ, 1998). Uma força ideológica e outra militar para exercer o imperium de Deus na Terra.
Os papas tentaram recriar a estrutura de Roma procurando um líder tribal germânico para dar o título de imperador, sobretudo após a Cisma do Oriente e a constante ameaça do basileus bizantino ao poder do Papado. Quando as tribos dos francos e lombardos se tornaram suficientemente poderosas, invadindo e conquistando boa parte da Itália sob a liderança de Carlos Magno, o Papa Leo III o nomeou Sacro-Imperador Romano, aquele que iria consolidar e expandir os domínios da cristandade, a força secular tão esperada para complementar a autoridade eclesiástica papal (BRYCE, 1877). Obviamente, isso não foi feito por uma mera questão de ideias. O papa desejava expandir seus domínios e desafiar Constantinopla dando a um bárbaro o título de “imperador dos romanos”; títulos esse que pertencia, teoricamente, ao basileu bizantino; e Carlos Magno desejava a aprovação de seu governo pela Igreja, lhe dando legitimidade para impor seu poder sobre todos os fiéis do Trono de Pedro.
Todavia, as esperanças de um novo Império Romano foram esmagadas pela própria estrutura feudal. Mesmo com o estabelecimento do Sacro-Império Romano como um domínio dual da autoridade eclesiástica e secular, o poder ainda era fragmentado pelas tradições germânicas dos senhores feudais. Cada senhor feudal possuía sua avaliação de quem deveria ser a autoridade secular imperial, cada um tinha seus valores e sua avaliação dos príncipes eleitos. Assim, após a morte de Carlos Magno em 814 d.C., o Império foi fragmentado entre seus descendentes em meio aos conflitos de visão de cada senhor feudal (BRYCE, 1877). A Dinastia Ottoniana conseguiu manter a parte oriental do Império, mas a ocidental acabaria virando a França.
Mesmo tendo sobrevivido e ainda sendo guiado pela ideia de restauração de Roma sob uma unidade católica, o Sacro-Império Romano era apenas uma coleção de vários domínios feudais. O Imperador não era membro de uma linhagem hereditária corrente, mas sim eleito pelos Príncipes Eleitores; os súditos tinham mais relações com os senhores feudais do que com o Imperador; o Sacro-Império sequer possuía uma capital fixa, a corte se mudava se cidade em cidade tanto por razões militares como pela mudança da Casa governante e, sobretudo, o direito era mais dominado pela lei germânica descentralizada do que pelos rígidos códigos universais do direito romano (BRYCE, 1877).
Essa descentralização teria um impacto significativo não somente no estabelecimento das relações sociais dentro do Sacro-Império, mas no desenvolvimento das próprias instituições formais dentro dele. As relações de poder no mundo germânico eram basicamente relações contratuais de direitos e deveres entre Senhor e Servo:
Os reis e príncipes que ocupavam o ápice da pirâmide feudal - e na Europa havia numerosas hierarquias feudais independentes - não eram tanto soberanos autênticos como indivíduos que, por contrato com outros indivíduos, seus vassalos, haviam estabelecido certos direitos e obrigações. Restava o sonho de um Sacro-Império Romano no ápice, mas isso pouco mais era do que um sonho. Pior ainda, as obrigações eram mútuas, portanto, o Rei ou outro senhor qualquer tinham deveres para com seus vassalos, tais como ajudá-lo em caso de ataque e de proteger-lhe as propriedades durante a menoridade de um herdeiro e transferi-la para ele ao chegar à maioridade. O conceito feudal de relacionamento contratual recíproco entre soberano e vassalos assemelhava-se, mais uma vez, de modo geral, ao conceito posterior, característica das sociedades capitalistas, de governo como um contrato entre o estado e os governados, e dependente, para sua legitimidade, do consentimento destes últimos (ROSENBERG; BIRDZELL, 1986, p. 71).
O consentimento contratual dos servos pela lei germânica era bastante forte e guiou a formação do Sacro-Império Romano. Da mesma forma que um contrato privado atual, é esperado o cumprimento pelas partes dos termos estabelecidos nele; no caso de forma indireta. Um servo espera, em troca de seu trabalho nos campos comuns de um dado feudo, que seu senhor protetor lhe garanta ferramentas de trabalho, certos bens públicos e, sobretudo, sua segurança contra violações de sua propriedade por ameaças externas ou internas.
Todavia, diferentemente das ideias de Contrato Social estabelecidas em direito romano, as relações de poder germânicas seguiam à risca os conceitos de contrato mesmo em caso de revolta. Caso um senhor feudal ou rei violasse os termos do Contrato Social, como expropriar uma propriedade por mero desejo, era entendido como direito dos súditos se rebelar. Isso entrava em conflito direto com a noção romana de uma hierarquia de poder na sanção de normas, onde o Imperador seria colocado como autoridade incontestável do poder jurídico. A consideração da relativa descentralização do direito germânico primitivo tem algumas consequências dignas de análise. Segundo North (1990), ainda que seja possível realizar a proteção de direitos de propriedade em pequenas comunidades por meio de mecanismos de reputação, mercados grandes e complexos exigem a proteção do estado para salvaguardar dos direitos de propriedade e termos de contrato. Contudo, a existência de estados, definidos como monopólio do uso exclusivo da força sobre um dado território, não pode ser tomada como um fato histórico em todos os períodos.
Durante a Idade Média e boa parte da Era Moderna, por exemplo, não existiu nada semelhante a um monopólio do uso legítimo da força, no que chamamos hoje de Europa Central. A despeito dessa falta de uma autoridade central, foi justamente durante esse período, contado a partir do ano 1000 d.C., que a Europa Central experimentou um rápido desenvolvimento comercial e passou para a chamada fase do “capitalismo comercial”. (VOLCKART, 2004)
O comércio no norte europeu foi restabelecido, de forma completamente anárquica, pelas incursões vikings e normandas. A navegação nórdica estabeleceu uma série de entrepostos ao longo dos estuários dos rios Reno, Escalda, Sena e Elba que iriam atrair mercadores pelo influxo de bens trazidos pelos corsários nórdicos, transformando esses entrepostos em cidades comerciais; como Colônia, Hamburgo, Antuérpia, etc. (PIRENNE, 1968). Sem a presença de uma autoridade centralizada, o mundo medieval era em princípio baseado em contratos bilaterais entre agentes capazes de prover segurança institucional; como senhores feudais, berserks escandinavos, autoridades eclesiásticas, etc. (VOLCKART, 2004). Assim, questões de resolução de conflitos não eram resolvidas segundo critérios de território soberano, mas por critérios pessoais.
Dado as condições particulares da Europa Central após a queda do Império Romano, práticas, como disputas e incursões, surgiam como soluções de segundo-ótimo para o problema de resolução de conflitos. Essas instituições surgiam não somente como soluções violentas para a ausência de um estado. A despeito da não-existência de autoridades, não existia nenhum aspecto das disputas diretas que não fosse regulado por normas informais de caráter reputacional (VOLCKART, 2004). Primeiramente, as disputas não poderiam começar como atos de violência aleatória. Cada uma das partes deveria tentar resolver seus problemas por vias pacíficas, como apelar para cortes independentes nas cidades-livres. Caso essa solução não fosse suficiente, a parte desafiante deveria mandar uma carta convidando seu oponente para um combate e esperar que a outra parte respondesse. Caso a resposta fosse afirmativa, um período de tempo era estabelecido para que ambas as partes realizassem os preparativos e escolhessem o campo de batalha.
Em razão da possibilidade de contestação da autoridade soberana pelos nobres vassalos, era comum na Europa feudal o caso de sucessões e conflitos clamando por autonomia ou mesmo independência de regiões. A disputa de poder entre as unidades políticas fragmentárias da Europa deu origem ao fenômeno tipicamente europeu das comunas e cidades-estado (LANDES, 1998). Uma marca característica do renascimento comercial, por volta do ano 1000 d.C., é a luta da burguesia pelo reconhecimento de seu lugar na sociedade feudal e daquilo que ela considerava seu direito natural fundamental: a liberdade. Essa luta se traduziu no desenvolvimento de uma série de instituições, como as courts of piepowders e a Lex Mercatoria (PIRENNE, 1968). Os príncipes foram grandes patrocinadores da ascensão da classe burguesa, dando a elas total autonomia dentro dos burgos e assegurando uma série de direitos inalienáveis. Obviamente, isso não foi feito por pura benevolência. Os príncipes de unidades políticas diminutas, como as do Sacro-Império, foram rápidos em perceber as vantagens do crescimento das cidades; com o aumento dos fluxos comerciais se traduzindo em aumento das rendas tributárias senhoriais.
A benevolência dos príncipes aos burgueses é explicada por sua prévia benevolência para com os camponeses. A formação da burguesia holandesa é um caso desse fenômeno. Durante a Idade Média, os holandeses eram servos dos príncipes alemães do Sacro-Império, particularmente os da Casa Habsburgo. Contudo, em troca do trabalho nos serviços de drenagem dos pântanos ao leste do Rio Elba, os príncipes alemães davam aos colonos flamengos o flëmisches recht, libertando-os de suas obrigações servis e permitindo-os assentar-se em suas próprias terras. Esse grupo de servos libertos é que posteriormente daria origem à classe dos burgueses flamengos e alemães (PIRENNE, 1968).
É um mito muito comum acreditar que o comércio simplesmente estagnou durante a Idade Média, mas a existência de cidades autônomas viola essa lógica. Esses centros de comércio, os burgos, eram geralmente desligados dos domínios feudais e controlados por uma autoridade diferente, o burgomestre. Como eram desligados dos domínios do senhor feudal, esses não tinham obrigação para com os cidadãos desses burgos. Como os burgueses tinham que conseguir tudo praticamente sozinhos, de alimentos até outros recursos, limitar o comércio estava fora de cogitação. A estratégia de sobrevivência burguesa foi a troca (ROSENBERG; BIRDZELL, 1986).
A cidade recebia insumos comprados das terras feudais (madeira, carvão, metais, trigo, etc.) e manufaturava esses insumos em novos objetos (pão, armas, ferramentas, vestimentas, etc.), que eram trocados com os habitantes do feudo por mais insumos ou metais preciosos caso a troca fossem com o senhor feudal ou autoridade eclesiástica (bispos e cardeais). Assim, mesmo após o colapso romano, as cidades mantiveram o comércio fluindo pelo continente europeu:
Quaisquer que fossem estas, tais comunidades eram muito menos auto-suficientes do que a mansão feudal e por necessidade transformaram-se em centros de comércio. Para se alimentarem, seus moradores tinham que importar comida do campo e exportar de volta seus produtos e serviços. As matérias-primas da indústria da cidade - madeira, couro, lã e ferro - vinham do campo. O mesmo acontecia com a lenha, carvão ou a turfa usada como combustível. Inevitavelmente, as relações baseadas na troca com o mundo externo tornaram-se muito mais importantes para elas do que para a mansão feudal. Crescendo elas em fins da Idade Média, inevitavelmente, cresceram também o comércio e, com cidades e comércio, novas relações econômicas (ROSENBERG; BIRDZELL, 1986, p. 60).
Cidades existiam, é óbvio, em outras partes do mundo, e eram também polos de comércio. Mas, graças ao direito germânico e sua natureza descentralizada, não era nada que chegasse perto do testemunhado na Europa. Essas unidades políticas eram governos oligárquicos bem estruturados e possuíam a característica única de conferir direitos civis básicos para suas populações; direitos esses cruciais à conduta dos negócios, como direitos de propriedade plenos sobre imóveis e salvaguardas de julgamento (PIRENNE, 1968). As cidades-estado garantiam liberdade dentro do cenário de servidão medieval, ou, como um velho aforismo alemão dizia: Stadluft macht frei.
Não estranhamente, no caso alemão, o fenômeno da emancipação dos servos e o surgimento das classes modernas na Idade Média está associado ao surgimento das comunas e cidades-estado. O desenvolvimento das cidades no norte europeu ocorreu de forma diferente do que aconteceu na Inglaterra ou na Itália. Nessa área, o desenvolvimento dos domínios senhoriais teve seu ponto de ruptura a partir das diferenças econômicas presentes no período em razão do surgimento das primeiras associações burguesas de produção, as guildas (JONES, 2003). Isso também é verdadeiro para o desenvolvimento dos espaços urbanos. As cidades do Sacro-Império eram geralmente governadas, até meados do século XIV, por uma plutocracia de famílias aristocráticas conhecidas como conjuradores. Todavia, os conflitos de interesse entre as classes mercantis e os patrícios germânicos levaram a uma progressiva fragmentação do poder territorial exercido por esses aristocratas. Os burgueses exigiam o direito de poder influir na forma como os burgos eram administrados e como as leis eram feitas. Isso levou muitos burgueses e guildas a exigirem mais poder dos conjuradores ou mesmo os levou a comprar cidades inteiras para ter sua independência das casas nobres feudais, como foi o caso de Hamburgo, Lübeck e outras cidades da Liga Hanseática:
Pela primeira vez na história, com o surgimento do governo das guildas, houve uma participação da classe burguesa, no sentido econômico do termo, na administração urbana. Onde o governo das guildas atingia genuíno sucesso, a cidade correspondentemente embarcava em maiores desenvolvimentos de seu poder externo e maiores conquistas de independência política interna (WEBER, 1947, p. 136).
Por várias vezes, essa capacidade de secessão das unidades políticas dentro do Sacro-Império entrou em conflito com a ideia então presente de um Império sólido. O Imperador e seus conselheiros tinham o desejo de expandir o poder secular e os domínios da Igreja por meio de campanhas militares, mas, para tanto, era necessária uma maneira de financiar essas campanhas e manter um exército em poder do Imperador. Durante toda sua existência, o Sacro-Império nunca teve um exército ou finanças públicas unificadas (como na França e na Inglaterra) e as ações eram tomadas mais por autoridades locais, como guildas e senhores feudais, do que pela autoridade central. Quando os imperadores tentavam violar essa lógica e construir um Estado centralizado, as pressões de revolta e secessão aumentavam (SCHEIDEL, 2019).
Dada suas necessidades constantes de receitas tributárias para se manterem no poder e manterem as fronteiras, muitos Imperadores abusavam de seu regnum sobre o norte da Itália para tentar aumentar o pagamento de tributos imperiais por parte das cidades mercantis italianas; como Veneza, Gênova e Milão. Seu desejo era empilhar a riqueza das oligarquias comerciais, somado com a ideia de que era legítimo o uso da força para imposição da autoridade legal imperial, fez com que muitos imperadores investissem militarmente contra essas cidades. Todavia, a visão de suas oligarquias governantes era de que o Sacro-Império estava violando a ordem contratual do direito germânico e, assim, suas elites lutaram pela soberania de suas cidades e o resultado das incursões imperiais era sempre a perda de mais poder, frente às autoridades locais:
As primeiras duas expedições de Frederico Barbarossa praticamente lhe deram o controle de toda Lombardia. Ele começou atacando os aliados de Milão, de todas as cidades, era a maior e mais ciosa de sua independência, e em sua segunda expedição, deitou um cerco à própria Milão, que conquistou e arrasou por completo em 1162. Por essa época, já se valera de suas primeiras vitórias, convocando uma Dieta Geral em Roncaglia, no ano de 1158, na qual proclamou, em termos inequívocos, a sua soberania sobre todo Regnum Italicum. Contudo, foi exatamente esse sucesso que levou as cidades, normalmente divididas entre si, a se unir contra ele. Milão tomou iniciativa em 1167, constituindo a Liga Lombarda para resistir a suas pretensões, e logo conseguiu a adesão de 29 outras cidades. Barbarossa regressou em 1174, querendo tornar a impor sua autoridade, mas dois anos depois, em Legano, as forças conjugadas da Liga infligiram aos exércitos imperiais uma derrota que se revelou absolutamente decisiva (SKINNER, 1996, p. 27).
O desejo de hegemonia, por parte do Sacro-Imperador e da Igreja, era contrabalanceado por reações de defesa de soberania dos membros concorrentes internos do Império. Isso foi uma forma primitiva de balança de poder, onde a ameaça de formação de um poder hegemônico era impedida por uma reação contrária das unidades políticas ameaçadas em processo de expansão (KISSINGER, 2015).
Contudo, o desejo de um Império Católico unificado perdurou na mentalidade da Igreja Católica mesmo após a queda do Império Bizantino em 1453 d.C. e os recorrentes fracassos do Sacro-Império Romano. Após a queda de Roma, a tentativa mais próxima de criação de um Império Europeu veio das manobras matrimoniais da Casa Habsburgo. Por meio de uma série de casamentos de seus herdeiros, o arquiduque Maximiliano I da Áustria unificou o Ducado da Borgonha e as províncias que viriam a constituir os Países Baixos e conseguiu para si o título de sacro-imperador romano. Em outro acordo matrimonial, os Habsburgo conseguiram para si o Reino da Hungria e a Boêmia, dando controle total da Europa Central para os austríacos. Contudo, o mais importante acordo firmado pela dinastia austríaca foi entre o príncipe Felipe I de Habsburgo e Joana, a princesa herdeira do trono espanhol. Com isso, os Habsburgo conseguiram o domínio do maior império colonial e a maior força militar na Europa na Era Moderna (KENNEDY, 1989).
Durante o reinado do Imperador Carlos V de Habsburgo, essas esperanças ficaram ainda mais fortes. Carlos era senhor uma vasta rede de territórios (todo o Império Espanhol e suas colônias, as terras de Flandres, o Reino das Duas Sicílias e todo território germânico), defendeu a cristandade contra a ameaça turco-otomana e era um servo leal da Igreja. Parecia finalmente que Carlos Magno havia reencarnado e que, finalmente, uma unidade cristã seria criada (KISSINGER, 2015).
Todavia, novamente, as esperanças foram fúteis. Carlos não conseguia submeter os reinos rivais a sua autoridade, mesmo sendo considerado o representante de Roma e da cristandade. A descoberta do Novo Mundo e as Grandes Navegações quebrou apresentou novas possibilidades de expansão aos reinos europeus, como Portugal e França, e, assim como antes, a autoridade imperial era desafiada sempre que tentava se impor contra a autonomia de uma dada região, como a Holanda.
O golpe final ocorreu com a Reforma Protestante. As ideias, lançadas por Calvino e Lutero, quebraram o monopólio ideológico e a legitimidade do poder dado pela Igreja Católica. Cada comunidade, dentro do protestantismo, tinha sua Igreja e, como consequência, demandava um centro de poder próprio. Os príncipes alemães se aproveitaram da oportunidade oferecida pela ideologia protestante para se converter e não ter mais que se submeter à autoridade imperial por uma mera questão de fé (SCHEIDEL, 2019).
Em uma última tentativa de consolidação de poder, os católicos de Habsburgos tentaram conter os protestantes intervindo na política dos principados e cidades-estado. A reação veio logo. A Guerra dos Trinta Anos teve início e os príncipes protestantes lutaram por sua soberania contra as forças imperiais (KISSINGER, 2015). A guerra terminou com uma vitória dos protestantes, que haviam sido ajudados pelo extremamente católico Reino da França, e a assinatura dos Tratados de Osnabrück e Münster, em 1648, iniciando a chamada Paz de Vestfália.
Com esses tratados, o Sacro-Império foi fragmentado em uma série de entidades soberanas e concorrentes existentes dentro de um mesmo corpo político. O poder imperial, já então bastante diluído, foi dissolvido ao ponto de ser meramente simbólico. Isso foi uma estratégia francesa, na verdade, uma vez que o primeiro-ministro francês, o Cardeal de Richelieu, desejava fragmentar por completo as terras germânicas em estados rivais para impedir os Habsburgo de formarem um poder hegemônico concorrente nas fronteiras da França. Por essa razão, os representantes franceses incluíram nos tratados o conceito de soberania enquanto “a independência de um governo em relação às interferências externas”. (CROXTON, 1999)
Além disso, o resultado da Guerra dos Trinta Anos gerou um cenário político na Europa, que impossibilitou ainda mais a formação do Império Europeu. A constante competição militar entre os Estados europeus acabou gerando uma corrida armamentista, que deu origem a um equilíbrio nos conflitos internos do continente. Cada vez mais, era requerido que as unidades políticas mantivessem grandes exércitos permanentes; sobretudo, após o fim da fidalguia ; frotas mercantes armadas para defesa contra corsários e piratas, sistemas de fortificação dos centros urbanos, etc. Para financiar isso, os monarcas europeus não podiam contar com suas receitas tributárias internas, uma vez que a sobretaxação de camponeses e burgueses poderia incentivar revoltas. A solução foi tomar emprestado do sistema bancário, sobretudo do sul das terras germânicas e do norte da Itália. Somente as campanhas militares de Carlos V contra os príncipes protestantes custariam 2.5 milhões de ducados à coroa espanhola. Felipe II herdou de seu pai uma dívida pública no total de 20 milhões de ducados, que foram aumentadas para 100 milhões no final de seu reinado em virtude de suas campanhas contra França, Inglaterra e o Império Otomano (KENNEDY, 1989). Em razão desses elevados custos militares, os conflitos na Europa, sobretudo entre dos Estados diminutos como os do Sacro-Império Romano, causavam custos muito das vezes superiores aos seus potenciais benefícios.
Iniciou-se assim o período vestfaliano. A Paz de Vestfália fez a Europa se tornar uma verdadeira colcha de retalhos de estados rivais e entidades econômicas concorrentes. O princípio do sistema era a descentralização e soberania:
A Paz de Vestfália tornou-se um ponto de inflexão na história das nações porque os elementos que instituiu eram simples, mas exaustivos. O Estado, não o império, a dinastia ou a confissão religiosa, foi consagrado como a pedra fundamental da ordem europeia. Ficou estabelecido o conceito da soberania do Estado. Foi afirmado o direito de cada um dos signatários escolher sua própria estrutura doméstica e sua orientação religiosa, a salvo de qualquer tipo de intervenção, enquanto novas cláusulas garantiam que seitas minoritárias poderiam praticar sua fé em paz, sem temer a conversão forçada. Para além das exigências do momento, começavam a ganhar corpo os princípios de um sistema de “relações internacionais”, um processo motivado pelo desejo comum de evitar a recorrência de uma guerra total no continente. Trocas de caráter diplomático, incluindo a instalação em bases regulares de representantes residentes nas capitais dos outros estados (prática até então mantida apenas pelos venezianos), foram concebidas para dar maior regularidade às relações e promover as artes da paz. As partes vislumbraram a possibilidade de futuras conferências e consultas segundo o modelo vestfaliano como fóruns para a solução de disputas, antes que estas levassem a conflitos. O direito internacional, desenvolvido por acadêmicos-conselheiros itinerantes, como Hugo Grócio, durante a guerra, foi tratado como um corpo de doutrina reconhecida, voltado para o cultivo da harmonia e passível de ser expandido, tendo em seu cerne os próprios tratados de Vestfália (KISSINGER, 2015, p. 28).
Será, nesse ambiente de competição entre unidades políticas, que o Sacro-Império existirá enquanto Estado soberano e onde os incentivos se alinharão para produzir um ambiente institucional único e os fundamentos da doutrina cameralista.
2. OS EFEITOS INTERNOS DA DESCENTRALIZAÇÃO DO SACRO-IMPÉRIO
Como a sociedade germânica reagiu às mudanças que ocorriam na Europa? Que mudanças significativas ocorreram em seus povos durante o período?
Essa parte do texto terá um olhar mais voltado para o interior do Império. Observações serão feitas sobre as modificações que ocorreram em face das mudanças nos paradigmas europeus, como as ideias impactaram a formação da unidade política e quais os efeitos concretos da descentralização da soberania imperial.
Como já pontuado brevemente, mesmo sendo um estado heterogêneo, composto de várias entidades autônomas e semi-soberanas, no início de sua existência, o Sacro-Império Romano Germânico era considerado um estado unitário. A razão para isso é que os pressupostos da constituição imperial eram derivados do Corpus Juris romano e tal concebia como organização política sui generis apenas o tipo universal de unidade política que era o Império Romano. Durante o período, o direito imperial era controlado por um grupo de pensadores católicos que interpretavam a lei romana medieval à luz do Código Justiniano (Corpus Juris Civilis) e da Digesta Justiniana, chamados de glossadores (SCHRÖDER, 1999).
Os glossadores transferiram esse conceito de universalidade da autoridade política secular, presente no Corpus Juris, para a constituição imperial mesmo sendo incompatível com a realidade política do Sacro-Império. Tal prática não era incomum no pensamento jurídico medieval. Segundo Hayek (1978), mesmo o direito romano tendo sido resultado de um processo de incorporação de normas sociais, já existentes em sua realidade particular (e não de uma legislação intencional), tal processo foi posteriormente codificado pelos juristas helenísticos bizantinos e considerado legislação sob o Corpus Juris de Justianiano. Os glossadores colocaram o Imperador como summa potestas, os príncipes e territórios autônomos como praesides provinciarum, a Dieta dos príncipes eleitores como senatus e as cidades-estado como municipia.
Os glossadores não reconheciam a existência de nenhum Estado além daquele concebido como a unidade política universal e regulado pelos códigos legais baseados no direito romano. Todas essas comunidades territoriais que compunham o Sacro-Império eram vistas como meras associações corporativas sobre as quais nenhuma personalidade estatal poderia ser atribuída. Como colocado por Heinz Eulau:
Mesmo depois de Bartolus ter descoberto a soberania como principal característica do estado e ter dividido todas as corporações em universitates, quae superiorem recognosgut e universitates, quae superiorem non recognoscunt, e após a possibilidade de elaboração de uma teoria do federalismo, os escritores constitucionais continuaram, ainda no fim do século XVI, a se basear no Corpus Juris como a única autoridade na interpretação da constituição imperial (EULAU, 1941).
Tudo mudou, todavia, quando a hermenêutica da constituição foi alterada por volta do século XVII. Durante essa época, foi difundida a visão de que o direito romano não poderia ser usado para interpretar a constituição imperial. Era cada vez mais evidenciado que a constituição do Sacro-Império tinha suas raízes não no Corpus Juris romano, mas sim nos elementos do direito bárbaro germânico e em instituições como a crisobula de Frederico II de Hohenstaufen e nas capitulações imperiais (SCHRÖDER, 1999).
Juristas como Hermann Conring mostraram que o argumento dos glossaristas era historicamente inválido, pois o direito romano só fora introduzido no mundo germânico por volta do século XV. Não havia a possibilidade de a estrutura política imperial derivar sua existência de instituições romanas ou da ideia de universalidade. Além disso, teóricos políticos como Johannes Althusius fizeram elaboradas defesas do federalismo moderno usando do direito natural para defesa da autonomia das unidades políticas governadas por príncipes protestantes (ALTHUSIUS, 1995). O que se seguiu foi uma crise do conceito de soberania dentro do Sacro-Império, sobretudo após a Paz de Vestfália.
Os debates iniciais sobre a soberania dentro do Sacro-Império envolviam geralmente a questão de se a soberania vinha do corpo dos príncipes eleitores (Dieta) ou do corpo do Imperador (EULAU, 1941). Ou seja, qual a forma do poder no Império? Seria ela uma estrutura eletiva governada por poucos excepcionais (aristocracia) ou seria ela uma forma unitária centralizada na figura de uma autoridade secular (monarquia absoluta)?
Peter Schöder (1999) elenca as principais interpretações dadas para esse fenômeno jurídico-político no período. Jean Bodin (1583), por exemplo, defendia que o Império era uma aristocracia, pois, uma vez que os príncipes eleitores eram os que escolhiam o governante, o poder soberano repousava não nas mãos do imperador (considerado um mero depositário do poder), mas do corpo dos príncipes eleitores. Outros, como Dietrich Reinkingk (1651), defendiam que o único corpo capaz de emanar e derivar soberania era o corpo de imperador, uma vez que ele era a única autoridade secular externa ao campo de existência política das unidades políticas componentes; o único agente externo e imparcial, capaz de aplicar um código de leis de maneira ampla e igual em todos os territórios com plena legitimidade. Já outros, como Ludwig von Seckendorff (1686) e Johannes Limnaeus (1657), defendiam que o Sacro-Império deveria ser entendido como um misto entre aristocracia e Estado absoluto, onde a majestas realis (corpo do Estado) e a majestas personalis (corpo do estadista) poderiam ser separados; o poder de legislar e julgar (Estado) e o poder de governar (estadista) seriam entendidos como duas esferas separadas, algo semelhante à noção de divisão dos poderes de Montesquieu.
A questão da soberania interna do Sacro-Império somente foi resolvida por Samuel Pufendorf (1717), quando este atestou que o Império não era um estado regular como a França ou a Inglaterra, mas sim uma forma irregular de estado. Unidades políticas onde a soberania não pode ser traçada a um corpo único, mas a um conjunto de corpos, são classificadas como irregulares no sentido de que o corpo unitário e as partes componentes possuem, ao mesmo tempo, igual poder soberano. Para solucionar o problema da unidade soberana do Sacro-Império, Pufendorf defendeu que o poder soberano emana do ponto onde as soberanias potenciais conflitantes convergem. No caso, no conselho eleitor dos príncipes soberanos (Reichsstände). É no conselho eleitor, que os príncipes eleitores abrem mão de sua soberania em favor da proteção de um imperador eleito e onde o imperador reconhecia a soberania de cada príncipe eleitor. Os príncipes soberanos perdiam algumas liberdades e, em troca, o imperador lhes garantia ordem interna e proteção externa; como em um contrato firmado entre partes. A partir desse contrato, é delimitada a soberania de cada corpo.
Todavia, uma vez que o poder e a necessidade do contrato partiam de uma vontade dos príncipes eleitores em consentir com a existência do corpo imperial, e o poder desse partia de sua escolha sobre quem os príncipes julgavam dignos do cargo, a formulação de Pufendorf abriu uma grande brecha de interpretação para uma maior autonomia das unidades componentes do Império. Os burgomestres, príncipes e outras autoridades, sobretudo os protestantes, viram isso como um argumento em defesa de sua soberania e o usaram para defender uma maior independência das unidades componentes em relação ao imperador. Como cada príncipe era o eleitor soberano que transferia seu poder ao imperador, era justo que eles, por terem essa capacidade, também tivessem o poder de conduzir os destinos de seus próprios territórios. Baseados nesse argumento e nos escritos políticos de filósofos protestantes que defendiam o direito natural à liberdade e autodeterminação dentro de um sistema federalista, uma nova fase do debate se iniciou (BRYCE, 1877).
A supremacia do conceito federalista e a aceitação dos membros componentes do Império como entidades semi-independentes foi concretizada com o apoio de dois juristas. O primeiro foi Ludolph Hugo (1661) que, fazendo um estudo da constituição dos estados alemães, elaborou uma melhor noção da civitas composita e desenvolveu a ideia da divisão do poder soberano entre “super-estado” e “sub-estados”.
Fazendo um estudo do domínio territorial (Landeshoheit) desde a fundação do Sacro-Império pelos francos, ele descobriu que a natureza do Império como um “estado composto” se devia à dificuldade inicial dos governantes de executar de maneira eficiente a lei em um vasto território. Para superar essa limitação, se tornou mais vantajoso para o imperador dividir as funções governamentais entre os pequenos territórios e nobres e garantir parte do poder soberano para os governantes desses territórios (EULAU, 1941). Segundo Hugo, a característica dessa divisão de poder diferencia a descentralização política germânica das descentralizações de países como a Suíça e os Países Baixos, pois, enquanto nessas os governantes eram apontados por uma autoridade hierárquica superior e os territórios eram considerados partes componentes de uma união, no Sacro-Império cada território componente era considerado como de fato independente e soberano e sendo governado por suas próprias elites.
O segundo foi Gottlieb von Liebniz (1989). Esse se diferenciou de seus colegas por tratar da constituição imperial em termos não absolutistas sobre a questão da soberania. Leibniz não apenas admitiu limitações ao conceito de soberania, mas também achou, nos exemplos do Sacro-Império, da Confederação Helvética e das Províncias Unidas, exemplos concretos de territórios unidos sob um mesmo corpo político sem a prerrogativa de supremacia territorial (superioritas territorialis) por parte do poder soberano central em detrimento dos membros componentes. Ele distinguiu os sistemas federais em Confederatio e Unio, fazendo derivações das figuras da societas e collegium do direito privado, e mostrou que a estrutura política do Sacro-Império pertencia à primeira devido à natureza de suas origens (SCHRÖDER, 1999).
O resultado das teorias federalistas e dos conceitos de soberania colocados por Pufendorf e os Tratados de Osnabrück e Münster foi uma completa fragmentação política do Sacro-Império, uma descentralização com poucos paralelos na história. Um fato que deve ser notado é que o Sacro-Império constitui um caso único de proto-constitucionalismo no mundo ocidental. Os imperadores do Sacro-Império tinham seus poderes limitados por uma série de documentos, chamados capitulações imperiais. No dia da escolha do novo imperador, os príncipes eleitores formulavam os termos desses documentos, incluindo uma série de condições e limitações da autoridade imperial, e o submetiam ao pretendente ao trono como condição para a efetivação de sua eleição. Essa proto-constituição do Sacro-Império seria a base para a formulação de teorias constitucionais posteriores e teria uma profunda influência no constitucionalismo americano de John Adams e James Madison (BURGDORF, 2018). Enquanto os fazendeiros da Virgínia clamavam por liberdade e limites aos abusos dos reis ingleses, os alemães já possuíam o direito de processarem seus líderes sob um código de normas central. Mesmo os cidadãos mais pobres do Império poderiam in forma pauperis recorrer a cortes independentes, como a Corte Imperial e a Corte Eclesiástica, contra autoridades políticas.
Os poderes locais, os príncipes e burgomestres, agora tinham a legitimidade legal, ideológica e política para se autogovernarem. Era deles que emanava o poder imperial, era sua vontade que dava forma ao corpo da união, era entendido pelas outras potências que seu desejo de autodeterminação era a base de legitimação de movimentos de separação política e graças ao federalismo eles tinham agora o poder de legislar e de governar em seus próprios territórios de maneira que o imperador não poderia intervir sem ferir os princípios da própria constituição14.
O resultado desse conjunto de conceitos foi a perda de poder por parte do imperador (BRYCE, 1877). Mesmo não sendo oficialmente uma monarquia parlamentarista constitucional como a Inglaterra, o Sacro-Império se tornou organicamente uma monarquia onde o imperador tinha apenas um poder meramente simbólico e exercia a função de mero representante de estado. O produto dessa construção histórica foi a criação de um sistema de estados fragmentados, soberanias concorrentes que competiam entre si. Cada unidade componente tinhas suas leis, costumes, sistema político e economia. Esse sistema de estados semi-independentes rivais criou, após a Paz de Vestfália, uma restrição natural ao poder na Europa baseada unicamente no conceito de saída como definido por Hirschman (1970); ou seja, a capacidade de alguém deixar de consumir um produto (no caso a governança) escolhendo consumir o de um concorrente. A fragmentação política e a proximidade cultural criada pelas línguas nacionais e a cultura comum do continente europeu reduziram os custos de saída. Como coloca Ralph Raico:
Ainda que fatores geográficos tenham tido certa influência, a chave para o desenvolvimento ocidental se encontra no fato de que, enquanto a Europa formava uma mesma civilização - a cristandade - ela era ao mesmo tempo radicalmente descentralizada. Em contraste com outras culturas - especialmente a China, a Índia e o mundo islâmico - a Europa consistia de um sistema de poderes e jurisdições concorrentes. Depois da queda de Roma, nenhum império universal foi capaz de surgir no continente. Isso foi de grande significância. Derivando do dictum de Montesquieu, Jean Baechler coloca que todo poder político tende a reduzir o que é externo a ele, e obstáculos objetivos são necessários para impedi-lo. Na Europa, os obstáculos objetivos eram dados primeiramente pelas autoridades políticas concorrentes. Ao invés de experimentar a hegemonia de um império universal, a Europa desenvolveu um mosaico de reinos, principados, cidades-estado, domínios eclesiásticos e outras entidades políticas. Dentro desse sistema, era extremamente imprudente para qualquer príncipe infringir os direitos de propriedade da maneira costumeira no resto do mundo. Em constante competição uns com os outros, os príncipes descobriram que expropriações extralegais, taxação confiscatória e bloqueios comerciais não passavam impunes. A punição era contemplar o progresso econômico relativo dos rivais, muitas vezes por causa do movimento de capital e capitalistas para reinos vizinhos. A possibilidade de saída, facilitada pela compatibilidade geográfica e, sobretudo, a afinidade cultural, fizeram o estado virar um predador acorrentado (RAICO, 1994).
Foi esse sistema de concorrência entre unidades políticas e jurisdições que deu origem às instituições europeias que, posteriormente, seriam exportadas para o mundo inteiro. As consequências desse sistema não teriam impactos somente no desenvolvimento europeu posterior, mas também nos dias de hoje:
Os soberanos europeus e nobres empreendedores que desejavam aumentar suas rendas tinham que atrair participantes pela concessão de franquias, isenções e privilégios - em suma, fazendo transações. Tinham de persuadi-los a vir (não foi esse o método na China, onde os senhores movimentavam milhares e dezenas de milhares de cabeças de gado humano e os plantavam no solo, melhor do que plantar qualquer outra coisa). Além do mais, essas isenções de sobrecargas materiais e essas concessões de privilégios econômico culminavam, frequentemente, em concessões políticas e de autonomia. Neste caso, a iniciativa partia de baixo e isso também era um modelo essencialmente europeu. Implícito nele estava a noção de direitos e de contrato - o direito a negociar, assim como à petição - com ganhos para a liberdade e a segurança da atividade econômica. Ironicamente, portanto, a grande sorte da Europa reside na queda de Roma e sua subsequente fraqueza e divisão. O sonho romano de unidade, autoridade e ordem (pax romana) permaneceu, na verdade, persistiu até o presente. Afinal de contas, a fragmentação é usualmente vista como um grande infortúnio, uma receita certa para o conflito; não por acaso a União Europeia é vista hoje como a cura para as guerras de ontem. E, no entanto, nesses anos intermédios entre o antigo e o moderno, a fragmentação foi o mais poderoso freio contra o comportamento prepotente e opressivo. A rivalidade política e o direito de saída fizeram toda a diferença. (LANDES, 1998, p. 39-40)
A descentralização também trouxe prosperidade econômica. Após a Paz de Vestfália ocorreu o que Jones (2003) denominou de Milagre Europeu; um aumento exponencial nas taxas de crescimento econômico no continente, fazendo com que ocorresse uma grande divergência de desenvolvimento econômico entre a Europa e o resto do mundo. Muitas visões atribuem esse fenômeno a série diferente de causas. Alguns colocam as instituições (ACEMOGLU; ROBINSON, 2012), outros a geografia (DIAMOND, 2017), alguns o imperialismo (HOBSBAWM, 2015) e outros focam no impacto da cultura e das ideias (MCCLOSKEY, 2010).
Contudo, segundo Scheidel (2019), todas essas supostas causas estão anteriormente ligadas a outra: a competição política. A modernidade foi forjada por várias divisões; não somente entre estados, mas também entre governantes e igrejas, reis e nobres, cidades e feudos, cavaleiros e mercadores, católicos e protestantes, etc. Foi a concorrência entre as forças opostas de nobres e reis que fez surgir os sistemas parlamentares modernos, foi a competição entre protestantes e católicos que deu origem ao pensamento liberal, foi do conflito entre guildas e mercadores livres que surgiu o ímpeto industrial e assim por diante.
No contexto do Sacro-Império, essa concorrência atuava de formas ainda mais interessantes. A limitação de seus territórios em recursos fazia muitos príncipes alemães não interferirem na iniciativa privada e os fazia investir massivamente no ativo mais importante que eles tinham: pessoas. A educação e a especialização, os investimentos em capital humano, eram uma preocupação corrente. Era o desejo dos príncipes ter súditos habilidosos e produtivos para compensar por suas limitações naturais por meio de uma produção mais eficiente (CLARK, 2006). Isso fez com que cada principado e cidade-estado no Sacro-Império se tornassem extremamente ricos e, não surpreendentemente, explica a razão da Alemanha já ter se tornado um país rico após sua unificação (uma vasta reserva de capital humano de alta qualidade e uma indústria já desenvolvida). Obviamente, ao falar isso não coloco que as pessoas que viviam sob o Sacro-Império desfrutavam de condições ótimas de vida iguais às desfrutadas pelos alemães contemporâneos. Da mesma forma, North e Weingast (1989) não afirmaram que as condições de um inglês, em 1688, era algo invejável por ninguém, mas sim que as instituições estabelecidas na Revolução Gloriosa teriam efeitos de longo prazo que explicariam o desenvolvimento britânico posterior. Da mesma forma, o que estou afirmando aqui é que as instituições geradas pelo Sacro-Império tiveram efeitos positivos de longo prazo no desenvolvimento alemão.
A competição entre estados também teve impactos sociais significativos no campo cultural. As ricas cortes alemãs, graças a suas prósperas pequenas economias, tinham recursos excedentes para financiar uma gama imensa de gênios artísticos. Assim como na Renascença Italiana, cada príncipe desejava deixar um legado cultural para a posteridade, algo que o imortalizasse. Eles começaram uma “corrida armamentista” entre si para construir o mais belo palácio, os mais belos jardins, as maiores coleções de arte e ter os melhores artistas em suas cortes. Isso gerou uma riqueza cultural imensa, com os territórios germânicos virando o berço de uma série de cientistas, poetas, escritores, filósofos, compositores e entre outros:
Músicas velhas quase nunca eram tocadas e os programas musicais consistiam de músicas inteiramente novas, muitas vezes escritas pelos próprios compositores da corte. Isso era feito para uma abundância de oportunidades de emprego e para uma hoste de compositores e músicos com um grande leque de habilidades. É bem conhecido que muitos músicos da corte eram tratados como servos, mas também em muitos casos, para se qualificar para o cargo de servo cortesão, o candidato deveria mostrar várias habilidades musicais. Ele obviamente precisava treinar suas habilidades práticas, muitas vezes na companhia de músicos extremamente habilidosos (…). A despeito da considerável atividade musical de Paris e Londres, a maioria dos talentos nelas foi importada. Oportunidades para músicos nativos precisavam ser extremamente limitadas uma vez que a França e a Grã-Bretanha não possuíam cidades secundárias capazes de sustentar uma grande vida cultural. Lion e Roven não eram Manheim e York ou Bath não eram Berlim (BAUMOL; BAUMOL, 1994).
Em verdade, foi justamente uma dessas brilhantes mentes artísticas produzidas pelo Sacro-Império que nos deu a melhor descrição vívida de como era a vida naquele ambiente. Em suas cartas para Peter Eckerman, Goethe fala de suas viagens pelo Império e descreve como era sua sociedade:
Eu não tenho medo de que a Alemanha não vá estar unida; ela já está unificada, porque as moedas alemãs Thaler e Groschen têm o mesmo valor por todo o Império e porque a minha mala pode passar através de todos os trinta e seis estados sem ser aberta (…) Um pensador francês, penso que seja Daupin, elaborou um mapa sobre o estado da cultura na França, indicando o maior ou o menor grau de esclarecimento dos seus diversos departamentos por meio de cores mais claras ou mais escuras.
Nesse mapa, podemos encontrar, especialmente nas províncias do sul, muito longe da capital, alguns departamentos pintados inteiramente de preto, indicando uma completa escuridão cultural. Seria esse o caso se a bela França tivesse dez centros - em vez de apenas um - a partir dos quais a luz e a vida irradiariam? (…). A Alemanha dispõe de vinte universidades espalhadas por todo o Império; de mais de cem bibliotecas públicas; e de um número semelhante de coleções de arte e de museus naturais; pois cada príncipe deseja atrair tal beleza e tal bem. Os ginásios e as escolas técnicas e industriais existem em abundância; na verdade, não há praticamente uma vila alemã sem a sua própria escola (…) Frankfurt, Bremen, Hamburgo, Lubeck são grandes e brilhantes, e o seu impacto sobre o bem-estar da Alemanha é incalculável. Entretanto, elas continuariam a ser o que são se perdessem a sua independência e fossem incorporadas como cidades provinciais em um único grande Império Alemão?
Tenho razões para duvidar disso. Goethe toca nessa passagem, em um ponto fundamental para o entendimento do cameralismo: as universidades. Os príncipes alemães costumavam se cercar de filósofos, poetas e pensadores dos mais diversos tipos e era comum realizarem o financiamento de gênios como uma forma de competição por produtividade entre as unidades políticas. E essa competição intelectual e cultural não estava propriamente restrita ao espaço do Sacro-Império.
A construção dos estados da Europa Ocidental ocorreu em um contexto altamente competitivo entre unidades políticas soberanas na esteira da Paz de Vestfália. Os novos estados emergentes competiam entre si por autoridade, para legitimar sua soberania, e para isso muitas vezes se apropriavam da autoridade já existente na cultura de cada país. O conhecimento foi uma poderosa arma nesse sentido, dado a importância que os europeus davam a ele. Isso era uma herança cultural do domínio da Igreja Católica.
O conhecimento de linguagem (latim) e filosofia era requerido para o correto estudo e interpretação da Bíblia e, por consequência, era visto como chave para as verdades espirituais. Conhecimentos de aritmética e astronomia eram necessários pelos padres para programação de colheitas e festas sacras. Papas e altos sacerdotes eram requisitados para falar sobre o direito natural e muitos nobres e reis requisitavam seus conselhos sobre jurisprudência romana, sobretudo o código civil. Devido a esses requisitos clericais, um sacerdote medieval era um indivíduo com uma acumulação absurda de capital humano e que incorria em altos custos de formação desse capital; como isolamento em monastérios e horas infindáveis de estudo. Devido a esses custos e a importância do clérigo na sociedade feudal europeia, os europeus criaram uma imagem quase mística do conhecimento (BURKE, 2003).
Inicialmente, os monastérios das ordens religiosas mantinham o monopólio do conhecimento por meio do monopólio sobre os escritos, uma vez que ainda não existia a impressão em massa de obras e a linguagem desses escritos era inacessível ao povo comum. Isso mudou quando, com o crescimento das cidades e da interconexão da Europa pelo comércio renascentista, as ordens clericais passaram a lidar com uma grande demanda por mão de obra especializada por parte da sociedade. O Renascimento Comercial, a revolução econômica que ocorreu na Europa entre o ano 900 e 1500 d.C., foi acompanhada pela ascensão das primeiras universidades e dos modernos mecanismos legais e administrativos demandados pelo comércio de larga escala (LANDES, 1998).
Devido a sua estrutura hierárquica descentralizada, as terras germânicas apresentaram um processo de urbanização diferente do visto na Europa Ocidental. Enquanto que, na França e na Espanha, a regulação do comércio era centralizada nas mãos do rei ou de grandes nobres no Sacro-Império. Cada nobre local poderia ter um “privilégio de mercado” dado pelo imperador, para que ele formalizasse as instituições comerciais e regulasse seu mercado. Enquanto que os impérios mercantilistas concentravam suas atividades comerciais em alguns centros urbanos, os alemães apresentavam baixas taxas de urbanização em grandes centros, mas um grande número de cidades médias comerciais (CANTONI; YUCHTMAN, 2014). Esse elevado grau de abertura e formalização de mercados indica a presença de uma atividade comercial intensa em terras germânicas, que não poderia ser medida com indicadores de concentração urbana.
Com o surgimento das universidades e o contexto de competição política na Europa, os príncipes e autoridades locais passaram a financiar e manter universidades em seus territórios para ajudar na legitimação jurídica e ideológica da unidade política e para dar conselhos técnicos sobre assuntos de estado. A Universidade de Pisa, por exemplo, realizava o serviço de câmbio no comércio internacional de milho para os príncipes-mercadores da cidade. Nos estados do Sacro-Império, a competição ficou ainda mais acalorada com a reforma protestante. Com ela, governantes de sistemas ideológicos concorrentes (catolicismo e reformismo) competiam entre si para ter as melhores universidades e, em consequência, os melhores artistas, engenheiros, filósofos, matemáticos, financistas e, sobretudo, os melhores juristas:
Entre os estados alemães, o poder dos príncipes se tornou dominante por volta do século XV e os príncipes locais se tornaram os reais fundadores das universidades, ainda que as de domínio imperial e papel tenham sido mantidas. Com a Reforma Protestante de 1517-1648, é claro, os estados protestantes não mais permitiam o domínio papal (…) Um dos objetivos primários das primeiras universidades da Holanda, estabelecidas durante o século XVI, era treinar os clérigos protestantes para encorajar o crescimento do protestantismo. (…) A Universidade de Caen foi fundada em 1432 pelo rei inglês Henrique VI para prevenir seus cidadãos capazes de ir para a Universidade de Paris (RIDDLE, 1993).
A formação de juristas pode ter tido não somente um efeito político, mas também um positivo efeito econômico de longo prazo. As universidades podem ter acelerado o crescimento econômico na Revolução Comercial por uma variedade de canais: primeiramente, por meio do incremento do capital humano via o ensino das “artes liberais” (trivium e quadrivium). Em segundo lugar, elas permitiram a formalização de uma rede internacional de indivíduos que falavam uma mesma língua, o latim. Isso permitiu a realização de trocas de longa distância com povos diferentes e, sobretudo, a troca de documentos que ambas as partes de uma transação poderiam entender. E, por fim, ao reintroduzir o estudo do direito, as universidades permitiram o desenvolvimento de instituições legais que facilitavam o comércio e protegiam direitos de propriedade, como a Lex Mercatoria, cortes mercantis e a formulação dos primeiros códigos civis (CANTONI; YUCHTMAN, 2014).
Os príncipes alemães tinham fortes incentivos para desenvolver a educação de seus povos, sobretudo no caso de principados com poucos recursos além da mão-de-obra de sua população. Um caso digno de nota é o da Prússia. Em 1763, Frederico II emitiu uma série de regulações instituindo que todo cidadão Prussiano deveria frequentar uma escola. Como resultado, por volta de 1816, a Prússia era a nação mais educada da Europa; com uma taxa de ocupação escolar de 58%. Em 1849, a taxa subiu para 80% e, por volta de 1871, 84% dos adultos Prussianos sabiam ler e escrever (CLARK, 2006). Segundo Becker et. al (2009), esse elevado estoque de capital humano produzido pela Prússia permitira que a nação tivesse um rápido processo de desenvolvimento econômico na Segunda Revolução Industrial, quando a demanda por mão-de-obra qualificada começou a aumentar. Outra estratégia, usada pelos príncipes alemães além de formar capital humano, era atraí-lo. Novamente, a Prússia serve de exemplo. Com o grande despovoamento causado pela Guerra dos Trinta Anos, Frederico Guilherme I, príncipe-eleitor de Brandenburgo, convidou uma série de minorias perseguidas pela Europa, como judeus, huguenotes franceses e protestantes austríacos para recompor a população do seu reino e estimular crescimento econômico doméstico. Desde que foram convertidos ao calvinismo em 1613, os eleitores de Brandenburgo, a Casa Hohenzollern, quebraram com a antiga tradição medieval de cius regio, eius religio (um reino, uma religião) e permitiram seus súditos desfrutarem de liberdade religiosa desde que jurassem lealdade ao trono Prússiano (CLARK, 2006).
Quando ocorreu o expurgo de Viena de 1669, vários judeus sobreviventes foram convidados por Frederico Guilherme para virem morar em Berlim. Cerca de 50 famílias judias aceitaram o convite Prússiano e foram acomodadas na Alta Berlim, em uma região chamada Jüdenstraβe (bairro judeu). De forma semelhante aos judeus, os huguenotes (calvinistas francenses) foram expulsos da França em uma série de expurgos em 1685 e foram convidados a achar um novo lar na Prússia. Aproximadamente 20.000 huguenotes fugiram para Brandenburgo e muitos fizeram lar em Berlim. Segundo Hornung (2019), um aumento de 10% na presença de imigrantes levou a um aumento de 5.8% no número de manufaturas em Berlim. Fazendo uma pesquisa sobre a origem dos sobrenomes dos donos das grandes indústrias Prussianas em Berlim, 17 firmas eram geridas por judeus, 61 por descendentes de franceses, 47 por boêmios e 423 por imigrantes não-identificados.
3. A DOUTRINA DO CAMERALISMO
O cameralismo surgiu no contexto da Guerra dos Trinta Anos de 1618-1648. Nesse conflito, os estados alemães componentes do Sacro-Império Romano foram totalmente devastados. A população total do Império caiu de 21 milhões para 13 milhões. A população de Württenberg caiu de 400.000 para 50.000. O Palatinato perdeu mais de 90% da população. Três milhões de pessoas na Boêmia foram reduzidas para 800.000. Berlim e Colmar perderam metade de suas populações e Augsburgo perdeu cerca de 30.000 pessoas. O fator humano virou um recurso limitado dentro do Império. Além disso, com a Paz de Vestfália, o território alemão foi dividido em mais de 300 unidades políticas soberanas com várias restrições ao acesso ao mar e unificação política por causa de disputas internas e pela pressão internacional exercida por seus vizinhos unificados e centralizados, como a França, que não desejavam uma Alemanha unificada como ameaça em suas fronteiras (BACKHAUS; WAGNER, 1987).
Dentro desse cenário e considerando a divisão ideológica criada pela Reforma Protestante, os príncipes alemães se viram na difícil tarefa de reerguer seus estados com territórios e recursos, sobretudo humanos, limitados. Eles não dispunham dos vastos e ricos impérios coloniais de Portugal ou Espanha, não tinham as férteis terras da França, não tinham uma grande marinha como a Inglaterra ou os vastos recursos naturais da Rússia. Uma vez que suas terras eram extremamente fragmentadas e suas unidades políticas eram diminutas tomadoras de preços no comércio internacional, não podendo influenciar os termos de troca como os grandes impérios mercantilistas com suas colônias, o foco dos cameralistas era na sobrevivência de seus regimes (WAGNER, 2012). Essa sobrevivência passava pela utilização de seu fator econômico mais precioso, a mão-de-obra de sua população. Levando isso em conta, os principados alemães iriam requerer produtividade de sua limitada capacidade militar, desenvolvimento econômico, inovação tecnológica, produtividade das manufaturas e crescimento populacional.
Tomando essa realidade política caótica, o cameralismo surgiu como doutrina central da administração pública das nações protestantes do Sacro-Império Romano quando as Universidades de Halle e Frankfurt criaram a cadeira “Oeconomia, Policey und Kammer-Sachen” para treinar seu corpo burocrático, apesar de que o conteúdo que seria ensinado ali já havia sido traçado nas obras “Teutscher Fürsten Stat” de Ludwig von Seckendorff e “Fürstliche Schatzund Rentkammer” de Wilhelm von Schöder (TRIBE, 1984).
A maioria das grandes nações europeias do período, como França, Espanha e Grã-Bretanha, adotavam como política econômica a série de medidas que viriam a ser conhecidas como mercantilismo. Aos olhos dos primeiros escritores de finanças e economia europeus, o crescimento econômico de uma nação seria um produto da diferença superavitária de exportações e importações e a medida da riqueza seria dada pelas contas públicas de uma nação, especialmente sua balança de pagamentos. Para gerar esse crescimento, o estado deveria promover a competitividade de suas exportações e controlar a conta de balanço de pagamentos, minimizando saídas de ouro e maximizando entradas de ouro. Esse pensamento foi o produto tanto do pensamento contabilista das oligarquias que controlavam esses estados, como de uma necessidade de política monetária, uma vez que as saídas de ouro poderiam causar contrações monetárias e encurtamentos do ciclo econômico (FEIJÓ, 2001).
Mas nos estados alemães, um tipo bastante peculiar de mercantilismo se desenvolveu em razão da concorrência entre as unidades políticas do Sacro-Império. Nos grandes impérios mercantilistas, existia um grande incentivo ao rent-seeking. Dado seus grandes territórios unitários e centralização administrativa, existia uma considerável imobilidade de recursos juntamente com grandes diferenças nos custos de organização entre grupos de interesse. Como resultado, existia um incentivo maior à atividade de rent-seeking do que para a atividade produtiva dado a lucratividade relativa da primeira. Já no mundo cameralista, os recursos eram extremamente móveis e os custos de organização variavam pouco entre grupos de interesse, de forma que existia uma competição quase perfeita entre eles. Os estados cameralistas existiram em um ambiente competitivo, onde o escopo da taxação era restrito tanto por antigas instituições feudais (derivadas do direito bárbaro) como pela extrema fragmentação geográfica do território (SALTER; HEBERT, 2014). Com mais de 300 estados soberanos, existia uma fácil mobilização de pessoas e capital entre as unidades políticas quando ocorria qualquer mudança negativa, como um aumento de impostos17.
Seria suicídio uma unidade política diminuta, como um estado cameralista, engajar em políticas de cunho protecionista como a dos grandes impérios mercantilistas. Diferentemente de grandes unidades políticas que podem depender da amplitude de seu mercado consumidor e do seu mercado de capitais para se manter, ainda que de maneira ineficiente, uma unidade política pontual, como uma cidade-estado, não teria como se manter com tal caso aplicasse uma política de isolamento econômico. Segundo Alesina e Wacziarg (1998), existe uma forte relação entre tamanho geográfico de uma unidade política (delimitado por suas fronteiras políticas), o tamanho de seu governo e seu nível de liberdade comercial. Na medida que o tamanho de um mercado nacional influencia a produtividade de uma economia (pelos ganhos de escala da integração em um grande mercado comum), países “grandes”, como os impérios mercantilistas, conseguem compensar os custos de eficiência de medidas protecionistas parasitando sua grande economia interna. Já uma unidade política diminuta, como um principado alemão, não dispõe de um grande mercado interno para compensar as perdas sofridas de medidas protecionistas; de forma que a escolha racional dessa unidade política é não adotar tais medidas na mesma escala dos grandes países.
Sabendo que não poderiam aplicar as mesmas doutrinas administrativas usadas nas outras nações em seus diminutos territórios, os conselheiros alemães tiveram que pensar um sistema totalmente diferente.
O cameralismo surgiu como um esforço para gerar crescimento econômico e prover o príncipe soberano de recursos para defesa de seu domínio nesse ambiente de descentralização política e baixo custo de mobilidade de fatores entre fronteiras limitando a adoção de políticas econômicas extrativas, como alta tributação ou protecionismo comercial. Para enfrentar essas limitações, os cameralistas levaram a visão mercantilista de ver o estado como um grande negócio para além do paradigma contábil. Ainda que os governantes tivessem pouco poder sobre quais políticas adotar, eles tinham direitos de propriedade sobre vários recursos (como canais, estradas, manufaturas, etc.). As finanças públicas cameralistas tratavam as terras e empresas estatais como principal fonte de renda do estado, as quais não deveriam ser subsidiadas. O modelo de estado dos conselheiros cameralistas era o de uma empresa privada. Para sobreviver, o príncipe deveria cuidar de suas florestas, construir minas ou abrir empresas (como cervejarias e vidraçarias) sem colocar barreiras à concorrência e sem se subsidiar (WAGNER, 2012).
Os princípios do cameralismo essencialmente tornavam os governantes homens de negócio, com seus negócios sendo as operações de estado. Para os cameralistas, a administração pública e particular se confundiam. O domínio político não era diferente de uma propriedade, de um “lar”. Os recursos, como em uma família ou firma, eram limitados e deveriam ser administrados da forma mais eficiente possível para a promoção tanto do valor moral protestante do “trabalho bem feito” como do valor das propriedades (TRIBE, 1984).
Essa visão da natureza dos principados aproxima bastante o cameralismo da noção de monarquia proprietarista, como formulado por Hoppe (2017). Segundo Hoppe, uma monarquia proprietarista é um regime estatal regido pela propriedade governamental privada. O que caracteriza uma propriedade governamental privada é o fato de o monopólio do uso legítimo ser propriedade de um indivíduo que personifica o estado; um rei ou um príncipe. Os recursos extraídos pelos mecanismos estatais são desse indivíduo e ele tem o direito de utilizar e alocar sua propriedade livremente. Isso contrasta com o que Hoppe denomina propriedade governamental pública, que predomina nas democracias liberais. Em uma propriedade governamental pública o direito dessa propriedade pertence ao sujeito coletivo representado pela república (o “povo”). Todavia, devido ao problema de coordenação, de se levar em conta todas as preferências de uso dos recursos dessa propriedade, ela tende a ser gerida por um agente específico, um administrador. Em democracias liberais, esses administradores são representados pelos funcionários públicos e os agentes políticos representativos.
Segundo Hoppe, a forma pública de propriedade governamental é ineficiente, pois os administradores não possuem incentivo a maximizar a riqueza dela, sim extrair o máximo possível dela. Um político tende a usar os meios tributários e os cofres públicos de forma a extrair o máximo de renda política que puder sem nenhuma consideração de longo prazo, pois ele não pode usufruir da valoração dos bens públicos uma vez que não é sua propriedade e ele não sabe se terá outra oportunidade de utilizar os fundos que estão agora em sua disposição. Assim, a propriedade pública enfrenta uma forma de problema de agência. De forma semelhante à propriedade pública, grandes corporações não são administradas diretamente por seus donos, mas por administradores (WILLIAMSON, 1964). São os administradores os responsáveis por cuidar dos vários níveis do processo de gestão da corporação e, por estarem diretamente ligados a cada etapa do processo, eles possuem mais informação sobre a empresa do que nos pontos mais altos da hierarquia corporativa.
Contudo, os administradores não possuem direitos aos lucros originados de melhorias de produtividade na corporação, esse direito é dos acionistas dela. Assim, os administradores não são capazes de apropriar os lucros que eles criam. Para compensar isso, eles usam meios de elevar o custo de monitoramento dos acionistas e disfarçar apropriação ineficiente e ilegítima de lucros da corporação: grande complexidade burocrática, corpo de funcionários dispersos, processos de produção mais longos, etc.
Tal problema não ocorreria em uma propriedade privada, segundo Hoppe.
O rei ou príncipe teria incentivo a maximizar o valor de sua propriedade considerando ganhos de longo prazo: “o proprietário privado do governo previsivelmente tentará maximizar a sua riqueza - i.e o valor presente da sua propriedade e suas receitas correntes. Ele não desejara aumentar o valor dos seus rendimentos correntes à custa de uma queda mais do que proporcional no valor presente dos seus ativos” (HOPPE, 2017, p. 76).
Contudo, a formulação de Hoppe de um monarca maximizador ótimo não é de todo correta. Olson (1993) já colocava uma dura crítica à possibilidade de um monarca absoluto eficiente. Ainda que um rei tenha incentivos para cuidar de sua propriedade privada, seu reino, seus incentivos, sua riqueza pessoal e o bem-estar social podem divergir. Um monarca só irá prover bens públicos e instituições eficientes na medida em que essa ação proporcionar benefícios marginais privados superiores aos custos da ação. Ele tem pouco incentivo para se importar com divergências entre benefícios marginais sociais e seus custos, a menos que tal tenha como consequência a possibilidade de motivar os súditos a lhe depor.
Além disso, o rei, enquanto um maximizador de riqueza pessoal, tem incentivo para tratar seu reino como um investimento. Ademais, isso pode parecer algo positivo, uma vez que ele terá incentivo a maximizar seu valor a longo prazo, tal desconsidera a natureza dos retornos desse investimento. Os retornos esperados por parte do monarca se traduzem nos futuros ganhos tributários que ele terá, de forma que ele tem incentivo a tributar os agentes econômicos de forma a extrair os ganhos de um aumento renda derivado de um período de crescimento econômico. Considerando que isso seja feito de forma aos agentes formarem uma expectativa de que irão ser tributados em igual proporção do aumento de seus ganhos, isso pode inibir o crescimento econômico de longo prazo.
Entretanto, tal crítica considera apenas os incentivos internos que um monarca teria. A formulação de Hoppe leva em consideração que tal monarca estará inserido em um cenário de extrema fragmentação política. A concorrência de unidades políticas externas pode criar os incentivos corretos para inibir o comportamento extrativista do monarca. Como colocam Qian e Weingast (1997), ainda que um governante não tenha incentivos dentro de sua unidade política para tomar políticas ótimas, incentivos externos podem modificar seu comportamento por meio da competição entre unidades políticas18. Um exemplo concreto disso é dado pelos sistemas federalistas. Assim como a competição no mercado cria incentivos para que os administradores reflitam os interesses dos acionistas de uma empresa, a competição entre governos locais limita o comportamento predatório dos governantes. A competição entre unidades políticas por recursos móveis, como pessoas, previne que governantes adotem políticas debilitantes e faz com que apenas aquelas medidas preferidas por seus cidadãos sejam adotadas. Políticos em estados centralizados podem achar fácil subsidiar companhias ineficientes, realizar políticas protecionistas e ter grandes déficits fiscais. Em um sistema federalista, entretanto, os recursos móveis, a possibilidade de saída, eleva os custos de oportunidade para medidas ineficientes. Uma vez que a saída de recursos significará uma perda de receita, a competição acaba por servir como choque exógeno para melhoria da governança política interna. Esse é o caso dos principados alemães.
O cameralismo defendia que os cidadãos de uma unidade política fossem vistos como clientes e não como meios para serem usados pelo estado. Essa influência quase kantiana nos escritos dos autores alemães fica claro no conceito de cammerwesen (governança cameral), com tal servindo como fonte para a negação da influência maquiavélica na administração pública. Isso fica bem claro no ethos-regierung de um dos maiores príncipes alemães que aplicaram os princípios cameralistas em seu governo, Frederico II da Prússia, e expresso em sua obra O Anti-Maquiavel. Como coloca o monarca, na abertura de seu livro:
O que dizer então das ideias de interesse, grandeza, ambição e despotismo? Ocorre que o soberano, em vez de ser senhor absoluto dos povos que estão sob sua dominação, na realidade não passa de seu primeiro serviçal e deve ser instrumento de sua felicidade, tal como esses povos o são de sua glória. (FREDERICO II, 2014, p. 2)
Frederico II mostra um ponto bastante importante do cameralismo que é sua crítica à busca total de poder das grandes nações europeias. Os grandes impérios mercantilistas eram dominados por uma visão de um jogo político internacional de soma zero, onde a glória de um país só poderia ser alcançada por meio da expansão territorial às custas das outras nações. Soma-se a isso ainda um consequencialismo que dizia que todos os meios utilizados seriam válidos desde que a supremacia política e econômica fosse alcançada. Cameralistas como Frederico II viam isso como um absurdo moral e algo completamente insustentável do ponto de vista prático:
A política de Maquiavel só pode ser aplicável a um único homem, para a pilhagem de todo o gênero humano; pois que confusão haveria no mundo se muitos ambiciosos quisessem arvorar-se de conquistadores, se quisessem apoderar-se dos bens uns dos outros, se, invejando tudo o que tivessem, só pensassem em invadir, destruir e despojar cada uma de suas posses! No fim só haveria um senhor no mundo, que teria obtido a sucessão de todos os outros e só a conservaria enquanto o permitisse a ambição de outros que chegassem depois (…). Mas suponhamos que esse conquistador submeta o mundo inteiro à sua dominação. Submetido a esse mundo, ele conseguiria governá-lo? Por maior que seja, um príncipe é um ser muito limitado, um átomo, um mísero indivíduo que quase não se percebe a rastejar por sobre este globo. Mal poderá guardar o nome de suas províncias e sua grandeza só servirá para tornar mais evidente sua verdadeira pequenez (…) Por se apoderar violentamente dos estados de um príncipe, um ambicioso terá o direito de mandar assassiná-lo e envenená-lo. Mas, assim agindo, esse mesmo conquistador introduz no mundo uma prática que só poderá a vir a ser causa de sua própria vergonha; outro mais ambicioso e mais hábil o punirá com a Lei de Talião; invadirá seus estados e o fará perecer com a mesma injustiça com que ele fez seu predecessor perecer. (FREDERICO II, 2014, p. 7-10)
Essa visão normativa do príncipe filósofo não tinha causas puramente éticas. A preocupação do governante cameralista em atender bem seus “clientes”, promovendo seu bem-estar, era visto como necessário para a manutenção da ordem interna:
Um povo contente não pensará em revoltar-se; é maior num povo feliz o temor de perder seu príncipe, que também é seu benfeitor, do que nesse soberano a apreensão pela diminuição de seu poder. Os holandeses nunca teriam se revoltado contra os espanhóis se a tirania dos espanhóis não tivesse se excedido tão enormemente que os holandeses já não poderiam ser mais infelizes do que eram. O Reino de Nápoles e o da Sicília passaram mais de uma vez das mãos dos espanhóis às mãos do imperador e do imperador para os espanhóis; sua conquista sempre foi muito fácil, pois ambas as dominações eram muito rigorosas e aqueles povos sempre tinham a esperança de encontrar libertadores em seus novos senhores. Que diferença entre aqueles napolitanos e os lorenos! Quando foram obrigados a mudar de dominação, toda a Lorena chorou; lamentava-se a perda dos descendentes daqueles duques que, havia tantos séculos, estiveram no poder naquela próspera região, entre os quais contam-se alguns tão estimáveis pela bondade que mereceriam seguir de exemplo aos reis. A memória do dique Leopoldo era tão cara aos lorenos que, quando sua viúva foi obrigada a sair de Lunéville, todo o povo se ajoelhou na frente da carruagem e os cavalos foram detidos muitas vezes; só se ouviram lamentos, só se viam lágrimas (FREDERICO II, 2014, p. 5).
Os monarcas cameralistas, em sua busca por eficiência, tinham um profundo ódio à corrupção e desperdícios. Na Prússia, Frederico Guilherme I e Frederico II criaram formas de sufocar a burocracia corrupta e desenvolveram uma profunda intolerância para com a corrupção (CLARK, 2006). Durante o reinado de Frederico Guilherme, por exemplo, foi ditado de uma só vez uma instrução geral para os funcionários públicos com 35 capítulos e 297 parágrafos. O mesmo, em 1714, criaria um órgão de fiscalização das finanças públicas chamado Câmara Geral de Contas (o antepassado do moderno tribunal de contas). Frederico II foi tão severo com as burocracias e com a punição da corrupção que muitos funcionários públicos festejaram sua morte (VON KROCKOW, 2002).
Se o governante deve ser forte, segundo o argumento de Frederico, ele precisa de um exército forte; todavia, tal é inútil sem renda para sustentá-lo, uma vez que nenhuma guerra bem sucedida pode ser travada sem recursos (CLARK, 2006). A exploração fiscal dos súditos irá, contudo, apenas danificar a base onde a renda é originada. Seria como destruir o próprio cliente em ordem para maximizar os lucros de uma empresa. Ao invés disso, o governante deve fazer seus súditos felizes e prósperos para esses gerem, de maneira ótima, a renda necessária para o governante financiar seus exércitos e consolidar sua ordem. Como coloca Frederico II:
Dizeis Maquiavel que um príncipe deve destruir um país livre recém-conquistado para assegurar sua posse; mas responderei: com que finalidade ele terá empreendido essa conquista? Direis que é para aumentar seu poder e tornar-se mais temível. É o que eu queria ouvir, para vos provar que, seguindo vossas máximas, ele faz exatamente o contrário; pois arruína-se ao fazer essa conquista e em seguida arruína o único país que podia ressarci-lo de suas perdas. Havereis de admitir que um país devastado, saqueado e privado de habitantes, gente, cidades, em suma, de tudo que constitui um estado, não poderia tornar um príncipe temível e poderoso pelo fato de possuí-lo. Creio que um monarca que possuísse os vastos desertos da Líbia e de Barca não seria muito temível, e que um milhão de panteras, leões e crocodilos não valem um milhão de súditos, cidades ricas, portos navegáveis cheios de navios, cidadãos industriosos, tropas e tudo que é produzido por um país bem povoado” (FREDERICO II, 2014, p. 22).
Geralmente, se coloca o cameralismo, dentro das ciências sociais, como um ramo primitivo da economia. O foco dos primeiros cameralistas na“Oeconomie”(felicidade individual) e “Polizey”(felicidade geral), na visão dos economistas modernos, os caracteriza como investigadores primitivos dos problemas econômicos fundamentais; geralmente sendo colocados junto com os mercantilistas. Mas isso seria identificar esses termos com suas valorações modernas e não com os significados que tinham quando o cameralismo foi concebido. Para os cameralistas, “Polizey” tem um sentido aristotélico e não utilitarista como para os economistas modernos. A unidade política não está organizada somente para a promoção do bem-estar, mas para uma série de outros valores (civilidade, liberdade, beleza, etc) e está organizada em torno de uma ordem regulada de forma não-jurídica; pela necessidade de formação da polis pelo animal social. Já “Oeconomie” significava antes a forma normativa de administração dessa ordem, seguindo a inviolabilidade dos indivíduos, do que uma preocupação com a esfera individual (TRIBE, 1984).
A política econômica cameralista pregava que os interesses do governante e do súdito estavam ligados por um fio de auto-interesse mútuo. Isso criava um equilíbrio institucional ótimo. Os estados que enfrentavam problemas com falta de população poderiam melhorar suas condições econômicas fazendo reformas de incremento de produtividade, gerando crescimento econômico e atraindo pessoas de outras unidades políticas para seu território. O governante ganhava novos pagadores de impostos e as pessoas um melhor governo e condições de vida (BACKHAUS; WAGNER, 1987). É basicamente o conto smithiano do padeiro e do açougueiro em uma versão política.
Mesmo com avanços nas tecnologias de extração tributária, como a invenção do imposto de renda ou da senhoriagem inflacionária, a análise cameralista focava em maioria nos limites da tributação. Eles argumentavam por prudência nos impostos e elaboraram várias regras para promover o interesse dos príncipes. Essas regras podem ser descritas como as ideias de que: as alíquotas tributárias deveriam ser baixas, a renda tributária deveria ser usada para propósitos urgentes e benéficos e os tributos deveriam ser facilmente administrados. O princípio de que os impostos deveriam ser baixos para não desencorajar a atividade econômica ou incentivar a fuga de capital para outras unidades (TRIBE, 1984). O princípio dos propósitos urgentes desenvolvido pelos cameralistas colocava que o peso dos impostos não poderia exceder o custo que eles estavam dispostos a arcar pelos serviços. Logo, os impostos deveriam promover o bem-estar somente ao mesmo nível de seu custo de eficiência. As visões cameralistas de que deveria existir limites aos poderes fiscais do estado eram bastante semelhantes à dos economistas liberais clássicos, porém iam além deles. Enquanto que os liberais modelavam limites sobre até onde o estado poderia se financiar com base em tributos, o estado cameralista ideal não cobraria nenhuma forma de tributo (WAGNER, 2012). As receitas de um estado cameralista ideal viriam unicamente das propriedades dos príncipes.
O autor cameralista e conselheiro da Casa Hohenzollern, Johann Gottlob von Justi, criou o importante conceito de finanzwissenschaft, segundo o qual a base tributária do governante não poderia perturbar a ordem da unidade política; isto é, não poderia ser usado de meios que violassem as instituições jurídicas da sociedade, como a igreja, a propriedade ou a integridade individual dos cidadãos. Por essa razão Von Justi considerava que a senhoriagem era uma forma imoral e ilusória de riqueza de um estado, pois feria os princípios de contrato entre cidadão e governante firmados na ordem monetária (BACKHAUS; WAGNER, 1987). Era considerado que o acúmulo de metais uma maldição que apenas encolhia o potencial de crescimento de uma nação, pois tornava seus cidadãos meros comerciantes de objetos baratos (sem valor agregado) e causava elevações de preço ruinosas (nessa época, boa parte da Europa já estava familiarizada com a inflação produzida pelo ouro americano na Espanha) que piorava, em última instância, a balança de pagamentos de uma unidade política. Os cameralistas ainda acreditavam que a riqueza era um produto da produtividade e industriosidade de um povo, seu capital humano visto como trabalhadores qualificados e conhecimento técnico-científico.
A própria vida de Von Justi pode servir de exemplo acerca da frieza racional dos governantes cameralistas. Durante parte de sua vida, ele foi o conselheiro financeiro pessoal de Frederico II. O conselheiro propôs a Frederico usar os fundos do tesouro real para a construção de um complexo siderúrgico em Neumar para acabar com a dependência Prússiana de aço importado da Suécia e da Saxônia. Contudo, no fim o empreendimento foi um fracasso e, como punição, Frederico enviou pessoalmente Von Justi para a prisão de Küstrin, por crimes de má administração contra o tesouro Prússiano19 (CUNHA, 2013).
Seguindo a lógica proprietarista, mesmo que indiretamente, os cameralistas, da mesma forma que restringiram a tributação, criaram uma série de princípios para a maximização da renda dos príncipes (SALTER; HEBERT, 2014). As principais fontes de renda de um estado cameralista eram: rendimentos de regalias, impostos, empréstimos e, sobretudo, a renda das propriedades do príncipe. Os príncipes cameralistas possuíam diversas propriedades agrícolas e minas, além de manufaturas e negócios financeiros. Essas empresas e empreendimentos não eram monopólios e competiam com outras empresas no mercado, uma vez que, dado que seu propósito era arrecadar receita, subsidiar suas próprias atividades seria ilógico. Um exemplo disso foi a competição do Duque Wilhelm V da Bavaria e sua cervejaria com os monastérios católicos e a mineradora da Casa Hohenzollern com outras empresas Prussianos (BACKHAUS; WAGNER, 1987).
Poderia se argumentar que isso é muito bonito enquanto princípios, mas qual a garantia de que os príncipes iriam adotar essas ideias? Por qual razão eles iriam se limitar e seguir tal governo ético? A razão não é nenhuma superioridade de caráter ou iluminação, como em Frederico II, ou nada do tipo, mas sim a competição criada pela divisão do Sacro-Império em diversas pequenas unidades:
É claro, os príncipes alemães não tomaram esses conselhos por meio da bondade de seus corações. Uma vez que existia tantos principados reunidos em uma região geográfica relativamente pequena - a Paz de Vestfália de 1648 reconheceu cerca de 300 principados soberanos - cada um desses estados era limitado pela possibilidade de seus habitantes de deixar a unidade política. Ademais que existisse lei de jure ligando os camponeses à terra, de facto era relativamente simples para um indivíduo que quisesse trabalhar em melhores condições nos estados vizinhos deixar sua terra. Essa operalização de votar com os pés forçou os príncipes alemães a se comportarem como tomadores de preços na provisão de governança. Isso se põe em contraste com os grandes poderes do período, como a Grã-Bretanha e a França. Nesses reinos vastos e poderosos, o mercantilismo prevaleceu como método por meio do qual as soberanias satisfaziam seus fins de maximização de poder para perpetuação de regime. As grandes potências então eram price-takers de governança, empregando a taxação como forma de precificação política monopolística e venda de direitos monopolistas de produção (SALTER; HEBERT, 2014, s/p).
Por essas razões Wagner (2012), analisando o episódio do cameralismo sob o prisma analítico da Escola da Escolha Pública, coloca que o cameralismo talvez seja um caso único de validade do modelo de um déspota benevolente20.
Porém, esse sistema encontrou seu fim com as Guerras Napoleônicas. O Império Francês que nasceu após a Revolução Francesa invadiu os países germânicos vizinhos em resposta às agressões sofridas pelas forças da Liga (Prússia, Rússia, Áustria, principados germânicos e Grã-Bretanha), que buscavam anular a revolução e impedir que seus ideais se espalhassem para as outras monarquias europeias. Após a Batalha de Austerlitz em 1805, os vários estados alemães foram incorporados ao Império Francês e o Sacro-Império Romano Germânico encontrou seu fim formal.
Após a derrota de Napoleão na Batalha de Waterloo e o fim do Primeiro Império Francês, as nações vencedoras e a França, representada por seu maquiavélico embaixador Charles de Talleyrand, se reuniram no Congresso de Viena, de 1814, para discutir o restabelecimento das fronteiras europeias que haviam sido apagados pelo avanço francês. Os territórios, que outrora formavam o Sacro-Império, foram em maior parte absorvidos pelas vitoriosas monarquias da Prússia e do Império Austríaco. Os Estados que não foram absorvidos, como o Reino da Bavária, foram reunidos em uma união de Estados conhecidos, como a Confederação do Reno (KENNEDY, 1989). A ideia era a de que a mesma fragmentação de outrora fosse mantida para deter a formação, tanto da Prússia, como da Áustria, enquanto poderes hegemônicos.
Todavia, esse equilíbrio não se manteve. Forças desestabilizadoras internas levariam ao fim completo do sistema. Mesmo após a derrota de Napoleão em Waterloo, a Europa seria assombrada pelo fantasma da Revolução Francesa. Mesmo depois da derrota política da revolução pelas forças da coalizão, as ideias revolucionárias continuaram a ser semeadas pelo continente por diferentes intelectuais (HOBSBAWM, 2015). Do discurso de libertação dos povos e do brado pelo fim da aristocracia, misturado com o contexto multiétnico de muitos Estados europeus (como a Confederação Germânica e o Império Austríaco), houve uma transformação em ideias de “libertação nacional”; onde os povos oprimidos (tchecos, húngaros, sérvios, alemães, etc) lutariam pela independência de suas nações contra os “opressores” (notadamente os austríacos). Dessas ideias de afirmação do conceito de nação, juntamente com o radicalismo político revolucionário francês, surgiu a ideologia que os historiadores chamam de “nacionalismo liberal”. Seria essa ideologia que alimentaria a série de revoluções no ano de 1848, conhecidas como a Primavera dos Povos.
As elites intelectuais iluministas do século XIX estavam preocupadas com a delimitação de padrões universais para o entendimento do conceito ideal de “humanidade” (ELIAS, 1997). Na classe média alemã, isso se traduziu no embate entre abordagens históricas tradicionais, como as Leopold von Ranke, consideradas aristocráticas, e a interpretação universal da história conduzida pela kulturgerschichte (história cultural). O objetivo dessa nova abordagem era definir uma narrativa geral da civilização, que não levasse mais em conta a perspectiva aristocrata do hero worship; a narrativa da história pelo feito dos chamados “heróis nacionais”. Os revolucionários de 1948 buscavam a formação de unidades nacionais homogêneas, unificadas e guiadas por princípios do iluminismo revolucionário:
Os radicais confessadamente tinham uma simples solução: uma república democrática unitária e centralizada da Alemanha, Itália, Hungria ou o país que ocorresse ser, constituído de acordo com os princípios da Revolução Francesa sobre as ruínas de todos os reis e príncipes, e que empunhasse sua versão da bandeira tricolor que, usada pelo modelo francês, era o modelo básico de uma bandeira nacional (HOBSBAWM, 2015, p. 32).
As revoluções começaram naturalmente na França, onde a nova república, proclamada em 24 de fevereiro de 1848, pôs fim ao período da Restauração Bourbon ao tirar o rei Luís Filipe I do trono. Em seguida, em 2 de março, revoluções emergiram nos principados alemães do sudoeste da Confederação Germânica. Em 6 de março, revoltas tiveram início nos Reino da Bavária e após isso vários movimentos revolucionários foram observados em Berlim, Viena, Milão, Budapeste e na Sicília. No fim do ano, os movimentos revolucionários já tinham chegado ao Brasil e à Colômbia.
As aristocracias continentais europeias tentaram revidar formando a Santa Aliança. O objetivo dessa aliança militar, comandada pelo Império Austríaco, era suprimir as revoltas e impedir a deflagração de uma outra Revolução Francesa na Europa. Na Prússia, o segundo maior poder político na Europa Central, os junkers suprimiram as revoltas liderados pelo primeiro-ministro Otto von Bismarck e usaram da oportunidade do caos revolucionário para consolidar o poder Prússiano (CLARK, 2006). Isso acabou levando a uma série de movimentos geopolíticos que, por fim, levariam às guerras de unificação alemã.
Uma das razões da ascensão da Prússia e da unificação alemã foi o declínio da influência austríaca dentro da Confederação Germânica. As intervenções da Santa Aliança, comandada pelo primeiro-ministro austríaco Klemens von Metternich, para sufocar as revoluções liberais de 1848, foram por demais violentas e jogaram várias potências estrangeiras, como a Rússia e a Grã-Bretanha, nos assuntos internos dos estados germânicos (KENNEDY, 1989). Com isso, o prestígio austríaco entre os nacionalistas alemães caiu e muitos passaram a ver na Prússia, um poder capaz de realizar seus sonhos de uma Alemanha unificada. Como resultado, forças nacionalistas passaram a apoiar a causa de Otto von Bismarck e a causa passaria a ser guiada pela bandeira Prússiana21. Graças a esse conjunto de fatores, os principados alemães foram unificados em 1871 e a Alemanha nasceu com as cores da Casa Hohenzollern. Todavia, uma pequena lembrança dessa época ainda permanece viva até os dias de hoje: Liechtenstein.
O pequeno principado foi fundado em 1699, pelo príncipe Johann-Adams von Liechtenstein, que comprou os condados de Schellenberg e Vaduz e os unificou em um principado próprio, que então integrou como membro do Sacro-Império Romano Germânico. O principado não foi invadido por Napolão, que considerava o príncipe reinante Johann Joseph I como um líder militar respeitável e manteve a soberania do país. Mesmo com o processo de unificação alemã e com as várias guerras que devastaram o território germânico desde então, Liechtenstein manteve sua soberania. Notadamente, Hans Adams (2012) traça um claro manual de instruções cameralistas para gestores públicos no Século XXI. Além disso, deve-se notar que a Casa Liechtenstein é a família real mais rica da Europa, com uma fortuna de 3 bilhões de dólares. Contudo, isso não vem dos cofres públicos, mas sim, segue o princípio cameralista de que o monarca deve agir como um empresário, do banco LGT de propriedade da família. Ele é a última parte sobrevivente do Sacro-Império e o último país do mundo a ainda ser governado por princípios cameralistas.
CONCLUSÕES
No presente texto, foram expostas as ideias e o contexto histórico do cameralismo. Fazem 214 anos que o Sacro-Império deixou de existir e, com ele, a prática das ideias cameralistas. Logo, seria plausível dizer que esse cadáver sequer deveria ser reerguido de seu gélido túmulo.
Contudo, o mundo passa atualmente por uma Era histórica de conturbações e mudanças nos paradigmas sociais, assim como o foi a passagem da Antiguidade para o Feudalismo. Experimentamos uma aceleração da fragmentação.
A tecnologia da informação criou uma cultura global entre as novas gerações. As pessoas não estão mais limitadas ao seu contexto cultural local, agora, elas integram uma cultura comum; são “cidadãos do mundo”. Um jovem no Japão come refeições do McDonalds, da mesma forma que um jovem americano. Um jovem americano ouve bandas europeias, ao mesmo tempo que come comida indiana e usa roupas em estilo jamaicano. Um jovem indiano estuda mandarim, após ter assistido um anime japonês em seu celular Samsung. Todos integrados por uma complexa teia cultural, criada pelo mercado globalizado. Esse é o estranho paradoxo cultural da globalização. Ao mesmo tempo em que cria padrões globais de consumo, que dão impressão de uma cultura comum, onde cada país mescla os elementos culturais importados em padrões locais únicos.
A economia já não está mais restrita aos espaços delimitados pelas fronteiras. Ao contrário dos processos de produção de produção passados, onde a cadeia de produção ocorria em um mesmo espaço (uma viga de aço era fabricada em Glasgow, negociada em Londres e exportada por Cardiff), o mundo globalizado pós-Guerra Fria não depende de nações inteiras para produzir e gerar crescimento, mas somente de regiões específicas. Quando examinamos os bens e serviços produzidos nas cadeias globais de valor, bem como as empresas responsáveis por eles, não é fácil associar-lhes um rótulo nacional exato (OHMAE, 1996). Será que um computador Samsung é realmente um produto da Coreia do Sul, considerando-se que uma grande porcentagem de seus componentes vem do exterior? O desempenho das subsidiárias da Toyota fora do Japão ou de suas operações de P&D na Europa e nos Estados Unidos é realmente uma medida da excelência da economia japonesa ou de todas as suas partes integrantes individualmente? E quanto aos empregos gerados por companhias de hardware chinesas na Índia, são eles realmente um indicador da saúde da economia chinesa e não da indiana? A Era dos Estados acabou. São regiões e cidades que dominam a maior parte da economia agora: Hamburgo, Londres, Califórnia, Sul da China, o Vale do Silício, Bangalore, Tóquio, Cingapura, Mumbai, Dubai, Shenzhen, Xangai, etc.
Em contraste com o período anterior, dominado pelas economias nacionais dos estados-nações, Kenichi Ohmae coloca que estamos vivendo o período de ascensão dos estados-regiões como as entidades políticas mais eficientes em lidar com as demandas de um mundo globalizado:
Os estados-regiões acolhem favoravelmente o investimento estrangeiro. Eles acolhem os fluxos de capital vindos de fora. Eles acolhem a propriedade e a defendem. Eles acolhem favoravelmente tudo que contribuir para empregar produtivamente sua população, para melhorar sua qualidade de vida e para dar-lhes acesso aos melhores e mais baratos produtos de qualquer parte do mundo. Além disso, eles aprenderam que esse acesso costuma ser melhor e mais fácil quando os produtos não são produzidos dentro do país. Os estados-regiões também aproveitam os excedentes, gerados por essas atividades, para elevar ainda mais a qualidade de vida de seu povo e não para financiar o mínimo público ou para subsidiar indústrias obsoletas. Seus líderes não dão as caras em algum lugar do mundo tentando atrair fábricas e investimentos e, depois, aparecem na TV do próprio país, prometendo proteger as empresas locais custe o que custar. Em suma, eles sistematicamente põem a lógica global em primeiro lugar (OHMAE, 1996, p. 83).
As pessoas estão conscientes de que a mudança política por engajamento em movimentos sociais, eleição de representantes parlamentares e debate público não surtem efeito nenhum na forma como as coisas são conduzidas. A maioria dos cidadãos é incompetente, ignorante, irracional e têm conduta moralmente duvidosa sobre assuntos políticos (CAPLAN, 2011). Todavia, em uma democracia, são essas pessoas que têm poder sobre mim ou você. Essas pessoas determinam quem será eleito, podem subir a grandes postos de poder e influenciar regulações que afetam a vida de todos. Eles podem lhe forçar a fazer coisas que não você não quer ou não tem razão para fazer, como lutar uma guerra estrangeira por puras razões de interesse geopolítico. Mas por qual razão elas deveriam ter poder sobre os outros indivíduos? Por qual razão deveria se aceitar a imposição de um governo defeituoso sobre sua vida? Isso gera uma pressão social por alternativas de saída do sistema político, que podem desaguar tanto em formas alternativas de governança como em mudanças radicais de governo; como a eleição de populistas, que dizem que vão “acabar com tudo que está aí" ou políticos que dizem que vão administrar as coisas como se fosse uma empresa.
A geração mais jovem, imersa na aceleração tecnológica e na extrema eficiência das companhias privadas, não suporta mais esse cenário. Existe uma noção dentro do vale do Silício de que o progresso ficou estagnado apenas no setor de tecnologia da informação. Não ocorreu um incremento significativo de avanço em nível de eficiência de outros setores e, sobretudo, uma adaptação das instituições existentes às demandas complexas e dinâmicas criadas pela nova revolução industrial (RUNCIMAN, 2018). Todavia, pouco ainda é feito. A elite cibernética de Palo Alto considera louváveis e necessários os atos de empreendedorismo, no sentido de construir novas tecnologias e soluções inovadoras para os problemas ao seu redor, mas seu ódio à política, a sua lentidão e ineficiência, os levou a desconsiderar que as instituições são fundamentais para o processo de mudança. Isso os impediu de perceberem que eles têm que assumir uma posição aristocrática, de liderança típica das próprias elites, para superar essa barreira.
Iniciativas estão sendo tomadas para a construção de instituições mais eficientes para os desafios de nosso admirável novo mundo. Paul Romer e o Charter Cities Institute estão prestando consultoria para a construção de cidades com governança alternativa em países pobres. Patri Friedman e o Seasteading Institute estão projetando ecossistemas marítimos de governança para a geração cibernética do Vale, Titus Gebel, além disso, sua Free Private Cities tem desejado fazer o mesmo em terra firma e já procura países hóspedes. Por fim, Joe McKinney e a Startup Societies Foundation tem oferecido uma excelente plataforma para a discussão e treinamento dos construtores de novas alternativas.
O cameralismo já foi testado antes e pode perfeitamente servir para nossas necessidades atuais. Eles lidaram com um mundo caótico e em extrema mudança como nós lidamos agora. Ele pode fornecer lições para os empreendedores que irão construir a nova ordem política do século XXI.
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